[Edições Esgotadas, 2023]
firmo-me na arborescência milenar do silêncio
nasci rocha-coração dum dragoeiro
alimento-me do que me aturde ―
recolho pulsações estrangeiras no meio da cor
de sonho em sonho no real acordado
aprendi a beijar a luz dos objectos
cada beijo uma relíquia guardada
a caminhar sozinha luzindo entre poemas
porque sou um respigador do incomum
sigo o incenso de cinábrio no meio da cor
, cabe-me pintar mudamente o milagre do mundo
✫
veste-me de dimorfismo toutinegra
se este som-sangue me é vermelho
eternamente devedor ao cristal dos campos
estou nu e procuro um peito onde amar
mil-e-corda e esboços de beijos
infinitamente inacabados
veste-me toutinegra
porque me sei nulo na mínima dobra da fotografia
[ensaio tosco de oclusão sentimental]
um cerco de nós na carne íntima
voo de vermelhidão na vergonha
no gume dos ventos que hão-de varrer a planície
veste-me o tempo em sílabas toutinegra
antes que o som-sangue me abra a cama
✫
a forma ruge
tremor genuíno rumo ao grande mineral
acontecimento de mudanças dentro
a fortuna interior em viagem
implodindo fracção a fracção
uma paisagem de silêncio
✫
descemos a noite
arquipélago latejante não explicável
viemos rir ao mundo, falaram-nos
[barco esquizofrénico num jardim florido da lagoa]
a noite das lágrimas de néon
noite como brancos bagos ou cadernos
perdidos um a um de mão em mão
em cada canção | em cada soluço
suplício terno das explicações
entre amoras silvestres e pintassilgos
perfume-erecção da orfandade de pensamento
resina concêntrica no baldio
e tudo se apaga na escrita da água
como fragilidade corpórea do grito
talvez venhamos mesmo rir ao mundo, encontrámos
a gaivota errada no bosque
descemos ainda a noite
motor rico de bocas sobre a luz
como um livro aberto ao lado das estrelas
✫
tenso formigueiro a linha do cansaço
plasmas e cores difundem-se no alvéolo
calado disparo sanguíneo profundo
o vivo olho da coruja à espreita
é o féretro entusiasmado da notícia
que os arautos do texto inglório
vêm examinar ― assim as divisas
insígnias | tratos | restos pessoais
gerir parado a navegação entre
a biologia e o interstício paranormal
miasma entre pessoa e fuligem diurna
depressão caseira de incêndio luminar
✫
aquela pedra acedeu-me o fígado
imagino-o roxo a trabalhar nas
mexidas da alma, algo distante
os ramos das árvores ao vento
coadunam-se com frases que
impreteríveis tocam na energia
o caminho-luz da ideia ―
na verdade o fígado não acendeu
doeu no interior da máquina
acesa no caminho está a pedra
trazendo à memória ideia de reler
coisa-cúmplice entre olho e cérebro
✫
mulher-pássaro, escuro meu de deitar
entre asa e céu
sobre o trilho aberto
entre tulipa e lírio
vejo nosso beijo de insectos sui generis
bêbados de aturdimento
perto mulher-arquipélago
junto aos navios desorientados duma costa
risco violeta no céu onde te vejo menina
alto de voarmos dentro da solidão
tão junta como ser mágico
num pântano que outros chamam amor
nossos pés lavrando a água
risos faiscando peixes subitamente
tu dirás «homem-azul»
e eu, entre musgos e líquenes
não acreditando já em adjectivos
direi apenas «mulher»
✫
de existir desistindo, rindo
que o nada fortalece
ruga no papel roendo flor ao linho enganado
se existir esse poeta desistindo
sem par | sem roupa
vertendo sequiosamente para o escuro
uma linfa verde perigosamente órfã
na palma da mão nervosamente ensaiando
a angustiante dança de guizos
então a noite abrirá mundos na
pouca claridade da manhã guardada antiga
infância de árvores a orvalhar engano
para lágrimas de hoje presas no linho dum lenço
que o nada fortalece
a existir o poeta abandona-se no papel
e floresce ―
✫
as paredes do quarto suam violetas rápidas
o último fumo de inverno na paragem do sonho
grato impulso duma lâmina que olha a chuva
chove ― vou-me precipitar para a rua
ao encontro do que se alcatroa por tão pouco
um corpo amarrado de negros
faixas dissimuladas, estigmas e sementes
bocas da pele que espera sexualmente a água
vou-me precipitar com a água toda
e lavar as misérias verdes e amarelas da estrada
corro na súplica calculada de cada tendão
flashes no gás da fuga com música dentro
sou eu e a chuva num balanço baço
até voltar ao quarto com os livros molhados
literariamente amarrados ao corpo
fui vestir-me de frases entre água e carne roxa
com o pólen na linha errada dos lábios
barulho da cidade por tecido de culpa a doer
tremenda selvajaria de intrincadas relações
fogo preso na cabeça-de-vidro a acusar asfixia
ciclo a ciclo fugindo para a floresta
✫
deram-me uma romã, espero o cavalo
pela brecha de luz coronária
, agrimensura dum rosto em carne viva
buraco negro onde dizer a boca
a loucura funcional em camas de retiros abstrusos
veio onírico suado | gravidade sónica
o fruto violado por um dedo ―
sangue da romã como mancha roxa movente
holograma de rostos sobrepostos na queda
. é uma mão irrequieta mergulhada na luz
✫
. em que acreditar relendo ao contrário os leitores se
impessoal a voz reluz originais as outras ― acredito
no que as folhas contam de nervuras pela velocidade
quilómetro a quilómetro sob nervos tenros de horror
verso e reverso o que de inverso se encontra espelho
uma mala de arremesso fugaz contra a ideia-sombra
a carta que as árvores escrevem a vermelho no verde
pesando nos pulmões dos animais errando a floresta
visões adormecidas em sons ocultos e dobras de fumo
música inebriando alvéolos até ao globo dum coração
um vento confunde o cheiro e a vontade ao roubador
elo perdido em si rodopiando os rododendros dentro
tatuagem d'incenso na ave vagante dum pensamento
o roubador de perfumes adormecido dentro do violão
✫
oblonga cabeça pesada ―
a dor do metal não espera
travessia de continentes ao vestir o casaco
alonga-se na sonolência do sonho
hoje feito ontem e anteontem
¿ que mineral esta noite antes de sair?
apouquei-me no sangue dos livros
agora a vegetação apodera-se do quarto
fúria tridimensional dos clássicos
tão podre legado quanto frouxa a bebida
ao redor da cabeceira
apercebo-me antes de sair ―
rasgão no linho tentando uma boca
✫
ao ler encontrei aninhado
o poeta numa concha
, é para estalar de sal e estrela
os poemas entre o sangue
no caminho
afinal um comboio e vontade de partir
mesmo lugar e súbita introspecção
tudo é fricção do ar
chilreio dum pássaro órfão
deixado em testamento
✫
rosa-de-dor em ponto
escuro azul místico
[flor-de-lis]
o nódulo da biologia na matéria
movimentação flébil da água modificada
em temperatura e delírio ―
✫
acorda bolsando amplos túneis o gengibre
onda cárnea falada nas cores dum sonho
desabrido mas natural sobre as imagens
repicando inalienáveis margens d'arbítrio
os túneis do intangível chá do mundo
jogo cerebral sob inflexões de planta
uma carne florida de espigos urticantes
que se abre e fecha moldando-se curva
entre ovo e olho a revelar-se de súbito
fábula estranha recontada junto à cama
fixação do encosto sobrando nas costas
então a noite como animal necromante
devolve aromas ressoantes na memória
e recrudesce os sons da pele na cabeça
✫
de abrir o gomo lírico na luz
sob a vicissitude rasante da asa
folheio cansaços às escondidas
à procura dum avatar particular
e é a revolta um regresso a mim
uma perdição de sopro telúrico
[gosto impróprio a descer leituras]
a indecisão o restabelecido corpo
sobre mil flores secas da infância
é a inteireza degradante do estame
de somente ler livros com arco-íris
✫
ver-te luz nos olhos quando nos meus se escondem
enchê-los de mar roubado à cor da inocência ruim
ou ver-te, um eu debruçado na varanda do porvir
estórias de regressos numa manta aleijada do céu
sorrateiro o vento despe-nos e volta a vestir-nos
num abrir e fechar de olhos ― vagar lento de lua
meu amor a seda de mãos em suor do verão à noite
amar dentro a magia noutros olhos que não os meus
✫
o que de galante ilusoriamente acharemos entre os passos
botão de flor indistinto estranhamente surgido
do cumprimento ― cascam peles nos rostos
lentamente a copa duma árvore desmorona-se
transcendentemente
julgamos cuidar da máscara dançando entre a erosão
cansamos a mesma pergunta
um jardim de intentos | arabesco perfumado do exílio
ainda assim galante
ajudam os pássaros paradisíacos que voam dentro
encostando o ouvido plumoso escutando
correntes de cores quentes e frias no arborescer do corpo
metamorfose sensível ao toque | concreção pelo contacto
as esferas faiscam energia
trazem humildes uma nau de pólen aos lábios
✫
corte. dor de parir uma ausência
a verdade ― fuga de sangue em luz ―
do rio longe | lágrima a lágrima
o sangue pinga floral, luminoso
¿ que cor escolher dentro
sob luz artificial de fronteira?
rasgada verdade como rasgada pele
quotidiano-sangue de obrigação biológica
¿ existirá a verdade enquanto fuga
no ralo desaparecendo em liberdade?
✫
o menino vindo do lume descalça-se ao chegar
à ribeira ― quer sentir a fome dos peixes nas pernas
a medida da fome é a medida de tudo
assim borbotam os exemplos da genealogia
o menino aprende por mordidelas
uma boca outra boca a voracidade
de cavidade em cavidade
a ideia de caverna onde indagar as sombras
a comunidade como vontade de morder
o menino assusta-se por estar vivo
quer mergulhar para conhecer quem o morde
vulto a vulto destitui a comunidade
o menino sai da água e enxuga-se ao sol
lê uma a uma as feridas nas pernas
assinaturas de vaidade na fome de vida
chega a casa e deita fogo à biblioteca
✫
brinca o diabo na língua há monstros
palavras iludidas de mosto e barro de
quem ao redor gritantemente se desdiz
são as estátuas presenteadas dia e noite
um ensejo mental de angústia e delírio
rodilho pobre das mãos fazendo corpo
a língua traz o mar ao diabo nas veredas
encima a montanha parida entre os livros
pouco interessarão as parcelas dos textos
antes o sexo ― no riso torto das manhãs
as estátuas dançam numa efusiva loucura
dão especiarias ao ar entrado nos pulmões
✫
algo se afivela como som ao corpo
batida que prende fugazmente
etérea mão de dedos lobulosos
de picotar nervos e danos deitado
chega-me uma nuvem dentro abrindo
a rocha violeta de todas as memórias
algo a despertar na noite o perfume
que lento dissolverá a mão como
rosa-de-dor atenta à fibrilação
interior ao som encontro a voz
antro musical onde pernoitarei
para ler os medos à medusa ―
✫
o que ficou da borrasca será um ninho enegrecido
descurando tonalidade à noite incauta dos medos
a caverna em cada saliência no rosto à míngua de luz
vícios de personagem, sombras refractadas de duplos
o escuro reaberto como fábula cansada do que virá
contraponto a contraluz pelo luto do vento falante
é um incêndio sonoro de pensamentos entre olhares
traço cismado como assinatura perene de anonimato
que cinza não é apaziguamento, antes morte vivida
reminiscência de contraste entre poalha do mundo
✫
do zero, íntimo vazio. porquê explicar a vida e todo
o queixume em procissão de carregar a amputação?
essa culpa [vómito gordo sobre o balcão] a ressaca
teatralidade triste, trazer às lágrimas o ruim do mar
do zero íntimo passando pelos pulmões e o coração
amealhada assombração da intraduzibilidade espiritual
a palidez ácida do dia em resumo ou a normal insónia
de inadvertidamente ter serrado a barriga ao homem?
a dança vexada de executivos, falsos cristos crucificados
desonestidade intelectual ou assumpção da massa informe
os parasitas da carcaça planetária em rigorosa observação
a dança organizada da entropia bem penteada pela filosofia
a civilização? e o resto vivente no subterrâneo dos olhos?
de que zero começar e o quê o vazio? humana condição?
✫
tenho um poema na cabeça
quer descer para a árvore das mãos
passeia-se no corpo expandido
um poema que é um rododendro
purpúreo, como o rio corre em flor
rodo dentro entre as lavas
do coração ―
à beira do poço da silha
arrisco incauto o poema
a esferográfica magoa o papel
e eu pouso o caderno numa rocha
adio solidário o poema escrito
preservo-o no sangue, rodo dentro
para cima e para baixo no corpo
na cabeça quente a latejar
mergulho na esmeralda de manhouce
desenho anjos de espuma
nadando de costas na água gelada
e um pássaro de susto precipita
o caderno na corrente
sei por fim que o poema acontece
forma-se lentamente nos veios da água
ganha gomos aveludados de ressonância
na memória um rododendro ou canção
parte à aventura, segue viagem assomando
o seu murmúrio ao da corrente
continuo a nadar medindo angústias
rodo dentro esperando ―
tenho um poema no coração
✫
«escuta a loucura das mãos no peito» disseram-me
vozes na medida de poro entre as cores da pele ―
«o que de pólen morre aqui acorda noutro lugar»
na suave brisa o gesto cheio de aromas, um toque
salvo a distância as mãos viajam mais do que os pés
«visita a paixão em loucura no vinho das palavras»
embriagado de alfazema | abrindo os gomos ao sol
aqui onde o pólen morre creio acordar noutro lugar
✫
ainda um buraco de luz
como lâmpada de escrita
é na grande trovoada que
se ouvem todas as sombras
― uma aquosa sensação de
devolver estrelas ao espaço
talvez ainda um reduto de
confessionalidade na noite
― clareira de dons em sons
unindo dura musicalidade
ao pensamento absoluto no
horto fulminante da voz
✫
suspenso | bebendo o láudano de jasmim
como sobreviver ao requiem de mozart?
suspenso entre círios e mariposas de pólen
vem o olor d'alma febril beijar-me a boca
enrodilho-me nos véus negros e brancos
teia da majestosa aranha-mãe do descanso
querubins nos sulcos rápidos da angústia
eu entrego o jogo-das-dores à lacrimosa
a pele esburacada por luz tonal e movimento
instrumentos de levar à oclusão do silêncio
tensão de aleijar pautas aos sonhos do mundo
suspenso vou envenenando o pão aos arcanjos
para descer no azul das lágrimas pela música
disperso-me | pó angelical do último ámen
✫
se vier tanto como água translúcida
e tanto significar pranto justo de trazer ao peito
como dizer muito à boca duma hora
o pouco mundo numa gota de âmbar
simples confissão de jeito
inclinando o dom
o espírito emergindo do nevoeiro
canção triste fazendo tremer a infância
de filho por filho
a luz inquieta
rio pensado à margem do mar
enquanto ventrículo preocupante
✫
ainda durmo nos teus olhos
tenho arrancado sono às areias do rio
costumo procurar-te no suave beijo
musgo crescendo lento em tardes de ninguém
maior agora a minha nudez
enquanto proscrito bucólico
― culpa tua ― dou-me
ao excesso de néctar
o desenho caindo em mim
perdendo-se no que ainda não encontrei
imagem titubeante porém implacável
caindo intermitentemente como a poesia
o onde em verde | calma irascível da natureza
porque vou de encontro à míngua de vida
num frasco desmesurado dalgum pesadelo
entre água e pedra o meu espaço de silêncio
✫
começou o roxo das campânulas na cabeça
definição de oralidade afinando o grito
numa conversa de agulhas e vegetação
digo folha viva já larva começada em gente
promessa de esquisso escavada nos ossos
permuta de sons amordaçados na tinta
líquido confuso na língua adormecida
recomecemos, o roxo como oração nua
suor e saliva de campânulas sobre o corpo
falar em eco sob a verticalidade do abismo
a virgem sob o verde musgoso do lápis ou
quarto morrente de brinquedos enlutados
tropicalismo doente de anseios mumificados
campânulas vagueiam de traqueia em traqueia
com fantasmagoria cheia as medusas assustam
personagens rudes que perderam pé na fábula
estragam linguagem a genuflexões de alcova
, por onde começar verdadeiramente então?
nem roxo por agulhas de vegetação, nem voz
dada à oração, comecemos talvez pela língua
desmaiada folha viva na confusão dos sons
✫
como pássaro dentro encontro a asa magoada
adivinho em vento e perfume a noite nas mãos
✫
. e um frémito roxo atordoa-me
embala-me, um sono antes que a
mão cheia resvale em cascata o
pensamento radial
de ouvir dentro a cabeça-de-vidro
[o frémito fremindo]
voz cheia que desaparece no branco da mão
✫
que há de espera no poema
enquanto sangue zangado?
nada em questão, tão só
o que há de compromisso
talvez, e só essa a zanga
de estar vivo e atento
ainda à espera ―
perfurando de luz o escrutínio
os livros à solta no escuro do quarto
quem narra quem? em qual floresta?
aonde o mar-de-choro em penumbra?
não mais do que células as perguntas
células de uma liberdade de escrita
no mais ínfimo universo de silêncio
✫
cegar de branco o rosto
porque sacrifício
ânsia de rasgar sob nuvens tépidas
o propósito da falha
dormir se de terra
ou burel de encantamento
se fizer a narrativa
: beleza do sono inquieto de séculos
✫
um nó-de-dedos o punho de paixão
pairando em aromas real perfume
ondulam tépidos os cabelos dançando
formas de adivinhar uma boca
som aberto na estrutura em espiral
essência de corpos num último sopro húmido
cálido entorpecer adiado para uma cama-nau
musculado forçar do coração em soluços
primeiro lágrima como frio suor de frutos
depois esperança em orvalho a abrir a manhã
zénite do céu ― de cair nas páginas, na rua
tudo isto uma rosa de carne ensaiando reflexos
✫
dada ao sol a pele entre o desaire de luz na água
― tento escutar na lonjura do sismo
[o espaço no vazio]
indago o que levar a erato
, fui marcado pela água gelada do poço
estirado no rochedo reconstituo ao sol
elegias eróticas para um abandono
vou aguçar-me no chilrear dos pássaros ―
✫
vi o coração à montanha
semente de árvore calada
espero o levantar da manhã
claro gesto do céu | o raio
fervilha de energia ponto a ponto
o anjo onde nasce a árvore
e a árvore dará o espaço a ouvir
o vento a esbracejar seus ramos
uma dança em jorro a juventude
cresce o de dentro sobre o azul
sentimento pela força a escalar
algum nome de sombra : árvore
e vi o arco depois o cálice
histeria de carbono em vida
arquejante espírito | a harpa
abro o peito à branca liberdade
atrapalhação de voo, andorinha
abro as mãos para dizer a raiz
a montanha é o espelho | o outro
a montanha invisível que se treslê
mal-entendido edificador de solidão
um cisne dançará no incêndio
grande espelho dos espíritos
ou mísero teatro de sombras
as cinzas, a terra | poeira de estrelas?
o pouco a dizer pelo vento, mero acaso
nem árvore nem anjo nem nome : vento
✫
o corvo come-me de angústia a noite
é um desenho de rugas rotas sob aparas
do dia avermelhado, mísero e inconsolável
mosto de cinzas por sangue à boca da luz
é um desalento de asas curvas sob o remorso
inúmeras águas pesadas misturadas em cordão
meu reino de insónia|atapetar um futuro
de rasgão em rasgão uma casa de papelão
o corvo estraga-me negrumes por descobrir
é um ensaio de fantasmas rápidos na ombreira
paisagem vestindo personagem a personagem
de decalque em decalque o texto em floração
✫
silente dor dormente cair fundo noutro lugar, a súmula
dos dias ― fórmula inerte e orgânica de sobrevivência
✫
se de flor for a rosa-de-livros
ancorada na noite branca
― rosa a abrir o tecto ―
a florescer de mínimos
[uma rosa-de-livros cadente]
hermann hesse apareceu-me
no esquisito branco da insónia
minha alma em pétalas roxas
explosão de areias no quarto
estrela faiscante dobrando e
desdobrando mil curvaturas
sobre os lençóis e meus braços
procuro nas páginas esse torpor
uma rosa-de-livros para dormir
✫
café amargo, maçã vermelha, poema nada
espiral a descer | confusão de cores e som
ou extremo calor de haver lava no coração
algo de tanto a caber no pouco rebentando
mais e mais luzindo e seduzindo : um farol
imagem dum navio-seta numa antiga carta
ressoam conversas no intervalo das canções
corpos posicionados para o grande silêncio
preservando calor de antepassados remotos
algo de pouco a saber no tanto a descobrir
depois do café e da maçã : início do poema
✫
a mão caminha sozinha no peito
grito na caverna entre a luz e os lençóis
história natural como reduto
o vermelho sujo da viela
amoral como o prenúncio da manhã
✫
a palavra no corpo tem a ver com uma ilha
escavado lugar d'água em vez de olhos
poesia tem a ver com o animal ferido
pelo som-sangue das palavras
✫
tenho a dizer este nó de barro
que me seca a garganta
porque me atravessa aceso
o lápis nalgum momento
flor-de-lis desmaiada sobre
o tempo | confusa memória
coisa de símio passeante de outrora
na sua ancestral robustez assertiva
quando na verdade respirante
nada de emergente haverá a dizer
porque barro movente
de frio vermelho a róseo quente
com medo inquieto de estrada
a negro de ver e tremer a
narrativa dentro [flor-de-lis]
deposto nó de barro floreado
também carne e texto
também corpo e poema
se alento prostrado
curva a curva | gesto a gesto
crescendo escultura na cabeça
sob bênçãos de candeeiro
o rosto vazio e confuso
sem rumo e memória, rasteiro
embebido nalguma oração
rascunhada há pouco pelo lápis
✫
dançam as sombras dentro dos olhos
marcam o lençol de luz do dia
timbre irresoluto de apear o destino
vontade de rasgar todos os mapas de infância
as sombras ― máscaras dentro brincando
emaranhado de trovões rápidos sobre os olhos
, salvará a leitura o poeta equilibrista?
✫
. da dor a curva escarlate na pedra ou o rosto de deus
é de suor mineral a vontade e o gosto se risível dedo
enquanto vogal entoada | descampado herege da voz
se dor ainda atormentando já uma grafologia sombria
a curva enquanto chuva na rocha-coração do dragoeiro
✫
as formas abraçam-se inesperadamente ―
como se esperassem em suspenso
sempre dançantes na arbitrariedade
estão dentro de quem as vê como
figuras rasas da inatenção
manifestam-se tectonicamente
por toque em queda passional
o momento grão-de-lava abre um
vácuo entre elas sem passado nem futuro
✫
tão bom dormir como se morresse uma e outra vez
todas as noites espero a branquidão térrea da morte
como um fruto de casulos infinitos no palato da noite
o vidro ensonado da escrita e das leituras abandonadas
em algum reduto infértil da maquinação civilizacional
que bom seria dormir morrendo a sério para acordar
de uma vez por todas, acordando diariamente da morte
trazida renovada para o sossegado real das convenções
por isso quero a noite para dormir como se morresse
noite guardada pelos tigres de borges e o corvo de poe
noite como infinita ampulheta estrangulada pelo sonho
quero-a como recompensa reluzente das feridas diárias
feridas biográficas que me amordaçam à esquina do verso
e me ferem irremediavelmente o silêncio até ao choro
amo a minha morte porque não a conheço, é-me estranha
e estranhamente me seduz ao ponto de ensaiá-la no sono
boa noite [apago a luz] tão bom dormir como se morresse
✫
porque o que de dúvida se arrasta no olhar em profundidade
brinca como água estelar na tensão febril de ser-se humano
✫
habito o som oco do corpo escrevendo
ideia de bosque apetrechado de pássaros
escribas sonoros no ventre azul da poesia
saboreando a escuridão cheia de parábolas
habito o som-sangue nesse oco das palavras
ou mato de não pensar celebrando o inútil
de memória esboço água em ressonância
palpitações concretas | pesadas gotículas
os espíritos libertados sobre quem escuta
espero a passagem das estruturas [êxodo]
a ideia-sombra de habitar é o bosque em si
som : casa-casulo ante o périplo da morte
✫
, o vinho em viagem pelo rosto se tinta assente no papel
das ruas estrebuchadas nas veias lendo o texto já sangue
✫
dorme a amnésia branca saindo da sombra cerebral
tamanho vulto nocturno das estepes febris de sépia
porque luzem os tecidos estranhas formas à noite?
porque sangram na memória da pele os símbolos?
isto de baptizar fantasmas [corrupio louco] isto de
trabalhar decompondo mãos vivas | rostos mortos
fugirão as imagens para algum reduto trabalhável?
porque cega a geografia da alma sobre o corpo nu?
de brancura o vulto acorda tecidos de barro e carne
tocam os dedos cingindo incisivamente formas nele
entre espaço e tempo o que destoará então ao espelho?
eu, a pouca sobra de luz ― a minha insónia acordada
✫
este corpo que outros corpos incorpora como vazio
música de sombras deslumbrantes no véu crepuscular
este corpo feito para amar terra viúva noutro silêncio
― crescem pianos das mãos perdidas de rachmaninoff
ausência e repetição | o pensamento em forma de noz
...............................................................................................
de incorporar vazios no sangue | outros corpos no meu
corpo de usar e cantar metido na cama-nau dum sopro
✫
haja na visão terra de unguentos oníricos
― só assim se fabricam as cores na retina
uma brincadeira do achar-perdendo que é
verdadeiro pensamento entre as memórias
a força dos restos para uma cabeça vinda
da argila-pão, a força dos gestos raiando
a confissão ― haja saliva, linfa e sangue
terra fecunda na íris ascendente | nuvem
porque as cores são fome de vida desmentida
moradas cegas | veios de grande necessidade
astros órfãos desencontrados entre as mãos por
alusão à ignorância situacional da humanidade
✫
a azeitona redonda e oval sobre um branco de sexo
se lhe pegasse em alarido sem referência ou patamar
sinal negro de verter na boca por verdade de grafite
nua ― a luz cingindo zona a zona virtudes e pecados
a azeitona como esqueleto cru de ramos entorpecidos
concreção estelar de dramaturgia lasciva ou abandono
porque prazer é desaparecimento | luz de halo diáfano
redondo e oval cumpre-se o corpo em cru movimento
rascunhos de cinza atribuídos à alma vagueante dum eu
despojado e caduco sobre a cartografia cega das estrelas
✫
um saber enquanto cabeça-de-vidro
caso arboresça a dúvida noutro tempo
se teoria ensaiada de enganos vivos :
grão-de-lava por grão-de-areia na praia
se arqueia o poeta a coluna como o gato
guardando-se puro d'olvido num cofre ―
✫
como choro-de-luz me encontro lágrima na tua face
profunda cisão d'enlace de ver tua mão meu coração
✫
holístico o vento esconde vozes sem matéria
mais que texto ilegível ou baque indecifrável
presença a deambular ante o medo das janelas
o vento e a incomensurável grossura das vozes
que mil cortes no tempo lhe vão dando sabor
folha de frisos e cílios murmurantes já canção
: aguçam-se tímpanos como se aguçam dedos
temer para ouvir o inescrutável cio do vento
relâmpago no corpo feito de livros e silêncio
✫
e que energia, as vidas no baile do lago
vibrantes gestos em dança entre rostos
de ver os soluços em corda nos tecidos
rodopio de vestidos em coroa | coração
golpe de luz cortado em semblante ou o
pudor em flor ― vidas no baile do lago
segredo sussurrante de movimento cru
cerne uivante | fortuna de querer tanto
ó energia rente ao corpo rumo ao vazio
vento entre frio e quente da montanha
que se estranha perdida na voz poente
jardim que se assanha no baile do lago
arrepiando a pele o mármore do salão
congelando por degredo um segredo
em coroa [coração] vestidos e soluços
energia para um nada no baile do lago
rosados rostos [anedotas sobre morte]
dança do segredo na vergonha de existir
✫
diz o anjo «parece ficar um nevoeiro nos ossos
temo ainda chorar ao contrário, estas lágrimas
escorrem por dentro e não deviam, não deviam
por fora acrescentariam dó e comoção ao mundo
não por dentro, por dentro rebentam em sismo
indescritível a maneira penumbrosa com que me
perturbam minuto a minuto esbranquiçando-me
os dedos, tortuosas horas de não doerem porque
os dias não me acontecem [espectros do espectro]
não sei porque falo se não me escutam, ainda assim
denuncio o céu azul do cenário onde uns felizes e
outros desolados do chão ao vazio que encobre o
globo universal» confusões à mercê do meu corpo
[convulsão indigesta de xenobióticos alquímicos]
vejo o anjo a contorcer-se mudo em voo poético
― queima-se-me o jasmim no sussurrar da pele
✫
― não o álcool nem o nácar de biombos prometidos
não o sexo como nuvem envolta de naufrágios febris
não a culpa-vício à mercê de desequilíbrios do esterno
a partir ameaçando saber de escuros ossos | barcos baços
sombras como linhas de água caladas no corpo sonoro ―
que a pele lê os nãos renegados duma literatura à deriva
não o ópio nem o incenso da dúvida perdida nas roupas
não a água onírica dos soluços assoberbados do descanso
não a amnésia-foz do envelhecimento sobre a monotonia
acidente, instante a contar por vida repetindo o universo
: suave deitar perigoso entre a ofuscante luz de anémonas
✫
façam disto um quadro, algo estranho me visitou ―
manto esquelético de auroras entre roxo e magenta
o que chorar quando as mãos esboroam-se em pão?
quantos mistérios de sabor a chuva amarga de giestas
lidas e relidas [confundidos espectros de cores falsas]
giestas de verde tóxico na memória alienada dum feto
nervura a nervura o meu sono venenoso de séculos
em jornais e diários fantasmagóricos, viagens e selos
um violeta ofegante em epístolas errantes da renúncia
― façam um quadro disto, recolhendo despojos vitais
nos seres que se extinguem são alquímicos os materiais
embrulhem-no no manto roxo de velho e queimem-no
✫
dou-me ao corte fino do véu ondulante
aureolado desnudamento desprotegido
sei da imprecisão de varas com que falo
encrespando malhas num tear cardíaco
dou-me na eminência da desolação feral
pele e seda, fricção | azáfama de bichos
. ignoro a extensão da freática ansiedade
nuances de viagem dum violoncelo a cair
― dou-me ao abismo, desço e toco o véu
porque caindo escrevo sangrando liberdade
✫
ofegante perante o ínfimo pormenor suspenso no mundo
― trabalho de pequenos dedos que se cruzam e molestam
se resvala música sob as esferas do medo em contemplação
a dor uma gota uma vaga um casulo uma casa ou desilusão
lesão : cordas tensas de mar impoluto entre as pregas de pele
um sonido alarmante congregado na gota rodeada de cheiros
gota de lamentos espalhados pelos terrenos banidos do corpo
ofegante perante o mínimo entre confissões inúteis, tardias
mínimo de gomos gordos vitais, de transparência biológica
resvala a música como vaga infinita do medo, continuamente
✫
que lado o avesso vidro escuro no espelho
sombra de panos por rosada carne em dor
dormente cama aflita de signos por oração
de linfa e sangue o lado de prosa machucado
― sargaço de fogo e carne | vibrante poema
ou luz do grito mordendo substância ao tempo
✫
guarda-me dentro este som em fumo de auréola
o dente-de-leão vagueia órfão na gentileza do ar
de perpassar os finos azuis da ignorância pleural
guarda-o por simples respiração natural ou gesto
― o tempo e o vento namoram no fio de água ―
assim a condescendência do sofrimento em pedra
✫
um fio de decalque fino e preciso quanto precioso
sorriem brasas dum peito amordaçado a apagar-se
gemendo o violino espreita a morte entre incenso
um fio suave como ave no limite do mar-de-choro
✫
do deslumbre um perfume na dúvida de quem passa e olha
arco e vénia em conversa silenciosa entre olhos acutilantes
água-guilhotina nas vozes possíveis do encontro a contraluz
do deslumbre não se vislumbra futuro a não ser o momento
morrem na cor os tecidos como inesperado jacto de sangue
a linguagem do corpo vai encenando hiatos de luz na espera
arco e vénia, impetuosa dança de palavras moventes na pele
desmanteladas as pontes pedra a pedra pelo toque ou beijo
de quem passa e olha o desenho fugaz dum perfume sozinho
asas entrecortadas do silêncio ensaiado na desmesura do sol
nada. nem vozes, nem dança ― arco e vénia do deslumbre
✫
bagos de groselha esmagados na rosa-de-dor
rosa triste dos lábios cruzados numa súplica
escuro silêncio inscrito na brancura do gesto
o impasse como globo num gole de cerveja
bouquet de flavours na bissectriz do cérebro
uma imagem como quadro armazenado vivo
entre o que fica de ausências várias sobrepostas
o braço forte do menino em ângulo coronário :
de contrastes se faz a rebelião contra o mundo
✫
tão raro acontecer o súbito arco-íris num livro
sangue absoluto de quem escreve em quem lê
livro absoluto na mó de mãos e voz inebriada
raro pela filigrana de folhas sensíveis ao rosto
pela genuína chuva arterial das páginas acesas
mas é preciso ascender descendo infernos ou
amar morrendo pouco a pouco na luz doente
do quartzo ferido ― rara é a beleza do nojo
o lençol do suor balsâmico bringido na noite
bruma densa que antecede a chuva espectral
caminha em arco-íris o livro dentro do corpo
e destoa falando nas vértebras dum sono bom
porque morada na pessoa e pessoa na ausência
chovendo sempre chovendo na luz e na sombra
raro acontecer a leitura viva trazida dos mortos
✫
: dizer ou não dizer o linho enredado de línguas
prece e um fósforo molhado na urdidura do dia
porque durmo perigosamente enquanto balouço
falsa serenidade a haver com navegações do ser ―
o corpo é a fonte, fonte única de música ontológica
meandros de tessitura comunicante por justificação
o esforço falará para a escuridão da terra a dar flor
e ainda assim tudo [mesmo tudo] ficará por dizer ―
✫
canta o pássaro
diz o poema
nada-palavra
sua vida ―
voa o pássaro
sua morte ―
desmesura errante
silêncio ensurdecedor
o canto voando
de mão em mão
o papel | lamento
de asas a escrita nua
asas ritmo asas
silêncio por coração
o pássaro no arame
à espera da morte
morre o pássaro
chilreiam os outros
negras asas sobre outras
escrevem no céu ―
palavra a palavra
de boca em boca
o poeta move-se
morrendo o som
pensa o manto o poeta
pesa como plumagem
o olhar um voo pensa ―
calará a morte vivendo-a
✫
enlameio palavras em volta de figos maduros
esmagamento sucessivo de leituras amargas ou
apodrecimento a chamar entre as leis do caos
porque a lama é do ser a subverter as línguas
línguas tardiamente decepadas à socapa porque
a lama arde entre o sangue chorando ausências
porque texto é desaparecimento merecido longe
o redemoinho de terra a elevar-se no ar a cantar
apodrecer é o que nos resta diariamente do sol
porque a cadência sonora resolve a teatralidade
entretém as hostes literárias da farsa entre panos
os figos maduros sobre a mesa fulguram cor ainda
✫
o anjo cresce do vulcão para um quartzo leitoso
as coisas estorvam à imagem mental de desterro
bebo directamente da ânfora como ideia-sombra
como o carvão da insónia que assume a vida toda
✫
olho e não compreendo ― «mas a luz»
continuando a linha de água nesta voz
que isolar o lírio é não compreender
escavando redutos cúmplices de estar
«mas a luz» disseste, não compreendo
amo a dúvida como lágrima que te roubo
singra um barco de papel amarelecido
demasiado escrito, demasiado humano
cansam-me os minerais das secreções
permaneço, não compreendo ― olho
✫
, que o coração é um tambor e dançam as mãos ―
mordo-te a boca no árido deserto do que venho dizer
bebe-me a música entre os espasmos no caminho-luz
nesta lasca de pedra do universo uma vez mais menti-te
não venho dizer nada que valha o mover de uma folha ―
tua respiração marulha silente no meu peito, lembro-me
os teus dedos deixaram órfãos todos os pianos do mundo
✫
um quartzo pejado de negros do leite da terra
assim o bolbo de insónias para esse pão íntimo
murmúrio que goteja no peito ensandecido ou
leito de páginas sombrias da planta da noite ―
figura mimetizante no perfil inquieto das manhãs
a sombra anima matérias desconhecidas ao abrir
vai riscando o mineral à superfície dos gritos ―
o quartzo reabre o campo de silêncio na angústia
a casa. resta viver desfolhando o bolbo de insónias
✫
a garganta lateja uma ferida como porta cárnea
descer o abismo do eu a perder-se nas vísceras
ou a encontrar-se no absoluto desprendimento
de adiar a entrada letárgica da alergia ao mundo
a garganta moída e perfurada por solavancos nus
retroceder a fala à vagem amnésica do equilíbrio
ferida como repetição perfumada do nascimento
a carne cerzindo-se cegamente e negando a porta
✫
ouve-me, ouve-me algures dentro de ti
onde dorme o espelho a acossar o cisne
a floresta trai o teu nome na caminhada
que pedra a pedra redefino os caminhos
escutando animais tangendo folhas secas
― não sei que aragem beber no silêncio
✫
atrasando a respiração é outro corpo a respirar
falésia para um eco no ninho quente do coração
ardendo o peito rasurado de vermelhos e roxos
atrasando a respiração vejo, o teu corpo é o meu
permutam-se na contemplação tardia das estrelas
de habitar nus o silêncio em catedrais imaginárias
atrasando a respiração o resfolgar de cada pulmão
e ouvem-se todos os órgãos em vírgulas e esquinas
ardendo o peito rasurado de vermelhos e roxos ―
✫
noite
treva ou constelação
bolota de luz que me confunde e toca
enjeitando o braço
como se à traição torcesse o lenço suado
obtendo o humano sumo de mandrágoras
hialino suor perigoso de insónias cavernosas
para uma gestação ― hei-de resvalar difuso na dúvida
o que de dentro se transfigura de comoção e profundidade
sem a mínima impressão
núcleo zero esvaziado de perímetro
mínimo dízimo de desígnio embruxado
hei-de resvalar
também eu bolota de luz desavinda com o mundo
que a imprecisão da quadrícula assusta-me
e o susto é lágrima seminal de vida
a noite a trabalhar e eu incluso na gota de suor
depreendendo o que de adrenalina me prende
ao medo ― nunca vos escondi o casulo, essa ideia-sombra
[treva ou constelação]
prestes a acordar
✫
adejai
na sombra do sonho
que dobra vivo
um lóbulo de asa
por semente
largai
o que de saliva
fica transcrito
uma sépala de cristal
por memória
✫
dei-te os dedos no tacto febril de tarântula assanhada
tal é o ferimento com que me desunho no anonimato
mãos-sombra | papel-d'água | ruína de pele acrómica
dou-te cansadas as muitas fibras musculares de escrita
tal o desamor ao pouco que fica como ilusão primicial
✫
veio das águas com os filhos dos barcos abandonados
disse «as fúrias vêm do néctar tomado como vitríolo»
― não há sabor no que se devolve às marés a ponto de
acertar a gota na onda carcomida dessa erosão humana
que contrai arteríolas ao susto menor de cada coração
a mulher de rosto róseo, a mãe dos órfãos deste mundo
desce descalça as escadarias sujas de excreções de pranto
resultado de arquétipos ordenhados do capitalismo cego
desce em nuvem num último aviso como diáfana aparição
sabe um a um os metros quadrados da angústia «mau azul»
expressão que lhe sai dos trémulos lábios a confundirem-se
com a branca túnica da efemeridade de notícia planetária ―
a mulher regressa pela nebulosa ao indómito mar-de-choro
cedo murmura «colhei alimento na fome dos vossos irmãos»
✫
o estranho dentro gangrena como flor negra ―
ou alguém : um eu desenhado por cima dum tu
a laborar nas entrelinhas da noite aglutinadora
um eu em erosão já tu confundido com sémen
assim o ensaio do amor revertido em saliência
mãos magoadas por agrura salgada do caminho
a braços os ramos perpendicularmente cruzados
não conheço o tamanho e grossura do dragoeiro
passeio-me pelo corpo atónito com cachos-de-luz
estalos químicos ― o turbilhão pontilhado por sol
assim o ser rasgado em exemplos deploráveis do fel
✫
, avanço o peso da letargia numa composição
esboço de partitura da imobilidade dolorosa ―
lascas de carne que incomodam o osso filosofal
sons apartados | palavras intrinsecamente ocas
de permanecer aprendendo com os rochedos
senha ou canção amarrotando sentidos à fala ―
lascas de carne, sons apartados, peso da letargia
de cravar pouquidade na voz lenta das estrelas
✫
, o brilho da chuva aguçada no canto malfadado da cidade
de movimentos em cacho os pensamentos afloram ácidos
uma camisa branca deposta na cadeira cria espectros rasos
puzzle tremido de música enquanto dúvida entre perfídias
ou ousar ser orgânico sobre um desenho reflexo da mente
guarda-chuva por milhafre encurralado no caixote do lixo
erecto o estilete de pedra habita a sombra deserta do vale
incenso que parto como pão à mesa na engorda dos mitos
a montanha engrossa do fio ténue de memórias da infância
o cristalino canto sobre cantos no grão de voz diferenciado
folhas poligonais de árvores sobrepostas junto ao miocárdio
cheira a ausência o caminhar de embriaguez entre os livros
o vidro bafejado por lágrimas [enganadas gotas de chuva]
ou arte : procura do acontecimento enquanto encontro ―
✫
o ângulo do meu queixo no teu ombro, um pássaro
pedaço de magma esvoaçante que eu chamo de casa
não me tinham falado do gelo que perpassa o coração
na hora nua das mãos para uma noite óssea agora órfã
o que de permeio há no amor é uma rua abandonada
artéria bruta a fazer sozinha todas as marés do sonho
mas quando drogada e habitada indiciará louca o beijo
de permeio outra rua de luz enganadora até à morte
o ângulo do meu queixo no teu ombro, um pássaro
perdido nas sinfonias de mahler à beira duma janela
o quase, o que a vida em liberdade nos oferece [ideia]
quente aconchego dos corpos em contínua deserção
vejo a minha vida em filme nas sombras do teu peito
um pássaro | o ângulo do meu queixo no teu ombro
✫
ignorando o fogo da comoção de ausências
notre dame arde dolorosamente entre nós
o cisne trai o sangue de coração em coração
adensa o visco nas palavras de boca em boca
um abraço, uma abóbada em ruína ― febre
tremendo tempos desfocados pelo degredo
ignorando o fogo da subtração de substâncias
ardem os olhos repetindo a catedral em nós
✫
tentou falar-me uma árvore a crescer-me nos flancos
ouvir formigas nos buracos em amarelos de confissão
onde a vontade do traço no caminho-luz, onde a voz
se voz a árvore intenta em pruridos de pele escutando
voz engrossada dentro como câmbio suberofelogénico
a crescer-me nos flancos, eu talvez sem me saber ouvir
porque ocupado na recolha das vozes que não entendo
que orgulhosamente descarno por não me serem carne
recolho-as porque as ouço, quero cultivá-las no espelho
altero os meus órgãos dentro. sou uma árvore invertida
✫
a mão em névoa azul sobre o globo ―
de encetar ausências carpidas na estupidez sóbria do dia
trouxeram-me as vestes
a minha loucura numa bandeja
não sei o que fazer com esta poeira metálica na pele
denuncio antes todos os filhos das estrelas
o azul de tensão em camadas de som-sangue
de contar muitos dedos sobrepostos para uma erosão ácida
denuncio os estômagos retorcidos das estátuas
o perigo de fronteira na foz biliar das narrativas de carne
projectadas as sombras no cadafalso de luz
trouxeram-me as vestes de loucura numa bandeja
não as visto, vou incendiá-las na lonjura da noite
já não é de roupas este mundo podre nos veios da angústia
✫
, crescem-lhe as pequenas folhas verdes no ombro
aparece-lhe então um braço da árvore que o alenta
menino-de-quartzo desterrado no bazar de línguas
de choro gaguejante na valsa com a solidão de estar
esperança é de ter medo entre as criaturas do sabor
: faunos atrapalhados no bosque em favos de traição
e o que significará a árvore? o que significará a vida?
é quando o tronco vegetal enlaça e aperta o mineral
✫
os sulcos na areia como dedos num coração ao mar
como se narrassem a aventura dos corpos de pedra
que agora chegam ao areal para aproveitarem o sol
depois da penumbrosa escuridão líquida da amnésia
, círculos na impressão digital de concreção onírica
sombras de morte gorgolejada no santuário bivalve
, elementos onerosos ante a brandura da respiração
sulcos tardios enovelados de romance e contradição
praia o raciocínio : porque se desarruma o passado?
que friso lento de cama confessa um braço estirado?
entre pesados corpos de pedra o que sobra do sono?
onde o vento? que lápis representa o nosso silêncio?
✫
, porque a nervura do linho cardíaco me incita a escrever
como acto biológico quente de perscrutar-me num vazio
. e entre as agulhas do jorro acontecerá a escolha vulcânica
qualquer ímpeto mais íntimo tido por vil entre os nódulos
pensar o caos se acaso também a vida, porque esta nervura
revelar-se-á incêndio passeante na cabeça-de-vidro inquieta
― assim a fuga entre espasmos de uma contrição urticante
tenso tear de linguagem em si controverso entre os tempos
✫
do fundo do roxo em cabelo e fronte-luz
expondo as feridas líricas que precipitam
lágrimas e diários transcorridos em livro
pode a horizontalidade embrutecer livre
cadência fértil do colapso em flor-de-lis
evidenciando o rosto entre roxos do acto
este é o corpo que fala calando-se na dor
pequenos movimentos contêm o mundo
: do suor uma gota assume-se globo vivo
✫
firmamento ao dia, filamento frio ferindo a memória
: sensação de colossal conta guardada na mão-sombra
rio vigoroso dentro em atalhos nestas coisas de mortal
ou melhor, frase contra frase numa corrente desarmada
tarde-página remoinhando para o sopro vital à beira-rio
[quando da água a borboleta em brasa perpassa o poema]
― de contemplar renascimentos, água bélica trabalhada
defronte o fino filamento frio ainda ferindo o sol da pele
dia por manto nocturno de absolvição em luas de dormir
ou melhor, conta miraculosa das estórias guardada na mão
✫
ou esqueçamos o que de dragão dourado forja os dias
diminuindo a cabeça de encontro à nuvem das coisas
que há de mal na embriaguez e na escrita tumultuosa?
assim o sangue e o desejaríamos vivo mesmo na terra
a vários palmos de profundidade pulsando sui generis
ou finjamos vicissitudes | a vida prenha de subterfúgios
algo mexendo e remexendo : movendo as entranhas ou
larguras dos continentes insondáveis dentro dum corpo
que há de mal na paragem contemplativa de ar cardíaco?
assim a sombra em jogos de ocupação do tempo desdito
uma radiografia do sangue devolvida à boca da luz falada
✫
esvazio-me para um tom azulado e disforme
na irregularidade são tremendos os pulmões
uma espécie de redoma invertida de espinhos
espiralados espinhos dúcteis que segregam pus
[o azul onde me esvazio nu nas canções mudas]
ressoa o apego, roço de gestos, cordas e corpos
dúvida na respiração como lençol onde escrever
o enrolar de pergaminhos e selos para um casulo
✫
«estou entre os espaços da mórula»
o príncipe nu fala através do búzio
fala de si no mundo com o mundo
cada célula da mórula seu discurso
cartografia corpórea das cicatrizes
a nave rumo ao arabesco dum céu
viver por contraste ao redor da dor
assim a verdade decepada em cinza
o príncipe nu salvou-se na natureza
redimiu-se ao achar o nada-palavra
que lhe semeia os dias para alguém
falar de mim é falar dos outros pensou
vida papel químico sobre os mundos
conclusão que constrói a casa-alento
✫
adeus, vou despir o açúcar camada a camada
entregarei no final um estilete de luz do corpo
subtraído o suor pétala a pétala nesse esforço
folheando distraído os músculos em arco-íris
adeus, vou-me nas paisagens mentais do som
som-sangue correndo e discorrendo no tempo
seres diáfanos dentro escoltam-me na viagem
dão-me um rosto por fruto a cultivar na sombra