[Edição de Autor, 2021]
entre alvéolos de sangue e pedra
o senhor dos pássaros compõe
uma nuvem de ritmo ―
do que pode viver o pobre coração roubador
entre a folhagem?
que pode a dormência ácida ante o abandono dos astros?
uma amnésia de clorofila tóxica
[sonho ou pesadelo]
não interessando à floresta cerebral
qualquer dicotomia ―
o que virão trazer pelo ruído os animais do bosque?
cultivam como dádiva vital cada som-sangue?
e porque ruído se pão ao sangue arterial
em cada vislumbre do senhor dos pássaros?
✫
a ilusão cortada na respiração
contadas as espigas de centeio nocturno pelo caminho
com a alegoria fantasmática de flashes da memória
começa eventualmente com uma proposta em forma de noz
excessivamente vegetal a demanda do nomadismo cíclico
de ausências ― a solução do extermínio por selecção natural
por condenação da cegueira gerada pela tecnologia dopante
a aranha-mãe decepa então o fio-mestre da sua própria teia
condena-se fútil emaranhando o seu corpo num xaile de seda
falando ensimesmadamente doente de dentro para dentro ―
✫
a menina das águas falou-me sobre mergulhos no sono
enquanto subíamos uma encosta
e explicou-me implicações do bolbo raquidiano
na vida corrente
depois enveredámos pelo trilho das sombras
que é como quem diz pelo trilho das folhas-esqueleto
a voz da menina das águas reiniciou energia
na cor do movimento das folhas à nossa passagem
devolveu espíritos a ausências feridas de pensamento
rodopiando surge a rapariga das pétalas vermelhas
girando vertiginosamente o véu de cinza que traz
sobre a cabeça ― o que o mundo terá a dizer agora
não andará longe do pontilhado das línguas de flores
num suave momento perfumado e sob o olhar atento
de árvores invertidas que atendem a perfusão de luz
no peito da rapariga que rodopia entre as pétalas ―
filha de duas árvores secas ela sobejou da água de palavras
não sabe o seu nome, só que nasceu no bosque; conhece
um por um todos os faunos e as mais recônditas nascentes
― a dança é a energia de berço que desde logo abraçou
e domina os trilhos do vento manobrando-o no exercício
dos aromas nomeados até à exaustão por recalcamento
em cada decalque ontológico designado de movimento
as árvores invertidas vêm de uma humanidade desdobrada
cada humilhação conta na necrose emocional das estações
perdem água por osmose a choros desamparados e limpos
seus órgãos internos atravessam os reinos animal e vegetal
intermitentemente estranhando qualquer ordem biológica
― por comoção da dádiva da rapariga rodopiando as pétalas
geram um arco de tensão como improvisada placenta de luz
✫
pressupor que a criança sacuda o ouro umbilical
e caminhe directamente na brancura adulta do sono
pressupor a existência complexa do rude ferro
em amplitudes côncavas do arco-íris
tudo na possibilidade de um cofre lenhoso
mais duro e precioso
no cerne lento de cada árvore vertical
posicionada em consonância
com a temeridade indecisa de constelações
lá no alto
✫
pelo silêncio o senhor do rochedo imolou-se fugindo
à pandemia de falsos espíritos ― escapam-se-lhe palavras
entre meatos de uma meditação mineral, dói-lhe bem fundo
no coração de quartzo; no seu corpo estão milhares de ossos
de homens e de mulheres, e de muitas crianças também
talvez a principal razão do vento cantar através das rochas
porém o cerne do senhor do rochedo não é um coração
antes um livro de basaltos e lavas antigas com um segredo
de fechadura que é um eco de montanha; eco andarilho
de trilhos tão complicados como arteríolas no cérebro ―
qualquer explicação reduzida a poeira estelar se cremada
a intelligentsia
compreendo melhor a fuga do senhor do rochedo
depois de ter falado com a minha própria sombra
na estrada ― afinal sou uma marioneta-de-sombras
um búzio com mortos a falar lá dentro, sou uma pedra
no caminho
chegado ao alto do rochedo meu senhor adormecido
com as minhas velhas sandálias aleijadas de sono e êxodo
cerro extasiado os olhos e adivinho os aromas da brisa:
pólen, restos de orvalho, algum suor ainda não apodrecido
e especiarias; humedeço os lábios com a língua, faço deles
um papel-segredo vazio de escrita como se eco de montanha
✫
a fonte planta desordem na origem reinventada
da linguagem
começa por uma semente da fala treslida no sonho
sonho como globo de fruto arredondado
em palatos do espírito
a desordem é a árvore que a fonte não vê
embora a alimente
havendo entre dobras e recantos de membranas
um plano de sangramento da ideia à procura do corpo
a fonte planta desordem na paisagem
nem o horizonte nem o zénite do olhar
dão a medida do espanto de versos
saliva mágica da permanência
o bloco de carbono pesa como noite inteira
✫
não entendo a tulipa negra na noite
abrindo e fechando outrora mão uma flor
leque de silvos urbanos surpreendidos pelo incêndio
passo a passo desaparecendo
magoadas sombras
sobrepostas à faca ―
dançar por um segundo no átrio entre transeuntes
ler em sacrifício a morte calada pelo clarão do espasmo
emaranhado ferido de células-monstro
turvas turvas como um furacão interno a aleijar
música ferida a ferir mais e mais passo a passo
um frívolo rosto gigante da mágoa
desaparecendo traço a traço
ao queimar memórias no périplo da solidão dentro
✫
às vezes na mínima poça de água esverdeada do bosque
como que acontecendo algures dentro da barriga das palavras
consigo sentir ainda o torso do mar zangado
duma tarde chuvosa de setembro enganado ― e penso
a mínima gota da poça de água
aos meus olhos ainda é torso viril do mar
redemoinhando verdes instáveis e espuma
. sou esta manhã o que fui naquela tarde
por dentro do torso do mar
os dedos a medo pressionando o veio
prevendo nuvens negras como cachos de azedume
a pesada cabeça inteira tentando ser o sal
― na fisicalidade e na memória
a turva e feroz água-mármore do mar
esborrata as palavras no lodo fibroso do pensamento
✫
volto-me aquando a intempérie do teu rosto
volto-me revolto nu
vislumbrando a madrugada azul
e dormindo mais tarde no nervo da folha
magoada de dedos
sopé da verdade suja, desvirtuada
roupa destruída dos anjos desertores
entro e reentro na fúria do búzio
enquanto osso
o teu rosto entra no meu
e uma praia sangra no acordar lento
parte metal funcional
linha triste dum choro de frutos
despidos à mesa
é na curva do silêncio
que as árvores centenárias caminham
no pensamento
― falo da viagem que é esse teu rosto
confundindo-se com o meu ―
mais um minuto de sono
entre memórias de frutos magoados pelos dedos
bebe a minha morte branca
que a noite escura guardo para mim como vinho de lírios
ofereço-te antes
os campos onde salgo o meu cansaço entre o feno
talvez por não me veres engolir as paredes
deste quarto já corpo
retesado betão da desilusão envenenada com a fome de fetos
por não me veres a desesperar de esperas entre esperas
prenhes de ar balofo
esfriando as esferas do universo na mão, por não me veres
a desesperar bêbado com a terra moída de fogos sem língua
cai-me tinta na pele e é sangue
cai-me sangue dos olhos e é tinta
entre ervas secas tanto perfume caramelizado de livros
lidos e revolvidos nos intestinos
bebe a minha morte branca
que seja alimento de vazios engrandecidos na tua escrita
a noite escura é-me rio onde nego as faces rasgadas daquilo
que entre a névoa artificial da manhã costumam chamar
de amor ―
caronte não fala da água escura como horizonte, não fala
da noite uterina de promessas corroídas pelo esquecimento
eu espero entre esperas mas já não desespero
e rio-me e guardo entre os meus braços de rio
o que é ser noite
essa morte feita escuridão que me trará nova morada
onde sonhar como dormir lendo na minha cama
✫
eis o promontório seminal ―
ao de leve provar o sal com que a luz da manhã
fere a barriga
silvo feérico do bosque entre o suor nocturno
a enveredar por sombra
contra a luz de cada coisa a sobrar em reflexos do dia
― o promontório seminal ―
forma de brincar à perigosidade lenta de espelhos
confrontando sanguineamente cada pétala de sal
✫
está um velho cão cansado na floresta ―
nenhum amor de lobo o vai salvar
✫
mãe árvore
os nódulos da culpa toldam-me a maçã de sol
, detrás deste nevoeiro veranil quase biombo
pergunto-te:
serei digno de a trincar?
mãe árvore
minhas mãos crescem como ramos desajeitados
procuram expansivas o rumor das águas
[sede em ler nos nós o sangue mentido
como agrura alcatroada do supérfluo]
mãe árvore
visto ferida a ferida por camisa
em vez da humilde carcódia
: côdea a côdea floreio um ruído de cinza
como se dizer fosse um borrão de tinta
sobre a boca
lá em cima cada nuvem equivale
a um osso
aqui abaixo
sério arranhão onírico
a cada razão de verdade
em som e delírio por palavra
cada ave
um baque do espanto
[ar ou terra]
de cada sentença
✫
pessoas há que morrem para dentro ―
algumas tentam evitar essa morte
em nicho de depressão
morrendo repetidamente para dentro de livros
este céu de crivo azul onde dançam
centenas de variações de trinados de pássaros aflitos
. com um papel orgânico este céu escrevendo azul
surpreenderia humildemente rainer maria rilke ―
porque som e gravidade em movimento rotacional
a vertigem em cacho de sopros da vida incendiária
sopros postos em vitral representando becos do espírito
este céu ― pão molhado raso à boca
e nenhuma estrada faz a camisa do mendigo
vivificante vagabundo das fábulas à fogueira lunar
, mas o som com o seu peso na cor faz tremer
a água cortada pelos barcos manhãs e tardes a fio
olha-se o céu ―
uma mancha regulável em tamanho e espessura mental
invade misteriosamente cada célula e glóbulo sanguíneo
a ausência presencial | o fantasma dos sopros pulmonares
pois rainer, temos então o céu como pão universal
e o seu complexo crivo azul como morte natural
temos a tese e a antítese, o veneno e o antídoto
todos os apetrechos cenográficos em suspenso nos bastidores
e no palco o elenco em coma à mercê de uma antífona
✫
por um fortuito encontro
entre a fagulha de chuva e a estilha acesa do corpo
como que por entre gritos interiores e membranas
surgirá por fortuito encontro a ideia de um clarão
entre o linho e a pele ―
ou mesmo um quase imperceptível soluço
estremecendo por espanto a escala crepuscular do âmago
ainda que ridicularizada por ossos dançantes
fogueira branca na clareira do bosque
alimentada por secas ramagens quebradas pela peste
e pelo esquecimento
✫
que diz a chuva ao interior de uma casa em ruínas?
tremendamente febril este retábulo à varanda
uma casa em ruínas exposta no miocárdio da cidade
, suas entranhas gritam à verticalidade intacta
de outros edifícios periféricos ― irregular linha amarela
com polpas avermelhadas que pulsam ao olhar interno
de uma solidão de esperanças
e porque a chuva diz de mim por transcorrência
esboroo a realidade como quem esboroa a carne aos tijolos
dessa casa ― também assim a vida
erosão absoluta perante uma multidão estática
conivente com a chuva
lançando imperceptivelmente sua saliva ácida de indiferença
numa girândola camaleónica entre cruezas da verdade
uma casa em ruínas exposta no miocárdio da cidade ―
quem realmente escuta o grito ontológico da memorabilia?
porque afigura-se-me importante a sua auscultação entre
inflamáveis significados do significado antes significante?
tantos ratos cantores nos corredores da chuva
e nenhum flautista de hamelin no horizonte
✫
procuro guarida no verde
como palma gorda do vício de recordar conversas
entrosando caroços de pólen nos nós da carne nauseada
conversas como agulhas
tremendas ondas concêntricas no esterno
minguando violentamente o oxigénio na flor do sismo
✫
agora que a senhora da floresta adoeceu
todas as almas presas às árvores estão em risco
abandonadas à fome sob o plano lunar do abismo
a senhora da floresta em dor se esvai em atrocidades
e esquiva-se a pensamentos humanos de outrora
transumando-se internamente entre o vegetal e o mineral
guardando apenas uma canção que lhe corre ainda na seiva
― não sabe se azul de energia da poesia ou alucinação
pela dor de contrição de uma antiga raça a que pertenceu
os estertores das almas estão entre as variações de trinados
de pássaros inquietos na concentricidade do abismo
turbilhão de carvão pesado assombrando os olhos
de encontro ao gume imaterial que abduz a planície
[presas às árvores todas as almas a morrerem de inanição]
um objecto de plástico pulsa na aorta da senhora da floresta
miríade de falsos floemas afundando o avatar no xilema
o ramo que é braço parte e arde longe dos elementos
desdobra-se em vazios, alheia-se de qualquer dimensão
que choro petrolífero poderá almejar qualquer dignidade
a propósito de uma selvagem inteligência destruidora?
✫
recebe este sangue caminhante das estrelas ―
vê florir a mínima coroa de pão e de lágrimas
sustida pelo raio de luz da infância já longe
recebe este sangue como se um resvalar equivalesse
a cada eco da montanha que faz bater o coração ―
o caminho é de ventos cinzentos e de bolor confuso
contra o bater difuso da chuva que sulca o espírito
o caminho faz-se pela escarpa de sonhos farpados
e cada lanho de arame na pele te fará sentir vivo
não destrinces ninhos cancerígenos do passado
cauteriza fantasmas e pesadelos com a nova luz
sai do hospital como orfeu do inferno e respira o azul
depois da tempestade | rebenta como onda no areal
diz bom dia à aurora como reaparição da flor de pão
e abraça o teu corpo feito de nuvens e de pássaros
avança no dia redemoinhando as células no trabalho
ainda que o horizonte mude de cor ao crepúsculo ―
recebe então este sangue caminhante das estrelas
sim, tu que és eu num qualquer canto do planeta
esquecida a cadeira de mogno
a apodrecer na clareira
uma impressão de molinha súbita sobre o bolor
de velhos mapas abandonados
, que regresso restará ao peregrino mental?
arbítrio de humidade e abandono
dissolve-se submersa uma personalidade
na angústia de felinos vapores
com cheiros mescladamente confusos
. escuro esquecido trabalhando a morte ―
uma a uma as personagens aparecem cada qual
com uma arma de seu apanágio natural
mas só a de carne e osso [fugida dos espelhos] sentirá
no peito o toque do orvalhado rebento de videira
✫
olhar rápido como fugir ao inescapável vazio-vácuo das horas
gotas pendendo nos telhados são órgãos alheios complicados
e deturpam as pautas do casulo que em constrição convulsa
vai augurando uma aura de assombros na leitura do mundo
✫
um sono como relicário febril entre sépalas da cama ―
ela dorme e os cabelos parecem acordados de orientarem
preces da promessa de um casulo cor de fogo, nave de luz
ao toque confusa, em que o osso esboroa em neve e a carne
passa de vermelha a rósea, de granito cru a mármore diáfano
a tensão de beleza extrema provoca as gadanhas da morte
violoncelo deitado no gineceu face ao mundo tonitruante
: sob vigília ela dorme e os seus sonhos dormem com ela
o corpo expande e contrai feito mar de leite madrepérola
um grande crime se esconde dos perigos do coração ―
mato-me de vida enrodilhada nas mãos ―
que conter ainda no precipício de cristal?
sulco leitoso de sonhos, cobras enroladas
à espera na margem esburacada dum rio
escuro fundo de reabrir durante a noite
uma mão muito ferida na vez do coração
fogueira galante de árvores caminhantes
desenho de copos sobre copos no branco
gritos de cristal ecoados nesse precipício
a linfa ao lado reacendendo corpos frágeis
sede sedada, nenhum amor nenhum futuro
mato-me desacreditando a fé dos leprosos ―
onde a aura do desejo contra a melancolia?
aura veloz | contrastes que se autoanulam
trazer o perímetro flamejante para a vida
curar sombras com sombras pelas sombras
o coração ainda bate azul como fogo-fátuo
as mãos vazias, uma ácida inocuidade vital
que envenena a vontade e enegrece o linho
― sei que a crueldade curvada dos dedos
há-de rasgar a seu tempo a camisa abrindo
o caminho à morte limpa sobre as estrelas
✫
assim peregrino descanso dúvidas muitas em suspensão
de visitar amiúde as formas impalpáveis do vazio lido ―
congrego ausências pesadas de morar em silêncios vivos
e nada é foz do que digo antes sombra gotejada pela dor
assim peregrino preocupo-me com o rebanho aforístico
transmudando-me na transumância onírica das palavras
✫
diz-me por favor em que ponto da efemeridade estamos
se existir entre ossos tal ponto de resolução ou derrogação
qual caroço de adão ou maçã de eva criando bolor na bíblia
por favor diz-me como cão que cansado desistiu de ladrar
fala-me da capciosa colmeia negativa do gordo capitalismo
que força impele nesse nicho de contrariadas cabeças pesadas
que falsos favos de mel valem o tremendo trabalho sugador
fala-me também da ilusão do fruto na boca como beijo real
fazendo contar cada morte como ária de celebração da vida
riqueza do desperdício rizomático duma árvore genealógica
diz-me agora, por favor, um grande copo de água na cabeça
e esperando que a água ferva borbulhando com a mentira
assombrando pesada como papel de contrato sobre o pano
a envelhecer por contágio e de vez enrugando amarela a pele
diz-me então o que sabes da verdade de verdade, por favor
conquanto eu suspeite que nada realmente acrescentarás
ao que desassombradamente ricardo reis por herança deixou
aos cadáveres adiados que procriam entre infensas alvíssaras
ou ao que recentemente perscrutei na brisa dum crepúsculo
como omissa conversa entre grão de pólen e grão de areia