O Livro das Religiões
(Textos Escolhidos)
Editora Camila Werner
Tradução de Bruno Alexander
São Paulo: Globo Livros, 2014.
Frases da Capa
Todas as religiões são iguais
Não existe outro deus além de mim
Há forças invisíveis em ação
Esquecemos de nossa verdadeira natureza
A iluminação tem muitas facetas
Deus e a humanidade estão em exílio cósmico
O mundo é uma ilusão
A graça de deus nunca falha
A faísca divina está presente em todo mundo
Aceitar o caminho do universo
Os bons vivem para sempre
No mundo, mas não do mundo
O corpo pode morrer, mas a alma continua vivendo
Varrendo a poeira do pecado
Podemos construir um lugar sagrado
A questão de por que os seres humanos desenvolveram a ideia de um mundo além do mundo visível em que vivemos é complexa. Motivados pelo desejo de dar um sentido ao mundo à sua volta — especialmente aos perigos, infortúnios e satisfação das necessidades básicas — os indivíduos das primeiras sociedades procuravam explicações num plano invisível para eles, mas que exercia influência em suas vidas.
A ideia de um mundo espiritual também está associada a noções de sono e morte e à interface entre esses dois elementos e a consciência, comparável ao fenômeno natural do dia e da noite. Nessa zona nebulosa entre sono e vigília, vida e morte, luz e escuridão residem os sonhos, as alucinações e os estados de consciência alterada, sugerindo que o mundo visível, palpável, não é o único, e que existe outro mundo, sobrenatural, ligado ao nosso. É fácil entender que os habitantes desse outo munido, além de influenciar nossos pensamentos e nossas ações, entravam nos corpos de animais e até em objetos inanimados para provocar os fenômenos naturais que afetam nossa vida.
Um encontro de mundos
As imagens de seres humanos, animais e híbridos de animais e humanos nas pinturas das cavernas do período Paleolítico continham padrões que hoje se acredita que sejam uma representação das imagens formadas involuntariamente no fundo da retina, que caracterizam o fenômeno entóptico efeitos visuais como pontos, grades, ziguezagues e linhas onduladas que aparecem entre a vigília e o sono ou entre a visão e a alucinação. As próprias pinturas representam um véu permeável entre o mundo físico e o espiritual.
É impossível perguntar aos caçadores-coletores paleolíticos da Europa sobre as crenças e os rituais por trás das pinturas das cavernas, mas no século XIX ainda era possível registrar as crenças culturais e religiosas do povo /xam da África do Sul, um clã atualmente extinto de caçadores-coletores sans que fazia pinturas de caverna muito parecidas com as da Idade da Pedra, por motivos similares. A vida espiritual dos /xam sans apresentava um paralelo nítido com as ideias religiosas que os arqueólogos atribuíram aos primeiros seres humanos modernos. Acredita-se que até os "estalos" do idioma /xam san (representados por símbolos como "/", indicando um estalo dental, em vez de um sinal de desaprovação da língua no palato) provenham do primeiro modo de falar da humanidade.
Níveis do Universo
A mitologia de todo o povo san baseia-se em seu meio ambiente e na ideia de que existem três níveis de realidade entrelaçados, um plano natural e dois sobrenaturais. Os planos espirituais estão acima e abaixo do mundo intermediário, o plano em que vivemos. Cada um desses planos tem ligação com o outro, e o que acontece em um influencia diretamente o outro. Indivíduos com poderes especiais podem visitar o plano superior celestial e mover-se debaixo d'água e sob a terra no plano espiritual inferior.
Para os /xam sans, o mundo de cima é habitado pelo deus criador e impostor /Kaggen (também conhecido como louva-a-deus) e sua família, junto com uma grande quantidade de animais selvagens e o espírito dos mortos, entre eles os da Raça Primordial — uma comunidade de híbridos entre animais e humanos, com poderes de criação e transformação. Segundo os /xam, esses foram os primeiros seres a habitar a Terra.
Forças elementais
No mito /xam, os elementos da natureza possuem um poder sobrenatural, personificando espíritos. Os seres sobrenaturais podem assumir a forma de animais, como o elande (uma espécie de antílope), o suricata e o louva-a-deus, com os quais os /xam conviviam. O criador /Kaggen, que transformou o sonho do mundo em realidade, costumava se apresentar como humano, mas podia se transformar em quase qualquer coisa, geralmente um louva-a-deus ou um elande. Apesar de proteger os animais de caça, às vezes se transformava em um deles para poder ser morto e alimentar o povo.
Os indivíduos da Raça Primordial eram reverenciados e respeitados, mas não cultuados. Nem mesmo /Kaggen, o "louva-a-deus", embora um xamã san como //Kabbo (veja quadro na próxima página) procurasse interceder junto a ele para garantir uma boa caça. Como / Kaggen é um impostor, grande parte dos mitos relacionados a ele e sua família tem um tom irreverente. Até o mito da criação do primeiro elande inclui uma situação em que um / Kaggen ineficaz apanha de uma família de suricatas.
Importantes forças elementais e corpos celestiais também se tornaram personagens de histórias que explicam como eles vieram a existir e por que se comportam de um determinado jeito. Os filhos da Raça Primordial, por exemplo, jogaram o sol adormecido no céu, para que a luz que brilhava em sua axila pudesse iluminar o mundo. Foi uma menina da Raça Primordial que criou as primeiras estrelas, misturando as cinzas de uma fogueira ao céu da Via Láctea. A chuva não era vista como um fenômeno natural, mas como animais. Uma tempestade era um touro de chuva, e uma chuva fina era uma vaca de chuva. Indivíduos especiais com poderes de fazer chover, como //Kabbo, faziam viagens sobrenaturais a poços de água para evocar uma vaca de chuva e trazê-la, pelo céu, ao lugar em que houvesse necessidade de chuva. Nesse ponto, eles "abatiam" a vaca de chuva, de modo que seu sangue e leite se derramassem em forma de chuva sobre a terra.
A chuva era um elemento vital na paisagem árida do deserto onde os /xam viviam, por isso era fundamental reabastecer os poços de água espalhados, por entre os quais eles se moviam, ligando-os uns aos outros por uma complexa rede de história e mito, conhecida como kukummi, similar ao Sonho dos Aborigines Australianos (pp. 34-35).
Entrando em outros mundos
Muitos aspectos do mundo natural descrito nas histórias dos /xam demonstram a interação dos seres sobrenaturais com os humanos — qual o interesse deles neste mundo e o que os seres humanos, por sua vez, podem fazer para agradá-los. Todos os povos sans acreditam que os planos espirituais são acessíveis, em estados alterados de consciência, a quem possui um poder sobrenatural, conhecido como !gi, transmitido aos humanos e animais por seu criador. A dança de transe é o principal ritual religioso. Nela, os sans utilizam seu poder para acessar o mundo dos espíritos, via transe, e expelir seu eu essencial, pela cabeça, ao mundo espiritual. Lá, eles pedem pela vida dos enfermos e voltam com poderes de cura, sendo capazes de retirar as flechas de doença lançadas pelos mortos do outro mundo.
Os /xam rezavam para a Lua e as estrelas, pedindo poderes espirituais e sorte na caça. Quando entravam em estado de consciência alterada, dizia-se que eles estavam temporariamente mortos e que seu coração havia se tornado uma estrela. Humanos e estrelas eram tão intimamente ligados que, quando uma pessoa morria de verdade, "a estrela sente que nosso coração desfalece e cai. Porque as estrelas sabem quando morremos".
Após a morte, a ligação entre o mundo da experiência humana, o mundo dos espíritos e o mundo dos fenômenos naturais, na crença /xam, torna-se ainda mais aparente. Acredita-se que o cabelo de uma pessoa falecida vira nuvem, protegendo então os seres humanos do calor do sol. A morte é descrita em termos elementais: o "vento" que existe dentro de cada ser humano varre suas impressões digitais quando ele morre, fazendo com que a transição entre o mundo dos vivos e o dos mortos seja definitiva. Se as impressões digitais permaneceram, "aparentemente ainda estamos vivos".
A palavra "aino" significa "ser humano" e refere-se à população nativa do Japão que hoje vive, em grande parte, na ilha de Hokkaido. Os ainos possuem fortes laços culturais com outros habitantes do norte da bacia do Pacífico — os povos siberianos (como os chukchis, os koryaks e os yupiks) e os inuítes do Canadá e do Alasca. O principal ponto em comum entre esses povos é a visão animista do mundo, segundo a qual todo ser e todo objeto que existem têm uma alma e podem agir, falar e caminhar por conta própria. Eles também acreditam que o mundo físico e o espiritual são separados apenas por uma fina membrana permeável.
Os ainos consideram o corpo um mero recipiente para a alma. Após a morte, a alma sai pela boca e pelas narinas e renasce no próximo mundo como um kamui, palavra que significa ao mesmo tempo "deus" e "espírito". Quando o kamui morre no próximo mundo, ele renasce em nosso mundo. As almas sempre reencarnam no mesmo gênero e espécie.
Os kamuis podem ser animais, plantas, minerais, fenômenos geográficos ou naturais ou até ferramentas e utensílios produzidos pelos humanos. Por serem todas as almas, mesmo as de objetos inanimados, consideradas imortais, após a morte a casa de uma pessoa deve ser queimada, para assegurar que seu kamui tenha uma moradia no outro mundo. Seus utensílios e ferramentas também devem ser quebrados (para libertar os espíritos que têm dentro) e queimados junto com o corpo, para serem reutilizados no próximo mundo.
O poder das palavras
Alguns kamuis desempenham funções tanto no mundo humano quanto no mundo sobrenatural. Kotan-kor-kamui, por exemplo, é o deus criador, mas também é o deus da aldeia e pode se manifestar na Terra como uma coruja de orelhas longas.
Os humanos e os kamuis têm um relacionamento próximo — tão próximo que os kamuis ficaram conhecidos como "deuses com os quais podemos discutir". Podemos rezar para um kamui utilizando bastões entalhados específicos para reza, mas o relacionamento ritualístico baseia-se mais em respeito mútuo e comportamento certo do que em adoração. Se alguém irritou um deus, o indivíduo deve realizar uma cerimônia para expressar seu remorso. Se o sujeito, no entanto, tratou um deus com o devido respeito, realizando todos os rituais necessários, e ainda assim teve azar, ele pode pedir à deusa do fogo, Fuchi, para convencer esse deus a perdoá-lo e recompensá-lo.
Na crença dos ainos, até as palavras são espíritos, e o uso delas é um dos dons que os humanos possuem que os deuses e as coisas não têm. Palavras podem ser utilizadas para fazer tratos com deuses e coisas e também para dar prazer aos deuses. Por exemplo, as canções épicas dos ainos, conhecidas como kamui jukar, ou "canções dos deuses", são entoadas na primeira pessoa, da perspectiva dos kamuis, não dos humanos, e diz-se que os kamuis ficam muito felizes de ver os humanos dançando e cantando as canções dos deuses.
O xamanismo descreve uma das práticas religiosas mais antigas e difundidas da humanidade baseada na crença em espíritos que podem ser influenciados por xamãs. Acredita-se que esses xamãs, homens ou mulheres, são "indivíduos especiais", com grande poder e conhecimento. Após entrarem em estado alterado de consciência, eles são capazes de visitar outros mundos e interagir com os espíritos que vivem lá.
Fazer acordos com os poderosos espíritos que controlam esses outros mundos é um aspecto central das atividades de um xamã. Por exemplo: o xamã costuma pedir a libertação de animais de caça (essenciais em certas sociedades tradicionais) do mundo espiritual para o mundo físico, visão do futuro ou remédios para curar os doentes. Em troca, os espíritos pedem aos seres humanos (por meio do xamã que atua como intermediário) que façam oferendas ou observem determinadas normas de conduta.
Os xamãs desempenham um importante papel na cura dos doentes, enfatizando que sua jornada não é pessoal e particular, mas empreendida, sobretudo, para aliviar a dor e o sofrimento da comunidade. Essa função reflete-se em alguns termos (hoje obsoletos) que já foram utilizados para descrever os xamãs, como "médico-feiticeiro" na África subsaariana e "curandeiro" na América do Norte.
Na Europa, o xamanismo foi um elemento dominante em muitas sociedades, de 45 mil anos atrás até a era moderna. Os vikings praticavam uma forma de adivinhação xamânica conhecida como seiôr entre os séculos VIII e XI; e componentes xamânicos aparecem nos mitos medievais do deus nórdico Odin, que se enforcou num sacrifício de iniciação na Árvore do Mundo (o eixo do Universo).
Nos séculos XVI e XVII, notam-se traços xamânicos evidentes nos espíritos guerreiros Benandanti (uma seita de fertilidade agrária) de Friuli, Itália, e nos chamados seely wights noturnos (espíritos da natureza semelhantes a fadas) da Escócia. Mais recentemente, os caçadores de sonhos mazzeri da Córsega apresentam nítida influência xamânica.
Xamās samis
O registro histórico mais antigo do xamanismo na Europa provém do norte da Escandinávia, de uma região hoje conhecida como Sápmi (antiga Lapônia). Nesse local, o povo sami, pastores de rena e pescadores seminômades, preservou a religião xamânica até o início do século XVIII, retomando-a parcialmente em décadas recentes. Sua religião pode ser reconstruída com base em fontes históricas e na comparação com culturas relacionadas do norte da Ásia e do Ártico americano.
Os xamãs samis, ou noaidis, herdavam uma missão ou eram escolhidos pelos espíritos. Em algumas culturas, os "escolhidos" para serem xamãs costumavam enfrentar um período de doença e estresse, além de ter visões episódicas de sua morte e renascimento.
Os xamãs samis contavam com a ajuda de espíritos em forma de animais (lobo, urso, rena ou peixe), os quais imitavam quando entravam em transe. Diz-se que os xamās "viravam" o animal que imitavam, num processo de transformação interna, invisível externamente.
Três coisas ajudavam os xamās samis a entrar em transe. A primeira era a privação física, alcançada geralmente pelo trabalho sem roupa nas temperaturas congelantes do Ártico. A segunda era a batida rítmica do tambor sagrado sami (em povos similares, como o yakut e o buryat, esse tambor é chamado de "cavalo do xamã"); o tambor ora decorado com imagens do mundo do deuses acima, do mundo dos mortos abaixo e do mundo habitado pelos humanos (a Terra) os três planos conectavam-se pela Árvore do Mundo. A terceira forma de ajuda para entrar em transe era a ingestão de cogumelo psicotrópico Amanita muscaria. Após ingerir o cogumelo, c xamã entrava em transe e ficava rígido, imóvel, como se estivesse morto. Durante o processo, os samis homens protegiam o xamã, enquanto as mulheres entoavam músicas sobre as tarefas a serem realizadas no plano superior e no plano inferior e canções para ajudar o xamā a encontrar o caminho de casa.
Existem relatos de xamãs que nunca voltaram do outro mundo, geralmente porque os responsáveis por acordá-los com um encanto haviam esquecido as palavras mágicas. Conta-se que um xamã ficou perdido por três anos, até que seu guardião lembrou que sua alma precisava ser chamada de volta do "anel do intestino do peixe, terceira dobra". Quando as palavras relevantes foram pronunciadas, as pernas do xamã tremeram e ele acordou, amaldiçoando o guardião.
Comunicação com os espíritos
Dizem que os xamãs samis voavam para uma montanha no centro do mundo (o eixo cósmico) antes de entrar no mundo espiritual, acima ou abaixo da montanha. O voo era realizado por um espírito de peixe, guiado por um espírito de pássaro e protegido por um espírito de rena. Se o xamã quisesse pedir animais de caça ou alguma outra ajuda, ele visitava o mundo superior de Saivo. Se quisesse pedir pela recuperação da alma de algum enfermo, ia ao mundo inferior de Jabmeaymo. Isso depois de agradar a mestra do mundo inferior com oferendas. Os xamās eram capazes de se comunicar com os espíritos do mundo superior e do mundo inferior porque seu treinamento xamânico incluía o aprendizado da linguagem secreta dos espíritos.
Os xamās netsilingmiuts (netsilik inuits) uma cultura ártica, de uma região onde hoje é o Canadá (oeste da baía de Hudson) - tinham crenças religiosas parecidas com as dos samis. Além de controlar tempestades e curar pessoas, eles atuavam como mediadores entre o mundo humano e os espíritos da terra, do ar e do mar, numa sessão espírita xamânica realizada num iglu, com uma luz apropriada. O xamā evocava os espíritos que os ajudavam cantando músicas específicas. Depois de entrar em transe, falava com uma voz diferente de modo geral, mais grave e retumbante, embora às vezes falasse em falsete.
Durante esse estado de transe, o xamã podia enviar sua alma ao céu para visitar Tatqiq, o homem lua, responsável pela fertilidade das mulheres e pela sorte na caça. Se Tatqiq ficasse feliz com as oferendas do xamã, ele o recompensava com animais. Quando a Lua não estava visível no céu, os netsiliks acreditavam que era porque o homem lua havia ido caçar animais para alimentar os mortos.
No céu, no fundo do mar
Reza a lenda netsilik que um dia o grande xamã Kukiaq, enquanto tentava caçar focas num buraco no gelo, olhou para o céu e percebeu que a Lua movia-se lentamente em sua direção, vindo parar acima de sua cabeça. A Lua se transformou num trenó em forma de barbatana, e seu condutor, Tatqiq, fez um gesto para Kukiaq se juntar a ele, levando-o para sua casa no céu. A entrada da casa se movia como uma boca em processo de mastigação, e em um dos quartos o Sol estava cuidando de um bebê. A Lua pediu que Kukiaq ficasse, mas, temendo não encontrar o caminho de casa, ele voltou para a Terra num raio de lua, chegando em segurança no mesmo ponto do qual havia saído.
Às vezes, porém, os xamās netsiliks enviavam sua alma para o mundo inferior, para visitar Nuliayuk (também conhecida como Sedna), a mestra do mar e do reino animal, no fundo do oceano. Nuliayuk tinha o poder de segurar ou soltar as focas das quais os netsiliks dependiam para comer e se vestir. Por conta disso, exercia uma grande influência sobre eles. Quando os netsiliks quebravam algum de seus estritos tabus, clã prendia as focas. No entanto, se os xamās se aventurassem a ir ao fundo do mar para fazer tranças em seu cabelo, ela se alegrava e soltava as focas na água.
A tradição xamânica dos netsiliks durou até as décadas de 1930 e 1940. Dentro da comunidade netsilik, só os xamās (ou angatkut) — que eram protegidos por seus próprios espíritos guardiões não tinham medo dos perigosos e malévolos espíritos que habitavam o mundo. Um xamã netsilik contava com a ajuda de muitos espíritos. Por exemplo, os espíritos que ajudavam o xamã Unarâluk eram sua mãe e seu pai, já falecidos, o Sol, um cachorro e um escorpião-marinho. Esses espíritos informavam Unaråluk a respeito do que existia na Terra e debaixo dela, assim como no céu e no mar.
O povo baiga é uma das tribos indígenas da Índia central, conhecidas coletivamente como adivasis. Os baigas, que se consideram filhos de Dharti Mata, a Mãe Terra, acreditam que foram criados para serem os guardiões da floresta — uma missão que executam desde o início dos tempos.
Segundo os baigas, Bhagavan, o criador, criou o mundo plano, como um chapati (um tipo de pão indiano), mas o mundo começou a ondular, e não parava. O primeiro homem, Nanga Baiga, e a primeira mulher, Nanga Baigin, que nasceram na floresta da Mãe Terra, pregaram os quatro cantos da Terra, para fixá-la. Bhagavan lhes pediu para cuidar que os pregos não saíssem, prometendo-lhes uma vida simples, mas digna, em troca.
Os baigas seguiam o exemplo de Nanga Baiga, caçando livremente pela floresta e considerando-se os senhores dos animais. Por acreditarem que era errado rasgar o corpo da Mãe Terra com um arado, eles praticavam uma forma de agricultura de derrubada e queimada conhecida como bewar (embora sempre deixassem um pedaço do tronco das árvores para os deuses habitarem), mudando-se a cada três anos para um novo trecho da floresta. No século XIX, oficiais britânicos, contrários aos métodos dos baigas, os obrigaram a abandonar aquele tipo de cultivo e adotar o odiado arado. A bewar só poderia ser praticada na reserva de Baiga Chak, nas montanhas Mandla.
De acordo com a crença maori, não havia morte no início do mundo. Ela passou a existir após um incesto. Numa versão do mito maori, o deus da floresta Tane viveu entre os pais, separando-os — Rangi, o deus do céu, e Papa, a deusa da terra —, porque eles o forçaram a viver na escuridão. Tane, então, pediu a mãe em casamento, mas quando Papa explicou-lhe que não seria possível, ele criou uma mulher de barro e casou-se com ela.
Como fruto dessa união, nasceu uma bela criança — Hine-titama. A filha de Tane tornou-se sua esposa, sem saber que ele também era seu pai. Um dia, porém, a menina descobriu a terrível verdade e desceu envergonhada à escuridão de Po, o mundo subterrâneo. A partir desse momento, a morte passou a existir na humanidade.
Em visita à esposa, ela pediu a Tane: "Fique no mundo da luz e cuide de aumentar nossa descendência. Eu ficarei aqui, no mundo da escuridão, e me encarregarei de trazer nossos descendentes para cá". Hine-titama, então, ficou conhecida como Hine--nui-te-po, a deusa da escuridão e da morte. Numa tentativa de mudar o rumo dos acontecimentos e recuperar a imortalidade para os seres humanos. O herói Maui estuprou Hine-nui-te-po enquanto ela dormia, acreditando que após esse ato a morte deixaria de existir. Mas Hine- -nui-te-po acordou no meio do ataque e sufocou Maui com as coxas, fazendo com que a morte permanecesse no mundo para sempre.
Na tradição aborígine australiana, o tempo da criação era chamado de "O Tempo do Sonho", mas agora é conhecido apenas como Sonho. Esse termo exprime perfeitamente o elemento crucial do credo aborígine — de que a criação é algo contínuo e permanente, existindo num presente eterno, não num passado remoto. O termo também condiz com a crença aborígine de que o Sonho pode ser acessado por meio de rituais, dança, música, histórias e componentes físicos, como objetos sagrados e pinturas na arcia, na rocha, em cascas de árvore, no corpo humano ou em lona.
Mitos do Sonho, chamados de Sonhos, falam de seres ancestrais, conhecidos como as Primeiras Pessoas ou "os eternos do sonho", e de seu papel na criação. A tradição aborígine conta que esses seres acordam num mundo primitivo, ainda maleável e em estado de transformação, e vagam pela terra, deixando caminhos sagrados conhecidos como "Linhas melódicas" ou "Faixas do Sonho". Em seu trajeto, eles dão forma a seres humanos, animais, plantas e natureza, estabelecendo rituais, definindo a relação entre as coisas e mudando de forma, de animal para humano, e vice-versa. Por fim, eles se transformam em elementos da natureza, como estrelas, rochas, poços de água e árvores.
A terra viva
Os Sonhos estão intimamente ligados aos elementos naturais (montanhas, rochas e riachos, por exemplo), assim como as próprias "Linhas Melódicas". Os povos aborígines reverenciam a topografia da Austrália corno algo sagrado, uma vez que ela oferece evidências da perambulação de seus ancestrais espirituais e de seus corpos. Segundo a tribo gunwinggu, a terra possui o djang (poder espiritual) dos seres ancestrais, responsável por sua vida e poder sagrado.
Essa topografia sagrada culmina no Uluru, uma formação rochosa de arenito no Território do Norte, de onde se acredita que todas as "Linhas Melódicas" se originam. O Uluru é venerado como o grande armazém de djang, o centro umbilical do corpo vivo da Austrália.
Os aborígines consideram a terra como uma herança e uma responsabilidade, e por isso eles cuidam dela e do Sonho da maneira apropriada. Embora sejam mortais, o djang de seus ancestrais vive para sempre, e está sempre no presente.
A religião da área montanhosa dos Andes pode ser resumida, em essência, ao culto dos mortos. Essa tradição de reverência aos ancestrais remonta uma época muito anterior ao efêmero império dos incas — a cultura que mais caracteriza a região — e dura até os dias atuais.
Apenas um dos muitos povos andinos que falam quichua, os incas dominaram grande parte dos atuais territórios do Peru, Equador, Chile, Bolívia e Argentina no século XIII. Com a expansão de seu império, eles impuseram uma cultura semelhante à dos astecas da Mesoamérica (pp. 40-45), que eram contemporâneos deles. Essa cultura girava em torno da adoração do sua deidade suprema, o deus Sol.
No entanto, além da capital inca Cuzco, com seus sacerdotes, rituais e artefatos de ouro, as pessoas comuns, que os incas chamavam de hatun runa, continuavam praticando um culto aos ancestrais e à Terra que remontava à Pré-História e resistiu à queda do poderoso império inca, destruído no século XVI por conquistadores espanhóis liderados por Francisco Pizarro.
Os povos das montanhas
Desde tempos imemoriais, os povos andinos se organizavam em ayllus, grupos de famílias ou clãs, cada um em um território específico. Dentro desses grupos, eles trabalhavam a terra, dividiam recursos e cultuavam divindades nas huacas, uma espécie de santuário animista. O foco da adoração era rezar para a terra alimentá-los — uma ajuda vital numa região montanhosa onde a prática da agricultura era um processo bastante laborioso. Paralelamente às súplicas à terra existia a crença de que, assim como a terra havia alimentado seus ancestrais, ela, com a intercessão desses espíritos, os alimentaria também.
Cada ayllu mumificava e cultuava os corpos de seus mortos, acreditando que os ancestrais ajudariam a manter a ordem cósmica e garantiriam a fertilidade da terra e dos animais. Os corpos eram enrolados em tecidos e colocados em túmulos sagrados de pedra (chullpa machulas), direcionados para o topo da montanha. Uma vez dessecadas pelo ar seco e frio, as múmias eram levadas para o campo durante os rituais, com o intuito de ajudar na plantação. Enquanto isso, sacerdotes e clarividentes nas huacas e nos túmulos sagrados ofereciam folhas de coca, sangue e gordura, acreditando que, se os espíritos da terra e de seus ancestrais fossem alimentados, em troca eles alimentariam o povo.
Um poder duradouro
No século XVI, missionários cristãos queimaram um grande número de múmias andinas, para acabar com o que viam como crenças pagãs. Mesmo assim, algumas múmias resistiram as mais antigas ou os primeiros seres, segundo os quíchuas da atualidade. As chullpa machulas, hoje apenas nichos nas pedras, continuam sendo locais santos, onde clarividentes derramam sangue e gordura, acreditando que isso manterá o local vivo. Alguns grupos, como os índios qollahuayos (veja quadro abaixo), queimam folhas de coca enroladas em lã de lhama. Segundo a tradição, os túmulos continuam tendo poder, mesmo sem as múmias que os ocupavam. O dia dos mortos, 2 de novembro —marcando o fim da estação seca e o início das chuvas, quando o cultivo pode ser retomado —, continua sendo comemorado na cultura andina, com um festejo no qual os mortos são convidados a visitar os vivos e a levar uma parte da colheita.
A maioria das sociedades desenvolveu um sistema de moralidade baseado no apelo a ideias de bondade humana, reforçado por sanções de autoridades religiosas e sociais. Quase nenhuma cultura desconhece a ideia de crime e guerra, mas as poucas que foram encontradas eram tribos de caçadores-coletores que lutavam por sua sobrevivência nas florestas tropicais. Uma dessas tribos é o povo chewong, da Malásia Peninsular, cujo primeiro contato com os europeus foi na década de 1930. Hoje eles somam 350 pessoas.
Os chewongs são um povo pacífico e não competitivo. Em seu vocabulário não existem palavras para guerra, briga, crime ou castigo. Eles acreditam que os primeiros seres humanos aprenderam a maneira certa de viver graças ao herói de sua cultura, Yinlugen Bud — um espírito da floresta que já existia antes dos primeiros humanos. Yinlugen Bud deu aos chewongs sua regra mais importante, maro, que prevê que a comida deve ser sempre compartilhada. Comer sozinho é perigoso e errado. Só cuidando de todas as pessoas com um espírito de justiça e solidariedade é que o grupo pode ter esperança de sobreviver. Os chewongs acreditam que a violação de seu código moral — não compartilhar comida, ficar com raiva em momentos de infortúnio, expressar expectativa de prazer ou alimentar desejos não gratificados terá repercussões sobrenaturais, como doenças ou ataques psíquicos ou físicos, seja por um tigre, uma cobra, uma centopeia venenosa ou a ruwai (alma) do animal.
Vivendo na região do delta do rio Orinoco, onde a Terra é dividida em inúmeras ilhas por uma rede de hidrovias, a tribo warao considera o mundo plano — a Terra é apenas uma fina crosta entre a água e o céu. Eles acreditam que Hahuba, a Serpente do Ser — a avó de tudo o que está vivo —, está enrolada em torno do planeta e que sua respiração é o movimento das marés. Seus diversos deuses, conhecidos como "Os Antigos", vivem em montanhas sagradas nos quatro cantos da Terra, enquanto os waraos vivem no centro. Em povoados protegidos por um dos deuses, a choça que serve de templo também contém uma rocha sagrada onde o deus habita.
Dependência divina
Os deuses waraos dependem dos humanos para receber oferendas, principalmente tabaco. Os waraos, por sua vez, dependem dos deuses para ter saúde e continuar vivendo Esse vínculo permanente com os deuses é estabelecido assim que o bebê nasce. Dizem que o primeiro choro do bebê ecoa pelo mundo até chegar à montanha de Ariawara, o Deus da Origem, no Leste, que chora de volta como sinal de boas-vindas. Logo após o nascimento do bebê, Hahuba, a Serpente do Ser, faz soprar uma brisa agradável no povoado, para acolher o recém-nascido. A partir daí, o bebê passa a fazer parte do complexo equilíbrio entre o natural e o sobrenatural que constitui a rede do cotidiano warao.
Ο sacrifício de animais e humanos caracterizou muitas tradições religiosas no mundo inteiro, mas a ideia de sacrifício ritualístico foi particularmente relevante nas antigas civilizações da Mesoamérica, sobretudo para os maias e os astecas.
Os povos mesoamericanos habitaram a região que hoje vai do México central à Nicarágua. A civilização maia (auge: c. 250-900 d.C.) precedeu a civilização asteca, que atingiu o apogeu por volta de 1300-1400 d.C. A cultura asteca inspirou-se na tradição maia, e os dois povos possuem diversas divindades em comum, com nomes diferentes, mas com as mesmas características.
Um pacto de sangue
As culturas mesoamericanas acreditavam que o sacrifício de sangue aos deuses era essencial para assegurar a sobrevivência do mundo, numa tradição de sangria ritualística que remonta à primeira grande civilização do México, o povo olmeca, que se destacou entre 1500 e 400 a.C. Reza a lenda que os próprios deuses realizaram enormes sacrifícios para criar o mundo, incluindo o derramamento de seu próprio sangue para gerar a humanidade, o que explica por que eles desejavam sacrifícios similares da humanidade em troca.
Sacrifício e criação
O poder do sangue e a necessidade de sacrifícios são elementos centrais no mito da criação asteca. Os astecas acreditavam que os deuses criaram e destruíram quatro eras, ou "sóis", e que, após a destruição do quarto sol por um dilúvio, o deus do vento, Quetzalcoatl, e seu irmão, Tezcallipoca, rasgaram a deusa Tlaltecuhtli (ou deus, em algumas versões) ao meio para criar um novo céu e uma nova Terra. De seu corpo saiu tudo o que era necessário para a vida da humanidade — árvores, flores, grama, fontes, poços, vales e montanhas. Tudo isso causou uma terrível agonia à deusa Tlaltecuhtli, e ela passou a uivar durante a noite, exigindo o sacrifício de corações humanos para sustentá-la.
Seguiram-se outros atos cósmicos de criação, todos requerendo sacrifícios ou oferendas de sangue. Um relevo mostra as primeiras estrelas nascendo do sangue jorrado pela língua de Quetzalcoatl depois que ele a furou. Para criar o quinto sol, um deus teria que se jogar numa pira funerária. Dois deuses, Tecuciztecatl e Nanahuatzin, em rivalidade pela honra, imolaram-se. Nanahuatzin tornou-se o Sol e Tecuciztecatl, a Lua. Os outros deuses ofereceram o coração para fazer com que o novo sol se movimentasse pelo céu (a oferenda do coração é um tema recorrente nos mitos e rituais mesoamericanos).
A pavorosa dívida da humanidade
Tanto os astecas quanto os maias estavam presos a seus deuses por uma dívida de sangue, decorrente dos atos da criação que jamais poderiam ser pagos. Conta-se que Quetzalcoatl desceu ao mundo subterrâneo, recolheu os ossos dos antigos humanos (restos mortais das quatro eras anteriores) e os deuses os moeram, derramando em seguida seu próprio sangue na fina farinha para lhe dar vida e criar uma nova raça de pessoas — pessoas cujo coração poderia satisfazer a sede de sangue dos deuses.
Segundo o mito mesoamericano, cada período de 52 anos representa um ciclo, no fim do qual o mundo pode acabar. O sacrifício humano era uma forma de agradar os deuses e convencê-los a não destruir a era presente a era do quinto sol. Os maias acreditavam que o que fazia o Sol aparecer no céu toda manhã era o sacrifício de sangue.
O deus do Sol asteca. Huitzilopochtli, estava preso em constante luta contra a escuridão e precisava ser fortalecido com sangue para que o Sol continuasse em seu ciclo. Ou seja, a existência do mundo mesoamericano equilibrava-se sobre uma linha extremamente tênue e dependia de constantes atos de sacrifício para não chegar ao fim.
O derramamento de sangue para os deuses assumia duas formas: autossacrificio (derramamento de sangue próprio) e sacrifício humano. Tanto os maias quanto os astecas realizaram autossacrifícios. Os nobres da Mesoamérica tinham o que era considerado um privilégio e a responsabilidade de derramar seu próprio sangue para os deuses, furando a carne com espinhas de arraia, facas de pedra e, o mais comum, com espinhos de agave. Os furos eram feitos nas orelhas, nas canelas, nos joelhos, nos cotovelos, na língua ou no prepúcio. A prática do autossacrifício remonta à época do povo olmeca, continuando mesmo após a conquista espanhola do México, em 1519. Tanto os homens quanto as mulheres da nobreza maia participavam — os homens derramando sangue do prepúcio e as mulheres, da língua. A oferenda era coletada em papel amate, que então era queimado. A fumaça produzida pelas oferendas ajudava-os a comunicar-se com os ancestrais e os deuses.
Ritos de sacrifício
O sacrifício humano era muito mais comum na cultura asteca do que na cultura maia, que o realizava apenas em circunstâncias especiais, como a consagração de um novo templo.
O sacrifício asteca normalmente envolvia a retirada do coração da vítima. Acreditava-se que o coração constituía um fragmento da energia do Sol, de modo que retirá-lo era uma forma de devolver a energia para sua fonte. A vítima era imobilizada por quatro sacerdotes sobre uma laje do templo, enquanto um quinto arrancava o coração do corpo com uma faca de pedra e o oferecia aos deuses, ainda batendo, numa cabaça chamada cuauhxicalli. Após a retirada do coração, o corpo era levado pelas escadas do templo em forma de pirâmide ao terraço de pedra, na base. Removia-se a cabeça da vítima e, às vezes, também os braços e as pernas. O crânio ficava em exibição numa estante específica. Dependendo do deus que estava sendo homenageado no sacrifício, as vítimas morriam em luta, afogadas, atingidas por flechas ou escalpeladas.
Os sacrifícios, muitas vezes, assumiam proporções inimagináveis. Por exemplo, na reinauguração do templo asteca de Huitzilopochtli no ano de 1487 em Tenochtitlán, estima-se que 80.400 vítimas tenham sido sacrificadas, enchendo piscinas de sangue coagulado no pátio do templo. Mesmo uma estimativa mais modesta de 20 mil vítimas ainda representa uma carnificina.
O ano ritualístico asteca era pontuado por sacrifícios a diversos deuses e deusas. Embora os deuses também se alegrassem com fumaça de incenso, tabaco, comida e objetos preciosos, o que eles realmente desejavam era sangue.
Rituais e o calendário
O ano mesoamericano tinha 260 dias, um calendário seguido tanto pelos astecas quanto pelos maias. No final de cada ano na sociedade asteca, um homem representando Mictlantecuhtli, o deus do mundo subterrâneo, era sacrificado no templo chamado Tlalxicco, "o centro umbilical do mundo". Dizia-se que a carne da vítima, depois, era comida pelos sacerdotes. Assim como a carne humana sustentava os deuses, ao consumir um deus (incorporado na vítima sacrificada), alcançava-se uma espécie de comunhão com aquele deus. Celebrantes menos eminentes comiam figuras feitas de massa de pão, na qual se misturava o sangue do sacrifício. Consumir essas figuras de massa, conhecidas como tzoalli, também era uma forma de comunhão com os deuses.
Tal representação dos mitos dos deuses era uma característica do credo asteca e dos ritos anuais. Durante o principal festival de Xipe Totec, um sacerdote personificando o deus "vestia" a pele do prisioneiro sacrificado. Da pele apertada que se rasgava emergia o sacerdote, como um rebento de uma semente, representando crescimento e renovação. Outros sacrifícios astecas honravam o milho, seu alimento básico. Todo ano, uma jovem representando Chicomecoatl, a deusa do milho, era sacrificada na época da colheita. A jovem era decapitada, o sangue, derramado sobre uma estátua da deusa, e a pele, vestida por um sacerdote.
Conquista e absorção
Quando o invasor espanhol Hernán Cortós e seus conquistadores desembarcaram no México em 1519, diz-se que os astecas o confundiram com o deus Quetzalcoatl, em parte pela semelhança do chapéu, e lhe ofereceram bolos de milho embebidos em sangue humano. A oferenda não agradou ao "deus", e a civilização asteca, com apenas quatro séculos de existência àquela altura, foi destruída pelo espanhol.
Em contrapartida, a cultura maia não sofreu a mesma aniquilação, possivelmente porque os maias estavam mais espalhados pelo território. No sul do México, até hoje o povo tzotzil, descendente dos maias, preserva muitos elementos da antiga cultura e religião, incluindo o calendário de 260 dias.
A religião tzotzil é uma mistura de catolicismo e crenças maias tradicionais. A terra natal desse povo, no planalto de Chiapas, no sul do México, está cheia de cruzes de madeira, não apenas em referência ao crucifixo cristão, mas como canais de comunicação com Yajval Balamil, o senhor da terra, um deus poderoso que deve ser atendido antes de se fazer qualquer trabalho na terra. Numa adaptação das antigas crenças, o povo tzotzil associa o Sol com o deus cristão e a Lua com a Virgem Maria, cultuando também imagens dos santos cristãos.
Os primeiros espaços sagrados das primeiras religiões foram os naturais: florestas, nascentes e cavernas. No entanto, com o processo de ritualização dos cultos, surgiu a necessidade de definir lugares sagrados — construções designadas à devoção que apresentam as características essenciais de cada religião.
Por outro lado, construções utilizadas para atividades cotidianas assumiam importância cósmica em culturas onde religião e cotidiano se misturavam. Um exemplo disso foram as cabanas de terra, ou centros cerimoniais, dos pawnees, umas das nações de indígenas americanos das Grandes Planícies. A arquitetura da cabana de terra dos pawnees possuía um aspecto sagrado, fazendo com que cada construção fosse uma versão em miniatura do universo, conforme prescrito no início dos tempos por Tirawahat, o deus criador e chefe de todos os deuses, após ter criado os céus, a Terra e os primeiros seres humanos (veja quadro na página seguinte).
Cada cabana de terra era sustentada por quatro pilares, em representação a quatro deuses, as "Estrelas das Quatro Direções", que sustentavam também os céus do nordeste, noroeste, sudoeste e sudeste. Os pawnees acreditavam que as estrelas ajudaram Tirawahat a criá-las e que, no fim do mundo, os pawnees virariam estrelas.
A entrada da cabana de terra era a leste, para permitir a entrada da luz da alvorada. No centro da habitação havia uma lareira e, no fundo (a oeste), um pequeno altar feito de terra. No altar, um crânio de búfalo seria ocupado pelo espírito de Tirawahat assim que os primeiros raios de sol da manhã incidissem sobre ele. Acreditava-se que Tirawahat vivia e se comunicava com as pessoas por meio desse crânio. Mais acima, pendurados numa viga, objetos sagrados utilizados em rituais, como mapas do céu noturno. Dizia-se que esses objetos davam a identidade e o poder de cada povoado.
Um mundo dentro de outro
No inverno, construíam-se pequenas cúpulas de vapor dentro das cabanas de terra. Essas cúpulas, utilizadas para propósitos espirituais e de cura, também eram locais sagrados. Segundo a crença, as pedras aquecidas utilizadas dentro das cúpulas de vapor eram "avôs" ancestrais, que deveriam ser tratados com grande reverência. As pedras quentes eram mergulhadas em água, e acreditava-se que o vapor produzido era a respiração dos ancestrais.
Reza a lenda que a primeira cúpula de vapor foi construída pelo filho de um indígena como parte de um ritual ensinado a ele por animais de guarda. Durante o ritual, ele disse: "Agora estamos sentados no escuro como Tirawahat quando criou todas as coisas e colocou os meteoros no céu para o nosso bem. Os pilares que nos protegem são representações deles. Quando eu soprar essa raiz sobre as pedras, vocês verão uma chama azul saindo delas, como sinal para rezarmos para Tirawahat e os avôs ancestrais".
O povo dogon vive na falésia do Bandiagara, no Mali, África Ocidental, onde pratica uma religião animista tradicional. Para eles, tudo contém poder espiritual. Um dos fundamentos da religião dogon é a crença de que a humanidade é a “semente” do universo e que a forma humana reflete tanto o primeiro momento da criação como o universo inteiro. Por conta disso, todo vilarejo dogon tem o formato do corpo humano, sendo considerado um ser vivo.
Espaço simbólico e sagrado
Um vilarejo dogon estrutura-se como um corpo deitado de norte a sul, com a forja na cabeça e os santuários nos pés. Essa estrutura reflete a crença de que o deus criador, Amma, criou o mundo do barro, em forma de uma mulher deitada nessa posição. Tudo no vilarejo apresenta um equivalente antropomórfico. As choças para o período menstrual das mulheres, a leste e a oeste, são as mãos. As granjas familiares são o peito. Cada uma dessas granjas, por sua vez, é estruturada no formato de um corpo masculino, onde a cabeça é a cozinha, a barriga é o grande quarto central, os braços são duas fileiras de depósitos, o peito são duas jarras de água, e o pênis é o corredor de entrada. A construção reflete o poder criativo dos gêmeos ancestrais masculino-feminino, os nommos (veja quadro na página seguinte).
A cabana do hogon, o líder espiritual do povo dogon, constitui um modelo do universo. Cada elemento da decoração e da mobília é carregado de simbolismo. Os movimentos do hogon estão de acordo com o ritmo do universo. Na alvorada, ele se vira para o leste, em direção ao nascer do Sol. Depois, caminha pela granja seguindo a ordem dos quatro pontos cardeais. Finalmente, ao anoitecer, ele se senta virado para o oeste. Sua bolsa é descrita como "a bolsa do mundo"; seu bastão é "o eixo do mundo".
Significado cósmico
Até a vestimenta do hogon representa o mundo em miniatura. O toucado cilíndrico, por exemplo, é uma imagem tecida das sete vibrações espirais que afetaram o "ovo-mundo" cósmico (veja à direita). Durante uma crise, os chefes se reúnem em torno do toucado e o hogon fala com o chapéu, virando-o para cima no chão, como se o próprio mundo estivesse sendo virado, pronto para recuperar a ordem por intervenção do deus Amma.
O complexo simbolismo cósmico dos dogons reflete-se para fora a partir do cosmos e volta para o toucado do hogon, a casca do ovo-mundo. Religião, sociedade, cosmologia, mitologia, cultivo cotidiano — tudo se entremeia em cada detalhe, refletido em cada ação.
Até a chegada do cristianismo a Tikopia na década de 1950, todos os habitantes dessa pequena ilha no Pacífico dedicavam-se a rituais durante duas semanas por ano, assumindo o Trabalho dos Deuses. Nessas ocasiões, eles realizavam tarefas para agradar os atuas, espíritos ou deuses, acreditando que em retribuição eles garantiriam uma boa colheita. O Trabalho dos Deuses era um tipo de devoção que se expressava como um sistema de troca entre seres humanos e espíritos. Os tikopianos realizavam rituais, e os deuses garantiam suas necessidades básicas. Além disso, a religião era estruturada de modo que grande parte das atividades levadas a cabo para agradar os deuses — como consertar canoas, plantar, colher e produzir cúrcuma — possuísse valor econômico para os tikopianos. Oferendas de comida e kava (uma bebida inebriante) feitas aos deuses eram consumidas somente "em essência" — deixando o alimento de verdade para o consumo humano.
Fazer parte do Trabalho dos Deuses gerava status e era visto como um privilégio. Os rituais envolvidos nessa religião também serviam de base para estruturas sociais e econômicas fundamentais e ajudavam a manter o povo tikopiano unido.
Com suas músicas e danças ritualísticas, a tribo hupa do noroeste da Califórnia acreditava que era capaz de renovar o mundo, ou "firmar o planeta", revitalizando a terra de modo a assegurar recursos suficientes para o ano seguinte. Uma das principais danças de renovação do mundo, realizada todo outono, era a Dança da Camurça Branca. O propósito da dança era recriar as ações do povo kixunai, ou "o primeiro povo", os míticos antecessores dos hupas.
Ao reencenarem a narrativa sagrada dos kixunais, os hupas esperavam acessar os poderes da criação, a fim de salvaguardar a saúde da população e garantir provisão suficiente de animais selvagens e peixes para a temporada de caça. No decorrer da dança, que durava dez dias, exibia-se a pele de um cervo albino (símbolo de riqueza e status), toda decorada. De manhã os participantes remavam no rio em pirogas e. à tarde e à noite, eles dançavam, empunhando varas com efigies nas pontas.
O primeiro povo
Os hupas acreditavam que os kixunais eram humanos na forma, mas extraordinários no caráter. Tudo o que um kixunai fazia se tornava costume na nova raça hupa. Portanto, cada detalhe do cotidiano dos hupas baseava-se nas atividades do primeiro povo. De acordo com a crença hupa, os kixunais dispersaram-se pelo oceano, deixando apenas o lendário Yimantuwinyai para ajudar as pessoas em sua vida na Terra.
A Mesopotâmia, área do atual Iraque, entre os rios Tigre e Eufrates, costuma ser chamada no Ocidente de "o berço da civilização”. Foi lá que surgiram as primeiras cidades, na Idade do Bronze. A medida que essas comunidades cresceram, aumentou a necessidade de novas estruturas sociais, uma cultura comum e um credo único para unificar a população e reforçar o sistema político. A religião não só explicava os fenômenos naturais, mas também oferecia uma mitologia coerente. No 4º milênio a.C., o povo sumério habitava a região, concentrando-se em cerca de doze cidades-estados, cada uma regida por um rei, mas com o poder político nas mãos do sumo sacerdote da religião de cada estado. Os sumérios cultuavam um panteão de deuses, entre eles Enki, deus da água e da fertilidade, e Anu, deus do céu. Quando os babilônios começaram a se fixar na Mesopotâmia no 3º milênio a.C., eles incorporaram o povo sumério e sua cultura — incluindo alguns aspectos de sua mitologia — a seu império Os líderes babilónicos valeram-se da mitologia suméria para reforçar a hierarquia estabelecida, o que ajudou a reafirmar seu poder em relação a seu próprio *povo e aos sumérios suplantados.
A religião da Babilônia
Fundamental para a religião babilónica, o poema épico “Enüma Elish", registrado em sete tábuas de argila, narra uma sequência de eventos adaptados da mitologia suméria, porém com divindades da Babilônia - em especial Marduk, filho do deus sumério Enki e herdeiro legítimo de Anu. A história apresenta Marduk como o líder de uma hierarquia de jovens deuses, cuja vitória sobre os deuses mais velhos, entre eles a deusa criadora Tiamat (veja quadro à direita), lhe deu o poder de criar e organizar o universo, que ele governava de sua casa na Babilônia. O “Enuma Elish" apresenta uma analogia clara à tomada da Suméria e à fundação da Babilônia, mas a supremacia de Marduk em relação aos outros deuses e sua organização do mundo Lambem servem como metáfora para a soberania dos reis babilónicos e sua autoridade na criação e imposição de leis.
Um sinal da realeza
Para reforçar a ideia do domínio babilónico e unificar o império, o “Enuma Elish” era recitado e encenado num festival de Ano-Novo, conhecido como Akitu, realizado no equinócio da primavera. Além de marcar a mudança de ano, o evento era uma recriação ritualística do cosmos, que permitia a Marduk definir o destino das estrelas e dos planetas para o ano seguinte. Tanto na mitologia quanto no ritual, o propósito do Akitu era legitimar a realeza - uma demonstração pública de que o rei babilónico recebia sua autoridade diretamente de deus. Ao dramatizar o triunfo de Marduk sobre Tiamat, a centralidade da Babilônia também era reafirmada.
Os antigos egípcios deixaram extraordinários tributos a seus mortos, como as pirâmides, enormes necrópoles, túmulos subterrâneos, além de itens sepulcrais e arte, mas não seria certo dizer que eles eram obcecados pela morte. Ao contrário, eles estavam se preparando para a vida após a morte.
Todos os seus rituais fúnebres de embalsamamento, mumificação, enterro e recordação visavam a uma nova vida no além. Os egípcios desejavam viver após a morte como seres perfeitos no Aaru, os "campos de junco", que eram uma versão aperfeiçoada do Egito conhecido.
O Aaru era domínio de Osiris, o senhor dos mortos. Nele, os mortos abençoados colhiam cevada e trigo — colheitas fartas, retratadas com alegria nas paredes das tumbas egípcias.
Segundo os egípcios, um indivíduo completo possuía os seguintes elementos: o corpo físico, o nome, a sombra, o ka (força de vida espiritual), o ba (personalidade) e o akh (o ser aperfeiçoado que poderia aproveitar a vida no paraíso). Para garantir a vida no paraíso, a pessoa precisava atentar para todos esses elementos. O corpo tinha que ser preservado por meio da mumificação e enterrado com um conjunto de equipamentos funerários, incluindo jarras com os órgãos internos, em rituais que identificavam o falecido com o deus Osíris. A dramatização da morte e ressurreição do deus preparava o morto para o próximo mundo.
Cada etapa da mumificação era acompanhada por um ritual religioso. Embalsamadores faziam o papel de Anúbis, o deus com cabeça de chacal, que protegia os mortos. Anúbis criou os mistérios do embalsamamento para ressuscitar Osíris. Palavras mágicas durante o processo garantiam aos mortos: "Você viverá de novo, você viverá para sempre".
A jornada dos mortos
A preservação do corpo físico pela mumificação era importante porque era para o corpo que o ka precisava voltar em busca de sustento. Se o corpo estivesse deteriorado, o ka passaria fome. O ka precisava retirar força do corpo para se unir novamente ao ba no além. Juntos, eles criavam o akh, que deveria receber permissão para entrar no paraíso.
O morto, então, negociava o caminho deste mundo para o próximo e era conduzido por Anúbis ao "saguão das duas verdades", onde seu coração era pesado numa balança junto com Ma'at, a deusa da verdade, simbolizada por uma pena de avestruz. Se o coração, com o peso dos pecados, pesasse mais do que a pena, seria devorado por Ammut, a devoradora dos mortos. Se a balança ficasse equilibrada, o falecido poderia se encaminhar ao paraíso, onde Osíris o aguardava no portão.
Egípcios eminentes eram enterrados com um "manual": o Livro dos mortos, ou Encantos para sair à luz, um guia que ensinava os mortos a falar, respirar e beber no além. Incluía, evidentemente, um encanto para "não morrer de novo no reino dos mortos".
O zoroastrismo, uma das religiões mais antigas ainda existentes e umas das primeiras crenças monoteístas, foi fundado pelo profeta Zoroastro na antiga Pérsia, o atual Irã.
A religião de Zoroastro se desenvolveu a partir do antigo sistema de deuses indo-iranianos, que incluía Ahura Mazda, o “senhor da sabedoria”. No zoroastrismo, Ahura Mazda (às vezes chamado de Ohrmazd) é elevado à condição de deus único e supremo, o sábio criador, fonte de todo o bem, que representa ordem e verdade, em contraposição à maldade e ao caos. Ahura Mazda conta com a ajuda de suas criações, os Amesha Spenta, ou “imortais sagrados", seis espíritos divinos. Um sétimo Spenta menos definível ó o Spenta Mainyu, visto corno o próprio "espirito santo” de Mazda e agente de sua vontade.
O mal e a escolha humana
Segundo o zoroastrismo, todos nós nascemos bons. A presença malévola de Ahriman explica por que nos sentimos tentados a fazer coisas erradas. Explica também corno o mal pode existir na presença de um deus bom. Os textos zoroastristas afirmam: “O que é completo e perfeito em sua bondade não pode produzir o mal. So pudesse, não seria perfeito. Se Deus é perfeito em bondade e conhecimento, a ignorância e o mal não podem vir dele" Ou seja, Ahura Mazda não pode ser responsável pela presença do mal no mundo: a fonte do mal é Ahriman. O falo de que Ahura Mazda deu livre-arbítrio à humanidade significa que lodo momento da existência de um indivíduo requer uma escolha entre o que é certo e o que é errado, e é nossa responsabilidade escolher o bem em detrimento do mal.
Esse foco numa escolha moral faz do zoroastrismo uma religião em que a responsabilidade pessoal e a moralidade constituem fatores supremos, não só em termos conceituais, mas também na prática diária. As virtudes humanas importantes para Ahura Mazda incluem sinceridade, lealdade, tolerância, capacidade de perdoar, respeite aos idosos e cumprimento de promessas. Elementos como raiva, arrogância, sede de vingança, palavrões e cobiça são condenados — e não somente nesta vida.
Julgamento e salvação
Os zoroastristas acreditam que as pessoas serão julgadas em dois momentos após a morte: quando morrerem e no dia do Juízo Final, no fim dos tempos. Os dois julgamentos focarão, respectivamente, a moralidade de pensamento do indivíduo c a moralidade dc ouao ações. Em ambos os casos, falhas morais são punidas com inferno. Essas punições, porém, não são eternas. Elas terminam quando o indivíduo corrige sua falha moral no além. A partir de então, ele pode ir morar com Ahura Mazda no paraíso.
O jainismo é a mais ascética de todas as religiões indianas, propondo a abnegação para se alcançar a libertação (moksha) e não precisar voltar para este mundo de sofrimento. O jainismo conforme o conhecemos foi fundado por Mahavira, contemporâneo de Buda, no século VI a.C., mas diz-se que ele sempre existiu e sempre existirá. Dentro da fé, Mahavira é visto simplesmente como o mais recente dos 24 professores iluminados da era atual. Os jainas acreditam que cada era dura milhões de anos, repetindo-se num ciclo infinito de eras. Os professores são chamados de jinas ou lirthankaras, “fazedores de vau do oceano do renascimento”. Seguindo o caminho do asceticismo ensinado pelos tírthankaras, os jainas têm a esperança de libertar sua alma dos emaranhados da existência material. Som essa esperança, a vida é um mero ciclo de vida, morte e reencarnação.
Responsabilidade pessoal
O jainismo não reconhece nenhuma divindade, colocando total responsabilidade nas ações e na conduta do indivíduo. Para seguir uma vida de abnegação, monges e monjas jalnistas fazem os chamados Cinco Grandes Votos — não violência (ahimsa), falar a verdade (satya), celibato (brahmacharya), não pegar o que não é claramente oferecido (asteya) e desapego de pessoas, lugares e coisas (aparigraha). O mais importante desses votos é o ahimsa, a prática da não violência, que se estende a todos os animais, incluindo os menores organismos encontrados na água ou no ar. Os outros quatro Grandes Votos preparam o monge ou a monja para seguir a vida de um mendicante errante, dedicada a pregação, jejum, devoção e estudo.
Formas de devoção
Os jainas realizam seus cultos num templo ou num local sagrado em casa. Os templos jainistas são vistos como réplicas dos auditórios celestiais, onde os tirthankaras livres dão continuidade aos ensinos. Diz-se que a adoração e a contemplação das imagens desses tirthankaias produzem transformação espiritual interior. A forma mais simples de adoração, também presente no hinduísmo, é chamada de darshan, e envolve contato visual com a imagem de um tirthankara enquanto se recita um mantra sagrado. A principal reza do jainismo é o navkar ou namaskai. Ao dizer este mantra, namo namahar, o indivíduo honra as almas que já se libertaram e recebe inspiração delas em sua busca pessoal de iluminação.
As origens do taoísmo remontam a crenças chinesas referentes à natureza e à harmonia, mas seu primeiro texto, atribuído ao filósofo Lao Tsé, foi escrito no século VI a.C. — uma época excepcionalmente ativa de ideias, que também viu o surgimento do confucionismo na China, do jainismo e do budismo na Índia, e o início da filosofia grega. O livro de Lao Tsé, Tao te ching (O livro do caminho e da virtude), identificava o tao, ou "caminho", como o poder ou princípio que sustenta todas as coisas a fonte da ordem do universo. Seguir o tao (em vez de obstruí-lo), além de ajudar a garantir harmonia cósmica, propicia o desenvolvimento espiritual e uma vida plena e possivelmente mais longa. Na linguagem atual diríamos "seguir o fluxo".
Ação e inação
O tao é eterno e imutável. A vida é que apresenta desvios sinuosos. Para se manter firme no caminho, os indivíduos precisam se desapegar de preocupações materiais e de emoções perturbadoras, como a ambição e a raiva. Devem, ao contrário, levar uma vida simples e pacata, agindo espontaneamente e em harmonia com a natureza, ignorando os impulsos do eu. Este é o conceito do wu wei, ou inação, inerente ao tao. Como está escrito no Tao te ching: "Quando nada é feito, nada fica por fazer". No dia a dia, Lao Tsé dava grande ênfase às virtudes que motivam o wu wei: humildade, submissão, não interferência, passividade e desapego.
A sabedoria de Lao Tsé vinha da longa contemplação da natureza do universo e seus elementos, que na filosofia chinesa são o yin e o yang. O yin compreende tudo o que é escuro, úmido, mole, frio e feminino, e o yang, tudo o que é luminoso, seco, quente e masculino. Tudo é feito de yin e yang, e a harmonia é alcançada quando os dois elementos são mantidos em equilíbrio. No taoísmo, esse equilíbrio é buscado na mente, no espírito e no corpo, por meio de práticas como a meditação e o tai chi: exercício físico e mental para equilibrar o fluxo de qi, a força de vida, no corpo.
No período da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), a filosofia taoísta tornou-se uma religião. Suas práticas de meditação passaram a ser ensinadas para guiar os adeptos à imortalidade. No Tao te ching, a ideia de imortalidade não é apresentada literalmente. Alguém que aceita completamente o tao atinge um plano acima do material e alcança a imortalidade pelo desapego. Mas a afirmação de que, para o sábio, "não existe o plano da morte" foi levada ao pé da letra pelos seguidores do taoísmo, que acreditavam na imortalidade real por meio da aceitação do caminho.
O jainismo é a mais ascética de todas as religiões indianas, propondo a abnegação para se alcançar a libertação (moksha) e não precisar voltar para este mundo de sofrimento. O jainismo conforme o conhecemos foi fundado por Mahavira, contemporâneo de Buda, no século VI a.C., mas diz-se que ele sempre existiu e sempre existirá. Dentro da fé, Mahavira é visto simplesmente como o mais recente dos 24 professores iluminados da era atual. Os jainas acreditam que cada era dura milhões de anos, repetindo-se num ciclo infinito de eras. Os professores são chamados de jinas ou tirthankaras, "fazedores de vau do oceano do renascimento". Seguindo o caminho do asceticismo ensinado pelos tirthankaras, os jainas têm a esperança de libertar sua alma dos emaranhados da existência material. Sem essa esperança, a vida é um mero ciclo de vida, morte e reencarnação.
Responsabilidade pessoal
O jainismo não reconhece nenhuma divindade, colocando total responsabilidade nas ações e na conduta do indivíduo. Para seguir uma vida de abnegação, monges e monjas jainistas fazem os chamados Cinco Grandes Votos — não violência (ahimsa), falar a verdade (satya), celibato (brahmacharya), não pegar o que não é claramente oferecido (asteya) e desapego de pessoas, lugares e coisas (aparigraha). O mais importante desses votos é o ahimsa, a prática da não violência, que se estende a todos os animais, incluindo os menores organismos encontrados na água ou no ar. Os outros quatro Grandes Votos preparam o monge ou a monja para seguir a vida de um mendicante errante, dedicada a pregação, jejum, devoção e estudo.
O asceticismo é um fator essencial no jainismo. Conta-se na religião que o próprio Mahavira andava nu, por ter estado tão compenetrado no início de suas perambulações que não percebeu quando seu roupão ficou preso num espinheiro. Mas no século IV d.C., muito tempo depois da morte de Mahavira, houve uma dissidência entre os shvetambaras (vestes brancas) e os digambaras (vestes celestiais) quanto à extensão da prática ascética. Os monges shvetambaras acreditavam que o desapego e a pureza são qualidades mentais, não influenciadas pelo uso de roupas. Os monges digambaras, por sua vez, andam nus, acreditando que o ato de usar roupas indica ainda um certo apego a sentimentos sexuais e falsas ideias de modéstia. Alguns monges digambaras não carregam nem a cumbuca de caridades, recebendo comida nas mãos em concha. Os digambaras também acreditam que a libertação do ciclo de renascimento não é possível para as mulheres enquanto elas não reencarnarem como homens.
Vivendo no mundo
Os jainas laicos não fazem os Cinco Grandes Votos, mas fazem votos similares, em menor quantidade: abdicar da violência, não mentir, não roubar, assumir a castidade e evitar o apego a coisas materiais. Todos os jainas são vegetarianos, de acordo com o voto de não violência, e devem abrir mão de trabalhos que envolvam a destruição da vida. Alguns deles utilizam apenas flores que já caíram da planta nos cultos, argumentando que arrancar uma flor viva é um ato de violência. Os jainas laicos podem casar, mas devem manter os mais elevados padrões de comportamento. Nesse caso, como em todas as áreas, os jainas seguem o caminho das Três Joias: fé correta, conhecimento justo e boa conduta.
Alguns dizem que existe uma quarta joia: a penitência certa. A expiação dos pecados é importante no jainismo. No festival anual Samvatsari, depois de oito dias de jejum e abstinência durante a temporada das monções, os jainas confessam os pecados do ano que passou a familiares e amigos, e fazem votos de não carregar rancores no próximo ano. A meditação também é importante, e os rituais diários jainistas incluem sessões de 48 minutos, cujo objetivo é ser um com o universo, perdoar e ser perdoado por todas as transgressões. (Quarenta e oito minutos, a trigésima parte de um dia, corresponde a um mahurta, uma unidade de tempo padrão na Índia, geralmente utilizada em rituais.)
Outras virtudes jainistas são: servir aos outros, dedicar-se ao estudo religioso, desligar-se da paixão, demonstrar afabilidade e ser humilde. O indivíduo passa a ter um mérito especial se doar comida para monges e monjas. Todas essas práticas combinam-se com o asceticismo, exigido até de pessoas não religiosas para reduzir o carma — consequências de ações passadas que, segundo os jainas, se acumulam na alma como uma espécie de substância física. Todo carma, tanto bom quanto ruim, deve ser removido para se alcançar a libertação. A ideia é progredir gradualmente pelo caminho da iluminação espiritual, adquirindo mérito aos poucos, uma vida após a outra. Um dos escritos sagrados do jainismo, o Tattvartha Sutra, apresenta uma sequência de catorze estágios pelos quais a alma deve passar para atingir a libertação. O primeiro estágio chama-se mithyadrishti, no qual a alma se encontra em estado de letargia espiritual. O último, chamado ayoga-kevali, é povoado por almas conhecidas como siddhas, que já alcançaram a libertação espiritual. Esse estágio final está além do alcance dos jainas laicos.
Formas de devoção
Os jainas realizam seus cultos num templo ou num local sagrado em casa. Os templos jainistas são vistos como réplicas dos auditórios celestiais, onde os tirthankaras livres dão continuidade aos ensinos. Diz-se que a adoração e a contemplação das imagens desses tirthankaras produzem transformação espiritual interior. A forma mais simples de adoração, também presente no hinduísmo, é chamada de darsha e envolve contato visual com a imagem de um tirthankara enquanto se recita um mantra sagrado. A principal reza do jainismo é o navkar ou namaskar. Ao dizer este mantra, namo namahar, o indivíduo honra as almas que já se libertaram e recebe inspiração delas em sua busca pessoal de iluminação.
Confúcio, como ele é conhecido no Ocidente, foi a explorar sistematicamente a noção da bondade, questionando se a superioridade moral é um privilégio divino ou um elemento inerente à humanidade, que pode ser cultivado.
Nascido no século VI a.C. em Qufu, na província de Shandong, China, Confúcio foi um de uma série de novos estudiosos — na verdade, os primeiros funcionários públicos — que se tornaram conselheiros da corte chinesa, saindo da classe média para ocupar posições de poder e influência por mérito próprio, não por herança. Na sociedade rigidamente estratificada da época, isso não era normal, e é nessa anormalidade que se baseia o pensamento de Confúcio.
Os governantes da dinastia Zhou acreditavam que sua autoridade vinha diretamente dos deuses, sob o "mandato dos céus", e que a qualidade de ren (ou jen) — benevolência — era um atributo das classes dominantes. Confúcio também considerava o céu como a fonte da ordem moral, mas argumentava que as bênçãos celestiais estavam abertas para todos e que a qualidade de ren poderia ser adquirida por qualquer um. Aliás, é um dever de todo mundo cultivar os atributos que constituem o ren — seriedade, generosidade, sinceridade, diligência e bondade. A prática dessas virtudes condiz com o desejo dos céus.
Os analectos — frases e ensinamentos de Confúcio compilados por seus discípulos — estabeleceram uma nova filosofia de moralidade em que o homem superior, ou junzi (literalmente, cavalheiro), se dedica à aquisição do ren para o próprio bem — ele aprende pelas vantagens do aprendizado e é bom pelas vantagens da bondade. Em resposta a um aluno que lhe pediu para explicar as regras a serem seguidas por quem busca o ren, Confúcio disse: "Não devemos ver, ouvir, dizer ou fazer nada impróprio".
Confúcio preocupava-se não só com o autoaperfeiçoamento, mas com as relações interpessoais e a forma apropriada de se comportar em família, numa comunidade e na sociedade como um todo. Ele próprio admitia alunos de todas as classes e acreditava que a virtude resultava do autoaperfeiçoamento, não da linhagem. Em meio à rigidez da hierarquia vigente na sociedade feudal da China, Confúcio teve que encontrar uma forma de promover a virtude pessoal sem preconizar a simples meritocracia. Ele argumentou que o homem de virtude aceita e entende seu lugar na ordem social e utiliza sua virtude para desempenhar o papel que lhe foi designado, em vez de tentar transcendê-lo. "O homem superior faz o que é apropriado para a posição em que se encontra, sem desejar ir além disso."
Atributos de um governante sábio
Em relação aos governantes, Confúcio dizia que, em vez de exercer seus poderes de maneira arbitrária e injusta, eles deveriam liderar pelo exemplo, e que tratar as pessoas com generosidade e bondade estimularia a virtude, a lealdade e o bom comportamento. No entanto, para governar os outros, primeiro é preciso governar a si mesmo. Para Confúcio, um governante humano era definido por sua prática do ren. Sem isso, ele pode perder o mandato dos céus. Em diversos aspectos, a ideia do governante perfeito de Confúcio assemelha-se ao conceito do tao de Lao Tsé: quanto menos o governante fizer, mais será realizado. O governante é o eixo estável em torno do qual gira a atividade do reino.
Os governantes que seguiram esse conselho à risca precisaram de conselheiros e funcionários públicos cuja confiabilidade se baseava nos conceitos confucianos de virtude. Em 136 a.C., a dinastia Han introduziu novos concursos para o serviço público imperial com base nos ideais meritocráticos de Confúcio. O conceito chinês de paraíso, por sua vez, adquiriu um tom mais burocrático, e, na época da dinastia Song (960-1279 d.C.), o céu era visto como reflexo da corte do imperador chinês, com um imperador próprio e um serviço público de divindades menores.
Apesar do grande número de referências ao céu, Confúcio não acreditava que seus conceitos morais vinham dos deuses. Ao contrário, dizia que eram traços inerentes ao coração e à mente humana. Nesse sentido, o confucionismo é mais um sistema humanístico de filosofia moral do que uma religião, embora ainda hoje, com cerca de 6 milhões de seguidores, essa diferenciação não seja tão marcada. Na religião popular da China, Confúcio passou a integrar o enorme panteão de deuses, mas muitos de seus seguidores o reverenciam apenas como um grande mestre e pensador.
O ritual como base
A adoção do confucionismo como religião deve-se, em grande medida, ao fato de Confúcio defender a prática de ritos e cerimônias que honravam ancestrais — parte de uma obrigação maior de lealdade a família e amigos e respeito aos idosos, que Confúcio definiu como os Cinco Relacionamentos Comuns (veja à esquerda). A reciprocidade desempenha um papel fundamental nesses relacionamentos, uma vez que o confucionismo inclui, em sua essência, a regra de ouro: não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você. Confúcio acreditava que por meio do desenvolvimento de laços de amor, lealdade, ritual e tradição, além do pensamento de virtude, ação de virtude e respeito, todo mundo poderia ser bom, e a sociedade se uniria de maneira sensata e positiva. Reverenciando ancestrais e realizando os rituais certos em homenagem a eles, os humanos poderiam manter um estado de harmonia entre este mundo e o céu. No nível familiar, esses rituais eram um reflexo dos ritos e sacrifícios realizados pelos imperadores para seus ancestrais, confirmando o mandato dos céus que regia seu governo. A devoção aos pais e aos antepassados continua sendo uma das mais importantes virtudes confucianas, e seus laços e deveres não se extinguem com a morte. Os filhos devem levar oferendas ao túmulo de seus pais e reverenciá-los em locais sagrados em casa, que devem conter tábuas nas quais o espírito dos ancestrais possa morar. Até hoje, o principal momento de um casamento confuciano é quando o casal se curva perante as tábuas dos ancestrais do noivo uma forma de "apresentação" formal da noiva aos antepassados da família do marido, para receber sua bênção.
A evolução do confucionismo
Foi durante a dinastia Song que o erudito Zhu Xi (1130-1200 d.C.) incorporou os elementos do taoísmo e do budismo no confucionismo, criando uma religião também conhecida como neoconfucionismo. Confúcio não foi o primeiro sábio chinês a contemplar as verdades eternas, e ele próprio admite não ter inventado nada, mas simplesmente estudado as ideias de antigos pensadores, compilando-as em cinco livros: os Cinco Clássicos. Na dinastia Zhou ocidental (1050-771 a.C.), os estudiosos eram bastante valorizados na corte, e no século VII a.C. surgiram as chamadas Cem Escolas de Pensamento. Confúcio viveu numa época de efervescência filosófica, mas também de grandes mudanças sociais, com a diminuição do poder dos imperadores Zhou e a ameaça à ordem social. O foco de Confúcio na ordem e na harmonia resultou de sua verdadeira preocupação com o possível colapso da sociedade. Os imperadores das últimas dinastias, como a Han (206 a.C.-220 d.C.), a Song (960-1279 d.C.) e a Ming (1368-1644 d.C.), reconheceram o valor dos ideais confucianos em manter a ordem social, e o confucionismo se tornou a religião oficial da China, o que causou forte repercussão na vida diária e no pensamento chinês até o século XX. O confucionismo foi atacado durante a Revolução Cultural por seu conservadorismo social, mas recentemente um novo confucionismo surgiu na China, mesclando ideias confucianas com pensamentos atuais chineses e filosofia ocidental. Embora Confúcio tenha desenvolvido sua filosofia com base em conceitos e práticas existentes, ele ficou conhecido por afirmar que os seres humanos são naturalmente bons — só precisam aprender a utilizar suas virtudes — e que essa bondade não se restringe à aristocracia.
Por volta de 1420 a.C., a civilização minoica da ilha de Creta foi conquistada pelos messênios da Grécia continental. Assim como os invasores gregos absorveram a cultura do povo minoico, os mitos indígenas cretas e gregos se misturaram. Uma das divindades minoicas era uma grande deusa-mãe que, segundo a lenda, teve um filho divino na caverna do monte Dicte, acima de Psychro. Essa caverna tornou-se um lugar sagrado onde ninguém, homem ou deus, tinha permissão de entrar. Conta-se que uma vez por ano um brilho intenso saía da caverna, quando o sangue do nascimento da criança divina jorrava.
Essa criança transforma-se num jovem imberbe (kouros), um semideus evocado em hinos para trazer fertilidade e sorte para os humanos.
Os gregos dóricos, que sucederam aos messênios, deram ao kouros minoico o nome de seu próprio deus supremo, Zeus, a divindade que veio governar o clássico panteão de deuses que viviam no monte Olimpo. Considerado o lugar em que a mãe de Zeus, Reia, escondeu o filho do pai ciumento, Cronus, a caverna tornou-se um dos principais locais sagrados da Grécia.
Reia pode ter sido um dos nomes da grande deusa minoica original, mas na mitologia grega, embora ela fosse a mãe dos deuses, não era considerada uma deusa do Olimpo. Seu filho, por outro lado, ganhou o status de maior deus de todos, o pai de todos os outros deuses.
Os antigos gregos davam grande importância à adivinhação do futuro, e as fontes mais valiosas de profecia e sabedoria eram os oráculos, geralmente mulheres. Os oráculos entravam em estado de transe, e os deuses "falavam" diretamente através deles. As mensagens dos deuses muitas vezes eram ininteligíveis, mas podiam ser interpretadas pelos sacerdotes. Se o indivíduo levasse oferendas ao santuário ou moradia dos oráculos (normalmente uma caverna), eles davam respostas mais satisfatórias.
Os oráculos podiam ser consultados a respeito de qualquer aspecto da vida, desde questões pessoais, como amor e casamento, até assuntos de Estado. As profecias também se dirigiam a fins políticos: Alexandre, o Grande, visitou o oráculo do deus egípcio Amon após conquistar o Egito em 332 a.C., legitimando seu domínio quando o oráculo o reconheceu como "o filho de Amon". O número de oráculos, porém, era limitado, e isso, somado ao fato de que era aconselhável levar oferendas substanciais, fez com que o acesso "personalizado" aos deuses passasse a ser privilégio de ricos e poderosos. Uma alternativa popular era o serviço oferecido por videntes, que, ao contrário dos oráculos, podiam viajar - algo muito útil para os exércitos gregos em movimento. Esses videntes interpretavam os "sinais" dos deuses recorrendo a métodos como interpretação de sonhos, análise de acontecimentos fortuitos, observação dos pássaros e prognóstico com base no sacrifício de animais.
O panteão dos antigos deuses romanos foi, em grande parte, adaptado do panteão de outras civilizações, sobretudo o dos gregos. Assim como as divindades gregas, os deuses romanos viviam, amavam e lutavam, refletindo dessa maneira a vida e a história dos mortais. Porém, enquanto os gregos viam seus deuses como seres que controlavam remotamente o universo, os romanos os consideravam uma parte intrínseca de sua vida, com influência direta em cada aspecto da existência humana. Como acreditavam que a ajuda divina era fundamental para uma governança bem-sucedida, os romanos incorporaram cultos, rituais e sacrifícios nas cerimônias públicas para assegurar a cooperação dos deuses. As cerimônias públicas também ajudavam a fortalecer a autoridade do regime, e os festivais religiosos, quase sempre envolvendo feriados e jogos, contribuíam para a unidade política. A vida religiosa e a estatal eram interdependentes. Os sacerdotes faziam parte da elite política, e os líderes tinham deveres religiosos. Com o tempo, determinados governantes ficaram associados com deuses específicos. Alguns acabaram sendo vistos como deuses idolatrados após a morte ou divinizados ainda em vida.
Cultos e deuses domésticos
Diversos cultos coexistiram com a religião oficial. Alguns eram dirigidos a um deus específico — em geral, um deus de fora do panteão convencional. Às vezes, o deus estrangeiro de um povo conquistado era "convidado" para estabelecer residência em Roma. Para a maioria dos cidadãos romanos, no entanto, os deuses domésticos, os lares e penates, eram os que tratavam da vida cotidiana. Esses deuses se interessavam pelos assuntos humanos que estavam em toda parte, abertos a negociação. As orações para os deuses domésticos geralmente assumiam a forma de barganhas: "Se você fizer isso, eu faço aquilo".
A religião romana baseava-se na família. O páter-famílias — o chefe da família — era o líder espiritual e a autoridade moral da casa, com direitos sobre a propriedade familiar e responsabilidade por seus membros na sociedade. O lar era um lugar sagrado para os romanos, e o coração da casa era a lareira. O espírito do chefe da família presidia sobre todos os deuses domésticos, incluindo os penates, as divindades do aparador, aos quais se oferecia uma parte de cada refeição nas chamas da lareira.
O xintoísmo é a religião indígena tradicional do Japão. Há quem diga que é mais um estilo de vida do que uma religião, por seu intrínseco vínculo com a topografia da região, sua história e suas tradições. Suas origens remontam ao período pré-histórico japonês, em que prevaleciam crenças animistas de respeito à natureza e aos fenômenos naturais.
Como era o único sistema de crenças de uma nação isolada, o xintoísmo nunca precisou se definir, até a chegada de uma religião rival, o budismo, no século VI d.C. As crenças tradicionais japonesas careciam de doutrinas intelectuais, abrindo espaço para o budismo e o confucionismo na teologia e na filosofia do Japão. Em resposta a isso, a corte imperial nipônica consolidou as crenças nacionais com um nome — xintoísmo —, e no século VIII, a pedido da imperatriz Gemmei, os grandes textos xintoistas, como Kojiki (Registro de assuntos milenares) e Nihon shoki (Crônicas do Japão), foram compilados.
Esses livros registravam as tradições da história e da mitologia do Japão, junto com a linhagem de imperadores japoneses, considerados descendentes dos deuses. Além disso, definiam um conjunto de rituais, fundamental para o xintoísmo desde então — talvez mais até do que a crença. O xintoísmo ainda permeia todos os aspectos da vida no Japão, e seus rituais, nos quais a purificação desempenha um papel central, são realizados tanto em contextos espirituais quanto seculares — por exemplo, para trazer sorte e sucesso para eventos esportivos, uma nova linha de produção automotiva ou projetos de construção. Durante os rituais carregados de tradição, seres sagrados, os kamis, são cultuados. A palavra xintó, literalmente, significa "caminho dos seres divinos", e o xintoísmo é conhecido no Japão atualmente como kami no michi, o "caminho do kami".
A essência de tudo
A palavra kami significa "aquilo que está oculto" e pode ser traduzida como deus, espírito ou alma Na crença xintoísta, entretanto, o termo designa não somente uma grande variedade de deuses e seres espirituais, como também a "energia espiritual" ou "essência" presente em tudo, que define cada coisa. O kami é a essência, por exemplo, dos fenômenos naturais (como tempestades e terremotos) e de elementos ambientais (rios, árvores e cachoeiras). Montanhas, sobretudo o monte Fuji, são elementos especialmente sagrados.
Como entidades, os kamis podem ser deuses, deusas, as almas ou espíritos de ancestrais da família (ujigami) e outros seres humanos fora do comum. O xintoísmo ensina que esses kamis estão no mesmo mundo material das pessoas, não em um plano sobrenatural. Eles respondem a orações e podem influenciar nos acontecimentos. No entanto, ao contrário dos seres divinos de muitas outras tradições religiosas, os kamis, embora divinos, não são onipotentes. Eles têm limitações e estão sujeitos a erros. Além disso, nem todos os kamis são bons — alguns são maus ou demoníacos. Em sou aspecto mais benigno, porém, eles são sinceros e comprometidos com a verdade (makoto), mantendo harmonia no universo por meio de sua força criativa conhecida como musubi.
Os deuses criadores do xintoísmo
De acordo com o Kojiki, na criação do universo surgiram os primeiros três kamis, entre eles Kamimusubi (kami divino da força criativa), abstrato demais para ser reverenciado. Após diversas gerações de kamis sem forma, os maiores deuses do xintoísmo apareceram: Izanagi e Izanami, que criaram o mundo, ou "o convidaram à existência". Muitos mitos xintoístas giram em torno deles e das atividades de seus descendentes: Susanoo, o deus da tempestade, Tsukuyomi, o deus da Lua, e Amaterasu, a deusa do Sol.
Os kamis representam os criadores do Japão, a Terra (como o espírito de seus clementos e forças naturais), e os ancestrais japoneses. A adoração ritualística desses seres sagrados confirma, portanto, uma poderosa conexão com a história e a tradição japonesas.
Templos e locais sagrados
Uma harmoniosa relação entre os kamis e a humanidade é mantida com rezas e oferendas nos locais sagrados e templos, onde se realizam rituais de purificação, fundamentais para o xintoísmo, que se concentra bastante nas ideias de pureza e impureza. O xintoísmo não tem um conceito de pecado original, mas acredita que os seres humanos nascem puros e são manchados pela impureza só mais tarde. As fontes de impureza são o pecado (atos dentro do nosso controle) e a poluição (coisas além do nosso controle, como doença ou contato com a morte). Essas impurezas, ou tsumi, precisam ser limpas por meio de um ritual. Os rituais de purificação podem assumir diversas formas, mas quase todos começam com a lavagem das mãos e da boca.
Pequenos santuários, conhecidos como kamidanas, são encontrados em muitos lares japoneses e consistem em uma pequena prateleira com objetos utilizados para reverenciar ancestrais e outros kamis. Templos e santuários públicos podem ter o tamanho de um povoado inteiro ou de uma pequena casa, sendo conhecidos pela simplicidade. Muitos surgiram como áreas sagradas em volta de elementos naturais, como árvores, lagos ou pedras. Cada templo xintoísta possui uma entrada sem porta chamada torii, composta de dois pilares verticais e uma trave horizontal. De um modo geral, todo templo tem um muro onde os adoradores colocam mensagens aos kamis, pedindo, por exemplo, para passar numa prova ou encontrar a pessoa certa para casar.
Orações individuais no saguão de adoração de um templo xintoísta seguem um processo de quatro passos, após a limpeza ritualística inicial. Primeiro, deposita-se dinheiro numa caixa de caridade. Depois, o adorador curva-se duas vezes perante o oratório, bate palmas duas vezes e, após concluir as rezas, curva-se uma última vez. Além das orações e oferendas nos templos, o xintoísmo realiza festivais de celebração, conhecidos como matsuri, nos quais os kamis são reverenciados e importantes pontos no ano agrícola são marcados, como plantação de arroz em abril. Os xintoístas acreditam que esses rituais, se forem realizados da maneira certa, ativam o wa, a harmonia positiva que ajuda a purificar o mundo e o faz funcionar de forma equilibrada.
Descendente dos deuses
O templo xintoísta mais venerado é o de Amaterasu, a deusa do Sol, em Ise, na ilha japonesa de Honshu. O santuário simples de madeira foi reformado a cada vinte anos nos últimos 1.300 anos. Acredita-se que a ação de renovação agrada os kamis A maioria dos japoneses deseja visitar Ise pelo menos uma vez na vida.
Os imperadores do Japão eram originalmente vistos como descendentes diretos de Amaterasu (conta-se que o primeiro imperador, Jimmu, que assumiu o poder em 660 a.C., era seu pentaneto), e essa doutrina se tornou oficial nos séculos VII e VIII. A codificação do xintoísmo nessa época não só eliminou influências do budismo, mas também enfatizou a superioridade do povo japonês, o que foi utilizado como fundamento para as ambições políticas e militares do Japão, sobretudo após a Restauração Meiji, que trouxe de volta o poder imperial ao país no século XIX.
O imperador e sua corte eram obrigados a realizar cerimônias para fazer com que os kamis zelassem pelo Japão e garantissem seu sucesso, uma tradição que se manteve até o fim da Segunda Guerra Mundial. O prestígio xintoísta no Japão se transformou, contudo, depois que o país perdeu a guerra e foi forçado a fazer concessões para os Aliados. Considerado pelas forças de ocupação americanas como militarista e nacionalista demais, o xintoísmo foi separado do Estado em 1946, deixando de ser a religião oficial. No mesmo ano, o imperador Hirohito renunciou a suas prerrogativas divinas. Embora o imperador não seja mais visto como um ser divino, as cerimônias imperiais continuam sendo consideradas importantes. A forte ênfase xintoísta na ordem e na harmonia, sua preocupação com as normas sociais, os rituais da tradição, e o respeito pelos imperadores significam que o xintoísmo conseguiu cumprir sua função como base da conservadora sociedade japonesa.
A ideia de destino fatídico permeia a mitologia nórdica dos vikings, pois tudo nela conduz a um momento calamitoso em que dois deuses — Odin, o pai de todos, e o malvado Loki — chegam ao terrível desfecho de um conflito milenar entre os deuses e os gigantes. Essa é Ragnarok, a batalha final, em que os deuses morrerão e o mundo será destruído.
Como castigo por ter ludibriado o filho cego de Odin, Hoder, fazendo-o matar o irmão, Balder, o "príncipe reluzente" da bondade, Loki foi acorrentado a três rochas para sempre. Em suas tentativas de se soltar, o mundo tremerá. As árvores serão desarraigadas, e as montanhas virão abaixo. Loki começará a recuperar sua força, e a própria natureza entrará em colapso. Rigorosos invernos, com neve, frio e ventos cortantes, serão o comum. Não haverá mais verão. Muitas batalhas serão travadas, irmãos contra irmãos, pais contra filhos, até o mundo inteiro acabar. Quando o deus acorrentado finalmente se soltar, o céu se partirá em dois, o monstruoso filho de Loki, o lobo Fenrir, engolirá o Sol, c Loki liderará um exército de gigantes, monstros e espíritos das profundezas, num navio feito das unhas não cortadas dos mortos.
A retaliação do exército de Odin
Odin é o deus da poesia e da magia, mas também é o deus da guerra e, por isso, convoca um exército — composto por guerreiros mortos nos campos de batalha, os einherjars — para lutar contra a horda de Loki.
A mitologia nórdica não deixa dúvida, porém, de que mesmo com esse exército poderoso, os deuses serão derrotados e destruídos nesse conflito. O filho de Odin, o poderoso deus Thor, será morto pela enorme serpente Jörmungandr, e Odin será devorado por Fenrir. O irmão de Thor. Vidar rasgará Fenrir em dois, pela mandíbula, mas isso não será suficiente para salvar Odin ea criação. O mundo inteiro será destruído pelo fogo e afundará no oceano. Dessa destruição, contudo, um novo mundo nascerá, surgindo do mar. Um homem e uma mulher, Lifthrasir e Lif, escaparão da destruição. Deles, uma nova raça de humanos será formada. Quanto aos deuses, os filhos de Odin, Vidar e Vali, e os filhos de Thor, Modi e Magni, serão os únicos sobreviventes da batalha, aos quais se juntarão Balder e Hoder, que conseguirão finalmente se libertar do mundo dos mortos.
A rigor, não existe nenhuma religião que possa ser chamada de “hinduísmo” “Hinduísmo” é um termo ocidental corrente utilizado para denominar as diferentes religiões e filosofias espirituais do subcontinente indiano. Não obstante, algumas características básicas nessas ideias e práticas religiosas são compartilhadas pela maioria dos hinduístas, e são essas ideias que, agrupadas, recebem o nome de "hinduísmo". Na prática, os hindus são livres para escolher quais divindades reverenciar (em casa ou no templo) e com que frequência participarão das cerimônias religiosas, mas todos possuem antecedentes sociais e religiosos comuns, o que diferencia o hinduísmo dos outros sistemas de crenças, sobretudo os credos monoteístas.
Da mesma forma que outras religiões, entretanto, o hinduísmo procura explicar a relação da vida humana com o contexto universal. Seus rituais e práticas voltam-se para três níveis de relacionamento — da pessoa com a divindade, de uma pessoa com outra e da pessoa com eia mesma — e a ligação disso tudo com a ordem universal das coisas.
A ordem cósmica eterna
Dharma, ou "o caminho certo”, é um termo essencial para explicar o que é o hinduísmo. Em sua forma original, sanatana dharma, poderia sei traduzido como “a eterna ordem das coisas”, "verdade” ou “realidade", expressando a ideia de que há uma estrutura e um sentido oculto no mundo. Por trás da complexidade e aparente aleatoriedade dos acontecimentos, existem princípios fundamentais, sustentados por uma realidade única e imutável. Essas ideias manifestam-se na hierarquia de deuses e deusas, cada um responsável por um aspecto específico de uma verdade absoluta.
A ideia de "ordem eterna” também possui implicações individuais e sociais. A religião, de fato, é uma forma de compreender o lugar da humanidade no mundo. Se o mundo for compreendido e tiver uma hierarquia ou estrutura definida, o indivíduo, ao seguir essa estrutura, poderá viver em harmonia com o resto da sociedade e com o universo como um todo. Uma característica axial das vertentes religiosas que orientam o hinduísmo é que, para manter essa ordem, ou dharma, a pessoa pode ter que realizar rituais e oferendas aos deuses, como forma de sacrifício.
As ideias hinduístas de tempo
Os hindus veem o tempo como cíclico, acreditando que o universo já passou por três grandes ciclos de milhões de anos.
Considerar o tempo como algo cíclico tem uma importante inferência no pensamento religioso. No conceito ocidental linear de tempo, tudo é resultado de algo precedente (lei de causa e efeito), e, portanto, é natural querer saber como o mundo começou. Esse ponto de partida é o único estágio no qual as teorias lineares de tempo requerem explicações para além do mundo. Algo tem que ter sido responsável por colocar em movimento o grande trem de causa e efeito no início dos tempos.
Por outro lado, no pensamento hindu, os infinitos ciclos de tempo sucessivos contrastam com a ideia da eterna realidade imutável, conhecida como brahman, que existe em tudo e através de tudo. O tempo terrestre acontece em ciclos, mas o brahman é atemporal — a força central que mantém os ciclos em movimento, a realidade eterna por trás do processo de criação e destruição que caracteriza o mundo da experiência humana.
Se os grandes ciclos de tempo são totalmente dependentes de uma realidade atemporal, o ordenamento correto deste mundo em constante transformação depende da consciência dessa realidade. Essa lógica dá origem à ideia de que um dos objetivos da religião é compreender e manter a ordem correta do mundo.
Rituais religiosos e ordem
A partir de 1700 a.C., e nos séculos seguintes, o povo ariano da Ásia central exerceu uma influência gradual na Índia, trazendo consigo seu panteão e suas ideias, similares às dos gregos antigos. Os arianos integraram-se à civilização no vale do Indo, no norte da Índia, uma antiga sociedade conhecida por ter suas próprias tradições religiosas. Existem fortes evidências de banhos ritualísticos e adoração de uma grande deusa-mãe (p. 100). Outros artefatos encontrados incluem urnas de cremação e um selo com a imagem de uma divindade de chifre e pernas cruzadas.
A mudança não se deu de maneira repentina e opressiva. O que ocorreu foi uma mistura de culturas. Em termos de religião, surgiu uma tradição de devoção e rituais de sacrifício manifestada nos hinos da primeira grande coleção de escritos sagrados hindus, os Vedas. Nessa nova tradição, os rituais e sacrifícios religiosos eram considerados importantes porque se acreditava que eles mantinham a ordem do universo, além de ajudarem os participantes a compreender seu lugar dentro dessa ordem e alinhar-se com o cosmos.
O sacrifício foi o principal rito da tradição védica — uma encenação simbólica da criação do mundo na qual se evocavam divindades que representavam características do universo ou da verdadeira realidade. Segundo a tradição, por meio desses cultos o ser humano realizava a mais importante das tarefas humanas: criar uma ligação com o divino. O sacrifício realístico, além de possibilitar uma conexão com o plano invisível da realidade, também ajudava a estabelecer a ordem certa das coisas. Em troca do sacrifício, o indivíduo podia obter proteção de forças malignas e benefícios materiais como melhores colheitas, tempo bom, saúde e felicidade.
"Sacrifício" nesse contexto significava apenas fazer uma oferenda aos deuses, geralmente de comida ou bebida. O fogo desempenhava um papel crucial nos sacrifícios, pois, segundo a tradição, ele existe tanto na Terra quanto no céu, possuindo, portanto, o poder de alcançar os deuses.
Com o desenvolvimento da religião védica, tornou-se importante que os sacrifícios fossem realizados pelas pessoas certas (a classe brâmane) e de maneira exata. Detalhes dos hinos a serem recitados e das ações a serem realizadas foram cuidadosamente prescritos.
O terreno dos sacrifícios precisava ser preparado numa área específica, conforme recomendado pelos Vedas. Os textos também especificavam o modo certo de acender o fogo sacrificial e o tipo de recipiente necessário para receber a oferenda (huti). Os sacerdotes tinham a missão de alimentar o fogo com oferendas que incluíam manteiga de garrafa, cereais, frutas ou flores, entoando cânticos dos Vedas.
O sacrifício também devia ser realizado numa data propícia. A oferenda podia ser para um deus específico (ou deusa), mas os preferidos eram Agni, Varuna e Indra. Agni é o deus do fogo. Sua principal função é manifestar-se como fogo no altar do sacrifício, destruindo qualquer demônio que queira tentar interromper o culto. Varuna, o deus do céu, das águas e do oceano celestial, é também o guardião do rta — a ordem cósmica. Responsável por separar a noite e o dia, é o mais importante deus do Rig Veda (o livro de rituais dos Vedas). Diz-se que Varuna criou as águas para impedir que os rios e oceanos inundassem e para sustentar o universo. Indra, o deus dos trovões, da chuva e da guerra, é conhecido por gostar de soma, uma bebida sagrada utilizada nos sacrifícios (veja abaixo). É fundamental garantir a boa vontade de Indra — ele está preso numa eterna luta contra as forças do caos e da destruição, e são seus esforços que separam e sustentam o céu e a Terra.
Deuses como aspectos de ordem
Com a evolução do hinduísmo, os deuses arianos dos Vedas foram ganhando a companhia de outros deuses, sendo, em muitos casos, substituídos por eles. Deuses védicos menores também foram elevados a posições muito mais destacadas. Escritos hindus mais recentes apresentam uma enorme lista de deuses e deusas, refletindo a mistura de diferentes tradições e períodos da história da religião primordial da Índia. De todos esses deuses, surgiu um triunvirato dominante, responsável pela existência, ordem e destruição do universo. Esses três deuses — trimurti, ou trindade — representam diferentes aspectos da realidade. Brahma, o criador (não confundir com brahman); Vishnu, o protetor e guardião da humanidade; e Shiva, o destruidor, ou aquele que equilibra as forças da criação e da destruição.
O deus Shiva costuma ser representado em imagens e esculturas como "Shiva Nataraja", o senhor da dança. A dança cósmica de Shiva acontece dentro de um círculo de fogo, que representa o processo contínuo de nascimento e morte. Shiva possui quatro braços, com um tambor na mão direita superior, cujo toque promove a criação, e uma chama destrutiva na mão esquerda superior. Seus braços inferiores expressam o equilíbrio rítmico entre a criação e a destruição. O pé direito está levantado, pela dança, e o esquerdo pisa num demônio, que representa a ignorância. Essa figura selvagem e exuberante simboliza o perfeito equilíbrio num mundo em constante mutação. Como o tempo é cíclico, a destruição do universo por Shiva é vista como algo construtivo, pois prepara o caminho para uma mudança benéfica.
O ordenamento da sociedade
A classificação da sociedade indiana em quatro grupos principais baseia-se, desde os tempos védicos, no conceito de dharma, estendendo a teoria da ordem e estrutura do universo ao correto ordenamento da vida humana e da sociedade. Historicamente, é provável que, com a invasão dos arianos de pele clara, tenha se instaurado um contraste entre eles e os habitantes naturais da Índia, de pele mais escura, sendo estes tratados como inferiores — o que levou a um sistema social de quatro classes principais, ou varnas, que significa "cores".
No hinduísmo, contudo, um relato mitológico da origem do sistema de classes sobrepõe-se a essa explicação histórica. No Rig Veda, há um cântico dedicado a Purusha (o ser divino), o qual relata que o corpo de um ser humano primitivo é sacrificado e dividido, criando as quatro varnas ou classes: brâmanes, xátrias, vaixás e sudras. Os brâmanes são membros da classe sacerdotal, criados da boca de Purusha. Os xátrias formam a classe militar ou administrativa, criados dos braços de Purusha, enquanto os vaixás são membros da classe mercantil, criados das coxas de Purusha. Os sudras constituem a classe dos trabalhadores comuns, criados dos pés de Purusha. Como todos vêm da única realidade humana, Purusha, eles são interdependentes e todos têm um papel essercial a desempenhar no ordenamento da sociedade. Suas funções refletem seu dharma — seu dever divino.
Dizem que os membros das três primeiras varnas "nascem novamente num ritual conhecido como "fio sagrado", o upanayana, que marca a aceitação do hinduísmo por parte do indivíduo. O ritual geralmente é realizado quando a criança faz oito anos, estabelecendo sua posição social. Abaixo das quatro varnas encontram-se aqueles que estão totalmente fora do sistema de classes. Antes chamados de "desclassificados", hoje eles são conhecidos como dalits, "os oprimidos".
Distinção de classes
As quatro varnas às vezes são chamadas de "castas", mas esse termo não é preciso. O sistema de castas indiano baseia-se numa antiga forma de classificar a população, geralmente referente à ocupação. Existe um grande número de classes, ou jaitis, cada uma com um status social correspondente. As duas abordagens diferentes parecem ter se misturado a partir do desenvolvimento da sociedade hindu no último período védico (c. 1000 a.C.), e as diferenças cruciais entre elas tornaram-se indistintas.
No sistema de varnas, todas as diferentes classes sociais são essenciais para o correto ordenamento do mundo. Como todo mundo vem de um único humano primordial, Purusha, todos dependem uns dos outros. Só os brâmanes eram retratados como uma classe superior - o que é compreensível, pois na literatura védica eles são os escolhidos pela tradição para manter a ordem do universo. O sistema de castas, por sua vez, era discriminatório, defendendo a separação das pessoas para evitar a "contaminação". Indivíduos de castas mais elevadas começaram a temer o contato com indivíduos de castas inferiores. O sistema de castas promovia a fragmentação social, com regras que proibiam o relacionamento e o casamento de pessoas de diferentes castas. Essa divisão foi reconhecida pela Constituição da Índia, criada em 1948, que proibiu a discriminação contra castas mais baixas, embora o preconceito popular tenha demorado muito tempo para ser banido.
Pessoal x social
No século vi a.C., mestres errantes da Índia, como Buda e Mahavira, passaram a criticar a natureza formal e estratificada da cultura védica, aceitando seguidores de qualquer classe e tratando a todos da mesma maneira. O que importava era a contribuição pessoal, não um privilégio herdado. Esses mestres errantes também rejeitaram a autoridade dos Vedas, e por isso foram taxados de "heterodoxos". Mas, por volta de 500 a.C., ocorreu uma mudança definitiva na forma como a religião era vista em toda a sociedade hindu. Em vez de ser considerada como um meio para manter a ordem universal, a religião agora prometia ser uma maneira de escapar das limitações da vida material, mediante uma existência puramente espiritual. Em vez de buscar o alinhamento com a ordem estabelecida, o caminho agora era buscar a libertação dessa ordem. Nos séculos que se seguiram, a tradição hinduísta adotou a ideia de devoção pessoal como forma de libertação, e a adoração tornou-se mais uma questão de envolvimento pessoal do que simplesmente a realização correta de sacrifícios. Com o tempo, surgiram formas pessoais de devoção e rito, a ponto de muita gente ter um local sagrado em casa, sem a necessidade de um brâmane para realizar o ritual.
Religião e sociedade
No período védico, a religião concentrava-se basicamente na busca do indivíduo para encontrar seu lugar no mundo e na sociedade, procurando viver da forma que lhe fora determinada, segundo as varnas. A religião tinha, portanto, um aspecto pessoal e um aspecto social, além de um sistema aparentemente lógico de como o indivíduo e a sociedade deviam interagir.
Essa primeira fase do hinduísmo aponta para uma questão presente em todas as religiões: se ela deve basear-se somente no indivíduo ou na sociedade como um todo. As religiões estão integradas na sociedade, e às vezes é difícil distinguir ideias verdadeiramente "religiosas" de crenças e atitudes resultantes do meio político ou cultural no qual a religião se desenvolve. Outra questão a ser discutida é que as doutrinas e as tradições religiosas também podem ser utilizadas por uma elite dominante para manter sua posição.
A própria questão referente ao foco da religião (se deve recair sobre o indivíduo ou a sociedade) é delicada, pois sugere que a experiência pessoal da religião vale mais do que a social.
Enquanto em muitas religiões a imagem de deus é geralmente masculina, no hinduísmo há muitas deusas, representando criatividade, fertilidade ou poder. O termo geral para a força divina feminina é Shakti, que significa "ser capaz". Shakti está personificada em Maha Devi, a mãe divina ou "grande deusa". Maha Devi representa o poder ativo do divino, assim como sua força de vida. Na escola hindu do shaktismo, ela é reverenciada como a divindade suprema. A grande deusa assume diferentes formas, cada uma expressando uma qualidade específica. Em seu aspecto associado a Shiva, por exemplo, Shakti aparece como a coce e amável Parvati, mas ela também é Kali e Durga — figuras terríveis e ameaçadoras.
A serpente enroscada
Além do poder criativo do divino, Shakti representa o elemento feminino dentro do ser. Os hindus acreditam que nossa energia sexual e força vital (kundalini) vivem como uma serpente enroscada ou uma deusa adormecida na base da espinha dorsal. A consciência e o desenvolvimento dessa força por meio da ioga podem ser uma forma de libertação espiritual. Esses rituais tântricos — às vezes praticados fisicamente, mas geralmente em meditações — são usados para fortalecer a união entre nossos elementos masculino e feminino.
Faz sentido oferecer os mesmos ensinamentos e princípios religiosos para todo mundo? No hinduísmo, existem diferentes níveis de compreensão e prática da religião. Seus primeiros textos, os Vedas, e os comentários que se seguiram fornecem explicações, rezas e instruções para a realização de sacrifícios e outros atos públicos de devoção. Mais tarde, os épicos Ramayana e Mahabharata (p. 111), cheios de histórias sobre deuses, foram usados com o mesmo propósito. No século VI a.C., porém, surgiu outro corpo de literatura — os Upanishads —, oferecendo acesso, para os iniciados, a um plano mais elevado de conhecimento espiritual.
Conceitos difíceis
A palavra "Upanishad" significa "sentar-se perto" e aplica-se aos ensinamentos restritos àqueles que foram aceitos por um guru ou mestre para o estudo religioso. Os Upanishads focam em conceitos abstratos referentes à natureza do ser e do universo. Em particular, os textos afirmam que existe uma realidade única universal, brahman, que só pode ser conhecida por meio do pensamento e da análise da vivência. Os Upanishads, portanto, acrescentam uma dimensão bastante filosófica à discussão religiosa indiana. A ideia de sentar-se perto do guru sugere que, se investigarmos os conceitos religiosos em busca de verdades universais, encontraremos níveis de ensinamento mais profundos do que as crenças convencionais.
Os Upanishads são uma série de textos filosóficos (o mais antigo datando do século VI a.C.) com o mais elevado nível de ensinamento, reservado apenas para as mentes treinadas e meditativas dos sábios e gurus hinduístas. Sua principal preocupação é a natureza do ser. Compreender o ser é compreender tudo.
A filosofia ocidental adotou, basicamente, duas posições sobre a natureza do ser. Para a escola conhecida como "dualista", o ser é algo não físico e separado do corpo. Quer seja chamado de alma ou de mente, é o aspecto pensante e emocional do que somos — o "eu" que vivencia o mundo. É esse "eu" que recebe e decodifica dados sensoriais. Os materialistas, em contrapartida, afirmam que só existe o físico, e, portanto, o "ser" é apenas uma forma de descrever a atividade do cérebro.
No hinduísmo, porém, os Upanishads exploraram uma visão que difere dessas duas abordagens ocidentais, descrevendo o ser como um elemento dividido em três partes: um corpo material; um corpo mais "sutil", feito de pensamentos, sentimentos e experiências; e uma consciência pura, chamada de atman. Diz-se que o atman é idêntico à realidade absoluta, impessoal, brahman. Portanto, embora possamos sentir que somos indivíduos insignificantes, isolados e vulneráveis, nosso verdadeiro ser está em comunhão perfeita com a realidade do universo.
O ser como "nada"
Os Upanishads expressam a ideia de atman por meio de diálogos e imagens. Um dos mais famosos vem do Chandogya Upanishad, um diálogo entre o sábio Uddalaka Aruni e seu filho, Svetaketu. O sábio pede ao filho para abrir um figo e lhe dizer o que ele vê ali dentro. "Sementes", responde o filho. O sábio, então, pede ao filho para dividir uma semente ao meio e descrever o que há dentro.
"Nada", responde o menino. O sábio, então, argumenta que toda a enorme figueira é feita desse "nada". Essa é sua essência, sua alma, sua realidade. E o diálogo conclui: "Isso é você, Svetaketu!".
A afirmação "Isso é você!" (Tat tvam asi!, em sânscrito) é provavelmente a mais conhecida em toda a filosofia hindu. Baseia-se na ideia de que a análise de qualquer objeto aparentemente sólido acabará por revelar uma essência invisível, onipresente, que é o brahman. Isso se aplica a tudo, desde figos até seres humanos. Segundo o hinduísmo, além dos aspectos físicos e mentais do ser, existe algo maior, o atman, que não pode ser nada mais do que o brahman, a realidade única e absoluta. Não há nenhuma diferença entre nós e essa realidade divina suprema.
A compreensão do brahman
O diálogo sobre a semente de figo é seguido de uma segunda conversa, que nos dá uma ideia do que é brahman. O sábio pede ao filho para provar a água de diferentes partes de uma bacia. A água tem gosto puro em todas as partes. Após ser dissolvido sal na bacia, a aparência da água permanece a mesma, mas toda a água fica salgada. Do mesmo modo, brahman, a realidade absoluta, é invisível, mas está presente em toda parte.
O Mundaka Upanishad recorre a uma imagem diferente de brahman. Assim como milhares de faíscas de uma grande fogueira retornam a ela, inúmeros seres são criados a partir do brahman, "o imperecível" ou "o grandioso", descrito como um elemento sem vida, sem respiração, sem mente e puro - mas capaz de criar respiração, mente e todos os sentidos. "Seu coração é o mundo inteiro. Na verdade, brahman é o ser interior de tudo."
De acordo com essa compreensão, a forma como percebemos o mundo através de nossos sentidos, considerando-o como uma entidade separada de nós, não representa a verdade absoluta. Há uma realidade por trás que sustenta tudo, uma realidade invisível dentro de nosso ser mais profundo.
Carma e reencarnação
Na religião védica original, acreditava-se que o ato de oferecer sacrifícios aos deuses mantinha a ordem do universo. Os Upanishads internalizaram esse processo, afirmando que a realidade consiste num ponto imóvel, absoluto e simples, dentro do ser. E essa realidade é universal, não individual. Assim como realizar um sacrifício da maneira correta era a forma de alinhar o ser com a ordem universal, a consciência do brahman como o verdadeiro ser nos ajuda a alinhar a nós mesmos com a realidade.
Os hindus acreditam que o carma (ações) produz consequências — boas e ruins — não só no mundo externo, mas também para o indivíduo. O hinduísmo desenvolveu uma ideia de reencarnação em que o ser utiliza diversos corpos no decorrer de muitas vidas. A forma de cada vida é determinada pelo carma da vida anterior. No entanto, a consciência de que "atman é brahman" pode libertar a pessoa desse constante ciclo de nascimento, morte e renascimento (conhecido como samsara). O carma é gerado pelas ações do corpo físico e do corpo mental "sutil" (como nossos pensamentos e sentimentos), mas o indivíduo que estiver consciente do atman e, portanto, do brahman, voltando-se profundamente para dentro, transcenderá o nível dos dois "corpos" (o físico e o mental "sutil") em que o carma opera.
Embora os hindus esperem melhorar suas chances em vidas futuras gerando bom carma, há sempre a ameaça de que um carma negativo os faça renascer numa casta inferior ou num animal. Mesmo assim, tal fator não é tão importante quanto parece, pois a ideia de ir para uma outra vida (boa ou ruim) não é o objetivo final do hinduísmo. A diferença das religiões monoteístas, em que a perspectiva de vida após a morte é uma promessa esperada, no hinduísmo o objetivo é libertar-se do sofrimento inevitável de ter que nascer e morrer numa sucessão de vidas.
Intuição consciente
Os argumentos apresentados nas histórias do Chandogya Upanishad sobre as sementes de figo e a água salgada são bastante lógicos. De certa forma, eles consistem apenas em análises científicas da matéria, apresentadas na linguagem de uma era pré-científica. Seria como dizer hoje que tudo é feito do partículas subatômicas, energia e forças fundamentais.
No entanto, o propósito e as implicações dos diálogos upanishádicos e da ciência moderna são bem diferentes. Nos Upanishads, o argumento lógico não é um fim em si, mas um meio de conduzir a uma intuição que vai além das palavras. A lógica do argumento da identidade do atman e do brahman constitui apenas o ponto de partida para uma compreensão maior. O objetivo dos ensinamentos é incentivar os alunos a internalizar e refletir sobre eles, até que a realidade sugerida ali seja vivenciada diretamente — ultrapassando os limites da lógica e da linguagem. Essa consciência inefável produz um estado de glória inaudito (ananda).
Poderíamos argumentar que um "eu" formado somente pela experiência dos sentidos e pela razão bastaria para os propósitos da vida humana. Os sábios que escreveram os diálogos dos Upanishads contestaram essa ideia. O Katha Upanishad utiliza uma carruagem, como analogia para o ser. Os sentidos são os cavalos da carruagem e a mente, o cocheiro, mas o passageiro da carruagem é o atman. A implicação dessa imagem é que, para um indivíduo cuja consciência se limita à lógica e aos sentidos, o movimento da carruagem não faz sentido, pois falta um passageiro para realizar a viagem. É isso o que a intuição do atman restaura.
O hinduísmo não considera o processo de conscientização do atman como um processo fácil. Essa conscientização só pode ocorrer após a análise e o descarte de outras possíveis identidades. Não é um fato a ser aprendido, mas uma intuição, capaz de formar, gradualmente, uma consciência ativa.
Em todas as religiões está implícita a ideia de que existem objetivos na vida e formas certas de viver para atingir esses objetivos. Segundo o hinduísmo, a vida tem alguns objetivos principais: dharma (vida correta); os conceitos associados de artha (riqueza) e kama (prazer); e moksha (libertação). A busca do dharma — viver de acordo com os deveres — mantém a pessoa no caminho certo. A busca por riqueza e prazer traz valiosas lições, assim como filhos c condições de sustentar a família e fazer caridade. O objetivo final, moksha, consiste na libertação das preocupações mundanas.
No século VI a.C., existiam duas tradições muito diferentes na religião indiana. A maioria das pessoas da Índia seguia a tradição védica, oferecendo sacrifícios aos deuses na esperança de obter uma vida de riqueza e prazer, moderada pelos princípios morais e sociais do dharma. Outros, contudo, sentiram-se atraídos por um estilo de vida diferente a vida de um asceta errante, comprometido com uma rígida disciplina física e mental para alcançar libertação espiritual, abstendo-se de riqueza e prazeres. Essa tradição ascética, conhecida como shramana (uma palavra em sânscrito que significa "trabalho em austeridade") exerceu grande influência no desenvolvimento do budismo e do jainismo. Os Dharma textos sagrados sobre as Sutras regras do bom comportamento — sugeriam que uma pessoa versada no dharma (virtude ou "vida correta") tinha, basicamente, três caminhos possíveis: o estudo continuo dos escritos védicos como principal objetivo da vida; uma vida em busca de prazer e riqueza; ou a renúncia de tudo para se tornar um asceta. Esta última opção não era nada incomum na sociedade hindu da época. O exemplo mais famoso disso foi Buda, que abandonou sua vida privilegiada de príncipe, deixando esposa e filho para se tornar um mestre itinerante.
No entanto, a posição dos seguidores da tradição shramana — de que o asceticismo tinha maior valor espiritual do que a busca de artha (riqueza) e kama (prazer) — contrastava com a tradição védica. Por cerca de mil anos, os Vedas foram usados para ensinar que a busca de conforto material e satisfação pessoal constituíam metas nobres na vida, se perseguidas da maneira certa. Então, por que escolher entre caminhos tão radicalmente diferentes? Ou seria possível a pessoa aproveitar os benefícios das quatro metas tradicionais juntas?
Ter tudo
Por volta do século V a.C., mais comentários sobre o dharma, conhecidos como shastras, apresentavam uma nova abordagem: em vez de fazer uma única escolha, a pessoa poderia trabalhar numa sucessão de diferentes metas, à medida que avançasse pelos quatro estágios da vida, ou ashramas: aluno, chefe de família, aposentado e renunciante ou asceta. Os objetivos certos na vida e, por extensão, o comportamento correto não dependeriam somente da varna, ou classe social (pp. 92-99), do indivíduo, mas variariam também de acordo com o estágio alcançado na vida.
Nem todo mundo é considerado capaz de passar por esses quatro estágios. As mulheres (geralmente) são excluídas, assim como os sudras (a classe trabalhadora) e aqueles de fora do sistema de classes (os dalits, ou os "intocáveis"). Só homens das três varnas superiores — brâmanes (sacerdotes), xátrias (soldados ou protetores da nação) e vaixás (comerciantes e fazendeiros) — submetem-se ao rito, começando aos oito anos de idade, numa cerimônia conhecida como "fio sagrado", na qual eles "nascem novamente" e dão início à sua jornada pela vida.
Aprendizado e vivência
O primeiro estágio da vida é o de brahmacharya, aluno. Os meninos vão a uma gurukula (escola), onde estudam os Vedas com um guru, ou professor. Aprendem sobre dharma — vida correta — de modo acadêmico, junto com história, filosofia, direito, literatura, gramática e retórica. A educação, tradicionalmente, continua até os 25 ou trinta anos, e nesse estágio, além de demonstrarem respeito aos pais e professores, aos alunos também devem se abster de relações sexuais, sublimando toda a sua energia em vista do aprendizado.
No fim dessa educação, o homem hindu deve casar e construir uma família. Este é o início do estágio grihastha, "chefe de família", durante o qual todo homem deve ser economicamente ativo e sustentar não apenas esposa e filhos, mas também os parentes mais velhos. As famílias indianas tradicionais costumam incluir três ou quatro gerações, que juntam suas rendas e utilizam a mesma cozinha. Essa grande família, de um modo geral, é organizada de maneira hierárquica, e os chefes de família, ademais, devem apoiar os ascetas.
O chefe de família carrega os deveres de seu dharma e sua varna (classe), mas, diferente dos outros três estágios, parte de seu dever é correr atrás de artha (riqueza) e kama (desejo), incluindo prazer sexual e procriação. Descrever esse estágio da vica como uma fase em que a riqueza e o prazer são as principais metas, contudo, pode dar uma visão distorcida de suas obrigações, que envolvem cuidar da grande família e oferecer hospitalidade.
Retirada do mundo
O terceiro estágio da vida é o estágio de vanaprastha (aposentadoria), que começa, de um modo geral, com a chegada do primeiro neto. Originalmente, o seguidor precisava ir "morar na mata", optando por uma vida simples de reflexão, ao lado de sua esposa sem relações sexuais. Hoje, é mais uma questão de deixar para trás as responsabilidades profissionais e preocupações financeiras para poder se dedicar ao estudo e à sabedoria, cedendo lugar à nova geração.
A maioria dos hindus nunca passa do estágio de aposentadoria. Eles só podem entrar no quarto estágio da vida depois que cumprirem todas as obrigações familiares. Esse é o momento em que o indivíduo abandona todas as preocupações e os vínculos mundanos para dedicar-se à busca da libertação final (moksha).
Uma fórmula combinada
Os quatro estágios da vida combinam-se com a classe do indivíduo em um conceito que define moralidade e estilo de vida: varnashrama-dharma, literalmente o ordenamento correto da vida (dharma) de acordo com sua classe (varna) e estágio da vida (ashrama) — uma fórmula de "como viver corretamente", muito diferente das outras religiões, com um conjunto único de regras que se aplicam igualmente a todos. No caso do hinduísmo, é um sistema moral que reconhece flexibilidade e diferenças de contexto, além de evitar que os indivíduos de classes mais elevadas tenham orgulho, uma vez que eles devem se submeter a uma rigorosa educação para desenvolver o desapego e preparar-se mentalmente para a libertação das responsabilidades e dos benefícios mundanos no estágio final da vida. O sistema valoriza o esforço dos chefes de família, reconhecendo que eles apoiam todo o resto da família, c confere dignidade aos mais velhos, que podem abandonar as obrigações práticas e domésticas para se dedicar ao crescimento espiritual.
No mundo moderno
Até bem pouco tempo atrás, a "grande família" era o principal modelo familiar na sociedade hindu, formando o contexto no qual os homens passavam pelos quatro estágios, com seus princípios morais e espirituais. Nesse cenário tradicional, as mulheres não participam nem do primeiro nem do último estágio da vida de um homem, e o casamento é considerado um contrato entre famílias, não uma questão de amor. Quando uma nova mulher é apresentada à grande família, ela terá problemas se não for adequada ao homem em termos de dharma, varna ou ashrama. Isso explica certas atitudes sociais e tradições — por exemplo, o casamento arranjado —, mas grande parte dessas tradições contrasta com a mentalidade de hindus criados numa sociedade mais individualizada e secular.
O hinduísmo é mais uma prática do que uma crença, e está intimamente vinculado com ideias de idade e classe. Conceitos ocidentais de direito individual e igualdade não convivem bem com alguns ensinamentos hindus originais; e com a ocidentalização das atitudes, a crescente mobilização social na Índia moderna e a prática do hinduísmo em países do mundo inteiro, não há como saber ainda se os "quatro estágios" continuarão sendo um modelo viável de vida hindu.
O Bhagavad-Gita é uma antiga escritura hindu sobre virtude e dever, em forma de diálogo entre Krishna (reencarnação do deus supremo Vishnu) e o príncipe guerreiro Arjuna, que está se preparando para lutar contra outra parte de sua família pelo reinado. Como membro da classe xátria (a elite governante ou militar), o dever de Arjuna é lutar, mas ele teme matar alguém do "outro lado" — seus parentes ou algum grande mestre.
Na seção de abertura do Bhagavad-Gita, Arjuna diz que preferiria abrir mão do reinado a ter de estar envolvido na matança. A ideia de matar familiares e mestres vai muito além de sua natureza, e Arjuna teme ainda que o ato gere consequências funestas, criando um carma negativo para todos os envolvidos. No hinduísmo, matar um parente conduz à destruição da família e ao renascimento no inferno.
Arjuna se vê diante de dois princípios aparentemente conflitantes: cumprir seu dever como membro da classe guerreira ou evitar as desastrosas consequências cármicas do ato de matar? Decide, por fim, ouvir o conselho de seu cocheiro, que é nada mais nada menos que o deus Krishna.
Krishna lhe diz que ele deve cumprir seu dever e lutar. O ato de matar só criará carma negativo se for pelos motivos errados — ódio ou cobiça, por exemplo. O ideal é o indivíduo cumprir seu dever, seja ele qual for, por mais que contrarie suas inclinações pessoais, mas deve fazê-lo de maneira abnegada. Além de não causar nenhum dano, tal gesto será um passo a mais em direção à libertação pessoal.
Krishna diz que os motivos pessoais são o que conta ao considerarmos qualquer tipo de ação. Elogia a disposição de agir diligentemente por motivos não egoístas e apresenta uma segunda razão para Arjuna lutar: o ser é imortal e passa por sucessivas encarnações, de modo que ninguém morre de verdade. Só o corpo morre. A alma viverá de novo, em outro corpo.
Um contexto de mudança
Quando o Bhagavad-Gita foi escrito, havia duas correntes de pensamento religioso muito diferentes na Índia. A mais antiga, datando do primeiro período védico, promovia a ordem social e o dever como base da moralidade, ser.do criticada pelas novas filosofias — sobretudo o budismo e o jainismo, que consideravam a regra de "não matar" como o principal preceito da moralidade. Essa visão representou uma ruptura com o sistema védico de classes e suas obrigações tradicionais. O dilema de Arjuna reflete esse conflito de prioridades morais, e o conselho de Krishna é uma tentativa de manter as obrigações de classe em face da crítica das filosofias centradas na ideia de carma e reencarnação.
A palavra ioga, originária do sânscrito, descreve um conjunto de práticas, físicas e mentais, utilizadas para ajudar a alcançar visão espiritual e libertação das limitações do corpo físico.
Os primeiros textos filosóficos hindus, os Upanishads, do século VI a.C., apresentam noções sobre ioga, e há uma seção sobre ioga no Bhagavad-Gita, antigo texto sagrado. O primeiro relato sistemático sobre ioga está nos Yoga Sutras. Alguns estudiosos atribuem esses textos ao filósofo Patanjali, que viveu no século I a.C. No entanto, a conclusão consensual é de que os textos foram escritos entre os séculos II e IV d.C. por mais de um autor, incluindo tradições e práticas dos períodos anteriores. Os Yoga Sutras consistem num conjunto de técnicas para promover a tranquilidade mental e a concentração, condições consideradas necessárias para intensificar a capacidade de percepção.
Criada originalmente para quem tomou o caminho do ascetismo, a ioga acabou se transformando numa atividade que pode ser praticada por todo mundo. As posições e as técnicas de controle da respiração não são o objetivo final; o intuito ė acalmar a mente e fazê-la focar num único ponto. A mente só tem como se acalmar quando os sentidos estiverem controlados. Só então a liberdade interna e a capacidade de observação podem surgir.
Um caminho de libertação
De acordo com os Yoga Sutras, a joga permite que o praticante evite "aflições" mentais, como ignorância, visões centradas no ego e emoções extremas, além de poupá-lo dos "três venenos", que são a cobiça, a raiva e a ilusão (uma meta buscada também no budismo).
Os Yoga Sutras apresentam a prática da ioga em oito passos. Os dois primeiros são preparatórios e mostram o contexto no qual a ioga se torna eficaz. O primeiro é a prática da contenção moral, sobretudo ahimsa (não tirar a vida). O segundo foca em observâncias pessoais, como o estudo de textos filosóficos e a contemplação de um deus para ganhar inspiração. Os três passos seguintes visam ao controle do corpo e dos sentidos: adotar posturas físicas (asanas) para controlar o corpo; controlar a respiração; e tirar a atenção dos sentidos. Para finalizar, existem três passos mentais: concentrar a mente num único objeto; meditar nesse objeto; e chegar a um estado de absorção meditativa. Esses passos são progressivos e conduzem à libertação da visão mundana do ser e do mundo, com suas aflições mentais, em direção a um estado mais elevado de consciência.
Atualmente, a ioga é bastante praticada como uma atividade para melhorar a saúde física e promover a calma interior. Mas é importante lembrar que, no contexto da religião hindu, o termo "ioga" abrange disciplinas e práticas não só de postura, mas de moralidade, meditação, conhecimento e devoção, com o objetivo de libertar o verdadeiro ser ou consciência (purusha) dos enredos da matéria (prakriti), restaurando, assim, sua condição natural. Portanto, embora muita gente no mundo ocidental considere a ioga como uma espécie de exercício físico, para os hindus ela é o caminho da libertação final.
Sempre houve um elemento de ritual e adoração na religião hindu. Nas primeiras tradições prescritas pelos textos védicos sagrados, era vital que os sacrifícios nas piras fossem realizados de maneira precisa, e somente pelos brâmanes (classe sacerdotal). Nos primeiros séculos da era cristã, todavia, as adorações tornaram-se menos exclusivas, dando origem à prática do bhakti (devoção por amor). Ergueram-se templos com imagens dos deuses, abertos aos seguidores, e, paralelamente aos rituais sacerdotais de nascimento, maioridade, casamento e morte, desenvolveu-se uma tradição de devoção pessoal às divindades (puja), também aberta a todos, independente de classe.
Homenagem aos deuses
O puja consiste em fazer uma oferenda simples — de comida vegetariana, incenso ou flores — perante a imagem de um deus ou deusa. Pode ser feito num templo ou em casa, e os devotos costumam marcar a testa em reconhecimento à bênção recebida da divindade agraciada. No final do puja, eles podem ficar com a comida oferecida. A natureza da oferenda é menos importante do que a intenção por trás do ato em si. Às vezes, basta ir a um templo e olhar para a imagem da deidade.
Por meio do puja, o indivíduo pode homenagear os deuses ou pedir favores. Os deuses hindus costumam ser chamados de acordo com as tarefas que realizam, como "Ganesha, o removedor de obstáculos", o que facilita a escolha da divindade apropriada. No entanto, o puja nem sempre está relacionado com pedidos pessoais ou agradecimentos. Em algumas ocasiões, é realizado por um grande grupo de pessoas em festivais como o Durga Puja. Nessa solenidade anual de nove dias da deusa Durga — o aspecto feminino do poder divino —, celebra-se a morte de Mahishasura, o terrível demônio em forma de búfalo. Os devotos fazem oferendas, recitam orações, cantam hinos, dançam, jejuam e homenageiam a deusa.
Amor divino
Na devoção, a divindade (que possui uma imagem própria, ou murti) é vista como um ser com o qual o adorador pode se relacionar. Por meio do bhakti, o devoto desenvolve um forte laço emocional com a divindade escolhida, que passa a morar no coração de seu seguidor. O bhakti tornou-se popular no hinduísmo por volta do século XII. Adorações em templos envolvendo cantos e danças e o relacionamento entre os devotos e sua divindade eram comparáveis a um relacionamento amoroso.
Embora praticado amplamente, muitas formas de bhakti concentravam-se no deus Vishnu (veja abaixo, à esquerda), retratado nos grandes épicos Ramayana e Mahabharata como um deus que vem à Terra ajudar a humanidade disfarçado com um de seus muitos avatares (personificação de um deus). O oitavo avatar de Vishnu é Krishna, cujos seguidores consideram o bhakti como o caminho mais elevado à libertação.
Com o trabalho do filósofo indiano Adi Shankara, desenvolveu-se no século IX uma ramificação da filosofia hindu conhecida como Vedanta ("o fim dos Vedas"). O objetivo era sistematizar e explicar o material dos antigos Vedas e explorar a natureza do brahman conforme apresentado na obra filosófica Upanishads (a última seção dos Vedas).
O Vedanta possui diversas ramificações, mas a estabelecida por Shankara chama-se Advaita Vedanta (Vedanta "não dualista"). Shankara afirma que só existe uma realidade, apesar de a vivenciarmos de diferentes maneiras. Essa crença "não dualista" contrapõe-se a formas posteriores de Vedanta, nas quais a divindade assume um papel pessoal.
Shankara dizia que a razão humana é limitada à experiência sensorial, ou seja, não há como ir além dos sentidos para enxergar o mundo em sua essência. Mesmo dentro desse mundo de sentidos, há sempre a possibilidade de erro, uma vez que todo conhecimento sensorial é ambíguo. Utilizando o exemplo de Shankara, uma corda enrolada pode ser confundida com uma serpente, ou vice-versa. Além disso, o indivíduo pode saber que é possível enganar-se com o que vê, ouve ou toca — mas e se todo o processo de assimilação de informações dos sentidos for uma forma de ilusão?
Um brahman incognoscível?
Segundo os Upanishads, existe somente uma única realidade, o brahman, com a qual o ser interior mais profundo, o atman, se identifica. O problema é que o brahman não pode ser percebido pela experiência sensorial, uma vez que não faz parte da realidade (como os objetos materiais). O brahman é a própria realidade. Objetos comuns podem ser percebidos, pois se distinguem uns dos outros devido a características que os sentidos conseguem detectar. O brahman, ao contrário, como não possui atributos físicos, não tem como ser compreendido por meio da interpretação racional do que é percebido pelos sentidos.
Sendo assim, o que fazer da ideia de um ser supremo ou dos deuses utilizados na religião? Parece haver uma profunda diferença entre o que os Upanishads têm a dizer em termos de argumentos filosóficos e o que é realmente praticado nos Vedas quanto às divindades reverenciadas. Por exemplo, como o brahman pode ser ao mesmo tempo pessoal (cognoscível) e impessoal (incognoscível)? Como descrever algo eterno e absoluto?
A resposta de Shankara
Shankara procura responder a essa questão fazendo uma distinção entre nirguna brahman (realidade sem forma), cognoscível apenas pela consciência pura, e saguna brahman (realidade com forma), mais próximo da ideia tradicional de um deus que intercede no mundo. O brahman é a mesma realidade, mas pode ser percebido de diferentes formas. Uma maneira de expressar isso é dizer que não há nada no mundo que não seja brahman, pois o brahman é a própria realidade; e que nada é brahman, pois nenhum objeto isolado corresponde à ideia de brahman. Para explicar isso, Shankara dá o exemplo dos raios de Sol incidindo sobre diversos potes de água. Cada pote reflete a luz de uma forma, embora o Sol seja o mesmo. Como conhecer brahman então? A resposta de Shankara baseia-se na identidade do brahman e do atman, o aspecto mais profundo da consciência pura. Shankara afirma que o brahman não pode ser percebido externamente, por meio dos sentidos, mas pode ser conhecido internamente, pois é nossa essência interna.
Consciência e conhecimento
Shankara propõe que existe somento uma única realidade, mas duas formas diferentes de compreendê-la. Do ponto de vista convencional e pragmático, temos o mundo das experiências sensoriais, com toda a sua variedade. Do ponto de vista absoluto, precisamos reconhecer que o mundo que percebemos com nossos sentidos é irreal, uma ilusão. Só podemos, portanto, conhecer a verdadeira realidade por meio da percepção resultante da consciência pura.
É possível que Shankara tenha pegado essa ideia dos dois níveis de verdade do budismo, que apresentava uma distinção similar na época, entre a verdade pragmática e a verdade absoluta. Para o hinduísmo e o budismo, essa distinção constituía um passo necessário para unir os princípios filosóficos da religião com a prática. Durante o primeiro milênio, a prática religiosa foi assumindo cada vez mais a forma de devoção a diferentes divindades (no caso do budismo, bodhisattvas), cada uma refletindo um aspecto específico da realidade. Tanto no hinduísmo quanto no budismo, o objetivo dessa prática não era macular a religião convencional, mas posicioná-la num contexto filosófico mais amplo.
Uma ilusão parcial
A maneira mais óbvia de descrever a visão de mundo de Shankara é dizer que ele vê o mundo como uma ilusão (maya), embora ele afirme que a questão é mais sutil. Shankara sugere que existem dois níveis de "realidade", os dois falsos: o mundo aparente (que enxergamos e tocamos) e o mundo pragmático (que é nossa visão de mundo, resultado de nossas ideias preconcebidas). Enquanto o mundo aparente deriva da interpretação de nossos sentidos, o mundo pragmático deriva da projeção de nossa mente, que impõe nossas ideias ao meio (como reconhecer num formato verde pentudo "uma folha"). Essas duas visões do mundo, porém, estão erradas, uma vez que são apenas representações do mundo. Portanto, podemos dizer que o mundo que percebemos é uma ilusão, mas não que o mundo — além da percepção dos sentidos — é uma ilusão. O mundo dos sentidos chama-se maya (ilusão) É por isso que a filosofia de Shankara é descrita como "não dualista": não existem duas realidades distintas, o mundo e brahman, mas somente uma.
No momento em que a pessoa tornar-se consciente da identidade do atman (o verdadeiro ser) e do brahman (a realidade única), ela reconhecerá que o ser convencional, enquanto objeto entre outros objetos no mundo, é parcialmente uma ilusão. A iluminação resulta da percepção do que fomos desde o princípio — o atman de consciência pura. E, comparado com essa ideia, o corpo físico, superficial e em constante transformação é relativamente irreal.
Os deuses indicam o caminho
A diferenciação entre brahman nirguna e saguna (realidade sem forma x realidade com forma) e o contraste entre a percepção dos sentidos e a compreensão da consciência pura são de fundamental importância não só para entender o hinduísmo, mas para a religião em geral.
Essas distinções sugerem que existem dois níveis de religião. Em um nível mais popular, há devoções a divindades escolhidas (como na tradição bhakti) e deuses e deusas com características específicas agindo no mundo. Essa devoção, contudo, é apenas um passo em direção ao conhecimento e à libertação, que só pode ser alcançada com a disciplina requerida para um nível de meditação que conduz à verdadeira percepção. Para Shankara, essa percepção é a visão de uma realidade única. Não há um mundo dos deuses à parte Isso significa que, se existe apenas uma única realidade, cognoscível por meio da consciência interna, não há necessidade de cerimônias religiosas. Tudo o que a pessoa precisa fazer é desenvolver a percepção através da meditação.
É tentador dizer que Shankara promove uma filosofia, não uma religião, mas isso não seria de todo verdade. Para chegar a perceber a unidade entre atman e brahman, é necessário praticar disciplinas como a meditação, que tendem mais para o exercício religioso do que para o questionamento filosófico. O tipo de autocontrole exigido para alcançar a percepção verdadeira não é meramente intelectual. A abordagem de Shankara lhe permite unir duas tradições bem diferentes em um único sistema: as cerimônias religiosas dos Vedas, além dos comentários posteriores a eles, e a disciplina mental dos ascetas, que se julgavam acima do estágio de rituais religiosos.
Ciência e realidade
As teorias da ciência moderna baseiam-se na premissa de que o universo é feito de objetos, estruturas, acontecimentos e experiências sensoriais cognoscíveis e mensuráveis. Essas teorias, entretanto embora consideradas uma forma confiável de compreender o mundo — refletem apenas as interpretações dos cientistas perante os fenômenos que eles observam, e estão sempre sujeitas a modificações. O mundo das experiências sensoriais, por exemplo, mesmo quando explorado nos limites do conhecimento científico, é somente uma aproximação da realidade, medida pelas ferramentas disponíveis, não a realidade em si.
Além disso, os métodos científicos utilizados para tentar desvendar a realidade acabam interferindo na natureza do que é observado. Por exemplo, o mero ato de observar e mensurar um objeto num nível quântico pode alterar significativamente o resultado.
O que a ciência percebe como verdade cu realidade, na filosofia de Shankara ainda é ilusão, uma vez que existem dois níveis completamente diferentes de verdade e os deuses, assim como as leis científicas, constituem apenas uma aproximação de uma realidade suprema, além do alcance da razão e dos sentidos. Portanto, a consciência pura só pode ser alcançada transcendendo a ilusão por meio da meditação.
A ideia de que todas as religiões conduzem ao mesmo Deus foi apresentada por Sri Ramakrishna, místico do século XIX praticante do bhakti (devoção religiosa hindu) e seguidor da filosofia Advaita Vedanta, conforme originalmente transmitida por Adi Shankara (p. 121) em torno da ideia de uma realidade única, o brahman, com a qual o ser (atman) se identifica. O ponto de partida do pensamento de Ramakrishna era a ideia de que, na meditação, a pessoa passa a reconhecer o aspecto divino dentro de si e, seja qual for a divindade que reverencia, existe apenas uma realidade espiritual. Dentro do hinduísmo, portanto, cada um é livre para rezar do jeito que quiser, reconhecendo que há somente um único "poder sagrado" (brahman). Para Ramakrishna, isso significava que todas as religiões podiam ser vivenciadas da mesma maneira - a maneira pessoal ou interna e que, por isso, todos os caminhos espirituais acabariam levando ao mesmo lugar.
Uma transformação interna
Ramakrishna levou esse entendimento às últimas consequências, afirmando que chegou a se tornar muçulmano por um tempo. Mergulhou nos ensinamentos do Islã e passou a realizar orações islâmicas, de tal modo que se sentiu realmente imbuído da fé muçulmana, a ponto de não ter nenhum desejo de olhar para as imagens de templos hindus.
A maioria dos muçulmanos não consideraria tal experiência como válida, alegando que Ramakrishna não se dedicou às práticas sociais e culturais do Islã. Mesmo assim, para Ramakrishna, aquela vivência totalmente interna levou-o a concluir que qualquer jornada interior de autodescoberta possibilitará que a pessoa se identifique com o que seu discípulo Vivekananda chamaria mais tarde de "o eterno ideal da unidade espiritual do universo". Para Ramakrishna, se a religião significa um processo de transformação interna, e se Deus representa a realidade máxima, pode-se concluir que um indivíduo, seguindo qualquer conjunto de ideias religiosas disponível, trilhará um caminho que fatalmente coincidirá com o caminho de outros na mesma busca Ramakrishna acreditava que a pessoa podia encontrar "Deus dentro de si" por meio de qualquer tradição religiosa, e isso transcendia toda diferença externa, cultural ou doutrinal entre religiões. Sua conclusão, portanto, é a de que uma pessoa realmente religiosa deve enxergar todas as outras religiões como caminhos que conduzem à mesma verdade fundamental. Em vez de tentar converter as pessoas de uma religião a outra, cada indivíduo deve seguir seu próprio caminho, dando lugar a uma convergência espiritual natural.
Foi no trabalho de combate à discriminação racial na África do Sul que Gandhi cunhou o termo satyagraha, "agarrar-se à verdade", tema central de suas campanhas de desobediência civil não violenta na África e depois na Índia.
Embora tenha sido criado como hindu, Gandhi foi fortemente influenciado polo jainismo, defendendo a não violência e o bem-estar de todas as criaturas, mas opondo-se à ideia de que, diante da injustiça social, o indivíduo deve isolar-se na espiritualidade e evitar confrontos. O hinduísmo dividia-se entre aqueles que achavam que deviam seguir seu dever social, conforme determinado por sua classe e estágio de vida, e aqueles que optaram por não fazer parte da sociedade para seguir um caminho ascético de disciplina religiosa pessoal. Gandhi sentiu-se compelido a buscar justiça política e social, mantendo, ao mesmo tempo, o valor ascético fundamental da não violência. Considerava inútil e atroz a ideia de combater a violência com violência.
Gandhi acreditava que um indivíduo só conseguiria realmente encontrar a verdade se estivesse disposto a abrir mão de sua posição social e interesse próprio. Para opor-se à injustiça, portanto, a pessoa tinha de ter a coragem e a força de agarrar-se à verdade, fossem quais fossem as consequências pessoais — no caso dele, anos de prisão. Gandhi considerava a não cooperação e a desobediência civil como "armas da verdade", as quais os indivíduos e a sociedade não deveriam ter medo de usar se as negociações falhassem. Aceitar as consequências de nossas ações é um sinal de força, se tivermos também a certeza moral da verdade.
Ame a todos, não odeie ninguém
Gandhi defendia o ahimsa (não violência) em seu sentido mais positivo, ou seja, a ideia de cultivar o amor a todos, em vez de simplesmente deixar de matar. Essa filosofia teve outras consequências sociais e políticas, pois devia incluir apoio aos oprimidos. Por exemplo, Gandhi defendeu a causa daqueles que estavam fora do sistema de castas, os "intocáveis", considerados impuros para rituais. A "intocabilidade", segundo ele, era um crime contra a humanidade, e essa discriminação acabou sendo proscrita na Índia. Gandhi também lutou incansavelmente pela liberdade religiosa, condenando todas as formas de exploração. Infelizmente, o último ano de sua vida foi marcado por guerras e derramamento de sangue, quando o Paquistão muçulmano foi separado da Índia hindu. Ainda assim. seus ensinamentos, sobretudo o legado da resistência pacífica, espalharam-se pelos quatros cantos do mundo, inspirando grandes líderes e movimentos políticos, entre eles a luta contra o apartheid na África do Sul e os movimentos pelos direitos civis nos EUA, China e outros lugares.
O século VI a.C. foi uma época de muitas mudanças sociais e políticas no norte da Índia. Tribos locais foram destruídas pelos novos impérios; cidades expandiram-se, afastando a população da simplicidade da vida agrícola; e o comércio ganhou força. Ao mesmo tempo, os indivíduos começaram a fazer perguntas essenciais sobre a vida e os fundamentos da religião.
Por um lado, havia a religião védica estabelecida, com base no sacrifício e na autoridade dos textos védicos, aos quais pouca gente além dos brâmanes (classe sacerdotal da sociedade indiana) tinha acesso. Era uma religião formal e conformista. que exigia obediência à tradição e mantinha as diferenças de classes. Por outro lado, muitos mestres errantes desafiavam a religião formal. Alguns se retiraram da sociedade em busca do ascetismo (renúncia aos confortos materiais), optando pela simplicidade e privação como formas de desenvolvimento espiritual. Esses mestres rejeitavam tanto o conforto físico quanto as normas sociais, e passaram a viver fora do sistema de classes. Outros mestres errantes seguiram a filosofia materialista lokayata e rejeitaram os ensinamentos espirituais convencionais em prol de uma vida de prazeres, afirmando que não há nada além do mundo físico.
Siddhartha busca respostas
Nascido numa família rica, Siddhartha Gautama concluiu, ao chegar à idade adulta, que sua vida de conforto era incompatível com a crescente conscientização das dificuldades da existência e a certeza da morte. Além disso, o conforto material não oferecia nenhuma proteção contra essa dura realidade. Desse modo, Siddhartha embarcou numa busca religiosa para encontrar a origem do sofrimento e uma forma de superá-lo.
Por sete anos, praticou o ascetismo, privando-se de tudo, ficando apenas com o mínimo necessário para o sustento, mas chegou à conclusão de que isso não o ajudou a encontrar o conhecimento que procurava. Decidiu, portanto, abandonar a vida ascética, embora continuasse determinado a descobrir a causa do sofrimento. Conta-se que Siddhartha chegou a um estado de "iluminação" (consciência da verdadeira natureza da realidade) após uma noite inteira de meditação, e isso lhe trouxe a resposta para as questões de sofrimento, envelhecimento e morte. A partir desse momento, seus seguidores passaram a chamá-lo de Buda, um título honorário que significa "aquele que está totalmente desperto" ou "o iluminado".
O caminho do meio
O ensinamento de Buda é conhecido como "o caminho do meio". Num nível mais óbvio, o conceito sugere um meio-termo entre os dois tipos de existência que ele rejeitou: uma vida de luxo, procurando obter proteção do sofrimento no conforto material, e uma vida de extrema austeridade, privando-se de quase tudo na busca pelo crescimento espiritual. A abordagem ou "caminho" encontrado envolvia uma dose moderada de disciplina em busca de uma vida ética, sem cair na tentação do automortificação, prazeres físicos ou na O caminho do meio proposto por Buda, porém, também se refere a dois outros extremos: o eternalismo (crença de que a alma tem um propósito e vive para sempre e o niilismo (extremo ceticismo, em que se nega o valor e o sentido de tudo).
Eternalismo e niilismo
A religião védica, principalmente conforme apresentada nos textos conhecidos como Upanishads (p. 105), afirmava que a verdadeira essência de todo ser humano é o atman, a alma eterna que reencarna diversas vezes. O atman liga-se ao corpo físico apenas temporariamente, sendo independente dele.
Um ponto crucial da religião védica é a identificação desse atman com o brahman, a realidade divina fundamental por trás de tudo. As coisas comuns do mundo (como árvores, animais e pedras) são uma ilusão, conhecida como maya. A verdadeira realidade está além do mundo físico. Quando Buda rejeitou a perenidade do ser, ele estava rejeitando um elemento central do pensamento e da religião hindu.
Buda também rejeitou o outro extremo - o niilismo, segundo o qual nada tem importância ou valor. O niilismo pode se manifestar de duas maneiras (ambas existentes na época de Buda). Uma é o caminho do ascetismo: purificar o corpo por meio da mais extrema austeridade e rejeitar qualquer tipo de valor mundano. Esse foi o caminho que Buda escolheu, julgando-o insatisfatório. A outra forma de manifestação do niilismo foi o caminho adotado na Índia pelos seguidores da escola heterodoxa de filosofia lokayata: a entrega total ao materialismo. Se tudo é apenas uma disposição temporária de elementos físicos, não existe uma alma eterna que se influencie por boas ou más ações durante a vida. Além disso, se não existe vida após a morte, a melhor conduta a se tomar é buscar o máximo de prazer possível nesta vida.
Porém, ao rejeitar esses dois extremos, Buda não optou simplesmente por um "caminho do meio" no sentido de termo comum. Sua visão baseava-se no conceito de interconexão, fundamental para compreender a essência do ensinamento budista.
As três marcas da existência
Buda dizia que todas as coisas na vida acontecem como resultado de determinadas causas e condições. Quando essas causas ou condições deixam de existir, os elementos que dependem delas também desaparecem. Nada, portanto, é permanente ou independente. O termo em sânscrito para essa interdependência é pratitya samutpada, que num sentido literal significa "coisas que avançam juntas". A expressão costuma ser traduzida como "originação dependente", para transmitir a ideia de que nada se origina do acaso - tudo está atrelado a causas anteriores. Em outras palavras, vivemos num mundo onde tudo está interconectado e nada é a fonte de sua própria existência.
Essa observação simples e profunda conduz ao que ficou conhecido como as três marcas universais da existência. A primeira marca chama-se anicca: tudo é impermanente e está sujeito à mudança. Poderíamos desejar que não fosse assim, mas é.
Buda comentou que a busca pela permanência e o desejo de que as coisas tenham uma essência fixa levam as pessoas a um estado geral de insatisfação na vida (dukkha), o que constitui a segunda marca da existência. A palavra dukkha normalmente é traduzida como "sofrimento", mas significa mais do que o sofrimento físico ou a inevitabilidade da morte. Refere-se à frustração existencial. A vida nem sempre nos dá o que queremos e, ao mesmo tempo, apresenta situações e pessoas que não queremos. Nada na vida nos dá satisfação completa. Tudo tem suas limitações.
A terceira marca da existência é anata: como tudo está em constante transformação, nada possui uma essência fixa. De um modo geral, vemos as coisas (as árvores, por exemplo) como elementos isolados e as definimos assim. No entanto, como tudo depende de algo para existir (as árvores precisam de terra, água e sol, por exemplo), nada pode ser definido permanentemente em termos de percepção ou linguagem.
A ideia de interconexão, assim como o conceito das três marcas da existência, não constitui uma suposição sobre o mundo. Ao contrário, refere-se a como as coisas são, demonstrando que as tentativas de negar essa realidade representam a causa de nossa frustração diária.
O ensinamento subsequente de Buda baseou-se no conceito de interconexão. Relacionando dukkha (insatisfação) com o processo de mudança, Buda mostrou que existem contextos nos quais essa insatisfação pode ser minimizada. Essa observação deu origem às "Quatro Nobres Verdades" ou o "Nobre Caminho Octuplo" (pp. 136-143).
O caminho do meio na vida diária
A ideia do caminho do meio está presente no budismo de maneira bastante prática. Por exemplo, algumas ramificações do budismo preconizam a vida monástica, mas os votos feitos não são vitalícios, e muitos monges ou monjas voltam para a vida em família após meses ou anos de retiro (p. 145). Da mesma forma, para não causar um sofrimento desnecessário, os budistas procuram ser vegetarianos, mas se por algum motivo for difícil seguir uma dieta vegetariana ou houver alguma questão de saúde que requeira o consumo de carne, eles têm essa permissão. Os monges, cuja alimentação depende de doações, devem comer o que receberem. Nada disso está relacionado à acomodação, mas ao reconhecimento de que tudo depende de condições prévias.
O conceito do caminho do meio também possui profunda implicações em nossa compreensão geral da religião, da ética e da filosofia. Em termos práticos, a ideia é que a realidade da vida, com suas constantes transformações, envelhecimento e morte, não pode ser evitada para sempre, mesmo com segurança material ou abnegação. Uma vez compreendido isso, nossa visão de valores e de ética muda, modificando também nossa forma de encarar a vida.
Uma filosofia flexível
Em termos de religião, a negação budista da essência imutável e eterna dos Upanishads hindus foi revolucionária. Sugere que a vida não pode ser compreendida (e o sofrimento não pode ser evitado) por crenças religiosas convencionais. O budismo — visto como religião em vez de como uma filosofia ética — não nega a existência de deuses ou alguma forma de alma eterna, mas os considera uma distração desnecessária. Quando lhe perguntavam se o mundo é eterno ou se uma pessoa iluminada vive após a morte questões centrais para a religião, Buda se recusava a responder. Em termos de filosofia, o budismo sustenta que o conhecimento parte da análise da experiência, não de uma especulação abstrata. Por conta disso, o budismo sempre foi um sistema não dogmático, flexível e aberto a novas ideias culturais, sem deixar de preservar seu princípio básico. A interconexão de todas as coisas, manifestada no equilíbrio entre continuidade e mudança, é a base da filosofia budista.
Os conceitos do budismo também tiveram importância psicológica. Como o ser não é simples e eterno, mas um elemento complexo e sujeito a mudanças, ele pode ser explorado como uma entidade instável. Além disso, o convite de Buda para as pessoas seguirem o caminho do meio estende-se a toda a humanidade, fazendo do budismo - apesar da indiferença em relação à ideia de um deus ou de deuses - uma proposta atraente numa sociedade presa a convenções e rituais.
O ponto central dos ensinamentos de Buda — o dhamma — é a superação do sofrimento. Tudo o que não contribui para esse propósito é considerado irrelevante. As ideias do budismo não devem ser vistas como um fim em si nem são resultado de uma especulação imparcial sobre a natureza do mundo, mas observações sobre a vida e os princípios para se pôr em prática.
As Nobres Verdades
O dhamma budista começa com quatro afirmações, conhecidas como as "Quatro Nobres Verdades", que apresentam um panorama geral do problema do sofrimento humano e soluções para ele. As verdades, que segundo a lenda foram o assunto do primeiro sermão de Buda após sua iluminação embaixo da árvore Bodhi, giram em torno dessa questão.
A primeira das Quatro Nobres Verdades de Buda é dukkha, a verdade do sofrimento: a ideia de que a vida é cheia de sofrimento — uma noção central nos ensinamentos budistas, que deu origem à longa busca de Siddhartha Gautama pela verdade. A vida humana, disse Buda, é frágil e sempre vulnerável, caracterizada pelo sofrimento. A natureza desse sofrimento é bastante ampla, ou seja, abrange não somente grandes dores, mas também sentimentos menores e dispersos de insatisfação. Pode resultar da morte de um ente querido, da sensação de que a vida não tem sentido ou simplesmente de um desconforto corriqueiro, como ficar preso num engarrafamento. Dukkha é o sentimento que temos em situações de estresse, incômodo ou insatisfação. Às vezes, desejamos estar em outro lugar ou até ser outra pessoa.
Buda dizia que a busca pela felicidade leva as pessoas para a direção errada. Os indivíduos desejam coisas — sexo, riqueza, poder, posses materiais — na esperança de que essas coisas as façam felizes, mas isso não acontece. Eis a base da segunda nobre verdade (samudaya): a origem do sofrimento é o desejo. Tanha, o termo budista para desejo, refere-se ao desejo que as pessoas têm de obter o que querem, imaginando que, se conseguirem realizar o que desejam, todos os seus problemas serão resolvidos. A palavra tanha pode ser traduzida como "sede", indicando que esse desejo nos parece essencial e natural. Buda afirma, no entanto, que esse desejo é contraproducente, gerando apenas mais sofrimento e infelicidade.
De acordo com Buda, esse desejo pelas coisas vai além do desejo físico e do desejo de poder, incluindo a necessidade de apegar-se a visões, ideias, regras e observâncias específicas, o que é igualmente nocivo. A visão do budismo é totalmente diferente do ponto de vista da maioria das religiões, que tendem a considerar a aceitação das doutrinas e as observâncias religiosas como fator essencial para a salvação. Embora não tenha dito que essas crenças são negativas em essência, Buda advertiu para o perigo de apegar-se à religião na esperança de que ela ajude automaticamente a superar o sofrimento.
O nirvana
Para os budistas, tudo tem uma causa. Isso significa que o sofrimento também tem uma causa. Se essa causa for removida, o sofrimento acabará. A segunda Nobre Verdade, samudaya, identifica o desejo como a causa do sofrimento. Por conseguinte, se o desejo for removido, o sofrimento deixará de existir. A terceira Nobre Verdade, nirodha (o fim do sofrimento e das causas do sofrimento), refere-se à ausência de desejo. Pôr fim ao desejo não significa interromper as atividades da vida normal — o próprio Buda continuou dando aulas por 45 anos após sua iluminação e estava exposto a todos os problemas da condição humana. O fim do desejo refere-se a um estado em que a pessoa compreende e aceita a vida como ela é, sem a necessidade emocional de mudá-la.
Com a terceira Nobre Verdade vem um estado de paz conhecido como nirvana, um estado além do desejo ou anseio por qualquer coisa ou por alguém. Não é o mesmo que extinção. Buda criticava quem procurava escapar da realidade por meio do aniquilamento. Ao contrário, o que acontece é que o fogo triplo da cobiça, ódio e ilusão — três características que perpetuam o sofrimento humano — é apagado, como uma vela. Em outras palavras, ao desapegar-se do desejo negativo, a mente fica livre do sofrimento e da infelicidade, alcançando um estado de felicidade ativa, uma forma de felicidade resultante da boa conduta moral.
Diferente de todo o resto, o nirvana não seria resultado de causa e efeito, extrapolando esses limites. Diz-se que é um estado permanente e inalterável. Enquanto tudo no mundo à nossa volta (assim como nós mesmos, é temporário e efeito de alguma circunstância, o nirvana é um estado incondicional, sem causa - uma verdade absoluta para os budistas. Esse estado de bem- -aventurança pode ser alcançado por nós aqui na Terra, durante nossa vida. Ao contrário da maioria das religiões, que incentivam as pessoas a terem uma vida moral no presente para atingir a felicidade num próximo mundo, o budismo diz que o verdadeiro fim para o sofrimento encontra-se aqui, neste mundo mesmo.
O próprio Buda atingiu um estado de nirvana aos 35 anos de idade e, por meio de seus ensinamentos, empenhou-se em mostrar aos outros como alcançar essa iluminação. A quarta Nobre Verdade descreve "o caminho que conduz ao fim do sofrimento. Isso é magga, o caminho do meio, também conhecido como o "Nobre Caminho Óctuplo".
O Nobre Caminho Óctuplo
O caminho para o fim do sofrimento consiste em oito passos, sem uma sequência definida, pois os passos são princípios (não ações) para os budistas superarem o desejo e alcançarem a felicidade. O Nobre Caminho Octuplo abrange os três aspectos básicos do budismo: sabedoria (nos dois primeiros passos), virtude (nos próximos três) e concentração (nos três passos finais).
A sabedoria, segundo Buda, consiste em duas direções para a mente: "visão correta" e "intenção correta". A primeira é importante para enxergar e identificar a causa do sofrimento, conforme estabelecido nas Quatro Nobres Verdades. Sem isso, o resto do caminho não tem muito propósito. Intenção correta significa "compromisso" — referindo-se à intenção de seguir o caminho, porque a mera compreensão dos ensinamentos, sem a intenção de colocá-los em prática, não serve para nada.
Os passos 3, 4 e 5 do caminho representam diretrizes morais práticas. A moralidade budista não está relacionada a regras que devem ser obedecidas, mas a condições que facilitem o caminho para a iluminação. O passo 3 é a "fala correta": não mentir, não ser duro ou cruel ao falar, não ouvir nem falar mal dos outros. Devemos fazer exatamente o contrário: falar a verdade, ser compreensivos e gentis e só falar com propósito.
O passo 4 refere-se à "ação correta", em relação aos cinco "preceitos" morais: não destruir a vida, não roubar, não usar os sentidos de maneira imprópria, não mentir e não obscurecer a mente com substâncias inebriantes (importante para o treinamento mental da última parte do caminho). O quinto passo também possui uma abordagem ética: "meio de vida correto", que significa viver de maneira a não contradizer os princípios morais do budismo aspectos do caminho, dependendo de suas circunstâncias. Além disso, o caminho em si não é uma estrada reta que começa no passo 1 e termina no passo 8. Podemos passar de um passo para outro em qualquer momento, sem uma ordem definida. Os três principais aspectos de compreensão, moralidade e meditação podem ser usados para reforçar uns aos outros. Alguns passos, contudo, como os relacionados a questões éticas, podem ser importantes para estabelecer o contexto no qual a meditação será realmente eficaz.
A Roda da Vida
Um aspecto essencial dos ensinamentos de Buda é a "interconexão" (pp. 130-135), a ideia de que tudo acontece de acordo com causas preexistentes. O caminho budista, portanto, está sempre dentro de um contexto. Seu objetivo é criar as condições para que mal-estar e sofrimento sejam substituídos por alegria e felicidade.
Isso significa que, se olharmos para a cadeia de causas e efeitos de nossa vida, poderemos encontrar os elos que devemos mudar para que nossa vida tome um rumo diferente. Se não fosse possível escolher diferente e alterar os resultados dos acontecimentos, nosso destino e nossas ações estariam totalmente predeterminados e não teríamos como acabar com o sofrimento. Embora o budismo tenha pegado a ideia de carma do hinduísmo (a de que toda ação tem uma consequência), sua relação com essa ideia não é rígida nem mecânica. Há sempre um elemento de escolha em nossas ações.
A visão budista de ações e consequências é apresentada de maneira gráfica na "Roda da Vida", uma obra iconográfica complexa que retrata o sofrimento e as possíveis formas de superá-lo. Tudo dentro da roda representa o mundo de samsara — um mundo de reencarnações infinitas, a que todos os seres estão presos como consequência de suas ações cármicas. A roda encontra-se nas garras de um temível demônio, que representa a morte.
No centro da roda, vemos três animais — um galo, uma cobra e um porco —, que representam os três venenos: cobiça, ódio e ignorância. Buda considerava esses elementos como a raiz da vida "doentia" e do sofrimento humano. Em volta deles, há um círculo com seres humanos em diferentes situações da vida (ascendendo ou descendendo) e diversos quadrantes retratando diferentes reinos. Os reinos retratados são: o reino dos humanos, dos animais, dos deuses, dos asuras (guerreiros em constante batalha), dos fantasmas e do inferno.
Cultivando a mentalidade correta
Os três últimos passos explicam como realizar o treinamento mental correto para atingir o estado de nirvana. O passo 6 é "esforço correto". A pessoa deve conscientizar-se de seus pensamentos negativos e substituí-los por pensamentos positivos equivalentes. Por exemplo, no início do Dhammapada (os "versos do dhamma"), Buda diz que aqueles que se ressentem das ações dos outros e ficam remoendo mágoas do passado jamais se livrarão do ódio. A ideia de "esforço correto" inclui a intenção consciente de romper o ciclo de mágoa e reatividade.
O sétimo passo fala da "atenção correta". Nossa mente se distrai com muita facilidade, pulando de uma coisa para outra o tempo todo. Um passo importante para a disciplina mental é estar totalmente consciente do momento presente e permitir que a mente foque em apenas uma coisa. Essa abordagem é utilizada em técnicas de meditação, como "plena atenção à respiração", que geralmente constituem o ponto de partida para o treinamento na meditação budista.
O oitavo passo, o passo final, é a "concentração correta". A prática da meditação é um aspecto fundamental do dhamma budista. O controle da mente é essencial para a superação do sofrimento, pois o que está sendo tratado não é a dor física ou a morte, mas o mal-estar existencial relacionado a elas. Na meditação de "insight" (vipassana), o indivíduo pode, deliberadamente e sem sobressaltos, contemplar as coisas em que a maioria das pessoas evita pensar, como a morte. Na meditação de metta (amor), cultivamos pensamentos positivos em relação aos outros, tanto as pessoas que amamos quanto as que nos parecem mais difíceis. Esse exercício estimula a benevolência e o desenvolvimento de um conjunto mais positivo de atributos mentais.
O Nobre Caminho Óctuplo é um programa de autodesenvolvimento. No entanto, o budismo não tem um conjunto de regras ou doutrinas que devem ser aceitas. A ideia é apresentar uma forma de vida que diminua o sofrimento. Diferentes pessoas focarão em diferentes. A ideia é que as pessoas podem passar de um reino para o outro. Os ensinamentos de Buda nos ajudariam a escapar do reino humano para um estado pleno de existência.
Para aqueles que querem entender o processo pelo qual os budistas alcançam esse estado — superando o sofrimento —, o círculo externo é o mais importante. Os doze nidanas, ou elos, desse círculo expressam graficamente o conceito de interconexão, essencial no budismo. Vemos pessoas e construções, desde um cego (representando o início de total ignorância espiritual) até uma casa com cinco janelas (representando a mente e os sentidos). Há uma oportunidade crucial entre o sétimo nidana, um homem com uma flecha cravada no olho (representando a dor), e o oitavo, uma mulher oferecendo bebida a um homem (sentimentos que conduzem ao desejo). Esse elo entre a dor e o prazer, que resulta do contato com o mundo e o desejo decorrente dessa experiência é central. Se o elo for preservado, o processo de renascimento (samsara) continua para sempre. Se o elo puder ser quebrado, há a possibilidade de escapar do ciclo de existência e sofrimento.
A quebra do elo indica uma volta ao ponto de partida do caminho, para o fim do sofrimento definido por Buda: a capacidade de viver a vida sem dar lugar aos desejos decorrentes do apego e da decepção. Para criar as condições que ajudarão a quebrar esse elo, as pessoas devem seguir o Nobre Caminho Óctuplo. A ação pode conduzir ao nirvana. De acordo com o budismo, nenhum deus salvará a humanidade. Portanto, o que precisamos cultivar é a sabedoria, não a fé.
Na maioria das religiões, as crenças baseiam-se na ideia de autoridade, seja a autoridade de um líder, de uma classe sacerdotal ou de textos sagrados. Aqueles que aceitam as crenças de sua cultura procuram defendê-las racionalmente, enquanto quem discorda costuma ser taxado de herege.
No budismo é diferente. Há um grande respeito a Buda e outros mestres religiosos, valorizando-se a linhagem e a tradição. No entanto, os budistas também valorizam o debate. Os mestres e as convicções intelectuais são considerados apenas o ponto de partida. Buda dizia para não confiar em seus ensinamentos, mas para testá-los, tanto racionalmente quanto em termos de experiência pessoal.
A sabedoria budista, portanto, é adquirida em três estágios: com os mestres ou as escrituras; por meio da reflexão pessoal; e como resultado da prática espiritual. O terceiro estágio geralmente inclui meditação, a busca pela verdade e pelo crescimento espiritual e a prática dos ensinamentos budistas.
Os primeiros seguidores de Buda atingiram a iluminação procurando compreender seus ensinamentos, não apenas acreditando em suas palavras. Os budistas argumentam que não basta confiar em autoridades externas. As crenças devem basear-se na convicção e na experiência pessoal.
Ao longo de toda a vida, Buda teve dois tipos de seguidores: os monges e os chefes de família. Os monges eram pregadores errantes como Buda no início, formando, mais tarde, comunidades monásticas, onde seguiam disciplinas voltadas para o próprio progresso espiritual e o bem-estar da comunidade. Os chefes de família também podiam alcançar a iluminação, desde que praticassem o budismo e ajudassem os monges.
Cerca de cem anos após a morte de Buda, a rigidez das regras monásticas entrou em debate. Com a disseminação do budismo, desenvolveram-se diferentes tradições, algumas com menor ênfase na vida monástica (sobretudo na China e no Japão). Mesmo assim, o monasticismo continuou sendo um importante elemento do budismo, principalmente no Sri Lanka e na Tailândia, onde se segue a tradição theravada.
No budismo, os votos monásticos não são vitalícios e não constituem um fim em si. Seu propósito é criar as condições necessárias para a prática budista. Ou seja, não são essenciais, mas ajudam a trilhar o caminho do meio. Os seguidores do budismo, porém, não devem buscar apenas a iluminação pessoal, o que os conduziria ao fracasso, uma vez que tal egoísmo é incompatível com os ensinamentos budistas. Ao contrário, devem desenvolver a compaixão universal e a boa vontade, tanto em termos pessoais quanto sociais.
O budismo originou-se do hinduísmo, uma religião sempre ambivalente quanto à ideia de matar. Por um lado, o hinduísmo promovia o princípio do ahimsa (não matar). Por outro, a sociedade sacrificava animais, permitia o consumo de carne e preconizava a luta em guerras justas. Como muitos outros mestres de sua época, incluindo Mahavira, fundador do jainismo, Buda enfatizou o princípio de não matar, que se tornou o primeiro dos cinco preceitos, a base ética do estilo de vida budista.
Cinco regras para viver
Os cinco preceitos proíbem a destruição da vida, o roubo, a má conduta sexual, a mentira e o consumo de substâncias inebriantes, como o álcool. Cada um desses preceitos tem um equivalente positivo, gerando cinco regras relacionadas ao que se deve fazer. A primeira regra é tratar todo mundo com bondade e amor (metta). Aliás, umas das principais práticas de meditação do budismo é agir sempre com boa vontade — tratar amigos, estranhos e até pessoas que nos pareçam difíceis com o mesmo nível de preocupação e cuidado. A magnitude evidente dessa primeira regra serve de base para as outras quatro. A boa vontade em relação aos outros promove a generosidade, o não abuso (o terceiro preceito está relacionado à proibição do adultério, estupro e outras formas de abuso sexual), a honestidade e a abstinência de substâncias tóxicas (de modo a ter clareza para tomar decisões corretas).
Embora o princípio de não matar fosse um dos pontos centrais do budismo desde o começo, a primeira iniciativa de instituí-lo na sociedade partiu do imperador Asoka (século III a.C.), que emitiu 32 editos, descobertos, mais tarde, em gravações rupestres. Além de defender a não violência, Asoka promoveu a ajuda aos pobres, a proteção de serviçais e o estabelecimento de centros médicos/serviços veterinários — manifestações diretas do metta.
Um ideal de paz
Apesar de raros relatos de autoimolação (como o suicídio de monges budistas, que atearam fogo no próprio corpo como forma extrema de protesto político), o budismo, de um modo geral, jamais procurou impor suas ideias à sociedade nem teve nenhuma relação com guerras.
Conforme o princípio de não matar, os budistas deveriam ser vegetarianos. No entanto, o caminho do meio de Buda (pp. 130-135) indica que a abnegação não deve nunca chegar a extremos que ponham a vida em risco. Desse modo, os budistas podem comer carne e peixe em casos de cuidados com a saúde ou se houver falta de frutas e vegetais (como nas montanhas do Tibete). Monges e monjas podem consumir carne se lhes for oferecido, com a condição de que os animais não tenham sido abatidos para eles.
A ideia de que os seres humanos constam de um corpo físico e uma essência não física, ou alma, está profundamente arraigada em quase todas as religiões, dando lugar à especulação de vida após a morte — se continuamos vivendo em algum tipo de céu ou inferno ou reencarnamos em um novo corpo. A crença numa alma imortal e em Deus parece constituir a própria essência da religião. Ambos os conceitos, entretanto, foram rejeitados por Buda, que acreditava na instabilidade do ser.
A ideia de um ser não permanente em constante transformação é central no pensamento budista, diferenciando o budismo da maioria dos outros sistemas de crenças e filosofias. Essa noção está implícita no ensinamento do caminho do meio de Buda (pp. 130-135) e reflete ainda o conceito da interconexão entre todas as coisas. O melhor exemplo da ideia de mudança, contudo, está presente em As perguntas do rei Milinda, um livro de autor anônimo, escrito no século d.C., que narra a conversa de um sábio budista, Nagasena, com o rei Milinda governante indo-grego do noroeste da Índia, c. 150 a.C.
Analisando o ser
Milinda começa inocentemente perguntando se seu interlocutor é mesmo Nagasena, ao que este responde sem pestanejar que, embora o nome "Nagasena" seja utilizado com frequência para se referir a ele, não há nada nesse nome que os vincule. A palavra é um "mero nome", pois "não se pode apreender nenhuma pessoa real a partir dela Num sentido absoluto, "Nagasena" não existe.
Perplexo, o rei pergunta como aquilo é possível, se Nagasena estava bem na sua frente. Para responder a essa pergunta, Nagasena usa uma analogia. Ele observa que o re! chegou em uma carruagem, então é óbvio que a carruagem existe. No entanto, depois de listar as diversas partes da carruagem (eixo, rodas etc.), Nagasena pergunta ao rei se alguma daquelas partes "é" a carruagem, recebendo resposta negativa. Então onde está a carruagem, pergunta o sábio, se ela não é as rodas, o eixo etc.? Evidentemente, não existe uma carruagem além das partes que a compõem. "Carruagem" é um nome aplicado ao conjunto dessas partes quando elas são utilizadas para conformar um veículo. Do mesmo modo, explica Nagasena, não existe um ser permanente além das diversas partes que o compõem. O termo "Nagasena" não representa nada a que se possa apontar. Como a carruagem, "Nagasena" refere-se a um conjunto de elementos que existem num estado de dependência mútua.
Os budistas veem os seres humanos como um conjunto de cinco skandhas (no sentido literal, "agregados") interdependentes: forma (nosso corpo físico), sensações (informações sobre o mundo recebidas pelos sentidos), percepção (nossa visão do mundo por meio dos sentidos) e formações mentais ou impulsos (o fluxo de ideias, intenções e pensamentos sobre as coisas percebidas). O quinto skandha é a consciência: a noção de estar vivo incluindo a conscientização das informações recebidas pelos sentidos e dos pensamentos, ideias e emoções.
O ponto principal do argumento de Nagasena é que cada um desses skandhas está em constante transformação. No caso da forma, isso é evidente. Basta observar o processo natural de desenvolvimento físico. Mas a afirmação vale para os outros quatro skandhas também. Nenhum skandha é fixo. Todos refletem uma constante corrente de transformações ao longo da vida. Isso significa que, além de não ser possível identificar o que é "Nagasena", é impossível também afirmar que uma pessoa é a mesma no decorrer da vida. Não obstante, ainda temos a sensação de ser 'os mesmos", com um passado e um futuro. Nagasena diz que é um absurdo afirmar que continuamos "os mesmos" ao longo do tempo, mas também é absurdo afirmar o contrário.
Na verdade, Nagasena diz que as questões em si estão erradas, uma vez que elas pressupõem um ser fixo em vez de um ser dependente do corpo. Em um exemplo posterior, para evidenciar a dependência do ser, Nagasena pede a Milinda para considerar o leite, a coalhada, a manteiga e a manteiga clarificada. Não é tudo igual, mas os três últimos estágios - a coalhada, a manteiga e a manteiga clarificada - não têm como existir sem o leite. Isso equivale a dizer que a manteiga só existe por causa do leite. Ela depende da existência do leite. Da mesma forma, diz Nagasena, "os elementos do ser juntam-se em série: um elemento perece, outro surge em seu lugar, sucedendo-o instantaneamente".
Um erro de categoria
No século XX, o filósofo britânico Gilbert Ryle contestou a ideia de que o corpo físico está ligado a uma mente não física, utilizando um argumento igual ao de Nagasena. Um turista na cidade de Oxford, após visitar diversas faculdades, bibliotecas etc., pergunta: "Mas onde está a universidade?". Ryle responde que não existe uma universidade além das partes que a compõem.
Do mesmo modo, não há uma "mente" separada do corpo. Quem afirma que sim está incorrendo num "erro de categoria". É errado considerar a mente como um objeto físico, porque o termo "mente" se refere a um conjunto de capacidades e disposições.
No final do século XX e início do século XXI, a maioria dos filósofos ocidentais defendia uma visão materialista, no sentido físico, da mente, afirmando que "mente" é apenas uma palavra para descrever as funções cerebrais. Para a ciência moderna, não existe um ser além do corpo. O cérebro realiza um complexo processamento de experiências e respostas, que chamamos de mente ou ser.
Essa visão difere da de Nagasena no sentido de que o sábio analisa mais profundamente como enxergamos a nós mesmos enquanto seres pensantes que sentem e reagem. Conforme demonstrado ao rei Milinda, mesmo sendo assim, não significa que exista uma entidade separada que pode ser chamada de ser.
Outra vertente filosófica moderna que se baseou inconscientemente nessa ideia budista é o existencialismo, que costuma ser sintetizado na frase: "a existência precede a essência ou seja, nascemos e existimos mesmo antes de nossa vida ter um propósito. Os existencialistas dizem que moldamos nossa vida de acordo com as escolhas que fazemos e que deveríamos reconhecer nossa responsabilidade nisso: nós somos o que escolhemos fazer não temos um ser ou essência interna "real".
Verdade absoluta
Essa discussão a respeito do ser traz à tona uma importante característica do pensamento budista: a diferença entre a verdade convencional e a verdade absoluta. Para termos um funcionamento normal, precisamos adotar uma abordagem pragmática ou prática e nos referir aos objetos como se eles tivessem uma existência independente reconhecível e permanente.
A comunicação seria impossível se tudo tivesse que ser descrito em termos de partes constituintes. O budismo, portanto, aceita a necessidade dessa verdade convencional, mas ressalta que ela não deve ser confundida com a verdade absoluta.
Os ensinamentos que Buda sintetizou nas Quatro Nobres Verdades e no Nobre Caminho Octuplo (pp. 136-143) eram claros e objetivos. A prática requeria treinamento mental e análise das experiências, mas sem especulação metafísica (reflexão sobre o que existe e o que não existe), rituais religiosos ou utilização de imagens - ao menos nos primeiros séculos. Hoje em dia, os templos budistas mahayanas da China ou do Tibete apresentam imagens elaboradas e diversas formas de adoração devocional. As imagens de Buda — de diferentes cores, formas, gêneros, algumas intimidadoras, outras meditando — parecem, aos olhos do observador externo, um objeto de devoção igual à devoção a deuses e deusas de outras religiões. Uma vez que o budismo ainda se apresenta como um sistema racional, de que maneira se deu essa transformação e como ela se justifica?
O caminho dos bodhisattvas
Como os indianos, de um modo geral, acreditam na reencarnação, em pouco tempo as pessoas começaram a se perguntar sobre as vidas anteriores de Buda, especulando sobre as ações e características que o teriam levado ao nirvana. Essas reflexões levaram à compilação dos contos Jataka, ou "histórias de nascimento", com personagens, às vezes humanos, às vezes animais, que retratavam o amor, a compaixão e a sabedoria de Buda, qualidades necessárias para atingir a iluminação. Essas histórias, por sua vez, deram origem à ideia do "bodhisattva": um ser capaz de alcançar a iluminação — ou "budeidade" —, mas que decide ficar no mundo, reencarnando, para ajudar os outros seres humanos. Essa ideia provocou uma grande mudança na visão geral do caminho budista. Em vez de lutar para se tornar um arhat, "ser perfeito" (o termo é utilizado em referência aos seguidores de Buda que atingiram a iluminação), os budistas agora podiam se dedicar ao caminho mais elevado de budas aprendizes — bodhisattvas que resolvem ficar no mundo por compaixão universal.
O grande veículo
Os seguidores desse novo ideal chamam-no de mahayana, ou "grande veículo", em contraposição à tradição anterior, hinayana ("pequeno veículo"), de alcance mais limitado. Os praticantes do mahayana acreditam que o grande veículo representa um ensinamento mais profundo, implícito no dhamma original do budismo. Seus escritos — sobretudo o Lotus Sutra — apresentam a imagem de Buda pregando aos seres num vasto universo feito de muitos mundos, e o mundo presente é apenas uma pequena parte desse universo. Os seguidores do mahayana dizem que o ensinamento anterior era uma versão limitada, e sua versão foi mantida em segredo por anos, esperando as condições adequadas para a manifestação.
O budismo mahayana, embora tenha surgido na Índia, espalhou-se para o norte e estabeleceu-se na China e depois no Tibete. A tradição anterior, o budismo theravada ("tradição dos mais velhos"), ainda existe, sendo encontrado principalmente na Tailândia, no Sri Lanka e no sudeste da Ásia.
Dois bodhisattvas
A tradição mais antiga, hoje conhecida como theravada, reconhece apenas dois bodhisattvas: a encarnação da figura histórica de Buda (também conhecida como Buda Sakyamuni ou Buda Gautama) e Maitreya, um bodhisattva que chegará no futuro para transmitir a verdade do dhamma. No budismo mahayana, porém, tanto a classe monástica quanto as pessoas comuns são incentivadas a buscar o nirvana e a se tornar bodhisattvas. Devido à possibilidade de um grande número de bodhisattvas, todos dedicados à missão de iluminação universal, as comportas da iconografia budista se abriram, com o propósito de inspirar os outros.
Simbolismo e imagens
Cada bodhisattva faz um voto de se tornar um buda (ser iluminado) e conduzir os outros no caminho da iluminação. Para isso, eles precisam cultivar seis "perfeições": generosidade, moralidade, paciência, energia, meditação e sabedoria. Cada uma dessas qualidades aparece na imagem de um bodhisattva específico. Por exemplo, a sabedoria é retratada na imagem de Manjushri, um jovem segurando uma flor de lótus (representando a mente iluminada) e brandindo uma espada com fogo (representando a sabedoria com a qual ele corta o véu da ignorância)
A imagem mais venerada de todas é a de Avalokiteshvara, o bodhisattva da compaixão. Seu nome, em sânscrito, significa "o senhor que olha para baixo". Ele cuida dos seres terrestres como um bom nai cuidaria Conhecido pelos tibetanos como Chenrezig, Avalokiteshvara assume forma feminina na China (Kuan Yin) e no Japão (Kannon). Avalokiteshvara costuma ser retratado com quatro braços: dois em pose de oração na altura do peito, um terceiro segurando uma flor de lótus e um quarto, com um rosário. Os braços em oração simbolizam a compaixão do bodhisattva, que sai de seu coração e chega aos seres terrestres. A flor de lótus representa a iluminação e a sabedoria, enquanto o rosário é um símbolo do desejo de libertar os seres humanos do ciclo infinito da existência. Acredita-se que o 14o Dalai Lama (p. 159) seja a reencarnação desse bodhisattva da compaixão.
Nem todas as imagens mahayanas são elaboradas. Os budas dhyana ou "meditativos", como o Buda Amitabha, por exemplo aparecem sentados de pernas cruzadas, meditando de olhos fechados com um manto simples. No entanto, por menos elaboradas que sejam essas imagens e por mais distantes que pareçam estar dos ensinamentos objetivos do Buda histórico, todas representam aspectos da iluminação. As imagens não retratam deuses a serem reverenciados, embora a adoração budista em templos e locais sagradcs mostre o contrário.
Foco na meditação
As imagens de bodhisattvas e budas são consideradas como uma ajuda no caminho espiritual. Em meditação, a pessoa pode visualizar a imagem escolhida, retratando-a como quiser. Os praticantes de meditação, portanto, estabelecem uma relação com aquela imagem em especial. A imagem, em geral, é selecionada para esse propósito, segundo indicação de um mestre, com o intuito de desenvolver uma qualidade específica — representada pelo bodhisattva ou buda. O benefício dessa prática só é percebido após um tempo. Ou seja, o processo não é considerado automático e requer atenção pessoal contínua às qualidades que a imagem representa.
A mandala impermanente
A mandala é outro símbolo budista criado para o desenvolvimento espiritual, seja na meditação ou no estudo. A mandala é uma imagem geométrica complexa com um padrão específico, contendo diversas formas, letras e desenhos de budas e bodhisattvas.
Os padrões são cuidadosamente criados com areia colorida, exibidos em festivais e depois destruídos. O momento de destruição é importante, pois reforça a ideia de que tudo é temporário. A tentativa de reter as imagens é uma representação do apego e do desejo, o que contradiz os ensinamentos budistas, no sentido de que esses dois fatores conduzem à frustração e ao sofrimento. Somente por meio do desapego é que a jornada rumo à iluminação pode começar.
Budas e o vazio
O filósofo budista Nagarjuna (veja ao lado) afirmou que tudo o que existe carece de existência própria, ou seja, nada no mundo, incluindo todos os seres vivos, possui uma essência inerente. Nagarjuna atribuiu essa ideia ao ensinamento original de Buda sobre o conceito de interconexão (pp. 130-135), segundo o qual os objetos e seres terrestres carecem de essência (ou "uma existência própria"), porque tudo depende da existência prévia de alguma outra coisa. Como não temos uma essência independente, o objetivo da meditação é ir além dos sentidos e das ideias resultantes da percepção, para ficar frente a frente com a verdade absoluta.
A possibilidade de invocar budas e bodhisattvas na meditação sugere que eles não possuem um corpo físico nem estão localizados em algum ponto específico do universo. As imagens invocadas não são a representação de uma pessoa, mas parte da verdade máxima sobre o indivíduo que está meditando. O grande número de imagens de budas e bodhisattvas serve apenas como ajuda temporária no reconhecimento de que todo mundo é um buda em potência.
Na maioria das formas de budismo, os rituais são simples (talvez apenas fazer uma oferenda a uma imagem de Buda). O budismo tibetano, porém, é dramático e cheio de cores. Nas adorações, os monges entoam mantras, usam toucados chamativos, tocam cornetas e fazem gestos elaborados com as mãos (mudras) — geralmente segurando pequenos objetos simbólicos (vajras) e sinos. Os seguidores do budismo também cantam, giram rodas de oração e tremulam bandeiras coloridas. Nos festivais, é comum haver encenações dramáticas e danças, com grandes imagens de pano estendidas ou penduradas nos muros dos templos, e a criação e destruição de intrincados desenhos de areia (p. 156). Como se explica e se justifica tudo isso, diante da simplicidade do caminho budista original?
Por mais de mil anos, o budismo e o hinduísmo coexistiram na Índia, influenciando-se mutuamente. Quando Padmasambhava, considerado o fundador do budismo tibetano, levou a religião para o Tibete no início do século vi, a prática foi influenciada pelo budismo mahayana, que já havia chegado à China, e pela tradição devocional (bhakti) do hinduísmo, que havia se desenvolvido na Índia nos séculos anteriores. O bhakti requeria um envolvimento mais pessoal e emocional na adoração, evoluindo tanto no hinduísmo quanto no budismo com o desenvolvimento do tantra.
O tantra envolve não só o pensamento do que será alcançado pela prática espiritual, mas também um processo de "encenação". Por exemplo, em vez de simplesmente visualizar a imagem de um buda, o praticante encarna o papel do buda. Esse processo de envolvimento emocional deve ser completo, abrangendo não só o intelecto. A pessoa deve sentir como é alcançar a iluminação.
Os mudras feitos na adoração tântrica, portanto, são os mesmos dos retratados nas imagens de budas e bodhisattvas. Cada um dos mudras expressa uma qualidade específica: a mão aberta com as palmas para cima representa generosidade; o mudra "destemido" de levantar a mão direita como em saudação, bênção ou advertência induz o sentimento de determinação. Ao fazer esses gestos, o praticante do budismo está imitando a imagem do buda ou bodhisattva escolhido, identificando-se com o que ele representa. O propósito dos cânticos mudras e outros elementos do budismo tântrico é fazer com que o praticante sinta como é o caminho da iluminação, sem precisar de explicações.
Rituais personalizados
Os rituais tântricos são realizados sob a instrução de um mestre (lama), que seleciona rituais específicos para cada indivíduo. Em outras palavras, os praticantes recebem um conjunto personalizado de imagens para visualizar, mantras para entoar e mudras para realizar, dependendo de suas inclinações pessoais e do que eles pretendem alcançar.
Embora existam aspectos tântricos em formas públicas de adoração tibetana, grande parte dos rituais tântricos deve ser realizada de modo privado, e seus detalhes são mantidos em segredo. De qualquer maneira, seja na adoração pública ou privada, uma característica comum a todas as formas de budismo tibetano é a encenação de crenças e valores com base em ações e textos esotéricos.
O termo zen e seu equivalente chinês, ch'an, significam simplesmente "meditação". Como tradição da prática budista, o zen é atribuído ao monge indiano Bodhidharma, que o levou à China em 520 d.C., sendo definido como "uma transmissão direta da consciência desperta, além da tradição e além das escrituras".
Essa definição ressalta o elemento central do zen: a busca da iluminação espontânea, como resultado do esvaziamento da mente, sem a necessidade de argumentos racionais, textos ou rituais. Em outras palavras, o zen cria as condições ideais para que a confusão mental, que impede a clareza da mente, seja substituída pelo insight direto.
O zen-budismo dá continuidade a uma tradição que remonta aos primeiros dias dos ensinamentos budistas. Reza a lenda que um dia, cercado pelos discípulos, Buda pegou uma flor e girou-a na mão, sem dizer nem uma palavra. Um dos discípulos. Kasyapa, sorriu. Ele havia entendido o que o mestre queria dizer. O insight silencioso foi transmitido de mestre para discípulo por 28 gerações, até chegar a Bodhidharma, que o levou para a China, de onde ele se espalhou para o Japão. Portanto, em vez de um produto do desenvolvimento das duas principais ramificações budistas (o budismo theravada e o budismo mahayana. p. 330), o zen-budismo considera-se uma religião de desenvolvimento independente.
A mentalidade de Buda
Uma ideia central no budismo é a de que a infelicidade existencial é causada pela ilusão de que cada pessoa tem um ego fixo, separado do resto do mundo, mas apegado a ele, tentando abarcar suas mudanças.
O zen-budismo chama isso de mente pequena e superficial, uma forma de pensar inata, influenciada mais tarde pelo meio. Segundo a tradição zen, contudo, as pessoas também nascem com uma "mente de Buda", livre do pensamento egocêntrico conceitual, mas essa mente é ofuscada pela confusão da mente pequena. O trabalho não é desenvolver uma mente de Buda, mas descobrir algo que já estava lá o tempo todo.
De acordo com o mestre zen- -budista Dogen, nossa verdadeira essência não é o ego superficial que temos agora, mas a "face original" que tínhamos antes de nascer. Só quando desenvolvemos nossas próprias "faces" é que nos vemos como entidades isoladas e egocêntricas. Dogen sugere, portanto, que procuremos reconhecer quem fomos antes de sermos condicionados pela vida e pela experiência.
O zen-budismo no Japão
O zen-budismo possui duas grandes vertentes: o zen rinzai e o zen soto. O zen rinzai foi estabelecido no Japão no século XII por Eisai e reformado no século xvin por Hakuin. Essa escola apresentou a visão zen de que o mundo é uma ilusão e de que a verdadeira realidade é uma simples e indivisível unidade. O zen-budismo não tem escrituras ou ensinamentos formais. É uma tradição oral de meditação, passada de mestre para discípulo daí a importância da prática somente sob a orientação de um mestre.
Uma característica fundamental do zen rinzai, introduzida por Hakuin, é a utilização de koans - perguntas irrespondíveis que desestruturam o pensamento convencional. Talvez o koan mais conhecido seja: "Qual o som de uma única mão batendo palma?". Quem julga saber a resposta de um koan deve pensar de novo e abrir mão de todas as ideias preconcebidas. A análise racional de um koan (ou um mondo, diálogo zen) dificilmente produzirá grandes insights, pois é fácil cair nos parâmetros do pensamento discursivo. Um mestre zen tomará o cuidado para que isso não aconteça.
Como resultado da prática zen, o indivíduo pode repentinamente atingir o estado de satori (insight ou iluminação). Esse estado não é uma condição permanente, mas uma experiência momentânea que pode se repetir muitas vezes. Acontece quase por acaso e não pode ser forçado, porque o desejo de atingir o satori é uma forma de apreensão. O zen não procura definir a realidade ou a natureza do satori.
O zen soto foi desenvolvido no Japão no século XIII pelo mestre Dogen, que tinha viajado para a China e encontrado uma tradição de meditação chamada ts'ong tung. Sua forma de meditação é muito diferente da meditação do zen rinzai. Em vez de tentar atingir a percepção de maneira repentina, o zen soto baseia-se na meditação sentada (zazen) e em um processo mais gradual de iluminação.
Segundo o zen-budismo soto, podemos prescindir das tradições e dos rituais religiosos. A iluminação pode ser alcançada pela prática do zazen, que consiste em sentar-se de pernas cruzadas de frente para uma parede branca por um tempo e depois caminhar de maneira contemplativa (uma técnica conhecida como "kinhin). Em meditação, a mente esvazia-se do fluxo de ideias, gerando iluminação. A pessoa não se senta para meditar com o objetivo de atingir a iluminação. No próprio ato de meditar, a pessoa já está iluminada. Iluminação é silenciar a mente e desfazer a ilusão de um ser à parte.
Além das palavras
Na meditação zen, o que vemos não pode ser descrito. A atenção cuidadosa à caligrafia ou ao ato de varrer areia num jardim — práticas comuns no zen-budismo — pode ajudar a mente a se libertar do constante processo de pensar, ajudando-nos a entrar em harmonia com a natureza. É por isso que o zen-budismo encontra expressão em diversas formas artísticas, desde arranjos de flores até design de computadores.
A prática zen está relacionada a criar situações que aumentem a percepção, sem tentar explicá-las racionalmente. Tentar descrever a meta do zen-budismo é uma contradição em si. O objetivo do zen é esvaziar o conteúdo da mente, que não faz parte dela. O zen não é um estudo, mas um exercício. E se atingirmos o satori ou iluminação, não conheceremos nada novo - tudo o que se sabe é que não é necessário saber tudo. Repleto de paradoxos propositais, o zen-budismo busca quebrar os processos normais do pensamento lógico.
Tentar descrever algo é uma forma de apego, e esse apego é o que Buda descreveu como a causa do sofrimento. Num mundo onde as pessoas desejam adquirir coisas, ter conhecimento e insight como bens pessoais, o zen é a frustração máxima. Colecionar artefatos zen jamais poderia resultar na compreensão do que existe por trás de sua produção. Zen é desapego.
Em alguns aspectos, o zen retoma a primeira fase do budismo, antes de imagens de budas e bodhisattvas, práticas devocionais e escrituras reverenciadas. A iluminação é para todo mundo. Aliás, todo mundo já está iluminado, só que não reconhece. O zen prescinde de quase tudo relacionado à religião e apresenta-se como um caminho de insight e compreensão, sem o aprisionamento religioso.
O zen-budismo também é deliberadamente anárquico, suas histórias, provocativas, e seus mestres, notoriamente provocadores. Conta-se que quando pediram a Bodhidharma para sintetizar a ideia do budismo, ele respondeu: "Um amplo vazio. Um nada sagrado". Não o que se esperava, mas bem preciso.
A aliança, ou pacto, de Deus ó o conceito central do judaísmo, remontando às crenças dos israelitas, um antigo povo do Oriente Médio. Os judeus, aliás, veem-se ligados a Deus por uma série de alianças. A aliança abraâmica foi a primeira, distinguindo os israelitas como o povo escolhido de Deus, enquanto as alianças mosaicas posteriores (mediadas por Moisés) reforçaram esse laço inicial.
Os israelitas, por vezes chamados de hebreus, eram um povo que ocupava parte de Canaã, a região equivalente à atual Palestina e Israel, provavelmente desde o século XV a.C. Por volta de 1200 a.C., num período em que essa parte do mundo estava sob domínio egípcio, o termo ‘'Israel" como povo foi mencionado numa inscrição pela primeira vez.
No século VI a.C., muitos israelitas foram obrigados a exilar-se na Babilônia. Durante esse período de exílio, grande parte da Bíblia hebraica, ou Bíblia judaica, foi composta. Ela relata a história do povo israelita, registrando a origem de suas crenças religiosas.
A primeira aliança
Como muitos povos do antigo Oriente Médio, os israelitas eram politeístas, mas cultuavam um “deus nacional”, que oferecia proteção especial para seu povo. Os judeus acabaram, mais tarde, considerando o nome de Deus muito sagrado para pronunciar e decidiram retirar as vogais originais, chegando ao nome Ynvti (provável pronúncia: "iavé"). yhvh também ficou conhecido por diversos outros nomes, como El e Elohim, que significam “Deus”.
De acordo com o Gênesis, o primeiro dos cinco livros da Torá (a primeira parte da Bíblia hebraica), foi por decreto dc Deus que os israelitas se estabeleceram em Canaã. Ele chamou um homem Abraão, nascido na cidade-estado mesopotâmica Ur (atual Iraque), e ordenou-lhe que viajasse para um lugar chamado Canaã, que deveria se tornar a terra israelita. A Torá conta que, em Canaã, Deus fez uma aliança com Abraão, similar a uma espécie de privilégio real que os reis da época concediam aos súditos leais. O pacto estipulava que, em recompensa à lealdade de Abraão, Deus lhe concederia muitos descendentes, os quais herdariam a terra. Como sinal do pacto, Abraão e todos os homens da casa fizeram circuncisão. Até hoje, os meninos judeus são circuncidados no oitavo dia de vida como sinal da aliança.
Abraão teve dois filhos, Ismael e Isaac. Deus abençoou Ismael, prometendo que ele se tornaria o pai de uma grande nação. Mas foi Isaac que Deus escolheu para dar continuidade à aliança do pai, aparecendo para ele diretamente. Isaac, por sua vez, transferiu a aliança ao filho Jacó, que foi batizado ‘‘Israel’’ por Deus e transferiu a aliança a todos os seus descendentes.
Abraão, Isaac e Jacó são conhecidos como os três patriarcas de Israel, porque representam as três primeiras gerações envolvidas na aliança com Deus.
A aliança no monte Sinai
A Torá conta que, quando a fome devastou a terra de Canaã, Jacó e os filhos migraram para o Egito, onde seus descendentes se tornaram escravos. Várias gerações depois, já com uma grande população israelita no Egito, Deus designou Moisés, um israelita criado na corte egípcia, para libertar o povo da escravidão e conduzi-lo de volta à terra de Canaã. A fuga dos israelitas do Egito (o êxodo) envolveu muitos milagres: Deus assolou os egípcios com pragas — entre elas a praga das úlceras e das águas do rio Nilo, que se converteram em sangue - e abriu o mar Vermelho para que os israelitas pudessem passar. Com esses milagres, Deus demonstrou seu poder e lealdade em relação à aliança estabelecida com os patriarcas.
Após libertar os israelitas do Egito, e antes de fazê-los entrar em Canaã, Deus conduziu-os a um monte chamado Sinai, ou Horebe. Moisés subiu ao monte Sinai para falar com Deus, e uma nova aliança entre Deus e o povo de Israel foi estabelecida: Deus salvaria os israelitas, que seriam seu "tesouro", caso eles observassem os mandamentos entregues a Moisés.
De acordo com a Torá, Deus pronunciou os mandamentos em voz alta, do alto do monte Sinai, coberto de fogo e nuvens, enquanto todo o povo de Israel ouvia lá de baixo. Segundo a tradição, esses mandamentos foram escritos diretos por Deus em duas tábuas de pedra que Moisés trouxe do monte, embora a Torá não seja totalmente clara em relação a esse ponto. Moisés, decepcionado, quebrou as tábuas quando viu que os israelitas haviam construído um deus falso — um bezerro de ouro — em sua ausência e voltou ao monte Sinai para receber mais duas tábuas, que foram colocadas numa arca de ouro chamada a Arca da Aliança. A arca tinha aduelas para que pudesse ser carregada pelos israelitas em seu caminho a Canaã.
Os mandamentos
Os mandamentos mais famosos da aliança no Sinai são os "Dez Mandamentos", ou decálogo, que abrangem as principais regras da aliança de Israel. Os mandamentos proíbem a adoração a outros deuses ou a representação gráfica de Deus, requerem que os israelitas guardem um dia sagrado de descanso na semana, o Shabat, e proíbem certas ações, como matar e cometer adultério.
Além do decálogo, a Torá inclui inúmeras leis que Deus teria transmitido indiretamente aos israelitas por Moisés, tanto no Sinai quanto em outras ocasiões. Essas leis também fazem parte da aliança. De acordo com o cálculo do Talmud (a Interpretação rabínica da lei judaica), existem 613 preceitos na Torá, referentes a diversos aspectos da vida dos israelitas em Canaã. Alguns representam o que consideraríamos leis civis, com sistemas de governo, regulamentações relacionadas a disputas de propriedade e diretrizes referentes a casos de roubo e assassinato, entre outros assuntos. Outros se relacionam à construção de um santuário para rezar a Deus e oferecer sacrifícios, realizados por uma classe sacerdotal hereditária. Outros, ainda, direcionam o comportamento dos israelitas, instruindo-os em relação ao que se pode comer, com quem se pode casar e como tratar os semelhantes com dignidade humana. De um modo geral, o objetivo dos preceitos era estabelecer uma sociedade justa, de acordo com os padrões da época, que se destacasse no serviço divino.
O último livro da Torá, Deuteronômio, descreve uma terceira aliança entre Deus e Israel, estabelecida na terra de Moab (atual Jordânia) antes de os israelitas entrarem em Canaã. Está escrito que Deus ordenou a Moisés que ele fizesse esse pacto adicional com o povo de Israel. O livro de Deuteronômio é o discurso final de Moisés, que morreria antes de chegar à terra prometida. Moisés lembra o momento de salvação, transmite mais mandamentos recebidos no monte Sinai e promete que Deus abençoará os israelitas se eles obedecerem aos preceitos. Caso contrário, o povo será amaldiçoado. A aliança em Moab reafirma a lealdade dos israelitas em relação a Deus e seus mandamentos.
A aliança na prática
Em princípio, os judeus tradicionais consideram as leis da Torá irrevogáveis. No entanto, os preceitos foram sujeitos a séculos de interpretação, e muitos já não se aplicam na prática. Certas leis referentes à soberania dos reis, por exemplo, perderam o sentido após a queda da monarquia no século vi a.C., e os sacrifícios não são realizados desde a destruição do templo em Jerusalém pelos romanos, em 70 d.C. Além disso, muitas das leis da Torá estão vinculadas à agricultura, sendo consideradas obrigatórias só em Israel. Atualmente, os judeus lidam com os preceitos e suas interpretações das maneiras mais diversas. Os judeus tradicionais observam o Shabat, as festas e leis de kashrut (leis relacionadas à alimentação, como evitar certas carnes e não misturar carne com leite), entre outras. Para muitos judeus modernos, porém, as leis essenciais são as relacionadas à ideia de amar ao próximo como a si mesmo. Judeus progressistas costumam citar uma frase atribuída a Rabi Hillel, o Ancião, sobre a regra de ouro: "Não faça com os outros o que você não gostaria que fizessem com você. Essa é a essência da Torá. O resto é comentário”.
A terra prometida
Em sua aliança com Abraão, Deus concedeu a terra de Canaã aos descendentes do patriarca como uma dádiva inviolável. No entanto, em diversos trechos da Bíblia, está escrito que a propriedade da terra por parte dos israelitas está condicionada à observância dos preceitos. Essa condicionalidade explicaria por que os israelitas acabaram sendo derrotados pelos inimigos e exilados de sua terra. Algumas partes da Torá incluem o exílio entre as maldições que se abateriam sobre os israelitas caso eles violassem os pactos feito no monte Sinai e em Moab. Muitos estudiosos atuais acreditam que essas passagens foram escritas em resposta a esses eventos.
Ao mesmo tempo, a Torá afirma que Deus nunca abandonou a aliança com os patriarcas. No exilio, os israelitas tiveram a oportunidade de se arrepender, e Deus os conduziu de volta à terra, fazendo valer o pacto com Abraão. Desse modo, a promessa da terra, embora condicional, é eterna. Os israelitas podem perder a terra por um tempo devido aos pecados que cometeram, mas não devem perder a esperança de voltar.
O "povo escolhido"
A Torá não dá muitas explicações sobre por que Deus escolheu os patriarcas e seus descendentes, mas ressalta que, em virtude da aliança estabelecida, os israelitas foram privilegiados em relação às outras nações. Os autores da Bíblia não consideram o povo israelita inerentemente superior a outros povos ao contrário, o povo é descrito como pecador e indigno -, mas reconhecem sua condição de especial. Como os judeus acreditam que seu deus é o Deus que governa todo o mundo, seu status de nação escolhida assumiu uma importância ainda maior.
Ao longo de toda a história, os judeus se perguntaram por que Deus os escolheu e quais as implicações dessa escolha em seu lugar no mundo. Antigos sábios afirmam que não foi Deus quem escolheu Israel, mas os israelitas é que escolheram Deus. Segundo a tradição, Deus ofereceu os mandamentos a todas as nações da Terra, mas só Israel aceitou. Todas as outras nações consideraram o fardo pesado demais. De acordo com essa visão, o status dos israelitas não é resultado de uma escolha divina, mas produto do livre-arbítrio. Ao mesmo tempo, essa visão parece negar a liberdade de escolha, uma vez que os indivíduos são responsabilizados pelas decisões de seus ancestrais.
Algumas tradições do misticismo judaico, da época da Idade Média, sugerem uma perspectiva diferente, afirmando que as almas dos judeus foram escolhidas no momento da criação, sendo superiores às almas dos não judeus. No entanto, grandes pensadores das principais vertentes do judaísmo (ortodoxo moderno, conservador e reformista) rejeitam veementemente qualquer diferenciação entre a essência de um judeu e um não judeu. Os pensadores do judaísmo moderno costumam ver a aliança como um ato de imposição aos judeus, que devem viver de acordo com a vontade de Deus e transmitir sua verdade para o mundo. Alguns afirmam que Israel não é a única nação escolhida por Deus e que outros povos devem ter sido escolhidos para cumprir outras missões. Judeus liberais rejeitam a ideia de "povo escolhido", uma vez que ela pressupõe superioridade em relação a outros povos, estimulando o etnocentrismo.
Fazendo parte da aliança
O judaísmo tradicional sustenta que o status na aliança é transmitido de mãe para filho. Portanto, o filho de uma mãe judia é automaticamente judeu e obrigado a cumprir os preceitos. Esse status herdado não se perde. Um judeu que não observa os preceitos está violando a aliança, mas não deixa de ser judeu. Por outro lado, um não judeu pode se tornar judeu por meio da conversão. De acordo com a lei rabínica, um convertido ao judaísmo deve aceitar os preceitos judaicos e realizar um banho de imersão, conhecido como mikve (no caso dos homens, é necessário também fazer circuncisão). A partir da conversão, o indivíduo assume todos os direitos e deveres de um judeu.
Tradicionalmente, a conversão ao judaísmo envolvia um estrito regime de observância. Hoje, o judaísmo progressista enfatiza a autonomia individual para determinar quem é judeu e quais as suas obrigações. Tanto no judaísmo reformista americano quanto no judaísmo liberal britânico, os filhos de pais judeus com mães não judias são considerados judeus se eles se identificarem como tal, sem necessidade de conversão. A despeito das diversas crenças e práticas, o conceito de aliança continua sendo fundamental nas diversas correntes do judaísmo. A aliança representa e define o propósito de um judeu no mundo, ligando-o a seu povo ao longo da história e a seu Deus.
Os primeiros autores da Bíblia judaica parecem reconhecer a existência de vários deuses, mas insistem na soberania do chamado YHVH, o único deus que os israelitas deviam reverenciar. Em algum momento do período bíblico, então, o povo judeu abandonou a reverência exclusiva a um único deus entre muitos (monolatria) e passou a acreditar na existência de um só deus (monoteísmo).
A supremacia de YHVH
Além da visão dos autores da Bíblia, evidências arqueológicas sugerem que os antigos israelitas reverenciavam diversos deuses locais. Os profetas do deus YHVH, cujos escritos compõem grande parte da Bíblia, censuraram severamente o povo por essa prática. Não se sabe ao certo se os profetas eram todos verdadeiramente monoteístas, mas eles acreditavam no poder e na supremacia de YHVH sobre todas a nações.
Em 722 a.C., os assírios conquistaram o Reino de Israel e expulsaram o povo. Cerca de 130 anos depois, os babilônios conquistaram o território sul do povo judeu, conhecido como Reino de Judá. No Oriente Médio, conquistas como essas eram interpretadas como vitórias do deus do povo vitorioso sobre o povo derrotado, de modo que a supremacia de YнVн parecia ameaçada. Os profetas, no entanto, afirmaram que aqueles acontecimentos, na verdade, eram obra de YнVн: ele estava usando as outras nações para punir os israelitas por violarem a aliança divina (pp. 168-175).
Nenhum Deus além de YHVH
Os judeus voltaram do exílio na Babilônia para sua terra natal em 538 a.C., sob decreto de Ciro, o Grande, imperador da Pérsia, onde a religião zoroastrista predominava.
Mais ou menos nessa época, surgiu a primeira articulação clara do monoteísmo na Bíblia, num livro conhecido como o "Livro de Isaias" O texto enfatizava que YHVH criou e governa o mundo sozinho. A restauração de Israel é um sinal do controle de YHVH sobre a história, tanto transcendente quanto pessoal: ele determina as ações dos reis, mas também conduz seu povo à salvação, como um pastor conduzindo seu rebanho.
O problema do mal
O monoteísmo suscita o "problema do mal", ou seja, se há apenas um Deus justo e misericordioso conforme está escrito na Bíblia, como ele pode presidir um mundo onde os justos sofrem? Este é o tema do livro de Jó. O livro conta a história de um homem justo que questiona Deus pelo terrível infortúnio de sua vida. A resposta de Deus dá a entender que não existe resposta: o ser humano é incapaz de compreender seus desígnios.
Ao longo de grande parte de sua história escrita, o povo de Israel esteve sob o domínio de reis. Um ritual conhecido como "unção", em que se despejava óleo sobre a cabeça do monarca, funcionava como uma espécie de coroação e servia para indicar a escolha de Deus. O rei escolhido era chamado de “o ungido”, ou "Messias" (do hebraico, mashiacti). Originalmente, o termo "Messias” era usado para o líder ungido, mas com o tempo passou a se referir a um soberano específico que chegaria no futuro para salvar Israel de seus inimigos, marcando o início de uma era de ouro — a era messiânica. A tradição judaica apresenta muitas especulações sobre os acontecimentos que caracterizarão a era messiânica, mas a maioria acredita que será um período de irmandade entre os povos e glória na Terra, em que os milagres serão algo corriqueiro, as espadas se transformarão em arados e os carneiros conviverão com os lobos.
Algumas tradições afirmaram que o Messias será um rei de came e osso (com forte ligação divina), outras, que será um ser celestial, designado para salvar o mundo desde antes da própria criação. Da mesma forma, uma série de tradições considera a era messiânica como parte do curso natural da história, enquanto para outras será uma era de milagres, em que o espírito de Deus governará sobre a Terra.
Um Messias da linhagem de Davi
Um dos primeiros reis da monarquia de Israel e Judá foi um homem chamado Davi, que governou entre 1005 e 965 a.C., aproximadamente. De acordo com a Bíblia, Davi foi uma peça fundamental na união do povo de Israel e na luta contra os filisteus. A Bíblia conta que Deus amava Davi como um "filho" e estabeleceu uma aliança com ele, prometendo-lhe que seus descendentes reinariam sobre Israel para sempre.
No entanto, os babilônios conquistaram Judá em 586 a.C., expulsando a maioria dos habitantes e destruindo o templo. A dinastia de Davi chegava ao fim. A derrubada do trono pode levar a crer que Deus desfez a aliança com Davi. O povo de Judá, entretanto, manteve a esperança de que, em algum momento no futuro, um descendente de Davi reinaria sobre Israel como Messias de Deus.
A previsão dos profetas
Mesmo antes da queda da monarquia, alguns profetas de Israel previram que um rei descendente de Davi uniria os dois reinos e os salvaria dos inimigos. Embora essas profecias tenham sido escritas em diferentes momentos e algumas se refiram a reis específicos, gerações posteriores interpretaram-nas como uma previsão de um futuro Messias. Após a conquista babilônica, os profetas afirmaram que o povo retornaria à sua terra natal e reconstruiria o templo. Alguns previram que, um dia, as nações do mundo reconheceriam o Deus de Israel e o reverenciariam em Jerusalém. Essas visões de um futuro glorioso, porém, não eram incondicionais. Os profetas acreditavam que os infortúnios de Israel representavam uma punição de Deus pelos pecados do povo e de seus líderes, e que a futura restauração só seria possível se Israel se arrependesse.
Domínio estrangeiro
As visões dos profetas concretizaram-se em parte. O rei persa Ciro, o Grande, derrotou os babilônios, permitindo que muitos judeus regressassem à terra natal e reconstruíssem o templo. Aliás, Ciro é chamado na Bíblia de "o ungido de Deus". No entanto, à repatriação dos judeus seguiu-se um longo período de domínio de forças estrangeiras, entre elas os Impérios grego e romano. Durante essa época, os judeus voltaram-se mais uma vez para as profecias bíblicas sobre o Messias e uma era de restauração nacional.
Os judeus basearam-se em tradições proféticas que previam uma grande batalha entre as forças do bem e do mal, na qual Deus sairia triunfante e os pecadores seriam punidos. Obras apocalípticas judaicas desse período, entre elas os Pergaminhos do Mar Morto, oferecem descrições detalhadas dessa batalha e das decorrentes pragas e atribulações que precederiam a chegada do Messias: enchentes, terremotos, o escurecimento do Sol e da Lua e o desaparecimento das estrelas do céu. Todos esses acontecimentos passaram a ser conhecidos como "as dores do parto do Messias", uma vez que, apesar de toda a agonia que causariam, representavam apenas um prenúncio da era messiânica, em que todo o mal seria banido da Terra, a soberania de impérios opressivos terminaria e as pessoas poderiam viver em liberdade, num mundo sem crimes.
A chegada do Messias
Ao longo de toda a história, vários indivíduos excepcionais foram considerados o Messias. Um exemplo é Jesus de Nazaré, conhecido por seus seguidores como "Cristo", palavra em grego que significa "messias". Os seguidores de Jesus, os chamados "cristãos", continuaram acreditando que ele era o Messias após sua execução pelos romanos, mas a maioria dos judeus rejeita essa ideia.
Outro candidato a Messias foi Shimon bar Kochba, judeu que liderou uma revolta contra os romanos em 132 d.C. A rebelião foi um fracasso, pondo fim à vida judaica em Jerusalém e arredores. Os judeus que não foram mortos dispersaram-se pelo Império Romano, e muitos foram vendidos como escravos.
O fracasso dessa e de outras rebeliões contra o Império Romano e mais uma vez a perda do centro religioso judaico em Jerusalém chamaram a atenção para as profecias do exílio babilônico.
Ressurreição e vida após a morte
Originalmente, algumas tradições consideravam a era messiânica como um período de restauração nacional, em que Israel seria redimido e seus opressores, exterminados. Mais tarde, porém, passou-se a acreditar que a era messiânica seria um período de julgamento para todas as pessoas, vivas ou mortas, em que os justos serão recompensados e os maus, punidos.
A Bíblia hebraica fala pouco sobre a vida após a morte. A maioria dos primeiros autores bíblicos compartilha da ideia de que os mortos continuavam vivendo no mundo subterrâneo, mas oferece poucos detalhes a respeito. Muitos judeus passaram a acreditar que o destino de uma pessoa depende, em última instância, de sua conduta na vida. Alguns afirmaram que os justos continuam vivendo no Paraíso, enquanto os maus vão para um lugar de tormentos chamado Geena (Guehinom, em hebraico, traduzido como "inferno"). Outros focam no julgamento final da era messiânica, quando os mortos ressuscitarão. Ambas as ideias continuam presentes na crença judaica, e tanto a era messiânica quanto a vida após a morte são chamadas, geralmente, de "mundo vindouro".
O messianismo judaico atual
Dentro do judaísmo ortodoxo, a promessa da redenção messiânica continua sendo uma ideia central. Muitos líderes afirmam que se os judeus, como grupo, aceitarem Deus e obedecerem a seus mandamentos, é possível apressar a chegada do Messias. No entanto, a ideia de um Messias redentor tinha mais apelo no período de opressão do povo. Hoje, com a relativa liberdade dos judeus no mundo, o senso de urgência pela salvação diminuiu. O movimento reformista, em especial, rejeitou as ideias de um rei messiânico, a volta dos judeus à terra natal e a reconstrução do templo, embora aspectos dessas crenças tenham sido reavaliados ao longo do tempo. A única característica do messianismo que permaneceu central em todas as ramificações do judaísmo é a crença de que a humanidade — sobretudo o povo judeu — tem a capacidade de criar um futuro melhor por meio de ações corretas.
De acordo com a tradição judaica. Deus entregou a Moisés um conjunto de leis e ensinamentos, que ele transmitiu ao povo de Israel (pp. 168-175). Muitos desses ensinamentos estão nos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, a Torá, mas alguns judeus acreditam que Moisés recebeu ensinamentos adicionais (transmitidos oralmente aos líderes da comunidade e, depois, de geração em geração), a chamada "lei oral", com detalhes e interpretações das leis bíblicas.
A partir do século II d.C., os rabis ("estudiosos" ou "mestres") começaram a registrar a lei oral, produzindo um enorme corpo de literatura. Muitos desses escritos estão reunidos num conjunto de livros chamado Talmud, que para os judeus praticantes é o texto mais importante depois da Bíblia.
Parte da importância da lei oral deve-se ao fato de que as leis bíblicas costumam ser ambíguas. Por exemplo, a Bíblia proíbe o trabalho no Shabat, mas não explica que tipo de trabalho. O Talmud resolve essa ambiguidade especificando 39 tipos de atividades proibidas (entre elas construir, cozinhar e escrever).
Além do registro das leis transmitidas a Moisés, o Talmud inclui longas discussões entre os rabis referentes à interpretação. Essas discussões também são consideradas parte da lei oral, porque havia permissão para interpretar as leis.
Os primeiros escritos, a Mishná, contêm as leis, e a Guemará consiste em discussões sobre essas leis. O Talmud, portanto, pode ser lido como uma série de conversas entre os sábios.
Aceitação do Talmud
O conceito de uma lei oral não foi aceito universalmente pelos judeus. Antes do Talmud, a doutrina da lei oral era promulgada por um grupo de judeus chamados fariseus. Dois outros grupos, porém, os caraitas e os saduceus, rejeitaram essa doutrina. Os caraítas surgiram por volta do século VIII em Bagdá c, ao contrário dos saduceus, ainda existem. Com tradições próprias para interpretar a Bíblia, o grupo não acredita em nenhum outro ensinamento além dos que constam do texto bíblico. Outras vertentes do judaísmo, porém, aceitam o Talmud como um texto sagrado. e os judeus ortodoxos atribuem sua origem à lei oral entregue a Moisés por Deus. Os judeus modernos, de um modo geral, não levam essa ideia à risca, considerando o Talmud como parte de uma tradição viva de preservação e interpretação das leis judaicas para cada geração que incentiva o debate teológico.
Desde os tempos bíblicos, uma característica central do judaísmo é a à crença em um só Deus. No entanto, a ideia de que Deus é "um" pode ser entendida de várias maneiras: Deus pode ser o maior de diversos seres divinos ou Deus pode ser um único ser composto de diversos elementos distintos. Na Idade Média, uma série de filósofos judeus na esfera de influência muçulmana procurou demonstrar que a unicidade de Deus propriamente dita excluía todas essas possibilidades.
Moisés Maimônides foi um filósofo bastante influente dessa escola, explicando o princípio judaico do monoteísmo com base na doutrina filosófica grega clássica de que Deus é "simples", ou seja, não é composto por partes ou propriedades.
A unicidade de Deus, de acordo com Maimônides, é diferente da unicidade de qualquer outro ser. Deus é uma entidade singular, indivisível, além da capacidade de compreensão e descrição humana, não comportando, portanto, atributos específicos.
Deus não pode ser categorizado
Segundo Maimônides, Deus não é "um de uma espécie" — ele não é membro de um grupo de seres com determinadas características em comum. Três homens, por exemplo, são indivíduos diferentes, mas pertencem à categoria masculina. Deus, em contrapartida, não tem atributos e, portanto, não pode ser categorizado, mesmo entre seres divinos.
A unicidade de Deus também difere da unicidade divisível do corpo. Ou seja, Deus não é como um objeto físico, capaz de ser decomposto em partes. Maimônides, porém, foi mais longe, afirmando que Deus é também intelectualmente indivisível. Deus não comporta nenhum atributo (conforme deânido por Aristóteles), pois consistiria, então, em uma essência e seus atributos. Por exemplo: se Deus fosse "eterno", haveria, na verdade, dois deuses: Deus e sua eternidade.
A crença de Maimônides de que Deus não possui atributos é produto de uma escola de pensamento chamada "teologia negativa". Segundo essa escola, Deus não pode ser descrito de maneira precisa com afirmações. Devido às limitações da linguagem humana, podemos descrever Deus como "eterno", mas na verdade só podemos afirmar que Deus não é não eterno, isto é, sua essência está além de nossa compreensão. Maimônides incluiu a doutrina da unicidade de Deus nos treze princípios essenciais do judaísmo, que também abordam questões como o tempo de existência de Deus e sustentam que a Torá vem direto da boca de Deus. Muitos consideram esses princípios como a base da religião judaica.
Os textos do judaísmo incluem, além da Bíblia hebraica (p. 171) e do Talmud (um compêndio de interpretações rabínicas), um corpo de conhecimento místico conhecido como cabala. Originalmente uma tradição oral, essa sabedoria foi reunida no Zohar ("esplendor divino") no final do século XIII, na Espanha. O Zohar e suas ideias cabalísticas adquiriram um significado especial para os judeus exilados sobretudo os estudiosos de Safed, na Palestina, que foram expulsos da península Ibérica (atual região de Espanha, Portugal e Andorra) na década de 1490. Entre eles estava o mestre Isaac Luria, que interpretou o Zohar dando uma descrição única da criação, vinculada à experiência dos judeus no exílio. Luria explicou também os conceitos de bem e mal e o caminho para a redenção.
Na interpretação de Luria, antes da criação existia somente Deus. De modo a gerar espaço para a criação do mundo, Deus contraiu-se ou retirou-se (tzimtzum), como forma de exilio voluntário para possibilitar a criação. Uma luz divina preencheu o espaço criado numa estrutura de dez sefirot emanações dos atributos divinos de Deus. Adam Kadmon ("o homem primordial") formou receptores para conter as sefirot, mas os receptores eram frágeis demais para suportar a luz divina. Os três superiores foram danificados e os sete inferiores, totalmente destruídos, dispersando a luz. Essa destruição dos receptores (conhecida como shevirat hakelim ou shevirah) prejudicou o processo da criação e dividiu o universo em elementos que contribuem para a criação e em elementos que resistem: bem e mal e os mundos superior e inferior.
Esse dano pode ser reparado, explica Luria, separando as "faíscas sagradas" de luz divina, às quais as forças do mal do mundo inferior se aderem, e elevando-as à sua fonte no mundo superior, num processo chamado tikun olam — correção do mundo. A responsabilidade disso está nas mãos do povo judeu, que resgata uma faísca de luz toda vez que obedece a um preceito sagrado e perde uma faísca para o mal universal toda vez que comete um pecado. A redenção só poderá acontecer quando todas as faíscas divinas forem reunidas no mundo do bem. Até lá, a humanidade viverá em exílio cósmico.
Embora Luria não tenha deixado um registro de sua interpretação da cabala, seus ensinamentos esotéricos foram preservados por seus discípulos. Após sua morte, suas ideias espalharam-se rapidamente por toda a Europa. Por conta da natureza abrangente da cabala luriânica, o estudo cabalístico tornou-se um dos esteios do pensamento judaico, servindo de base para o movimento hassidico do século XVII, que enfatizava, sobretudo, o relacionamento místico com Deus.
O judaísmo hassídico, fundado por Israel ben Eliezer, conhecido como Baal Shem Tov ou Besht) na década de 1740, caracteriza-se pelo entusiasmo e por rituais de alegria em massa, realizados por um líder espiritual (tzadik). Um de seus principais ensinamentos é que todo mundo possui uma faísca divina dentro de si. Hoje, o hassidismo representa uma das mais importantes ramificações do judaísmo ultraortodoxo.
O movimento hassídico surgiu nas comunidades judaicas da Europa Central e Oriental no século XVII. Essas comunidades, de modo geral, eram pequenas e isoladas, e seu estilo de vida diferia muito do dos judeus das cidades. Na época, a filosofia judaica havia adquirido um caráter mais intelectual, e a teologia, um mais legalista. Esse desenvolvimento entrou em conflito com as necessidades dos habitantes de pequenos povoados, principalmente em áreas com o sul da Polônia.
Para manter a coesão nessas comunidades, sobretudo em face da perseguição pelos cossacos (povo eslavo do Leste), líderes religiosos viajavam oferecendo aos seguidores não apenas orientação, mas também a oportunidade de participar mais ativamente das observâncias religiosas Em locais onde as pessoas não tinham acesso a ensinamentos rabínicos, líderes carismáticos como Baal Shem Tov ensinaram que a Torá não era privilégio dos rabis. O aprendizado espiritual estava disponível para todos: as "faíscas sagradas" — uma manifestação da luz divina —, conforme descrito na tradição mística da cabala luriânica, podem ser encontradas dentro de cada um de nós.
Na esteira do iluminismo na Europa, o movimento haskalá, ou "iluminismo judaico", foi inspirado pelo trabalho do filósofo judeu alemão Moisés Mendelssohn, que acreditava que a perseguição dos judeus devia-se, em grande parte, ao isolamento do próprio povo na sociedade.
Sua crítica à separação dos judeus e gentios (não judeus) também levantou a questão da identidade judaica. Segundo Mendelssohn, o judaísmo devia ser tratado como qualquer outra religião numa sociedade tolerante e pluralista, e seus seguidores deveriam ter direito à liberdade de consciência como cidadãos do país onde viviam. Por outro lado, ser judeu não deveria significar pertencer a uma nação ou povo isolado.
No livro Jerusalém: ou sobre poder religioso e judaísmo (1783), Mendelssohn defendia não só a emancipação dos judeus, mas afirmava que eles deveriam "sair dos guetos" e desempenhar uma unção mais ativa na vida cultural secular. O filósofo promoveu a ideia de os judeus aprenderem a língua local — como ele tinha feito — para se integrarem melhor às comunidades não judaicas, e publicou sua própria tradução da Torá para o alemão.
Embora Mendelssohn fosse um judeu ortodoxo, suas ideias e o movimento haskalá serviram de base para o judaísmo reformista do século XIX.
A emancipação judaica na Europa começou na Alemanha no século XVIII. Anteriormente, os judeus viviam restritos em guetos, sem permissão para entrar em universidades ou no mercado de trabalho. Graças ao Iluminismo europeu, passaram a ter direitos de cidadão. Os judeus que falavam iídiche aprenderam alemão e integraram-se ao mundo moderno, sentindo a liberdade da individualidade. Muitos judeus começaram a procurar educação secular em vez de tradição judaica — como forma de alcançar seu potencial. O judaísmo progressista, que se iniciou com o movimento reformista na Alemanha, foi uma resposta a essas mudanças, à modernidade e à nova condição de liberdade do povo judeu.
As primeiras e mais notáveis reformas aconteceram em Berlim e Hamburgo e estavam relacionadas ao serviço na sinagoga: a prédica seria dada em alemão, e os homens não precisavam mais sentar separados das mulheres. Em um nível mais radical, o impacto do estudo bíblico moderno levou alguns judeus a questionar a autoridade dos textos bíblicos e das tradições que os mantiveram tanto tempo isolados da sociedade. A autoridade dos rabis clássicos era uma função datada e também foi questionada.
Alguns, diante dessa nova visão e das oportunidades decorrentes da novidade, abandonaram o judaísmo em prol do nacionalismo secular. Outros procuraram modernizar o judaísmo à luz do estudo histórico e acadêmico da religião (Wissenschaft des Judentums). O ritmo da mudança foi rápido demais para algumas pessoas, e diversos grupos separaram-se da comunidade, talvez para seguirem um rabino mais ortodoxo.
Questionando a teologia
A inovação tecnológica acarretou uma reforma litúrgica e a publicação de um novo livro de rezas reformista em Hamburgo no ano de 1818. Estudiosos e rabinos, como Abraham Geiger, começaram a questionar as principais premissas teológicas da época. Geiger reconheceu os precedentes históricos para modificar a tradição judaica perante a novas condições e sugeriu que algumas observâncias fossem alteradas, para torná-las compatíveis com o estilo de vida moderno.
Parte da teologia tradicional do judaísmo também foi abandonada. Os reformistas alemães já não se sentiam à vontade rezando para um Messias humano que viria para conduzir o povo de volta à terra de Israel, reconstruir o templo e restaurar o culto sacrificial dos sacerdotes. A noção de Messias foi substituída pelo ideal da era messiânica — uma era de paz para todas as nações do planeta — que todo judeu se esforçaria para criar. Havia ainda uma visão mais ousada: a de que os judeus não estavam mais no exílio, sendo capazes de cumprir seu destino religioso como cidadãos de uma nação moderna.
Mas o sonho durou pouco. Para muitos, a integração social significou conversão ao cristianismo, e o Holocausto da Alemanha nazista, junto com a Segunda Guerra Mundial, demarcou os limites da esperança de uma sociedade iluminada.
Autonomia religiosa
Há uma tensão no judaísmo progressista, como em outras vertentes religiosas, entre fazer parte de uma nação e uma comunidade (universalismo) e ter um destino único (particularismo). A diferença para os judeus progressistas é o foco na autonomia - a liberdade de determinar como será sua vida dentro do judaísmo. Segundo o judaísmo progressista, para exercer uma autonomia responsável é necessário fazer escolhas com base na ética, na educação judaica e no compromisso com o povo judeu, reverenciando o passado e comprometendo-se com o futuro. As teologias judaicas continuam desenvolvendo-se. Embora o monoteísmo ainda seja um princípio central da religião, no judaísmo progressista a ideia de um Deus "autoritário" é substituída pela de um relacionamento com Deus, no qual os judeus podem exercitar sua liberdade individual. As mitzvot, ou preceitos, são expressões desse relacionamento.
O conceito de monismo
Outro grupo de pensadores progressistas acredita que Deus é uma parte inseparável do ser, em vez de uma divindade externa. Alguns incorporaram a visão dos místicos judeus, que veem a criação como algo que acontece dentro de Deus, o que significa que tudo é Deus. O monoteísmo, ou a crença em um só deus, dá lugar ao monismo, sistema segundo o qual existe apenas uma única unidade, e essa unidade é Deus. Devido a essas transformações teológicas dentro do judaísmo progressista, o papel do indivíduo e dos preceitos não pode mais ser visto como algo fixo. Além da nova relação estabelecida entre o indivíduo, Deus e os preceitos, os judeus do movimento progressista também revisaram as interpretações da Bíblia hebraica, passando a considerá-la como um conjunto de textos de diferentes períodos históricos um registro escrito do encontro humano com Deus, não o registro das palavras diretas de Deus. Como as intenções de Deus não estão vinculadas a um momento específico, a revelação pode ser considerada contínua.
De modo similar, o judaísmo progressista reconhece a influência da história e da mão humana no desenvolvimento da lei judaica (halachá), que se baseia nos preceitos bíblicos e nos veredictos dos rabinos clássicos. A halachá sofreu transformações tanto no judaísmo progressista quanto no judaísmo ortodoxo. Uma vertente progressista considera que a halachá está em constante processo de adaptação para responder às questões éticas e práticas do mundo judaico contemporâneo Essa visão leva em conta os desenvolvimentos científicos modernos, como as pesquisas com células-tronco, e é fortemente orientada pela ética atual, abordando temas como cuidados no final da vida. Outros progressistas descrevem um judaísmo pós-halachá, associado mais com a visão dos antigos profetas hebreus e com um judaísmo profético orientado pela ética.
Rituais e observâncias
Abordagens modernas à prática de rituais também refletem a ideia de uma constante evolução do judaísmo, estipulando que a autoridade divina não se restringe à Torá. O Shabat, por exemplo, é considerado um dia sagrado de descanso, diferente dos dias de trabalho da semana. Os judeus progressistas respeitam o Shabat e acendem velas na sexta- -feira à noite, embora nem todos façam isso antes do pôr do sol, se estiver anoitecendo muito cedo. Os progressistas também rejeitam a proibição de dirigir para a sinagoga no Shabat
Leis referentes à alimentação
Em questões de kashrut (lei dietética), alguns judeus progressistas não respeitam nenhuma regra, afirmando que são preceitos ultrapassados, enquanto outros evitam comer carnes proibidas na Torá, mas não dão importância a proibições rabínicas relacionadas à mistura de carne com leite e aos utensílios utilizados na preparação dos alimentos. Alguns consideram a disciplina de kashrut como uma forma de consciência ao comer, estendendo a prática ao consumo de produtos orgânicos, por exemplo. Outros optam pelo vegetarianismo como uma dieta "válida" (significado da palavra kasher em hebraico), que seria, portanto, uma forma progressista de manter a observância.
Liturgia para o mundo de hoje
Historicamente, a liturgia judaica foi ficando mais longa no decorrer dos séculos, com a inclusão de novas rezas. Os serviços progressistas mantêm a mesma estrutura e as principais rezas, mas elimina algumas repetições. As rezas, e suas traduções, refletem conceitos que não estão em consonância com as crenças progressistas, como a ressurreição dos mortos, a reconstrução do templo e o sacrifício de animais. Grande parte das liturgias progressistas evita a linguagem feudal e a diferenciação de sexo, tanto para Deus quanto para a comunidade, referindo-se, por exemplo, ao "Eterno" em vez de o "Senhor", e incluindo as matriarcas bíblicas ao lado dos patriarcas. Novas composições litúrgicas às vezes são adicionadas, como um poema ou rezas de cunho inter-religioso, e um trecho curto da Torá costuma ser lido. Em muitas congregações, os serviços são realizados em hebraico, e na língua vernácula, geralmente acompanhados de música. Os judeus progressistas observam as festividades apresentadas na Torá da mesma forma que os judeus que moram em Israel, ao contrário dos judeus ortodoxos e conservadores da diáspora, que comemoram um dia a mais, conforme o costume fora de Israel antes da instituição do calendário hebraico, em 358 d.C.
Em comunidades progressistas, homens e mulheres gozam dos mesmos direitos de liderança (incluindo a ordenação rabínica) e vida ritualística, seja em casa ou na sinagoga. As meninas, portanto, celebram a idade adulta aos treze anos no bat mitzvah exatamente como os meninos, lendo a Torá e até liderando a reza da congregação.
O judaísmo progressista atual
Os ideais centrais do judaísmo reformista alemão lançaram raízes e promoveram o crescimento de muitas comunidades progressistas, presentes na maioria dos países do mundo atualmente. No Reino Unido, surgiram o judaísmo reformista e o judaísmo liberal, e, com a emigração dos judeus alemães para os Estados Unidos, o movimento reformista nesse país deu origem a outros grupos progressistas, como o judaísmo reconstrucionista e o judaísmo conservador, modernos em termos teológicos, mas tradicionais em termos práticos. Podemos encontrar outras formas de judaísmo progressista no mundo inteiro, inclusive em Israel, onde a religião tende a tomar uma forma mais tradicional do que nos países da diáspora.
Um novo interesse mundial nos ensinamentos judaicos de todos os âmbitos religiosos tem levado as pessoas a se dedicarem ao estudo de textos clássicos em hebraico por seu valor espiritual, literário e ético. Os seguidores do judaísmo atual baseiam-se em fontes religiosas e seculares diversas, dificultando o compromisso exclusivo com algum movimento judaico específico.
Desde que foram expulsos de sua terra natal por babilônios e romanos, muitos judeus da diáspora sonharam em voltar para Eretz Yisrael, a terra de Israel, também conhecida como Sion, devido ao monte Sion, em Jerusalém. Somente no século XIX, porém, essa esperança foi consolidada em um movimento político, o sionismo, cujo objetivo era estabelecer um Estado judaico na Palestina.
Durante a haskala, ou "iluminismo judaico", os pensadores judeus inspirados por Moisés Mendelssohn (p. 189) incentivaram o povo judeu a integrar-se à cultura do país adotado como forma de superar a perseguição sofrida. Em grande parte da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, a emancipação permitiu que os judeus de classe média, principalmente, se integrassem à sociedade.
Um desses judeus, o jornalista e escritor Theodor Herzl, acreditava piamente na integração judaica, até sofrer discriminação antissemita na França, um pais dito liberal. Herzl chegou à conclusão de que a criação de guetos e o antissemitismo eram inevitáveis. Os judeus costumavam ser atraídos para lugares onde não sofriam perseguição, mas, após emigrarem em massa para esses locais, passavam a ser discriminados. Mesmo nos lugares onde tentavam integrar-se à comunidade local e comportar-se como cidadãos leais, os judeus eram tratados como estranhos, sendo levados ao isolamento. A solução para o problema, segundo Herzl, não estava na integração, mas na segregação do povo judeu. O antissemitismo não tinha como ser derrotado ou erradicado, mas podia ser evitado com a criação de um Estado judaico.
Uma terra judaica
No livro O Estado judeu, publicado em 1896 e descrito pelo autor como uma "proposta de uma solução moderna para a questão judaica", Herzl apresenta argumentos para a criação de uma terra judaica. A escolha óbvia era a terra de Israel, na época uma parte da Palestina de domínio otomano. Essa proposta marcou o início do sionismo moderno como movimento político, em vez de uma aspiração teológica. No ano seguinte, 1897, Herzl organizou uma conferência internacional, o Primeiro Congresso Sionista, onde ficou claro que existia o desejo político por um Estado judaico, faltando apenas que um número suficiente de judeus exercesse pressão na comunidade internacional em prol de sua fundação. Uma frase de seu livro Altneuland ("Velha terra nova") passou a ser usada como lema do sionismo: "Se você quiser, não será um sonho".
Desde que foram expulsos de Israel pelo romanos em 70 d.C., os judeus enfrentaram exílio e perseguição. No entanto, o Holocausto, ou Shoah ("catástrofe") - o genocídio de cerca de 6 milhões de judeus, ou dois terços da população judaica de Europa -, foi um acontecimento de horror inaudito que testou a fé do povo judeu em sua aliança com Deus. A atrocidade levantou uma questão: o Holocausto foi obra de Deus ou ele se afastou e deixou que acontecesse? A teologia judaica teve dificuldade de encontrar uma resposta, e muitos judeus perderam a fé, acreditando que Deus havia abandonado seu povo.
O maior teste de todos
Diferentes grupos de judeus apresentaram interpretações distintas do Holocausto. Alguns o compararam às perseguições já sofridas, só que em outra escala, definindo o acontecimento como um exemplo extremo de sofrimento no mundo, um teste de fé e um momento de afirmação da sobrevivência. Outros o consideraram um castigo pelo pecado de ter abandonado os preceitos e a Deus, que respondeu ausentando-se temporariamente do mundo. Outro grupo diz ainda que o Holocausto não tem nenhuma relação com Deus, constituindo um exemplo do livre- arbítrio e da falibilidade humana, talvez explicável, em termos cabalísticos, como um estágio do tzimtzum, ou contração de Deus.
Desde então, surgiu um novo campo de "Teologia do Holocausto", em que os estudiosos analisam todas as possíveis respostas e reavaliam a aliança à luz da calamidade.
De modo paradoxal, embora a identidade judaica seja tradicionalmente transmitida pela mãe (p. 175), as mulheres foram excluídas da prática do judaísmo em grande parte de sua história. Até o século XIX, a ideia de uma mulher ler a Torá perante a congregação, por exemplo, ou liderar a reza como chazan (cantor litúrgico), era considerada heresia. A possibilidade de uma mulher ser rabina era inconcebível.
Com a fundação do judaísmo reformista, porém, e sobretudo no movimento reconstrucionista, a função da mulher na aliança tornou-se um assunto de importância cada vez maior. A primeira mulher rabina assumiu o posto no movimento reformista alemão, em 1935. Nos Estados Unidos, Reino Unido e outros lugares da Europa, a pressão por mudanças intensificou-se com o crescimento do feminismo na década de 1970. O movimento reformista americano ordenou sua primeira rabina em 1972 e uma chazan três anos depois. Na esteira dessas transformações, outras ramificações do judaísmo deram início a reforma também, permitindo que as mulheres participassem dos rituais e adotando o bat mitzvah (o equivalente feminino ao bar mitzvah). Na década de 1980, as mulheres finalmente passaram a ser admitidas nas escolas rabínicas. Hoje, somente o judaísmo ortodoxo se opõe à ordenação de mulheres como rabinas, mas em todas as vertentes do judaísmo as mulheres desempenham um papel cada vez mais ativo, ou até de líderes, na sinagoga.
Em 63 a.C. o general romano Pompeu conquistou Jerusalém, pondo fim a um século de autogoverno na Judeia e transformando a região em um Estado de domínio romano. Roma foi a última de uma longa lista de forças invasoras durante quinhentos anos, incluindo Babilônia, Pérsia, Grécia, Egito e Síria. Essa repetida perda de soberania abalou o orgulho nacional e causou grande consternação religiosa, desafiando a visão judaica de povo escolhido por Deus.
Os principais textos religiosos judaicos (como a obra profética de Isaías) apontavam para uma época em que o Deus de Israel seria reconhecido como o governante do mundo, Instaurando um sistema de paz e justiça para todos por meio de seu representante, o Messias (que significa “ungido"). Seria o auge da história mundial, segundo a profecia: o fim da era antiga e o início da era de Deus. A ocupação romana, porém, ameaçou esse sonho.
O anúncio de um novo mundo
Por volta do final da década de 20 d.C., um rabi judeu chamado Jesus deu início a um breve, mas extraordinário ministério em toda a terra de Israel, ocupada pelos romanos. A principal mensagem de Jesus era que o tão esperado reino de Deus estava chegando. Algumas pessoas, ao ouvir essa mensagem, julgaram que ele pretendia montar um exército para expulsar os romanos. Mas o objetivo de Jesus não era a independência política de Israel, e sim libertar o mundo inteiro do mal. De acordo com um conjunto de ensinamentos de Jesus conhecido como o Sermão da Montanha (conforme o Evangelho de São Mateus, no Novo Testamento), Jesus anunciou que o reino de Deus havia chegado para dominar os céus e a Terra e que, sob esse novo reinado, os valores distorcidos dos reinos humanos seriam derrubados. O reino de Deus, disse Jesus, não pertencia aos gananciosos, seguros de si e guerreiros, mas ao pobres, humildes e pacificadores
Todos são bem-vindos
A mensagem de Jesus manifestava-se, segundo a tradição cristã, em sua ações. Séculos antes, o profeta judeu Isaías havia previsto que, quando o reino de Deus chegasse, incríveis milagres de cura aconteceriam: os cegos seriam capazes de enxergar, e os surdos, de ouvir que Deus agora era o rei; os aleijados pulariam de alegria. Os relatos bíblicos sobre o ministério de Jesus são cheios de histórias de cura como essas. Além disso, Jesus anunciou que não haveria mais nenhuma barreira para entrar no reino de Deus. Até aquela época, os judeus consideravam os não judeus como seres aquém da salvação, assim também quem não cumpria as leis divinas (os “pecadores”), mas Jesus afirmou que até essas pessoas seriam bem-vindas no reino dos céus. Para demonstrar o perdão aos pecadores, Jesus compartilhou refeições — uma das atividades mais íntimas e significativas da tradição judaica — com os excluídos sociais e os renegados religiosos. No futuro. Deus prepararia um banquete, ao qual pessoas do mundo inteiro seriam convidadas.
Mas as pessoas ficaram confusas; o reino de Deus não era para ser o auge da história? Por que, então, o mundo não terminava com o anúncio de Jesus? A resposta de Jesus foi que o reino de Deus não chegaria de uma vez, como a maioria das pessoas esperava. Em uma de suas muitas parábolas (histórias utilizadas para transmitir sua mensagem), Jesus compara o reino de Deus ao fermento na massa. Em outra, faz alusão a sementes plantadas no solo. Tanto o fermento quanto as sementes demoram um tempo para produzir resultados, crescendo quase imperceptivelmente, mas produzem resultados.
Uma nova religião
Jesus convidou aqueles que o escutavam a aceitar o reino de Deus e seus valores, afirmando que o reino dos céus havia chegado e continuaria a expandir-se sempre que as pessoas decidissem viver de acordo com a vontade de Deus, aceitando seus valores e vivenciando a cura e o perdão. Jesus reconheceu também que haveria um momento futuro em que Deus triunfaria sobre todos os outros reinos, marcando o fim da atual ordem mundial. Quando esse dia de julgamento chegasse, seria tarde demais para fazer parte do novo mundo de Deus. A mensagem era de urgência. As pessoas precisavam tomar logo uma decisão. Longe de ser um sonho distante, o fim já havia começado.
A ideia de que a vinda de Jesus representava o "início do fim" causou a separação entre o cristianismo e suas raízes judaicas. Os primeiros seguidores de Jesus afirmaram que não precisavam mais esperar para descobrir quem era o Messias, porque Jesus era esse Messias: 0 escolhido de Deus para trazer o reino dos céus à Terra. Seus adversários, porém, rejeitaram a ideia e decidiram silenciá-lo. matando-o. Os seguidores de Jesus não desistiram de suas crenças, mesmo após a morte de seu mestre. Aliás, passaram a acreditar mais ainda nele - afirmando que Deus frustrou os inimigos fazendo Jesus ressuscitar. Formava-se uma religião nova dentro do catálogo de religiões - uma fé liderada por uma figura capaz de dominar a morte.
Desde os primeiros dias, o cristianismo foi definido pela convicção de que o ministério de Jesus constituía o início do fim. Uma das principais orações do cristianismo, o pai-nosso, ensinada pelo próprio Jesus, diz: "Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no céu". Nessa oração, os cristãos estão pedindo pela vinda do reino de Deus à Terra logo, mesmo que eles tenham de esperar pela chegada completa do reino no fim da história atual do mundo.
O reino de Deus hoje
Ao longo da história, a Igreja cristã chegou a interpretar o "reino de Deus" ou "reino dos céus" como um plano puramente espiritual, sem relação direta com o mundo físico. No início do século XX, todavia, estudiosos do Novo Testamento voltam a abordar o ministério de Jesus no contexto judaico, e desde então a mensagem sobre o reino de Deus tem tido um lugar de destaque na teologia cristã. Com o foco nas circunstâncias inerentes à mensagem original de Jesus, as implicações políticas e econômicas da chegada do reino dos céus tornaram-se mais claras. Os cristãos acreditam agora que o reino está presente sempre que a realidade atual e seus valores são transformados pela soberania de Deus, uma crença que inspirou muitos cristãos a promover movimentos de mudança social. Exemplos: Martin Luther King e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, Gustavo Gutiérrez e a libertação dos pobres na América do Sul, Desmond Tutu e o fim do apartheid na África do Sul.
O fim de tudo
A ideia de que o ministério de Jesus marca "o início do fim" é conhecida na teologia pelo termo "escatologia inaugurada" A própria palavra "escatologia" vem do grego. Significa "último estudo" e refere-se à doutrina sobre o fim de tudo o que existe — o fim do mundo. Para os cristãos, a mensagem de Jesus referente ao reino de Deus dá ao cristianismo uma escatologia inaugurada: o fim de tudo foi inaugurado (iniciado, mas não concluído) por sua mensagem. O fato de que a presença do reino de Deus hoje na vida dos cristãos possa ser chamada apenas de "o início do fim" é um indicativo de que os seguidores do cristianismo ainda esperam uma ação final e definitiva de Deus.
Muitos reis e imperadores antigos afirmavam que haviam sido adotados pelos deuses, o que lhes dava legitimidade divina para governar. Quando morriam, alguns, como Júlio César, eram elevados à categoria de deus (num processo conhecido como apoteose) e reverenciados.
No Evangelho, Jesus chama Deus de "pai" muitas vezes, possibilitando diversas interpretações, desde a mais genérica — a de que Deus, como criador, é o "Pai" de toda a humanidade até a mais literal, passando por interpretações simbólicas. Os cristãos acreditam na interpretação literal, ressaltando os milagres extraordinários descritos no Evangelho e, sobretudo, a ressurreição de Jesus, uma prova de sua singularidade nos planos de Deus.
Deus tornou-se humano
Os primeiros cristãos também afirmaram que a divindade de Jesus era diferente da de outros soberanos. Jesus não foi adotado por Deus em recompensa à obediência. Ao contrário, foi sempre o Filho de Deus, mesmo antes de nascer, possuindo, portanto, a natureza divina de seu Criador durante toda a sua vida humana.
Essa ideia, conhecida como encarnação, tornou-se um ponto central do cristianismo. É o contrário da apoteose. No caso da encarnação, o Filho de Deus assumiu forma humana na figura de Jesus. Deus enviou seu Filho divino ao mundo para trazer o reino dos céus à Terra.
No dia 9 de março de 203 d.C., duas jovens mães — uma nobre chamada Perpétua e sua escrava, Felicidade — foram levadas ao anfiteatro de Cartago com outros cristãos, onde foram açoitadas, maltratadas por bestas selvagens e executadas. A história dessas duas mártires foi registrada em A paixão de Perpétua e Felicidade, para inspirar outros cristãos a permanecer comprometidos com sua fé, mesmo diante de ameaças de perseguição e morte.
A morte traz a vida
O teólogo Tertuliano, escrevendo em Cartago na época, desenvolveu uma teoria cristã do martírio, observando que "o sangue dos cristãos é a semente". Os imperadores romanos planejaram perseguições para impedir os cidadãos de adotar uma religião que colocava a autoridade de Jesus acima da do Estado. No entanto, conforme atesta Tertuliano, em vez de representar um obstáculo para o crescimento do cristianismo, as perseguições ajudaram em sua disseminação. O fato de os cristão preferirem morrer a renunciar à crença de que Jesus era o legítimo soberano designado por Deus intrigou e atraiu os mais céticos.
Essa interpretação do martírio contribuiu para o crescimento do cristianismo ao longo de toda a história, pois dava aos cristãos a confiança de que mesmo a mais violenta oposição à sua mensagem não era um sinal de fracasso, mas a semente do sucesso.
O que acontece quando morremos? Continuamos a existir de alguma forma ou nosso ser se desintegra totalmente como nosso corpo? Muitos pensadores da antiguidade abordaram essas questões. O Império Romano foi influenciado pelo pensamento grego, e as ideias de Platão sobre o assunto ganharam força nos séculos anteriores ao nascimento, morte e ressurreição de Jesus.
Platão tinha uma visão dualista, acreditando que a vida humana podia ser dividida em duas partes: o corpo físico, em constante transformação e fadado à morte, e a alma pensante, eterna.
No século III d.C., o teólogo Orígenes de Alexandria explicou elementos do cristianismo usando termos da filosofia grega. Em especial, adaptou o pensamento platônico para uma teoria cristã sobre a alma que atravessou os séculos. Só a alma importa Como Platão, Orígenes acreditava que as almas são imortais, embora o corpo humano não seja. Para Orígenes, contudo, a imortalidade da alma é uma implicação direta da natureza.
Só a alma importa
Como Platão, Orígenes acreditava que as almas são imortais, embora o corpo humano não seja. Para Orígenes, contudo, a imortalidade da alma é uma implicação direta da natureza imutável de Deus. Como Deus não muda, sua relação com os humanos não termina quando o corpo se desintegra. Portanto, tem de haver uma parte no ser humano que não morre, e essa parte é a alma. Platonista típico, Orígenes dizia que a alma é muito mais importante do que o corpo, que nos distrai da vida espiritual.
Céu e inferno
O pensamento de Orígenes definiu a visão cristã de salvação a partir de sua época. Ao contrário dos platonistas, os escritores da Bíblia hebraica não separavam a alma do corpo. Se existisse realmente a possibilidade de vida após a morte, o corpo teria que ressuscitar para acompanhar a alma. A ressurreição física de Jesus mostrou que isso era possível para quem acreditava nele. Depois de Orígenes, no entanto, a ressurreição do corpo tornou-se um assunto secundário. O foco do pensamento cristão passou a ser o estado da alma antes da morte e seu destino após deixar este mundo. As almas que haviam rejeitado Deus estariam espiritualmente mortas e seriam condenadas a passar a eternidade no inferno. As almas que haviam aceitado a mensagem de Jesus ascenderiam aos céus, num estado de perfeição.
Uma visão moderna
Pensadores cristãos da atualidade dizem que Orígenes se baseou demais no platonismo. Um movimento cada vez maior na teologia cristã rejeita o dualismo (a separação do corpo e da alma), afirmando que a vida da alma após a morte só é possível se Deus também ressuscitar o corpo. Outra crença muito difundida hoje é a da “imortalidade condicional": só alcançará a imortalidade quem acreditar em Jesus.
Num teste de matemática, 1+1+1=3, mas numa prova de teologia, não. Um dos mais conhecidos enigmas da religião cristã é a equação para descrever Deus: 1+1+1=1, não 3. Grandes teólogos cristãos tiveram dificuldade para explicar como um único Deus pode ser, ao mesmo tempo, três entidades distintas (o Pai, o Filho e o Espírito Santo). No entanto, essa ideia, conhecida como a doutrina da Trindade, é um conceito central na teologia do cristianismo, diferenciando-o de todas as outras religiões.
Uma forma padronizada de falar sobre Deus, a doutrina da Trindade foi articulada por líderes da antiga Igreja, cerca de trezentos anos após a morte de Jesus, em resposta à grande difusão de ideias cristãs no Império Romano.
A raiz judaica
As raízes do cristianismo estão no judaísmo a religião de nascimento de Jesus, da qual ele afirmava ser o Messias. Assim como o judaísmo, o cristianismo é uma religião monoteísta. Os cristãos, da mesma forma que os judeus, acreditam em apenas um Deus. Como, então, eles podem afirmar que são monoteístas se reverenciam Jesus como Deus e o Deus que Jesus chamava de Pai? E qual a relação disso com o Espírito Santo, que Jesus prometeu enviar para que Deus se fizesse presente entre os cristãos? Como o Espírito Santo também é considerado Deus, isso quer dizer que os cristãos são "triteístas" em vez de monoteístas? A doutrina da Trindade é uma tentativa de responder a essas perguntas ardilosas, afirmando que só existe um Deus em três formas distintas.
O que Jesus ensinou
Conforme registrado pelos autores do Evangelho, Jesus se referia a Deus como Pai. A implicação desse ensinamento é clara: Jesus era o Filho de Deus, possuindo sua mesma divindade. Jesus também falou de seu relacionamento com o Espírito Santo: "[...] o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse" (João 14,26). Além disso, aludiu à divindade das três manifestações de Deus na Grande Comissão da Galileia, onde ordenou a seus seguidores: "[...] façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mateus 28,19). Em conformidade com esses ensinamentos, os primeiros cristãos passaram a reverenciar Jesus. Afinal, ele havia possibilitado que todos fizessem parte da família divina (um privilégio reservado anteriormente só aos judeus), perdoando a antiga revolta contra Deus e garantindo que todos fossem incluídos quando Deus trouxesse paz e justiça ao mundo. Jesus disse e fez coisas que só Deus era capaz de dizer e fazer. Como deu a entender durante toda a sua vida, Jesus era Deus.
Parecido, mas não igual
A doutrina da Trindade surgiu em resposta a uma série de outras visões que os antigos cristãos julgaram erradas ou "heréticas". Uma dessas visões foi o arianismo — a teologia de Ário (c. 250-336 d.C.), líder cristão de Alexandria Egito — tão fortemente calcado no monoteísmo que negava a divindade do Filho e, portanto, do Espírito Santo Para Ário, somente o Pai era realmente Deus. Embora o Filho devesse ser honrado por ter grande proximidade com o Pai, ele era apenas seu representante e não possuía a mesma divindade
Essa visão condizia com alguns aspectos do pensamento cristão da época: uma das principais características de Deus é que ele era incriado sua existência não tinha início nem fim. Os arianos alegavam que, como os seres humanos precisam nascer, o Filho de Deus não podia possuir todos os atributos de Deus porque, como Filho, precisou nascer. "Havia uma época em que o Filho de Deus não existia. Deus existia sem o Filho", afirmavam os seguidores de Ário. Segundo essa lógica, somente o Pai era realmente Deus. Uma das palavras utilizadas para descrever o Filho era homoiousios, termo em grego que significa "de natureza parecida". O Filho era parecido com o Pai, mas não era igual.
Os arianos preservaram o monoteísmo, mas à custa do Filho e do Espírito Santo, uma visão potencialmente desastrosa para o cristianismo, uma vez que a base do pensamento cristão era que Deus havia salvado a humanidade por meio da vida, morte e ressurreição de seu Filho, Jesus. Se o Filho de Deus não era Deus, como os cristãos poderiam afirmar que Deus realmente perdoaria seus pecados e os aceitaria no reino dos céus?
No Concílio de Niceia, em 325 d.C., o arianismo foi condenado. junto com seu principal pressuposto, que descrevia o Filho como homoiousios em relação ao Pai. O termo atribuído a Jesus passou a ser homoousios, "de mesma natureza". Esse detalhe fez toda a diferença. Ficou estabelecido que o Filho possui a mesma divindade do Pai. Desse modo, sua vida também não tinha início — Deus sempre foi Pai e Filho, junto com o Espírito Santo.
Manifestações, não máscaras
Uma segunda visão considerada herética polos defensores da Trindade foi a de Sabélio, presbítero cristão do século II, e seus seguidores, em Roma. Ao contrário dos arianos, os sabelianos acreditavam que o Filho e o Espírito Santo eram realmente Deus. Eles resolveram a questão de Deus ser um e três ao mesmo tempo afirmando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três "modos" de um Deus único. Essa ideia ficou conhecida como modalismo.
"Pai", "Filho" e "Espírito Santo" podem ser vistos como máscaras disponíveis ao alor numa peça. O ator é um só, mas pode representar três papéis, utilizando máscaras diferentes. A princípio, essa era uma boa forma de descrever a experiência de Deus para os cristãos: às vezes Deus se manifesta como o Pai, às vezes como o Filho e às vezes como o Espírito Santo.
No entanto, se os cristãos algum dia encontrassem três máscaras de Deus, como poderiam garantir que haviam encontrado Deus? Afinal, as pessoas podem usar máscaras para esconder sua verdadeira identidade. E se Deus usasse máscaras para fingir ser algo que Ele não é? Por conta disso, os teólogos cristãos, em vez de falarem de máscaras ou modos, começaram a utilizar o termo grego hypostasis, traduzido para o latim como personae, ou pessoas: Deus são três hipóstases de uma única ousia (palavra em grego para "essência" — em latim, substantia), ou seja, três manifestações de uma mesma substância. Para descrever a magnitude de Deus dentro desse raciocínio teológico, termo humanos passaram a ser utilizados. Os teólogos mais destacados nessa área foram os patriarcas da Capadócia: Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa (irmão mais novo de Basílio), que viveram no final do século IV d.C. Eles explicaram a diferença entre ousia e hypostasis ("substância" e "pessoas") com um exemplo: ousia é a humanidade como um todo, enquanto hypostasis é o indivíduo isoladamente. Toda pessoa faz parte da humanidade, mas possui características únicas que a definem. Para descrever a humanidade de modo adequado, deveríamos dizer "Constituímos uma única sociedade formada por bilhões de pessoas" e listar todas as pessoas que já viveram, estão vivendo ou viverão.
Nessa definição, as manifestações da Trindade possuem uma divindade em comum, da mesma forma que as pessoas compartilham o atributo de fazer parte da humanidade. São apenas três manifestações de uma única substância divina — o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Valendo-se da linguagem das hipóstases ou pessoas, os pensadores cristãos conseguiram contornar os problemas de Sabélio e do modalismo, afirmando que Pai, Filho e Espírito Santo não eram três máscaras usadas por um misterioso ator divino e que não havia um ser humano ideal à espreita em algum lugar por trás de todos os que já viveram. Pai, Filho e Espírito Santo são três manifestações de um único Deus.
Entendendo a Trindade
Por que é importante para os cristãos que seja um único Deus manifestado de rês maneiras, em vez de três deuses separados? A resposta óbvia é que, se a Trindade fosse entendida como três deuses separados, os cristãos não poderiam afirmar que o Deus da história de Jesus Cristo era o mesmo que criou o mundo ou que rege o mundo hoje.
A ideia de uma Trindade garante a coesão do relacionamento de Deus com o mundo. Tradicionalmente, o Pai é aquele que criou no mundo, o Filho é aquele que veio para salvá-lo, e o Espírito Santo é aquele que o transforma no lugar desejado por Deus. É importante que esses três aspectos sejam vistos como um único Deus trabalhando de três formas diferentes para atingir o mesmo objetivo - compartilhar seu amor com o mundo, não três deuses distintos, cada um com um objetivo diferente. Agostinho (p. 221) explicou que é esse amor que unifica a Trindade
Metáforas da Trindade
Ao longo dos séculos, muitas pessoas tentaram encontrar metáforas para a Trindade com o intuito de explicar como três podem ser um e como um pode ser três. Por exemplo, são Patrício - missionário do século v que levou o cristianismo para a Irlanda - usou a imagem de um trevo de três folhas. Outros utilizaram a analogia da comunicação: o Pai é o que fala, o Filho é a palavra dita, e o Espírito Santo é o fôlego para falar. O mais influente teólogo cristão do século XX, sem dúvida, foi o pastor e professor suíço Karl Barth (1886- -1968). Barth criou um guia bastante útil para o pensamento trinitário, adotado por grande parte dos teólogos contemporâneos. Qualquer coisa que for dita sobre o Deus cristão deve ser dita três vezes, como três versões diferentes (e complementares) de uma mesma história. Essa repetição, diz Barth, reflete a verdadeira essência de Deus - tudo o que Deus faz, Ele faz como Pai, Filho e Espírito Santo.
Princípio norteador
A doutrina da Trindade é considerada o aspecto mais obscuro e complexo da teologia cristã. Não obstante, os cristãos mantêm essa doutrina, pois acreditam que ela reflete uma característica vital de Deus. Assim como no debate entre arianos e sabelianos no século IV d.C., a ideia da Trindade é essencial para o cristianismo ortodoxo. Grupos como as testemunhas de Jeová e os unitaristas, com visões conflitantes sobre o assunto, geralmente não são considerados cristãos pela Igreja romana.
Um desenvolvimento interessante nos últimos tempos foi a ideia da "Trindade social", na qual a cooperação entre as três manifestações da Trindade é vista como um modelo para a sociedade humana. Deus só pode ser Deus se as relações entre Pai, Filho e Espírito Santo forem mantidas. Da mesma forma, os seres humanos, criados à imagem de Deus, só podem ser verdadeiramente humanos se mantiverem relacionamentos significativos com Deus e os outros.
A Trindade e o Espírito Santo
O Espírito Santo, muitas vezes, parece ser o aspecto menos importante da Trindade, talvez porque as discussões do século IV d.C. girassem em torno da relação entre Jesus, Filho de Deus, e Deus, o Pai, relegando o Espírito Santo a segundo plano Pode ser também porque o Espírito Santo, dos três aspectos, é o mais difícil de compreender.
De acordo com o Evangelho de João, Jesus disse a seus seguidores que enviaria o Espírito de Deus quando os deixasse e ascendesse ac reino dos céus. Como esse Espírito transformaria a vida dos seguidores de Deus, que passariam a ter a vida sagrada que Deus desejava para eles, o Espírito de Deus passou a ser chamado de Espírito Santo.
Embora os cristãos de diferentes vertentes compreendam o Espírito Santo de maneiras distintas, o movimento pentecostal do século XX ajudou bastante em sua divulgação. O movimento tem esse nome devido ao dia de Pentecostes, no qual Jesus enviou o Espírito Santo a seus discípulos. Está escrito que nesse dia o Espírito Santo apareceu como línguas de fogo sobre os discípulos e os preencheu, possibilitando que eles pregassem em idiomas anteriormente desconhecidos para eles.
A ideia do poder transformador do Espírito Santo é fundamental para os cristãos pentecostais. Eles acreditam que os seguidores podem ser arrebatados pelo Espírito Santo, exatamente como aconteceu com os discípulos de Jesus. Essa experiência pessoal é chamada de "batismo pelo Espírito Santo", e os fiéis buscam ativamente essa renovação espiritual além da vida cristã normal.
Cristianismo carismático
Desde a década de 1960, o movimento carismático introduziu o entusiasmo pentecostal pelo Espírito Santo em outras vertentes do cristianismo. A palavra "carismático" vem do grego charismata, que significa "dom da graça" e se refere aos dons espirituais que provam a existência do Espírito Santo entre os cristãos, incluindo o dom da cura, da profecia e de falar em outras línguas.
O papel proeminente do Espírito Santo nos movimentos pentecostal e carismático incentivou a Igreja a refletir sobre sua compreensão de todos os três aspectos da Trindade, para não excluir inadvertidamente um ou mais deles. A ideia da Trindade continua vital como sempre, demonstrando como os cristãos falam do Deus em que acreditam.
Nós escolhemos Deus ou é Deus que nos escolhe? Eis a pergunta que os pensadores do cristianismo se fazem desde os primeiros dias da Igreja. O conceito filosófico em questão aqui é o do livre-arbítrio, no contexto da crença cristã. O brilhante teólogo Agostinho conseguiu explicar a relação entre a escolha de Deus e a humana.
A controvérsia pelagiana
A chegada do monge celta Pelágio ao norte da África no início do século V instigou Agostinho a um debate sobre livre-arbítrio. A controvérsia, originalmente, referia-se ao batismo de crianças. Pelagio dizia que as crianças não precisavam ser batizadas para lavar as manchas do pecado, como se acreditava na época. O pecado, segundo Pelágio, era resultado do livre-arbítrio humano, e como as crianças ainda não haviam desenvolvido o livre-arbítrio, elas não pecavam. Além disso, se escolhessem o caminho de Deus quando tivessem livre-arbítrio, nem precisariam ser batizadas.
Agostinho discordou de quase tudo o que Pelágio disse, afirmando, com base na experiência e na lógica, que é impossível escolhermos o caminho de Deus por vontade própria. Desde o nascimento, temos a tendência natural de escolher o que está errado — uma ideia que ficou conhecida como o "pecado original". Segundo Agostinho, para escolher Deus, precisamos da ajuda de Deus, e por isso o batismo é tão importante. Deus decidiu nos dar sua graça redentora. Como Deus é onipotente, tudo o que ele faz é perfeito. Os seres humanos que receberem a graças de Deus terão liberdade para escolher Deus, em detrimento do pecado. A visão de Agostinho era bastante equilibrada: a escolha de Deus não substitui a escolha humana, mas a possibilita.
Predestinação
O conceito de Agostinho, que ficou conhecido como a "doutrina da predestinação", foi adotado por reformistas protestantes, entre eles João Calvino. Em algumas declarações extremas sobre predestinação, a ideia de que a graça de Deus não falha é defendida à custa da liberdade humana, reduzindo nossas decisões a atos irrelevantes, uma vez que Deus já decidiu o que acontecerá. Eis o chamado "paradoxo do livre-arbítrio". Muitos afirmam que a predestinação priva os seres humanos do livre-arbítrio. A ideia da graça de Deus de Agostinho é uma forma de manter o equilíbrio entre a escolha de Deus e a escolha humana.
Hoje em dia, os mosteiros são vistos como relíquias de um mundo passado, mas na época em que começaram a surgir (início do período medieval, após o colapso do Império Romano no século V), tinham papel de destaque na sociedade. Numa Europa que adentrava a chamada pejorativamente de "Idade das Trevas" do ponto de vista cultural, os mosteiros tornaram-se grandes canais de aprendizado e inovação. Essas poderosas instituições refletiam uma ideia central do cristianismo: a de que alguns indivíduos podem se afastar das demandas da vida comum para focar numa vida espiritual em nome dos outros e de si mesmos. Um importante aspecto do monasticismo sempre foi o de rezar para as pessoas do mundo inteiro.
Das cavernas para os claustros
As raízes do monasticismo encontram-se na história de "pais e mães" que viveram no deserto egípcio a partir do século Ш d.C. Esses primeiros monges e freiras decidiram se retirar do mundo para viver uma vida simples de devoção e preces. Levaram as palavras de Jesus a sério — "Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" — e tomaram-se ascetas, abrindo mão dos bens materiais e do casamento para focar na vida espiritual. O mundo era um lugar de muitas tentações, capaz de desviar os seres humanos do caminho de Deus. Como antídoto para a agitação do dia a dia, os ascetas procuravam orar em tranquilidade, em estado contemplativo. Está escrito: "Assim como é impossível para um homem ver seu rosto em águas turbulentas, também é impossível encontrar a Deus se a mente não estiver livre de pensamentos".
Com a expansão do monasticismo para a Europa, as cavernas do deserto foram substituídas por construções especiais, que ficaram conhecidas como mosteiros. Muitos mosteiros foram construídos em torno de claustros, um pátio interno usado para meditação. Embora os mosteiros tenham mudado para ambientes mais populosos, a ideia de retirar-se do mundo para dedicar-se à vida espiritual persistiu.
Uma vida dedicada aos outros
Os mosteiros não eram apenas refúgios espirituais do mundo externo. Como nessa época a maioria dos cristãos eram camponeses, com longas jornadas de trabalho para sobreviver, monges e freiras rezavam em nome deles. Grupos monásticos como o dos beneditinos (fundado no século VI) e o dos cistercienses (século XII) ofereciam, além de preces, caridade e hospitalidade. Ao longo de toda a Idade Média, os mosteiros serviram como centros de educação, transmitindo o conhecimento de preciosos manuscritos. De acordo com o ideal monástico, retirar-se do mundo dava a monges e monjas tempo e energia para servir aos outros, em nome de Deus.
É possível haver um cristão que não seja também membro da Igreja? Muitas pessoas hoje responderiam que sim, alegando que Jesus não ofereceu aos discípulos instruções para construir uma instituição religiosa. Outros afirmariam que para ser cristão basta acreditar em Jesus, sem precisar pertencer à Igreja.
Apesar desses argumentos, fazer parte da Igreja foi um elemento essencial do cristianismo ao longo de quase toda a sua história. A princípio, nos primeiros anos após a morte e ressurreição de Jesus, as cerimônias cristãs eram simplesmente uma adaptação das reuniões religiosas das sinagogas judaicas, de onde vinha grande parte de seu público. Como os judeus, os cristãos também se reuniam para rezar, cantar, comer juntos e ler as escrituras. No cristianismo, as escrituras compreendiam a Bíblia hebraica, que ficou conhecida como Antigo Testamento, e um novo conjunto de documentos sobre Jesus e sua importância, conhecido como Novo Testamento.
Com a propagação da mensagem cristã no mundo não judaico, as cerimônias cristãs desenvolveram uma identidade própria, sendo chamadas de ecclesia, palavra em grego para "convocação". O termo aludia à ideia de que Deus havia convocado o grupo para transmitir a mensagem de Jesus ao mundo.
Igreja matriz
Em meados do século III d.C., o teólogo Cipriano já havia estabelecido que pertencer à Igreja não era um elemento negociável e opcional do cristianismo. Nessa época, os cristãos eram duramente perseguidos pelas autoridades romanas. Alguns tiveram que renunciar à fé para salvar a vida. Os líderes da Igreja, então, ficaram sem saber o que fazer com essas pessoas, se as aceitavam de volta no caso de arrependimento ou se as excluíam, deixando que elas formassem comunidades isoladas. Cipriano foi inflexível, afirmando que a Igreja deveria perdoá-las e aceitá-las de volta, uma vez que, segundo seu entendimento, só poderia existir uma única Igreja e a salvação fora do âmbito eclesiástico era impossível. O teólogo comparou a Igreja com a arca de Noé do Antigo Testamento, dizendo que as únicas pessoas que se salvariam do julgamento de Deus seriam as que estivessem ligadas à Igreja, assim como as únicas pessoas que se salvaram do dilúvio na história de Noé foram as que entraram na arca.
Na época de Cipriano, a Igreja já possuía uma estrutura definida. Diáconos e padres lideravam congregações locais, enquanto bispos e arcebispos eram responsáveis por áreas maiores. Devido à importância política e econômica de Roma nesse período, o bispo de Roma passou a ser visto, gradativamente, como o líder de toda a Igreja, tornando-se o único bispo com o título de "papa" ("pai", em grego) no século VI.
O poder papal cresceu durante o período medieval. Embora, a princípio, a primazia do papa fosse considerada uma forma prática de assegurar a unidade da Igreja, no início do século xi líderes eclesiásticos de língua grega do Oriente começaram a sentir que estavam sendo injustamente dominados pelo papa de língua latina do Ocidente. Em 1054, ocorreu o Grande Cisma. A Igreja cindiu-se em duas vertentes, oriental e ocidental, mencionando diferenças doutrinais, assim como a questão da autoridade papal. O papa de Roma, contudo, ainda se considerava o líder soberano da Igreja, e no IV Concílio de Latrão, realizado em 1215, o papa Inocêncio III reafirmou sua autoridade sobre os poderosos bispos da Igreja oriental de Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Jerusalém.
Na Europa Ocidental, a Igreja Católica Romana, presidida pelo papa, foi considerada a única verdadeira família de cristãos fiéis até o fim da Idade Média. O predomínio da Igreja Católica Romana na vida medieval fortaleceu a ideia de que era impossível encontrar salvação fora da Igreja.
Sete sacramentos
Embora a Igreja tivesse desenvolvido um enorme poder político e econômico no período medieval, sua maior força era a espiritual. Uma das principais funções da Igreja era dar visibilidade à união entre Deus e seu povo. Como o relacionamento cristão com Deus parecia intangível por natureza, tornou-se mais conveniente avaliar a fé cristã pelo estado do relacionamento de um indivíduo com a Igreja.
Dentro da Igreja, ritos especiais eram realizados para demarcar diferentes estágios da vida cristã. Conhecidos como sacramentos, esses ritos consistiam em ações físicas com significado espiritual. Originalmente, a Igreja celebrava apenas dois sacramentos - batismo e eucaristia, segundo o exemplo e o ensinamento do próprio Jesus. Durante a Idade Média, porém, o número de sacramentos chegou a sete, todos com o consentimento da Igreja católica. Eis os sacramentos: batismo (o momento em que a pessoa entra na Igreja e seus pecados são lavados); confirmação (o momento em que a pessoa recebe a dádiva do Espírito Santo de Deus para ajudá-la a ter uma vida crista); a eucaristia (uma celebração do perdão alcançado pela morte e ressurreição de Jesus); penitência (as ações especificadas por um presbítero para a pessoa reconciliar-se com Deus após confessar seus pecados); extrema-unção, ou unção dos enfermos (unção, consolo e garantia de perdão aos moribundos); e ordens sagradas (quando uma pessoa decide passar a vida servindo a Deus dentro da Igreja). O último dos sete ritos é o matrimônio, que foi considerado um sacramento pois se acreditava que o relacionamento entre marido e mulher refletia o relacionamento entre Deus e seu povo.
Receber os sacramentos era uma indicação clara de que a pessoa pertencia à Igreja católica e, portanto, seria salva por Deus. A Igreja, então, desenvolveu uma legislação para orientar padres e fiéis na correta utilização dos sacramentos. Os sacramentos eram considerados tão importantes que o clero estava proibido de tirar algum proveito de suas atividades. No IV Concílio de Latrão, ficou estabelecido que todos os cristãos deveriam receber a eucaristia pelo menos uma vez por ano (na Páscoa), além de confessar os pecados e fazer penitência no mínimo uma vez por ano também. As orações dos padres no leito de morte dos moribundos eram consideradas tão essenciais que os médicos tinham que chamar um padre antes de fazer seu trabalho. A legislação eclesiástica assegurava que a Igreja oferecesse os sacramentos de forma gratuita e regular, e seus membros recebessem o que era oferecido.
Evitando denominações
Assim como outros concílios eclesiásticos, o IV Concílio de Latrão reafirmou a ideia de que rejeitar os sacramentos da Igreja católica equivalia a expulsar a si mesmo da Igreja e perder a salvação oferecida em nome de Deus. Se a Igreja era vista como a "mãe" dos fiéis, quem não fosse "filho" da Igreja não poderia ser salvo.
As pessoas que, além de rejeitar os sacramentos, levavam os outros a rejeitá-los, seriam condenadas de forma mais dura. Como se acreditava que os papas da Igreja Romana haviam herdado e transmitiam os ensinamentos de Pedro — um dos discípulos mais próximos de Jesus, considerado o primeiro papa —, aquele que rejeitasse os ensinamentos do papa estava rejeitando os ensinamentos de Jesus. Hereges impenitentes (acreditando em tudo, menos nos ensinamentos da Igreja católica) recebiam o castigo da excomunhão, sendo banidos da Igreja e proibidos de receber sacramentos até mudarem de ideia. Se morressem antes de se arrependerem das heresias, perderiam a salvação de Deus e teriam que enfrentar os horrores do inferno.
No final da Idade Média, o monopólio da salvação pela Igreja católica se viu ameaçado pela Reforma Protestante (pp. 230-237). Nenhuma instituição cristã isolada poderia mais afirmar que não havia salvação fora de seu âmbito. No entanto, a ideia de que não há salvação fora da Igreja cristã persistiu em muitos grupos cristãos.
Antes de ser preso e crucificado, Jesus fez uma refeição de Páscoa com seus discípulos, na qual compartilhou pão e vinho, dizendo: "Este é meu corpo, este é meu sangue". Desde então, esse ritual é celebrado pelos cristãos num ato de devoção conhecido como Eucaristia, Sagrada Comunhão ou Santa Ceia. Com o passar dos séculos, porém, as palavras de Jesus tornaram-se um assunto de grande controvérsia. Em que sentido o pão e o vinho transformam-se no corpo e sangue de Jesus?
No século XIII, o grande teólogo medieval Tomás de Aquino desenvolveu a teoria da transubstanciação para esclarecer ensinamentos prévios sobre a eucaristia, baseando-se na filosofia de Aristóteles, redescoberta pouco tempo antes. O ensinamento de Aquino passou a ser a doutrina oficial da Igreja Católica Romana.
O propósito do ensinamento de Aquino era explicar como a "verdadeira presença" de Jesus poderia ser encontrada nos elementos do pão e do vinho. Isso foi importante porque os cristãos acreditam que a eucaristia é um sacramento, ou seja, um ato sagrado capaz de manifestar uma verdade religiosa (p. 226). Se Jesus não estivesse presente quando o pão e o vinho fossem compartilhados, o sacramento perdia o sentido.
Quando o pão não é pão?
De acordo com Aristóteles, "substância" é a identidade única de um objeto ou pessoa — o que caracteriza uma mesa, por exemplo. "Acidentes" são os atributos da substância e podem mudar sem alterar sua identidade — uma mesa pode ser de madeira e azul, mas se fosse de metal e rosa, continuaria sendo uma mesa.
Aquino desenvolveu essa ideia afirmando que a substância ou essência de um objeto ou pessoa (como Jesus) podia ser encontrada nos acidentes ou atributos de outros objetos (como o pão e o vinho). Além disso, um objeto também poderia ser convertido em outro, de modo que, quando um padre abençoava o pão e o vinho, a substância do pão e do vinho era convertida na substância do corpo e sangue de Jesus (daí o termo transubstanciação — "transformação de uma substância em outra"). Como os acidentes ou atributos do pão e do vinho continuavam a existir, a "verdadeira presença" de Jesus nesses elementos podia ser imaginada, mas não vista fisicamente.
A Igreja Católica Romana foi uma instituição formidável no final da Idade Média. De seu palácio em Roma, o papa controlava não só a vida religiosa da Europa, mas também a economia e a política do continente. A Igreja era uma grande proprietária de terras, e, pelo sistema feudal, muitos camponeses deviam a casa, a sobrevivência e o cuidado de sua alma à Igreja. Por outro lado, era importante para os nobres e governantes manter boas relações com a Igreja, obedecendo a suas leis, dando o dízimo e pagando taxas.
Nas primeiras décadas do século XVI, porém, uma revolução espiritual e social diminuiu o poder da Igreja católica, inaugurando um novo capítulo na história do cristianismo na Europa. Essa revolução, conhecida hoje como Reforma Protestante, baseava-se na ideia de que Deus podia ser reverenciado diretamente, sem a necessidade de uma hierarquia de sacerdotes autorizados para atuar como intermediários. Os reformadores submeteram os ensinamentos e tradições da Igreja à autoridade das escrituras, afirmando que a salvação só poderia ser alcançada pela fé pessoal, não pela obediência aos decretos eclesiásticos.
Renascença na Europa
No século XVI, a Europa já havia começado a se desvencilhar das antigas ideias da vida medieval. Os horizontes do mundo conhecido expandiam-se rapidamente. Exploradores espanhóis, portugueses e franceses empreenderam suas próprias expedições, seguindo o exemplo de Cristóvão Colombo, que descobrira a América em 1492. As áreas de transporte e comércio ganharam força, com os avanços da atividade marinha, e descobriu-se um novo caminho para a Índia, contornando o continente africano.
Na Europa, o sistema feudal foi abandonado em prol de novos reinos e cidades-estados controlados por governantes, cujo interesse era melhorar a vida econômica de sua região. Na vida cultural, artistas, filósofos e cientistas redescobriam o aprendizado clássico do passado, num movimento conhecido como Renascença. Em suma, um novo mundo se apresentava, e a Igreja, com suas tradições e estruturas antiquadas, parecia ter um papel menos importante nesse mundo.
Uma ideia equivocada de Deus
Os serviços litúrgicos da Igreja na Idade Média eram realizados em latim, uma língua que a maioria das pessoas não entendia. A versão oficial da Bíblia — uma tradução do original em hebraico e grego feita no século IV por são Jerônimo, conhecida como Vulgata ("de uso comum") também era em latim. Por conseguinte, a maioria dos fiéis da Igreja dependia dos padres para entender os fundamentos do cristianismo. Os padres, por sua vez, com grande poder sobre a mente dos fiéis, defendiam as tradições da Igreja católica, em vez de voltar aos textos originais.
Embora tal realidade conferisse certa coerência aos ensinamentos católicos na Europa, também apresentava perigos óbvios. Por exemplo: como as pessoas nas igrejas poderiam ter certeza de que os padres estavam ensinando o que constava da Bíblia? Como verificar se o que ouviam era verdade?
Conflito com Roma
A Reforma começou porque um monge alemão, Martinho Lutero, acreditava que as pessoas estavam sendo enganadas — às vezes, inconscientemente — pelos padres e líderes da Igreja católica da época.
Lutero irritou-se com a pregação do dominicano Johann Tetzel, que havia chegado ao povoado de Wittenberg, Saxônia, onde Lutero atuava como pároco e professor universitário. Tetzel vinha em missão de arrecadar fundos para a Igreja: em Roma, o papa Leão X precisava de dinheiro para construir uma grande igreja, a Basílica de São Pedro; e, mais perto de casa, o cardeal alemão Albrecht precisava pagar um empréstimo feito para custear sua posição. Tetzel havia sido autorizado a vender certificados, chamados de "indulgências", que supostamente livrariam as pessoas do sofrimento no purgatório após a morte pelos pecados cometidos. A concessão de indulgências já era uma prática comum na Igreja católica havia muitos séculos, mas Lutero ficou estarrecido com as estratégias de venda de Tetzel: assustar as pessoas com imagens terríveis de parentes falecidos sofrendo no purgatório. "Quando a moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai", lembrava Tetzel, e muitos dos paroquianos de Lutero resolveram pagar pelas indulgências, na esperança de comprar a salvação.
Lutero chegou à conclusão, pelos estudos da Bíblia e sobretudo do Livro de Romanos do Novo Testamento, de que a salvação era um presente de Deus para aqueles que tinham fé, não algo a ser comprado. O monge alemão registrou suas objeções à venda das indulgências em 95 teses, que enviou para seu bispo, o príncipe de Mainz, e afixou na porta da igreja em Wittenberg. Uma cópia das teses acabou sendo publicada, tornando-se um best-seller da noite para o dia.
A questão não se resumia à arrecadação de fundos para a construção de uma basílica e ao custeio dos gastos do arcebispo. Lutero questionou também a autoridade dentro da Igreja católica. Em 1520, o papa Leão X publicou um documento em resposta, explicando que Lutero deturpava os ensinamentos da Igreja e que ele e seus seguidores eram considerados hereges. Lutero foi convidado a se retratar, mas recusou-se, queimando sua cópia do documento do papa.
Autoridade das escrituras
O que Lutero queria dizer era claro: embora o papa fosse o líder da Igreja, ele não era a autoridade máxima em termos de fé. A autoridade máxima era a palavra de Deus, conforme registrada na Bíblia, as chamadas "Escrituras Sagradas". Segundo Lutero, os cristãos não precisavam das tradições e dos ensinamentos da Igreja para chegar a Deus e à salvação. Ao contrário, podiam ignorar essas tradições humanas, geralmente imprecisas, e descobrir a verdade diretamente na Bíblia — princípio que ficou conhecido como sola Scriptura, "somente as Escrituras". Os reformadores acreditavam que as pessoas não precisavam de "intermediários" para interpretar o significado das escrituras. Qualquer um podia ler a Bíblia e compreender o caminho da salvação de Deus, que, para Lutero, não envolvia indulgências, papas e muitas das outras práticas da Igreja católica.
O movimento de Lutero de rejeitar a tradição e voltar às fontes bíblicas originais encontrou terreno fértil no início do século XVI. O movimento humanista (não confundir com o humanismo moderno secular) já procurava retomar o aprendizado clássico que havia sido esquecido na Idade das Trevas. Humanistas cristãos como Erasmo de Roterdã (1466-1536) incentivavam seus alunos a estudar os idiomas originais da Bíblia (hebraico, no caso do Antigo Testamento, e grego, no caso do Novo Testamento) e os escritos dos primeiros cristãos, o patriarcas da Igreja. A Reforma conclamava todos a ler a Bíblia por conta própria.
Uma revolução impressa
Apesar de o envolvimento direto com as escrituras ser um pilar da Reforma Protestante, havia ainda um grande obstáculo a ser vencido: muitas pessoas eram analfabetas, e, mesmo que soubessem ler, a Bíblia era em latim e estava disponível apenas para alguns poucos privilegiados, pois cada exemplar tinha que ser escrito à mão. Iniciativas de traduzir a Bíblia para o vernáculo haviam sido duramente repreendidas pela Igreja católica. Em 1382, John Wycliffe chegara a traduzir a Bíblia para o inglês, mas essa versão não estava disponível para todos.
Na época de Lutero, porém, a prensa tipográfica, uma invenção de Johannes Gutenberg em Mainz, no ano de 1440, havia revolucionado o processo de publicação. Lutero aproveitou a nova tecnologia e traduziu a Bíblia para o alemão coloquial, publicando o Novo Testamento em 1522 e a Bíblia inteira em 1534. Graças à linguagem coloquial de Lutero e ao custo relativamente baixo da Bíblia impressa, os cristãos de toda a Alemanha logo puderam ler as escrituras por conta própria. Em pouco tempo, foram publicadas traduções da Bíblia para o francês e para o inglês, o que ajudou a disseminar as ideias reformistas pelo continente. Além da Bíblia, os prelos da Europa começaram a imprimir centenas de panfletos e livros escritos pelos reformadores, material vorazmente consumido por pessoas ávidas de novas ideias.
Protesto e cisma
A princípio, Lutero e seus seguidores queriam apenas criar uma reforma dentro da Igreja católica, daí o nome "reformadores". Todavia, numa série de reuniões eclesiásticas conhecidas como "dietas" (semelhantes a sessões de um parlamento), ficou claro que a Igreja católica não aceitaria as exigências dos reformadores, que incluíam independência do papa, liturgias realizadas no idioma local, em vez de em latim, e casamento para o clero. A esperança de uma reforma na Igreja católica deu seu último suspiro na Dieta de Speyer, em 1529.
Os seguidores de Lutero escreveram uma "carta de protesto", opondo-se à autoridade da Igreja. A partir desse momento, receberam o nome de "protestantes", pela rejeição à autoridade eclesiástica em favor da confiança na interpretação pessoal da Bíblia.
Apoio político
O movimento protestante foi respaldado por diversos príncipes alemães, que tiraram proveito da revolta religiosa de Lutero para assegurar a independência política de seus Estados. A primeira medida foi suprimir a fé católica e a influência da Igreja em seu território, segundo o lema Cuius regio eius religio ("Um reino, uma religião"). Em outras palavras, os príncipes escolhiam a Igreja para o povo. Uma vez estabelecido, o princípio protestante mudou definitivamente o cenário político e religioso da Europa, dando a outros governantes a estrutura necessária para livrar seu reino do domínio do papa. A Reforma Anglicana, por exemplo, começou quando o rei Henrique VI, antigo adversário dos reformadores, resolveu contornar a autoridade do papa para divorciar-se de sua esposa, Catarina de Aragão, e casar-se com Ana Bolena.
O protestantismo deu origem a uma série de ramificações na Igreja, chamadas de denominações. Como a Igreja católica havia sido a única Igreja da Europa por vários séculos, a Reforma Protestante produziu todo um conjunto de novas denominações. Embora os protestantes concordassem na questão de que a autoridade da Igreja Católica Romana devia ser rejeitada, eles não conseguiram chegar a um consenso quanto a um sistema de pensamento unificado. Conflitos entre alguns movimentos protestantes às vezes eram tão violentos quanto a disputa entre protestantes e católicos.
Proliferação protestante
Três grandes vertentes protestantes surgem nesse período turbulento: os luteranos, que seguiam as ideias de Martinho Lutero; os presbiterianos, influenciados pelo trabalho de João Calvino (veja na página ao lado); e os anglicanos, protestantes moderados da Inglaterra, que mantiveram muitos aspectos do catolicismo rejeitados pelos outros movimentos.
A Contrarreforma
Em certo sentido, os católicos tinham razão em querer controlar os meios de comunicação com seu rebanho. Sem o controle da autoridade papal, a Igreja perdeu a unidade de pensamento. Numa tentativa de deter o descontentamento em relação a corrupção/atitudes mundanas e recuperar "almas perdidas" do protestantismo, a Igreja católica empreendeu a Contrarreforma, também conhecida como Reforma Católica. Em 1545, líderes católicos reuniram-se na cidade italiana de Trento, visando restabelecer a superioridade da Igreja católica, em oposição à ascensão protestante. No final do Concílio de Trento, que durou dezoito anos, as doutrinas católicas tradicionais foram reconfirmadas, mas introduziram-se reformas quanto às práticas eclesiásticas inaceitáveis que desencadearam a Reforma.
Um Índice de livros proibidos foi publicado, com uma lista de 583 textos heréticos, entre eles a maioria das traduções da Bíblia e toda a obra de Erasmo, Lutero e Calvino (o Índice foi abolido em 1966). Iniciou-se um programa de construção de igrejas, com o propósito de erguer templos para abrigar milhares de fiéis. As igrejas, pela primeira vez, teriam um projeto acústico para os sermões vernaculares. Inácio de Loyola, ex-soldado e filho de um nobre espanhol, fundou a Companhia de Jesus, uma ordem de missionários também conhecida como jesuítas — indivíduos dispostos a ir aonde fosse necessário para disseminar o catolicismo. A Igreja também se valeu de um processo chamado Inquisição para reafirmar sua autoridade, perseguindo pessoas acusadas de heresia e utilizando métodos brutais para extrair a confissão dos acusados.
Fim da Idade das Trevas
A Contrarreforma teve algum sucesso na Itália, na Espanha e na França, mas poucas mudanças foram feitas na estrutura do catolicismo em outros países, e o movimento não conseguiu conter o avanço protestante. A partir dessa época, a Europa abrigou uma grande variedade de igrejas, que disputavam o coração e a mente dos cristãos. Embora os católicos pudessem alegar tradição, a ideia do protestantismo parecia mais atraente para o espírito da época. Um dos lemas da Reforma Protestante era: post tenebras lux, "após a escuridão, a luz". Depois da chamada Idade das Trevas, o protestantismo prometia retirar o ranço do catolicismo medieval e oferecer um novo mundo de ideias, com base no conceito de que ler e ouvir a Bíblia num idioma que a pessoa conseguisse entender daria lugar a um relacionamento com Deus sem a interferência de padres, papas e indulgências.
Desde os primeiros dias do cristianismo, os cristãos acreditam que, graças a Jesus, podem ter uma relação direta com Deus. Alguns cristãos, contudo, tinham dificuldade de participar dos cultos na igreja, julgando-os ritualísticos demais. No final da Idade Média, surgiu a busca por uma experiência mais pessoal com Deus, em reação à devoção formalizada. Essa busca ficou conhecida como misticismo cristão. Em vez de recitar as orações padrão, os cristãos místicos defendiam a contemplação silenciosa de Deus, que muitas vezes levava a experiências magníficas do amor divino. O misticismo foi adotado por muitos cristãos porque não requeria padres nem livros de reza para guiar o indivíduo, apenas a comunhão pessoal.
A jornada interior
O livro O castelo interior, um dos clássicos da experiência mística, escrito pela freira carmelita espanhola Teresa de Ávila (1515-1582), narra a jornada da alma cristã por seis moradas dentro de um castelo, até chegar à morada mais recôndita, habitada por Deus. Cada morada representa um nível mais íntimo de reza até que a alma atinja a meta de uma vida de perfeita união com Deus, que Teresa chamou de "casamento espiritual".
A Revolução Industrial representou um novo desafio para o cristianismo. Embora alguns poucos gozassem de uma riqueza sem precedentes, milhares viviam em estado de extrema pobreza, enfrentando problemas de saúde e terríveis condições de trabalho. Na Grã-Bretanha, os irmãos John e Charles Wesley, ambos clérigos anglicanos, responderam à necessidade de mudanças na sociedade com uma mensagem de "santidade social", que John descreveu como uma religião não somente interna e privada, mas publicamente engajada nas questões sociais do momento.
A mensagem cristã
Em maio de 1738, os irmãos Wesley, profundamente tocados pela leitura da obra de Martinho Lutero, chegaram a um novo entendimento quanto à necessidade da religião para a salvação. A experiência teve um profundo impacto em seu ministério e fez que eles se juntassem a um número cada vez maior de "evangelistas" — indivíduos que levavam a mensagem cristã para além dos limites da igreja, pregando em mercados, em campos e em casas. Os evangelistas acreditavam no poder de transformação pessoal e social do cristianismo, sendo responsáveis por importantes movimentos, como a abolição do comércio de escravos, sindicatos e o programa de educação gratuita para os filhos de trabalhadores. Os seguidores de Wesley ficaram conhecidos como metodistas, pela maneira prática e metódica da religião de se dedicar às necessidades dos outros.
A ideia de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, é aceita atualmente como fato. Mas no início do século XVII, essa teoria, publicada pelo astrônomo polonês Copérnico em 1543, contradizia os ensinamentos da Igreja católica, gerando uma polêmica que envolveu os maiores cientistas da época, entre eles Galileu Galilei, matemático italiano considerado herege por apoiar as ideias de Copérnico.
As visões da Igreja e de Galileu diferiam por causa das diferentes formas de se chegar à "verdade". De acordo com a Igreja, a verdade era revelada por Deus, apoiada em evidências na Bíblia de que a Terra era o centro do universo. A ciência, por outro lado, valia-se de observações experimentais — Galileu foi o primeiro a usar o telescópio na astronomia — para desenvolver teorias sobre o funcionamento do mundo. Até grande parte do período medieval, esses dois métodos conviveram pacificamente lado a lado.
No século XIII, por exemplo, o teólogo medieval Tomás de Aquino (p. 229) incentivou a exploração sistemática do mundo natural. Segundo Aquino, uma compreensão mais profunda da criação levaria a um melhor entendimento do Criador.
Esse respeito mútuo era concebível enquanto os resultados do pensamento científico coincidissem com o conceito de "revelação divina" (a verdade transmitida por Deus aos seres humanos por meio das Escrituras), mas deixou de existir quando os dois sistemas de pensamento chegaram a conclusões diferentes.
Embora a Igreja católica e a Igreja protestante garantissem a autenticidade da fé na revelação divina, os resultados da experimentação e da razão pareciam muito mais confiáveis. Perguntas complexas começaram a ser feitas, abalando as fundações da crença cristã em todo o mundo ocidental. No final do século XVIII, a Igreja estava em risco de perder o apoio popular, com um número cada vez maior de pessoas duvidando da racionalidade e da relevância do cristianismo. Em resposta, os pensadores cristãos tiveram que articular uma forma completamente nova de explicar como a religião e a ciência, a fé e a razão podiam coexistir.
Dos fatos aos sentimentos
Essa nova era do cristianismo foi anunciada pelo teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (veja à direita). Trabalhando como capelão num hospital de Berlim, ele entrou em contato com o romantismo, um movimento cultural resultante da reação ao racionalismo frio do Iluminismo. Os românticos enfatizaram a importância de sentimentos e emoções numa época em que as ideias e as realizações no mundo eram valorizadas unicamente por sua credibilidade e praticidade científica. Schleiermacher percebeu que, enquanto o cristianismo fosse avaliado de acordo com os mesmos critérios do conhecimento científico, a crença seria considerada irracional. Em vez de tentar provar a verdade do cristianismo como teoria científica (a exemplo de muitos de seus antecessores), Schleiermacher resolveu levar a crença ao plano dos sentimentos, conforme o modelo romântico. O teólogo afirmou que a ciência e a fé não eram forças rivais, mas complementares, pois as duas focavam em diferentes aspectos da vida humana.
A redefinição da religião
A ideia mais significativa de Schleiermacher foi a redefinição da natureza da religião. Em seu primeiro livro importante sobre o assunto, Sobre a religião (1799), ele apresenta três planos da vida humana: conhecimento, ação e sentimento. Embora os três planos estejam interconectados, eles não devem ser confundidos. De acordo com Schleiermacher, o conhecimento pertence à ciência, a ação pertence à ética, e o sentimento, à religião. Schleiermacher acreditava que o problema do cristianismo é que ele havia focado demais no conhecimento e na ação, e pouco no sentimento. Por isso, corria o risco de ser solapado pelo racionalismo do mundo moderno. Por um lado, a razão científica opunha-se a algumas crenças fundamentais do cristianismo, como os milagres e a ressurreição de Jesus. Por outro, Kant e outros filósofos afirmavam que a moralidade baseava-se em princípios universais, não no conteúdo da Bíblia. O desafio da ciência e da filosofia ao cristianismo, no entanto, não abalou Schleiermacher. Ao contrário, serviu como oportunidade de retomar o que ele considerava estar na essência da religião cristã: "o gosto do infinito". Em seu livro A fé cristã (1821-1822), Schleiermacher reinterpreta sistematicamente a teologia do cristianismo como uma descrição da experiência cristã. Por exemplo: de acordo com Schleiermacher, uma declaração como "Deus existe" não é uma afirmação sobre a existência de Deus, mas a descrição do sentimento de que dependemos de algo maior do que nós mesmos.
Um registro da experiência
Em meados do século XIX, diversos estudiosos, quase todos radicados na Alemanha, utilizavam uma forma de análise dos textos bíblicos conhecida como "criticismo histórico", que consistia em estudar as fontes originais da Bíblia para reinterpretar seu conteúdo dentro de um contexto histórico. Ao focar no modo como a Bíblia foi escrita e compilada um conjunto de documentos humanos, essa análise parecia despojar o texto sagrado de suas origens sobrenaturais (a crença da autoria divina). Consequentemente, muita gente passou a descrer na Bíblia como a palavra de Deus.
A visão de Friedrich Schleiermacher, no entanto, ajudou a salvar a Bíblia da suposta irrelevância. Segundo Schleiermacher, como a religião está vinculada sobretudo à experiência, a Bíblia é um objeto extremamente importante enquanto material de registro da experiência religiosa, servindo como guia definitivo da vivência cristã, urna vez que os cristãos poderiam comparar seus sentimentos de dependência de Deus com os sentimentos descritos no texto sagrado.
Essa abordagem da Bíblia ficou conhecida como a visão "liberal", em contraposição à visão mais "conservadora", que afirmava - a despeito do criticismo histórico que a Bíblia continha fatos sobre Deus, não apenas sobre a experiência humana. A tensão entre essas duas visões permeia o protestantismo desde então.
Consequências imprevistas
Schleiermacher desenvolveu sua ideia de experiência religiosa para impedir que o cristianismo fosse relegado à história, enquanto a ciência definia o caminho do futuro. Ao atribuir a religião e a ciência a diferentes esferas da vida humana (a religião ao sentimento e a ciência ao conhecimento), Schleiermacher conseguiu fazer com que as duas disciplinas coexistissem.
No entanto, embora muitos cristãos tenham aceitado a tese de Schleiermacher como a solução para o conflito entre ciência e religião, outros criticaram a postura de relegar o cristianismo à esfera dos "sentimentos", identificando ainda uma consequência inesperada: o cristianismo não poderia continuar gozando de autoridade no âmbito público se fosse associado a sentimentos, uma vez que sentimentos são atributos pessoais. Essa visão divergia da mensagem original da fé cristã referente à chegada do reino de Deus no mundo todo (não apenas na esfera das experiências religiosas), indicando um importante papel social.
Tomando uma posição
No século XX, o movimento liberal foi duramente criticado por uma nova geração de estudiosos, entre eles o teólogo suíço Karl Barth. Barth dizia-se bastante consternado com o fato de que os professores de teologia liberal não tomaram uma posição contra o nazismo alemão da década de 1930; ele afirmou que tal fato se deu porque a teologia de Schleiermacher acabou ganhando um espaço de muita influência dentro da Igreja. Segundo o teólogo suíço, a experiência cristã pessoal poderia facilmente cair na indiferença às necessidades do mundo externo.
Barth dizia que para o cristianismo ter sucesso contra alguns dos abusos da ciência e do conhecimento como o genocídio, a corrida armamentista e o armamento nuclear — no mundo moderno, a teologia cristã teria de só basear não apenas em sentimentos pessoais.
Atualmente, os pensadores cristãos ainda enfrentam o desafio de explicar como as pessoas podem acreditar no que a Bíblia diz sobre Deus, quando o que ela diz sobre o mundo é tão facilmente questionado pelo pensamento científico. Muitos cristãos responderiam com uma versão modificada do argumento de Schleiermacher. A Bíblia fala da mesma realidade descrita pela ciência, história, política e outras ciências sociais, mas aborda questão diferentes. Em vez de "Como o mundo veio a existir?", a questão de interesse bíblico é: "Por que o mundo veio a existir?". Ciência e fé — as perguntas de "como" e "por quê" — não invalidam uma à outra, mas se complementam, ajudando os cristãos a terem uma visão mais abrangente do universo que Galileu observou em seu telescópio.
Desde os primórdios, o judaísmo e o cristianismo debateram-se com questões complexas sobre a natureza de Deus e sua relação com a humanidade. Para alguns, Deus é um ser vingativo, que julgará as pessoas no final dos tempos, além de decidir se responde ou não a nossas rezas. Para outros, Deus é uma presença onisciente que definiu o curso da história e tem motivos para tudo o que acontece, de modo que cada detalhe do futuro já foi planejado com antecedência. Nessa visão, Deus não responde aos pedidos de ajuda dos humanos porque tem absoluto conhecimento do resultado de qualquer situação.
A importância da reza
Para compreender a função da reza na religião cristã, é fundamental compreender a relação entre Deus e tudo o que acontece. Se Deus já conhece passado, presente e futuro, rezar - comunicar-se com Deus por meio de louvação, pedidos, pensamentos, meditações ou alguma outra forma espontânea de devoção é irrelevante. Dizer a Deus o que ele já sabe não surtirá muito efeito em termos de mudança no futuro. No entanto, se o futuro não tiver sido predeterminado por Deus e for realmente aberto, a reza se torna uma parte essencial de sua construção.
Dentro da mente de Deus
Embora a teologia cristã tradicional considere Deus como uma entidade onisciente com total conhecimento de passado, presente e futuro, alguns teólogos do século XX passaram a rejeitar a ideia de "presciência" (conhecimento do futuro). Se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não teríamos liberdade de escolha. Além disso, a presciência comprometeria a bondade essencial de Deus, pois mesmo com conhecimento prévio do mal ele não estaria fazendo nada para evitá-lo — como no caso da criação do mundo, em que Deus já saberia que os humanos pecariam.
O futuro é aberto
A visão cristã clássica da presciência de Deus baseia-se na crença de que Deus existe fora dos limites do tempo, de modo que o que é futuro para os seres humanos (algo inexistente e desconhecido) é passado para Deus (algo existente e conhecido). Essa visão, porém, está mais relacionada com a filosofia grega do que com o verdadeiro pensamento cristão. A Bíblia descreve Deus como uma presença que acompanha ativamente seu povo, Ele não é apenas um observador externo e atemporal. Além disso, os cristãos acreditam que a vinda de Jesus como ser humano é uma clara indicação de que Deus não está fora do tempo ou da realidade da vida humana na Terra, uma vez que Ele teve uma vida humana também, com todas as suas limitações. Consequentemente, se o futuro ainda não existe, nem para os seres humanos nem para Deus, o futuro está totalmente aberto. Dentro dessa perspectiva, Deus não é um espectador distante, mas um participante ativo do processo histórico, uma presença que escuta rezas e pedidos, respondendo às necessidades dos seres humanos e caminhando a seu lado na jornada ao longo da vida.
De acordo com a tradição islâmica, por volta de 582 d. C., Bahira, um eremita cristão que vivia no deserto sírio, avistou um menino que passava com uma caravana e, após conversar com ele, chegou à conclusão de que ele tinha o dom da profecia. O menino estava destinado a ser grande, previu Bahira, e deveria ser bem cuidado.
O menino da história era Maomé (Muhammad ibn Abdallah) que se tornou o profeta do islamismo e, segundo os muçulmanos, o último mensageiro de Deus. Isso significa que houve mensageiros enviados por Deus (em árabe, Alá) antes de Maomé, como Musa (Moisés) e Isa (Jesus). Para Musa (Moisés), Deus revelou o Taurat, ou Torá, para guiar os judeus. Para Isa, Deus deu o Injil, uma escritura perdida traduzida como "Evangelho", mas que não se assemelha em nada com a forma dos quatro livros canônicos do cristianismo.
Os muçulmanos consideram os judeus e os cristãos como "Pessoas do Livro", porque, como eles próprios, são monoteístas e possuem uma escritura sagrada revelada por Deus. De certa maneira, os muçulmanos valorizam as revelações feitas por Deus aos mensageiros anteriores de Maomé, mas também acreditam que essas revelações foram corrompidas. Os judeus introduziram elementos na Torá que não vieram direto de Deus. Da mesma forma, os seguidores interpretaram equivocadamente suas mensagens e distorceram o Evangelho, deturpando as intenções originais de Deus. Segundo o islamismo, portanto, as escrituras judaicas e cristãs atuais já não representam a revelação pura de Deus.
A palavra incorrupta de Deus
Para corrigir a distorção, Deus enviou sua palavra uma última vez, na forma do Alcorão, a Maomé — seu último mensageiro. O islamismo, portanto, não é visto pelos muçulmanos como uma nova religião com um novo livro sagrado. Ao contrário, é considerado a revelação original de Deus, pura e única, que suplanta as revelações feitas a Moisés e Jesus, corrompidas mais tarde por seus seguidores. Além disso, o islamismo marca o fim das revelações. Maomé é o "selo da profecia", o último dos mensageiros especiais de Deus.
No início do século VI, Maomé assumiu a autoridade de um profeta, cuja missão era pregar em louvação ao único Deus verdadeiro. Muitos judeus, cristãos e politeístas de Meca acreditaram em sua mensagem. Por conta das perseguições a essa incipiente comunidade de muçulmanos, Maomé abandonou Meca e foi para Medina, onde a comunidade muçulmana cresceu.
Devido à importância de Maomé no islamismo, os muçulmanos sempre olharam para suas palavras e suas ações como modelo para a vida muçulmana. Grande parte de seus ensinamentos e vivência está registrada na Suna, um compêndio das frases de Maomé (hadith) e de suas ações (suna), que serve como base para os muçulmanos em busca de orientação.
De acordo com a religião islâmica, Deus revelou sua vontade à humanidade por meio da natureza, da história e, acima de tudo, de sua palavra. A natureza, ou criação, de Deus, é um sinal de sua existência. Na história, a ascensão e queda de impérios são sinais da soberania divina. O mais importante, porém, é que a vontade de Deus é revelada em sua palavra e transmitida por seus mensageiros.
Segundo o islamismo, a palavra e a vontade de Deus estão contidas no Alcorão, o livro revelado ao profeta Maomé, o escolhido por Deus para ser o último mensageiro. O Alcorão é composto por ayats — versículos, ou "sinais", que revelam ao mundo o que Deus deseja e ordena. Outro nome do Alcorão é al-Tanzil, que significa "enviado de cima". Para os muçulmanos, o Alcorão é a palavra literal de Deus que foi envida do céu para a humanidade.
Recitação
Segundo a tradição islâmica, Maomé passou muitos dias meditando numa caverna no monte Hira, com vista para Meca. Uma noite, o anjo Jibril (nome árabe para Gabriel) apareceu para ele na caverna, convocando-o à profecia e ordenando que ele recitasse. O que aconteceu em seguida foi a primeira revelação do Alcorão, que foi sendo revelado a Maomé em intervalos de tempo ao longo de um grande período, para que ele fosse capaz de recitá-lo aos outros (qur 'an, corão, em árabe, significa "recitação"). As revelações, muitas das quais Maomé recebeu em estado de transe, começaram em 610 d.C. e duraram 22 anos. No início, Maomé memorizava as revelações e as transmitia oralmente para seus seguidores, que também as decoravam. Com o tempo, as revelações passam a ser escritas, às vezes pelos secretários de Maomé, outras vezes por seus discípulos. Partes do Alcorão foram encontradas em ossos de animal, couro, pedras, folhas de palmeira e pergaminhos.
A versão padronizada do Alcorão em livro foi compilada em meados do século VII, logo após a morte de Maomé. Os muçulmanos acreditam que essa compilação e a ordenação dos 114 capítulos e 6 mil versículos que a compõem foram inspirados por Deus.
Muitas seções do Alcorão correspondem a partes da Bíblia hebraica e do Novo Testamento cristão. No entanto, de acordo com a visão muçulmana, esses livros sagrados foram corrompidos (pp. 252-253). O Alcorão seria, portanto, uma revisão e uma ampliação daquelas primeiras revelações.
A ordem das suratas
Os capítulos (suratas) e versículos que compõem o Alcorão não estão organizados em ordem cronológica ou por assunto, mas de acordo com seu tamanho. Os maiores capítulos encontram-se no início, e os menores, no final. De um modo geral, os capítulos abrangem uma grande variedade de assuntos, oferecendo orientação sobre devoção, política, casamento, vida familiar, cuidado com os necessitados e até questões de higiene, assuntos de interesse comunitário e economia.
Numa tentativa de classificar e datar os capítulos do Alcorão, estudiosos atuais criaram um sistema para identificá-los. Nesse método de classificação, as revelações feitas a Maomé supostamente no início de sua missão profética em Meca são conhecidas como os capítulos de Meca. As primeiras dessas revelações de Meca são bastante rítmicas e ricas em imagística. Muitas começam com juramentos. Por exemplo, o capítulo 95 do Alcorão começa da seguinte maneira: "Pelo figo e pela oliva, pelo monte Sinai e por esta metrópole segura".
Capítulos de Meca posteriores são mais serenos e contêrn diversos exemplos da verdade da mensagem de Deus extraídos da natureza e da história. Esses capítulos são mais formais que outros e abordam questões doutrinais. Deus costuma ser chamado nesses capítulos de "o Misericordioso".
As revelações feitas a Maomé no período em que ele vivia na cidade de Medina são classificadas pelos estudiosos como os capítulos de Medina. Esses capítulos são bem diferentes dos de Meca, porque, nesse momento, Maomé já não estava liderando um grupo incipiente de seguidores. Ele havia se tornado o chefe de uma enorme comunidade independente de muçulmanos.
Como resultado, os capítulos de Medina caracterizam-se menos por temas de doutrina e provas dos sinais de Deus e mais por questões legais e sociais, definindo como as regras deviam ser aplicadas para regular a vida dentro da crescente comunidade muçulmana.
Por exemplo, o capítulo 24 do Alcorão diz que os muçulmanos devem trazer quatro testemunhas para uma acusação de adultério - uma importante salvaguarda para as mulheres numa sociedade em que o mero fato de um homem e uma mulher sem grau de parentesco andarem juntos já é considerado suspeito. O depoimento daqueles que não apresentam as testemunhas necessárias deve ser descartado, e essas pessoas, severamente castigadas, conforme esse capítulo do Alcorão.
Memorização e recitação
Estudiosos atuais acrescentaram uma série de capítulos e versículos ao Alcorão para facilitar a busca de determinados trechos. Para os muçulmanos, entretanto, os capítulos são reconhecidos por palavras específicas que aparecem dentro do texto. Por exemplo, o segundo capítulo do Alcorão, o mais longo de todo o livro, é conhecido como "A vaca". Recebeu esse nome pela história de uma vaca que relutou em ser sacrificada pelos israelitas. Segundo o relato, a carne do animal sacrificado servia para ressuscitar vítimas de assassinato, para que elas pudessem identificar o assassino.
Os muçulmanos raramente se referem a versículos individuais pelo número, preferindo citar o início do trecho em questão. Essa forma de referência, evidentemente, requer não só grande familiaridade com o texto, mas também uma ótima capacidade de memorização. Muitos muçulmanos memorizam grandes trechos do Alcorão, e alguns sabem o livro inteiro de cor.
Saber o Alcorão de cor traz grande prestígio e bênçãos. Os muçulmanos que conseguem realizar essa façanha são conhecidos como hafiz, ou "guardiões", do Alcorão. Um hafiz mantém vivo o livro sagrado de Deus e é comumente chamado de xeque, um título de grande respeito. Esses muçulmanos acabam se tornando recitadores do Alcorão, uma função exercida durante as rezas diárias e outros rituais e cerimônias importantes. A recitação do Alcorão é um evento tão valorizado que os auditórios costumam lotar.
O Alcorão tem um lugar preeminente no islamismo e no plano de Deus para o mundo, sendo considerado o milagre divino trazido pelo profeta Maomé - o único milagre, aliás, porque Maomé não realizava milagres. Os muçulmanos acreditam que o Alcorão baseia-se num protótipo celestial, um livro escrito em árabe que está com Deus no céu. Isso significa que, embora o Alcorão tenha sido entregue a Maomé na forma de recitações orais, e só mais tarde registrado por escrito, o livro físico é considerado sagrado.
Respeito pelo Alcorão
A crença muçulmana de que a escritura sagrada islâmica existe no céu faz com que o manuseio da versão material seja uma questão de grande cuidado e delicadeza. Existem diversas diretrizes sobre como os muçulmanos devem tratar o livro sagrado. O Alcorão, e sobretudo o texto em árabe, nunca deve ser deixado no chão ou num lugar sujo. Quando colocado junto a outros livros, deve estar sempre em cima. Quando posto numa estante, deve ocupar a prateleira mais alta, sem nada abaixo ou acima dele.
Além disso, antes de pegar no Alcorão, os muçulmanos devem lavar-se para estar ritualmente limpos, como na hora de cultuar a Deus. O livro sagrado deve ser carregado com todo o cuidado, e por esse motivo ele costuma ser levado dentro de uma bolsa, para evitar qualquer estrago. Se cair no chão sem querer, deve ser honrado, às vezes com um beijo, e recolocado num lugar seguro. Alguns muçulmanos fazem uma doação de caridade nesses casos.
O respeito sagrado ao Alcorão também é demonstrado em relação a antigos exemplares desgastados pelo tempo, que não podem ser jogados fora e devem ser enterrados em local apropriado. Alguns muçulmanos queimam os exemplares que já não dá para usar.
As regras para descartar textos sagrados valem também para qualquer papel, joia, decoração ou outro objeto no qual os versículos do Alcorão tenham sido escritos. Por esse motivo, algumas regiões de maioria muçulmana oferecem "lixeiras" especiais para que esse material possa ser coletado e descartado de maneira adequada.
Grande parte das regras de respeito aplica-se não só ao texto escrito, mas também à recitação do Alcorão. Como o Alcorão é considerado a palavra literal de Deus, é como se ela estivesse viva ao ser pronunciada. Por isso, muitos muçulmanos cobrem a cabeça nas rezas em voz alta ou até mesmo durante o estudo pessoal do texto sagrado.
O papel da linguagem
Devido à crença de que o protótipo celestial do Alcorão está escrito em árabe, essa língua é considerada o idioma sagrado do islamismo e também a linguagem de Deus. Os muçulmanos sentem, portanto, que o Alcorão perde o status de revelação divina quando é traduzido para outros idiomas. Por conseguinte, as traduções do Alcorão costumam vir acompanhadas do texto original em árabe, mas até esses textos são considerados interpretações ou traduções do original. Não há como compará-los com o Alcorão original em árabe.
Como o árabe do Alcorão é considerado uma língua divina, outros aspectos da vida e do pensamento muçulmano giram em torno do idioma. Por exemplo, muçulmanos do mundo inteiro decoram o Alcorão e as rezas em árabe, mesmo que não entendam o que estão dizendo.
Talvez a questão mais importante seja que o texto do Alcorão em árabe, por ser sagrado, apresenta certas características em comum com seu autor, Deus. O Alcorão é, portanto, perfeito, eterno, incriado e imutável. Segundo essa doutrina, conhecida como i'jaz al-Qur'an (a "miraculosidade" ou "inimitabilidade" do Alcorão), a linguagem, a forma literária e as ideias reveladas no Alcorão são irreproduzíveis, e não há empreendimento humano capaz de se igualar a elas. Tudo em relação ao Alcorão, desde a construção gramatical e o som das palavras, até suas profecias, é considerado miraculoso e inigualável. De acordo com os muçulmanos, qualquer tentativa de se igualar ao Alcorão ou superá-lo fracassará.
Outro aspecto da natureza miraculosa do Alcorão é a repetição de temas básicos. Qualquer seção do Alcorão apresentará, em essência, a mesma mensagem. Esse estilo formalista e quase abreviado é desafiador para não muçulmanos e pessoas familiarizadas com a estrutura narrativa de outras escrituras sagradas. Para os muçulmanos, contudo, o estilo do Alcorão é uma prova irrefutável de sua incomparável beleza.
Além de ser o livro mais sagrado do islamismo, o Alcorão é considerado por muçulmanos e até por muitos não muçulmanos como a obra-prima da literatura árabe. Assim, é estudado por sua prosa poética tanto quanto é usado para orientação divina. Mas o respeito e a valorização referentes ao Alcorão não se limitam a sua mensagem ou recitação. A própria escrita em árabe tem um valor visual, desempenhando um papel central na arte islâmica.
A arte do islä
Motivada pelo desejo de evitar qualquer forma de idolatria, a tradição muçulmana proibiu ilustrações figurativas no Alcorão. No entanto, imagens abstratas são permitidas, e a própria escrita árabe acabou se tornando uma elevada forma de arte. O Alcorão foi escrito com linda caligrafia, muitas vezes utilizando-se tintas coloridas e preciosas folhas de ouro.
Como resultado da proibição de retratar animais ou figuras humanas, os artistas desenvolveram o estilo arabesco islâmico, uma forma de decoração artística que se caracteriza pelo entrelaçamento de linhas retas ou curvas, ramagens, flores etc. Essas ilustrações — que aparecem em mosaicos no Alcorão e dentro de mesquitas — também possuem uma importante mensagem espiritual: o infinito emaranhado de formas e padrões, aparentemente sem início nem fim, assemelha-se à infinidade de Alá.
De acordo com a tradição narrada por Abdallah ibn 'Umar ibn al-Khattab, um dos companheiros de Maomé, o profeta sintetizou o islamismo dizendo que a religião baseava-se em cinco princípios: "Testemunhar que não nenhum outro Deus além de Alá e que Maomé é seu mensageiro, orar cinco vezes ao dia, fazer caridade, fazer a peregrinação a Meca, e observar o jejum durante o mês de Ramadá".
Conhecidas como 'ibadat (atos de devoção) e geralmente chamadas de "pilares do islamismo", essas cinco práticas representam a essência da religião, e todas as ramificações do islamismo as aceitam e realizam.
A profissão de fé
Embora não representem a totalidade do islamismo como religião, os pilares servem como uma espécie de resumo das obrigações mínimas a serem realizadas pelos muçulmanos. Sua simplicidade e objetividade são intencionais, pois os muçulmanos devem seguir a Deus sem o peso das estipulações religiosas. Como está escrito no Alcorão: "[Deus] não vos impôs dificuldade alguma na religião". Com isso em mente, o primeiro pilar, crença central do islamismo, é simplesmente reconhecer a singularidade do único e verdadeiro Deus e de seu mensageiro Maomé. Essa profissão de fé, conhecida como shahada (testemunho), é o único caminho para um indivíduo se tornar muçulmano. A shahada é sussurrada no ouvido de um muçulmano no momento de seu nascimento e de sua morte. Além disso, é oferecida como testemunho ao longo do dia, durante as orações. Apesar de sucinta, a shahada e composta de duas partes significativas. Na primeira parte, os muçulmanos prestam testemunho da unicidade absoluta de Deus, o que confirma uma das crenças centrais do islamismo (tawhid, ou singularidade divina), mas também serve como lembrete de que o politeísmo (crença em mais de um deus) e a adoração a qualquer entidade além de Deus constituem o maior pecado da religião.
A segunda parte da shahada lembra que Maomé não é apenas um profeta de Deus, mas seu mensageiro especial, acima de qualquer outro profeta anterior a ele. Maomé é aclamado também como o profeta final.
Compromisso com as orações
O segundo pilar do islamismo é a salat (oração). Embora os muçulmanos façam rezas e pedidos pessoais, as principais orações do islamismo são prescritas, bastante formais e reguladas, representando uma oportunidade de devoção a Deus.
Os muçulmanos devem rezar cinco vezes por dia: ao amanhecer, ao meio-dia, à tarde, no pôr do sol e à noite. Antigamente, e até hoje em alguns lugares, o líder das orações, ou muezim, subia no minarete (torre alta do lado de fora da mesquita) e convocava os muçulmanos para as rezas, entoando a shahada e convidando as pessoas à mesquita. Hoje em dia, os muezins anunciam a hora das orações com microfone e alto- falante. Às vezes, utiliza-se uma gravação. Os muçulmanos, de um modo geral, reúnem-se para rezar nas mesquitas, mas quando isso não é possível, as orações podem ser realizadas em qualquer lugar sozinho ou em grupo.
As orações são precedidas por rituais de purificação, uma prática tão importante no islamismo que Maomé teria dito que ela equivalia à "metade da religião". Nas cinco rezas diárias, os muçulmanos começam lavando as mãos, a boca. e as narinas, depois o rosto inteiro e os antebraços, passando a mão molhada pela cabeça e limpando pés e tornozelos. O número de vezes que cada parte do corpo é limpa varia de acordo com a vertente islâmica. Depois de ritualmente limpos, os muçulmanos recitam suas orações voltados para Meca, a cidade sagrada do isla. Nas mesquitas, essa direção é marcada por um nicho decorado conhecido como mihrab. Fora da mesquita, os muçulmanos encontram a direção exala de Meca utilizando bússolas ou até mesmo aplicativos eletrônicos. Quem reza fora da mesquita costuma fazê-lo sobre um tapete especial de orações, significando que a reza está sendo realizada em local limpo.
As orações começam com a declaração "Deus é soberano", e depois os muçulmanos recitam uma série de orações determinadas que incluem, entre outros trechos, o capítulo de abertura do Alcorão: "Em Nome de Deus Clemente Misericordioso. Louvado seja Deus, Senhor do Universo. O Clemente Misericordioso. Soberano do Dia do Juízo Final. A Ti adoramos e a Ti pedimos ajuda. Guia-nos à senda reta. À senda dos que agraciaste, não a dos abominados, nem a dos extraviados". A profissão de fé é repetida e, em seguida, é dito: "Possam a paz, a misericórdia e a bênção de Deus recair sobre ti". Essas orações são feitas em árabe e acompanhadas de genuflexões, prostrações e movimentos com as mãos.
Para os observadores de fora, os rituais da oração islâmica podem parecer complexos e rígidos demais. Para os muçulmanos, porém, os hábitos de purificação ritualística e orações prescritas permitem que eles se dediquem a Deus livremente, sem o peso do interesse próprio. Quando estão juntos rezando, os muçulmanos são lembrados da grandeza de Deus, sabendo que seus companheiros no mundo inteiro estão cultuando a Deus da mesma maneira.
A importância da caridade
O terceiro pilar do islamismo é a zakat (caridade). Uma preocupação central do Alcorão é o cuidado com os pobres, marginalizados e menos favorecidos. Consequentemente, os muçulmanos devem cuidar do bem-estar social e econômico de sua comunidade, não somente com atos de caridade, mas também com o pagamento de uma taxa de contribuição. Um muçulmano adulto em condições de fazê-lo deve oferecer uma porcentagem de tudo o que arrecadou. Essa porcentagem costuma ser de 2,5%, segundo definido pela Suna, por exemplo, "um quarto de um décimo" de prata. Em alguns casos, a doação pode chegar a 20% da produção agrícola ou industrial.
De um modo geral, a caridade é um ato voluntário, mas em alguns países é regulamentada pelo governo. Nesses casos, o indivíduo recebe um boleto para pagar a taxa ou pode deixar a contribuição em caixas específicas nas mesquitas ou em outros lugares.
Além de ser considerada um ato de devoção a Deus, a caridade, segundo a tradição islâmica, não pertence ao indivíduo. Se tudo o que os muçulmanos recebem vem como resultado das bênçãos de Deus, o mais natural é doar parte dessas bênçãos para aqueles que receberam menos. A caridade, portanto, não é vista como uma boa ação no islamismo, mas um dever com aqueles que merecem e precisam de ajuda. De acordo com o Alcorão, o propósito da caridade é ajudar os pobres, órfãos, viúvas e endividados, além de causas que visem ao fim da escravidão e à disseminação do islamismo.
Observância de Ramadã
O quarto pilar do islamismo é o sawm (jejum), sobretudo o jejum de Ramadă, o nono mês do calendário lunar islâmico. Na penúltima noite desse mês de jejum é celebrado o momento em que Maomé recebeu a primeira revelação do Alcorão por intermédio do anjo Jibril. Muçulmanos devotos rezam a noite inteira, com a esperança de que suas orações sejam ouvidas. Em geral, no mês de Ramada, todos os muçulmanos fisicamente capazes abstêm-se de comida, bebida e relações sexuais durante o dia. O momento é usado para purificação e reflexão sobre o caminho espiritual. O indivíduo deve avaliar as ações erradas que realizou, lembrar-se da misericórdia divina e contemplar as necessidades da comunidade.
Todos os dias antes de amanhecer, as famílias se reúnem para uma pequena refeição, que deve sustentá-las ao longo do dia. À noite, depois de escurecer, visitam-se e realizam uma grande refeição, que geralmente inclui comidas especiais, como tâmara. Segundo a tradição, Maomé quebrava o jejum com esse fruto.
Muitos muçulmanos vão à sua mesquita local para a reza da noite durante o mês de Ramada e fazem uma oração especial recitada apenas no mês de jejum. Alguns muçulmanos aproveitam Ramada para realizar atos especiais de devoção, como recita o Alcorão inteiro.
O Ramadă termina com uma celebração obrigatória, uma festividade de grande alegria conhecida como "Eid al-Fitr", que marca o fim do mês de jejum. As famílias vão à casa umas das outras para comer juntas e trocar presentes. As lojas costumam ficar fechadas em parte da celebração, que chega a durar vários dias.
Peregrinação a Meca
O quinto pilar do islamismo é o hajj: peregrinação à sagrada cidade de Meca, na Arábia Saudita. Todo muçulmano adulto com condições físicas e financeiras de realizar a viagem deve ir a Meca pelo menos uma vez na vida. Muitas agências de viagem até oferecem pacotes especiais para assegurar uma experiência memorável a indivíduos ou grupos. Quando os peregrinos chegam perto da cidade, costumam gritar: "Estou aqui, Deus, estou aqui!" O foco da peregrinação é a Caaba, a estrutura em forma de cubo que fica no centro da Grande Mesquita de Meca. De acordo com a tradição, a Caaba foi originalmente construída por Ibrahim (Abraão, em árabe) e seu filho Ismail (Ismael) para guardar uma pedra negra recebida do anjo Jibril (Gabriel). A pedra simboliza a aliança de Deus com Ismail. Em tempos pré-islâmicos, a Caaba também era um local de peregrinação para seguidores de religiões politeístas. Naquela época, a Caaba continha diversos santuários para diferentes deuses tribais, mas, sob orientação de Maomé, esses santuários foram desfeitos e o local foi restaurado como um símbolo de devoção a um único Deus, Alá.
Antes de chegar à Caaba, os peregrinos muçulmanos devem purificar-se. Os homens vestem manto branco e cortam o cabelo. Alguns raspam a cabeça. Algumas mulheres também vestem manto branco, mas muitas preferem usar roupas simples, de acordo com a tradição de seu país de origem. Nesse estado de pureza, homens e mulheres abstêm-se de ter relações sexuais, usar joias ou perfume, tomar banho, discutir ou fazer qualquer coisa que possa afetar esse estado. Em essência, todos vestidos de branco representam não só a pureza, mas a união e a igualdade entre todos os seres humanos. Por um lado, não deve existir hierarquia e desunião no hajj, cujo foco é a total devoção a Deus. Por outro, a grande variedade das vestimentas das peregrinas reflete a diversidade da comunidade muçulmana global, unida na peregrinação à Grande Mesquita.
Ritos de Meca
Dentro da Grande Mesquita, os peregrinos realizam o tawaf, dando sete voltas em sentido anti-horário ao redor da Caaba. Eles tentam se aproximar ao máximo da estrutura e, se possível, beijar ou tocar a pedra negra exposta em um dos cantos da Caaba. Nos sete dias seguintes, os peregrinos rezam na Grande Mesquita e participam de cerimônias. Por exemplo, beber água do poço de Zanzam dentro da mesquita. De acordo com a tradição muçulmana, esse poço foi criado milagrosamente por Deus para sustentar o recém-nascido Ismail no deserto com sua mãe Hajar (Agar, em árabe). Alguns peregrinos correm entre as duas colinas de Safa e Marwa, em referência à busca de água de Hajar. Outro rito comum é viajar para Mina e o monte Arafat, onde os muçulmanos rezam para Deus, pedindo perdão pelos pecados de toda a comunidade. De lá, os peregrinos retornam a Meca, à Grande Mesquita, para um tawaf de despedida.
A peregrinação termina com uma festividade em homenagem a Ibrahim e sua obediência a Deus. Mesmo os muçulmanos que não fizeram a peregrinação celebram essa festividade, que dura três dias. O que sobra do banquete é distribuído aos pobres e necessitados.
Quem viaja a Meca honra a lealdade de Ibrahim num ato simbólico de apedrejamento do diabo, jogando pedras em três pilares que representam o diabo. Muitos peregrinos terminam a peregrinação visitando a cidade de Medina e a mesquita onde o profeta Maomé está enterrado.
Aliviando o peso
Os cinco pilares do islamismo representam a religião muçulmana como um todo, refletindo a "carga leve" de Deus sobre seus seguidores. No entanto, apesar da simplicidade do islamismo, diversas dificuldades práticas podem ser encontradas por quem quiser seguir o que foi estipulado. E se não for possível descobrir a direção da reza? E se um muçulmano não conseguir jejuar em um dos dias de Ramada? Deus oferece uma solução simples para obstáculos como esses: "Tanto o levante como o poente pertencem a Deus, e, aonde quer que vos dirijais, notareis Seu Rosto, porque Deus é Munificente, Sapientíssimo".
O ponto principal para os muçulmanos é dirigir-se a Deus em devoção da melhor maneira possível, até chegar o momento em que eles poderão reverenciá-lo apenas como seus companheiros de fé.
Quando o profeta Maomé, fundador do Islamismo, morreu em 632, a autoridade islâmica já havia sido estabelecida em toda a península arábica, por meio de operações e conquistas militares. No entanto, como os dois filhos homens de Maomé faleceram durante a infância, a comunidade muçulmana ficou dividida sobre quem deveria sucedê-lo.
Segundo a tradição islâmica, Maomé possuía o direito divino de governar, mas tal prerrogativa terminava com sua morte. A maioria dos muçulmanos acreditava que um pequeno grupo conhecido como os "Companheiros do Profeta" era o mais indicado para assumir a liderança, pois eram os indivíduos mais próximos de Maomé e os compiladores do Alcorão. Nomearam Abu Bakr, um dos melhores amigos do Profeta, como o sucessor Abu Bakr foi sucedido por mais dois companheiros, Omar e Otman, que se tornaram califas do território islâmico, sendo considerados sábios líderes e "os melhores muçulmanos". Seus seguidores acreditavam que escolher um líder pelo consenso da comunidade era o que mais condizia com as ideias da Suna e os ensinamentos de Maomé. Portanto, os apoiadores de Abu Bakr e seus dois sucessores ficaram conhecidos como muçulmanos sunitas.
Uma opção alternativa
Um grupo minoritário de muçulmanos discordou da nomeação de Abu Bakı, dizendo que o líder justo deveria ter sido um parente próximo de Maomé, de preferência um membro do grupo conhecido no Alcorão como a família do Profeta. Essa minoria de muçulmanos alegava que Maomé havia indicado um sucessor: seu genro e primo 'Ali ibn Abi Talib, porque Maomé honrara publicamente sua capacidade de liderar a comunidade. O nome "xiita" vem do árabe, Shi'a 'Ali, "partido de 'Ali", a quem os xiitas veem como o legítimo herdeiro do Profeta.
'Ali acabou sendo nomeado líder de toda a comunidade muçulmana em 656, após a morte de Otman, mas, quando 'Ali morreu, os muçulmanos se dividiram de novo. Os xiitas apoiavam o filho de Ali como sucessor, enquanto os sunitas apoiavam a eleição de Muawiyah I, um poderoso governante da Síria. Até hoje, os xiitas constituem um grupo minoritário dentro da comunidade muçulmana, dedicado a 'Ali e seus sucessores. Esses descendentes de Maomé, conhecidos como imãs, têm total autoridade religiosa — seu conhecimento é considerado divino e infalível. A maior vertente do islã xiita, cujo imã está atualmente ausente (veja à direita), é liderado por representantes, ou marjas — por exemplo, o aiatolá Khomeini, do Irã.
Desde as controvérsias referentes à questão da liderança muçulmana, o islamismo xiita é considerado um movimento dentro do islamismo, não um sistema de crenças isolado. O movimento, entretanto, possui diretrizes próprias. Aos cinco pilares do islamismo, os xiitas acrescentaram mais cinco: fazer doações para o benefício da comunidade, fazer o bem, proibir o mal (crenças sustentadas por muitos não xiitas), além de mais dois exclusivos do islamismo xiita — amar a família do Profeta e afastar-se de quem não professa o mesmo.
No pensamento islâmico, submeter-se à orientação de Deus (isla significa "submissão") é a marca de um verdadeiro muçulmano. Para ajudar as pessoas a viver a vida de forma que lhes seja agradável, Deus ofereceu um caminho conhecido como sharia, cuja tradução literal é "estrada para o poço". No contexto dos desertos da Arábia, um caminho que conduz a um poço é um grande tesouro. Do mesmo modo, a sharia (a lei de Deus) é o caminho para uma vida harmoniosa. Em essência, a sharia é um sistema de ética e jurisprudência (figh) com o propósito de governar a humanidade e orientar nossas ações.
Como um sistema precisa de fontes confiáveis, no início os muçulmanos se basearam nas revelações de Maomé (o Alcorão) em sua vida (Suna) para obter direcionamento. Com sua morte, no entanto, essa orientação deixou de existir, e a delicada questão de como aplicar as revelações existentes à vida diária das diversas culturas da comunidade muçulmana tornou-se premente Apesar do surgimento de juízes islâmicos capazes de julgar assuntos de interesse público e privado, havia a necessidade de uma sharia mais uniforme e definida.
A definição da lei islâmica
Eruditos ávidos por padronizar a jurisprudência islâmica começaram a surgir em muitas comunidades muçulmanas, provocando desavenças quanto à melhor maneira de aplicar a lei. Seu escopo deveria restringir-se aos ensinamentos do Alcorão e da Suna, ou os juristas poderiam incorporar análises e conclusões próprias?
No século VII, os muçulmanos tinham visões bastante dispares em relação à aplicação da sharia. O estudioso Abu 'Abdallah Muhammad ibr. Idris al-Shafi'i, considerado por muitos o pai da jurisprudência islâmica, destacou-se apresentando uma visão unificadora das questões legais da época. De acordo com al-Shafi'i, há quatro fontes de lei: o Alcorão, a Suna, o consenso da comunidade (ijma) e o processo de analogia dedutiva (qiyas).
Considerado a palavra literal de Deus, o Alcorão é a principal fonte para os princípios e valores islâmicos. Em diversos trechos, o texto aborda objetivamente assuntos como assassinato, exploração dos pobres, usura, roubo e adultério, condenando esses atos. Em outras passagens, o Alcorão é escrito para coibir determinados comportamentos. Por exemplo, as primeiras revelações sobre "bebidas inebriantes" dão a entender que, embora possa haver algum benefício no álcool, ele também está relacionado ao pecado (2,129). Revelações posteriores proíbem que se reze em estado de embriaguez (4,43), e a última condena abertamente o consumo de "coisas ilícitas" (5,93). O Alcorão também orienta os muçulmanos em assuntos de interesse pessoal e comunitário. Por exemplo, apesar de não proibir explicitamente a escravidão, o texto fornece orientação sobre como tratar os escravos. Questões matrimoniais como poligamia, dote e direitos de herança para as mulheres também são abordadas.
Estipulações como essas estão explícitas no Alcorão, oferecendo clara orientação. No entanto, embora o Alcorão trate das questões de moralidade e obrigações cívicas de forma semelhante, grande parte dos assuntos de interesse legal tende a ser genérica. Nesses casos, o exemplo de Maomé que consta da Suna complemer.ta o material do Alcorão. Apesar de não substituir a autoridade do Alcorão, os exemplos da Suna são aceitos como palavra oficial, devido à crença de que Maomé possuía inspiração divina. Al-Shafi'i aprimorou o uso da Suna em questões legais restringindo a utilização do termo Suna a Maomé Dessa forma, eliminava-se a possibilidade de qualquer confusão nos costumes locais, intensificando-se a autoridade das tradições proféticas. O que aconteceu é que o número de compilações com os ensinamentos e as ações de Maomé aumentou bastante, gerando a necessidade de processos mais rigorosos de validação. Resultado: só as tradições legítimas de Maomé — isto é, aquelas que façam parte de uma linhagem oficial e não contradigam o Alcorão — podem ser aplicadas a assuntos legais.
Interpretação legal
Mesmo com as definições de al-Shafi'i, poderiam aparecer situações que não estavam previstas no Alcorão ou na Suna. Sem Maomé para oferecer orientação referente a questões legais, a interpretação da lei passou a ter um papel crucial na jurisprudência islâmica. Al-Shafi'i decidiu oficializar as interpretações resultantes do consenso da comunidade muçulmana. Inicialmente, foi uma forma prática de solucionar problemas não previstos no Alcorão e na Suna. Valeria a opinião da maioria. Com o tempo, porém, "a comunidade" passou a ser definida, em termos legais, como um corpo coletivo de especialistas jurídicos e autoridades religiosas cujas decisões seriam tomadas em nome da sociedade muçulmana como um todo. Restavam ainda algumas situações que não tinham como ser resolvidas com base em nenhum texto e nenhum consenso. Os juristas, então, utilizavam o próprio julgamento para arbitrar novas questões legais. Essa prática ficou conhecida como ijtihad, "esforço de reflexão", e foi incorporada ao arbítrio pessoal dos juízes. Al-Shafi'i limitou o papel da reflexão pessoal no ijtihad ao uso da analogia dedutiva, que consistia em encontrar situações análogas no Alcorão e na Suna para criar novas normas. Por exemplo, o Alcorão proíbe que se façam compras ou vendas durante a convocação para as orações de sexta-feira. Os muçulmanos devem abandonar os negócios para rezar (62.9-10). Que outras atividades podem ser realizadas durante a convocação para as orações? Uma pessoa pode marcar um casamento para esse horário? O Alcorão não aborda essa questão, mas a analogia dedutiva pode contribuir para uma conclusão legal. Se o objetivo do Alcorão é desencorajar atividades que impediriam os muçulmanos de rezar, é possível deduzir que a restrição dos negócios deve se estender a outras áreas, incluindo o matrimônio. Em vez de deixar os especialistas livres para expressarem suas opiniões sobre assuntos como esse, al-Shafi'i decidiu fundamentar a reflexão criativa nas fontes consagradas do islamismo, o Alcorão e a Suna.
Escolas da lei
Embora a contribuição de al-Shafi'i para as quatro fontes de lei — o Alcorão, a Suna, o consenso da comunidade e o processo de analogia dedutiva — tenha ajudado muito na unificação da sharia, diferentes escolas jurídicas utilizam essas fontes de formas distintas. A partir do século XШ, quatro escolas predominaram no islamismo sunita, a maior ramificação da religião muçulmana. Cada escola tem o nome do indivíduo que definiu suas principais diretrizes: Shafi'i, Hanbali, Hanafi e Maliki. As escolas Shafi'i e Hanbali baseiam-se nas evidências das fontes ao interpretar a lei, enquanto as escolas Hanafi e Maliki incentivam também a analogia dedutiva.
Outras escolas jurídicas desenvolveram-se no islamismo xiita Devido à importância do imă para esses muçulmanos, as escolas do xiismo dão ênfase às tradições de 'Ali e dos imãs. Segundo os xiitas, o primo de Maomé, 'Ali, é o primeiro imã — um ponto em que xiitas e sunitas discordam. Os xiitas costumam priorizar o arbítrio do imã, o líder supremo e maior autoridade do campo jurídico, em detrimento do consenso comunitário e da analogia dedutiva. As escolas jurídicas continuam existindo na sociedade muçulmana. Em regiões de maioria muçulmana, especialistas em leis religiosas arbitram questões legais em tribunais de justiça e emitem fatwas (decisões judiciais). Os juízes, por sua vez, reforçam a lei e ajudam a mantê-la. Os muçulmanos com questões mais práticas também podem pedir conselhos legais. Em sociedades não muçulmanas, especialistas locais oferecem orientação à comunidade, e em alguns lugares os muçulmanos contam com serviços de atendimento por telefone de centros internacionais. Embora ainda esteja em discussão qual a melhor forma de obter orientação jurídica, a sharia continua sendo, para muitos, um caminho direto para a melhor vida que Deus pode dar a seus seguidores.
O islamismo ensina que Deus é transcendente e está acima da compreensão humana. Embora isso não impeça que os muçulmanos pensem a respeito de Deus, eles não devem ter a expectativa de compreender sua natureza ou suas ações. Essa foi a conclusão de Abu al-Hasan al-Ash'ari no século X, quando o islamismo entrou numa controvérsia provocada pela especulação filosófica sobre a natureza de Deus.
No século VIII, os califas (chefes políticos e religiosos do Estado muçulmano) da dinastia abássida incentivaram o desenvolvimento do aprendizado e das artes no mundo islâmico, e as obras de filósofos gregos, como Aristóteles, foram traduzidas e disponibilizadas para os teólogos muçulmanos. Alguns desses estudiosos aplicaram essa "nova" forma grega de pensar ao conteúdo do Alcorão, formando um grupo, os mutazilitas, que se tornaram uma grande força na teologia islâmica do século IX.
Pensadores radicais
Os mutazilitas foram inspirados pela ideia de que os métodos da filosofia grega poderiam ser utilizados para dirimir aparentes contradições do Alcorão. O Alcorão diz que Deus é uno, indivisível, e, portanto, não pode ter um corpo fragmentado como o dos seres humanos. No entanto, alguns trechos do livro sagrado fazem referência, por exemplo, às mãos e aos olhos de Deus. Descrições literais como essas podem levar ao antropomorfismo (atribuição de características humanas a Deus) e à comparação de Deus com os seres que Ele criou, um grande pecado. Os mutazilitas afirmaram que essas referências eram metafóricas. Uma referência às mãos de Deus, por exemplo, pode ser interpretada como um sinal de sua força. O passo seguinte foi aplicar a lógica grega a outras questões teológicas, como o livre-arbítrio, a predestinação e a própria natureza do Alcorão — se ele sempre existiu ou foi criado por Deus em algum momento.
Não demorou muito, porém, para que as abrangentes especulações dos mutazilitas começassem a ser censuradas, e a opinião pública voltou-se contra eles. A especulação teológica e filosófica sobre Deus é permitida e até importante para o pensamento islâmico, mas procurar respostas para perguntas não abordadas especificamente no Alcorão ou por Maomé é, de acordo com o islamismo, não só desnecessário, como um pecado — bid'ah, o pecado da inovação.
Um pensador mutazilita, al-Ash'ari, recusou-se a reduzir as descrições de Deus do Alcorão a metáforas, mas também não desejava antropomorfizá-lo. Al-Ash'ari afirmava que Deus podia ser descrito como tendo mãos e que os muçulmanos é que não eram capazes de compreender como isso é possível. Al-Ash'ari e seu grupo de seguidores, conhecidos como asharitas, deixaram as palavras do Alcorão intactas, mas também não interferiram no pensamento teológico sobre Deus, evitando falar sobre Ele em termos humanos, uma vez que Deus está acima da compreensão humana.
A despeito da orientação do Alcorão, de Maomé e da sharia, manter o foco em Deus e a disciplina cotidiana é um desafio para os muçulmanos. A desobediência é uma tentação constante, e o diabo está sempre à espreita. Os muçulmanos, portanto, precisam estar sempre na luta para permanecer junto a Deus e longe do mal. Essa "luta" é conhecida como jihad.
Para a maioria dos muçulmanos, o termo jihad tem duas acepções: "jihad" maior", a mais comum, refere-se à constante militância contra o pecado, incluindo o arrependimento, a busca da misericórdia divina, o distanciamento das tentações e o desejo de justiça para os outros; "jihad menor", embora seja menos comum para os muçulmanos, é a acepção mais conhecida no mundo. Refere-se ao uso da força, às vezes militar, contra aqueles que fazem o mal.
No século XI, um dos maiores juristas do islã, Shams al-A'imma al-Sarakhsi, descreveu a jihad menor como um processo de quatro estágios No primeiro estágio, a jihad em relação aos outros deve ser pacífica e passiva. No segundo estágio, o islã deve ser defendido com argumentos pacíficos. No terceiro estágio, os seguidores têm permissão para defender a comunidade muçulmana contra injustiças. No quarto estágio, os muçulmanos são convocados ao conflito armado, segundo diretrizes legais específicas e orientações do Alcorão, quando a religião islâmica estiver sob ameaça.
De acordo com o Alcorão, o fim do mundo será acompanhado pelo Dia do Julgamento, momento em que o destino de cada pessoa será determinado por escalas de justiça. Aqueles cujas boas ações superarem as más ações seguirão para o jannah (paraíso), retratado no islamismo como um jardim sublime. Aqueles cujas más ações superarem as boas ações serão relegados aos terríveis tormentos de jahannam (inferno).
Essa ideia de julgamento divino opõe-se às diversas descrições da misericórdia e clemência de Deus presentes no Alcorão. Aliás, os muçulmanos diferenciam-se dos não muçulmanos por serem aqueles que esperam pela misericórdia divina. Eles também esperam ter um encontro com Deus no Dia do Juízo Final, conforme consta do Alcorão, e receber sua clemência.
Esperança e paraíso
O teólogo muçulmano Abu Hamid Muhammad al-Ghazali concentrou-se na relação entre os conceitos islâmicos de esperança e o paraíso no livro The book of fear and hope. Al-Ghazali afirma que aqueles que realmente temem a Deus correrão em sua direção, implorando misericórdia. O pensador compara o desejo de um encontro com Deus ao processo de plantação. O fazendeiro planta uma semente, rega-a todos os dias, arranca as ervas daninhas e espera ansiosamente pelo momento da colheita. Da mesma forma, os muçulmanos que acreditam em Deus obedecem seus mandamentos e buscam a moralidade, podendo esperar por compaixão divina e recompensas do paraíso.
O islamismo é uma religião monoteísta, e um de seus princípios fundamentais é o tawhid (literalmente, "unicidade") — a doutrina da unidade divina. De acordo com o pensamento muçulmano, existe apenas um Deus, cuja natureza é singular. Ele não é uma trindade, como os cristãos acreditam. A ideia do tawhid aparece bastante no Alcorão e constitui a primeira parte do credo central do islã, a shahada: "Não há nenhum deus além de Alá". Por outro lado, a doutrina da unidade divina constitui a base do maior pecado do islamismo, um pecado imperdoável: shirk, a violação do tawhid. A tradução literal de shirk é "associação" e refere-se ao pecado de associar Deus com alguma outra entidade. Isso porque tal associação significaria a crença em diversos deuses ou a ideia de que Deus não é perfeito e por isso precisaria de um "associado".
Um credo de unidade
Ao longo da história do islamismo, os muçulmanos refletiram bastante a respeito da ideia de unidade divina. No século XII, essa reflexão deu origem ao movimento cujos seguidores ficaram conhecidos como almóadas, do árabe Al-Muwahhidun ("aqueles que pregam a unidade"). Fundado por Muhammad ibn Tumart, o movimento baseava-se na concepção da unidade divina, exposta na 'aqida (credo) almóada.
O credo almóada combinava os elementos da kalam — especulação teológica sobre a natureza divina — com a interpretação direta do Alcorão e da Suna (os ensinamentos e as ações de Maomé). Uma de suas principais características é que ele estava voltado não só para os eruditos, mas para um público mais amplo, que seria capaz de testar suas afirmações de acordo com a própria lógica e experiência.
Causa e efeito
O credo almóada começa com ensinamentos de Maomé que dão a entender que a unidade divina era para ele a parte mais significativa do islamismo. Em seguida, há a declaração (em grande parte baseada na filosofa aristotélica) de que a razão e a lógica, não a fé, é que determinam a existência de Deus. Ou seja, aqueles dotados de razão podem deduzir se Deus existe ou não.
O credo almóada utiliza o raciocínio dedutivo para defender a unidade divina, baseando cada uma de suas afirmações na primeira declaração. Segundo os almóadas, tudo tem um criador - existe algo por trás da criação de cada coisa no mundo (seja a pessoa que cria uma ferramenta ou uma semente que se transforma em árvore). Os próprios seres humanos são criações de extraordinária complexidade. E se tudo no mundo foi criado por algo, tem de haver algum ser no início dessa cadeia de causa e efeito que não foi criado por nada anterior - a causa inicial de tudo. Esse ser é Deus - único e absoluto (sem início nem fim). Se reconhecermos a existência absoluta de Deus, temos de reconhecer também que nenhum outro deus pode ter seu poder e que, portanto, Deus é único e inigualável.
Se para os muçulmanos a sharia é o caminho exterior que conduz à verdadeira devoção de Deus, o misticismo sufista é o caminho interior não só para seguir Deus, mas também para aproximar-se Dele. Nos primeiros estágios do desenvolvimento do islamismo, a simples obediência à vontade divina não era uma doutrina suficientemente estrita para alguns muçulmanos. Em resposta à crescente indulgência da elite muçulmana no poder, muçulmanos insatisfeitos resolveram voltar à pureza e à simplicidade do islamismo da época do profeta Maomé, buscando uma vida ascética e retirando-se do mundo material para ter uma experiência direta e pessoal com Deus. Alguns muçulmanos sufis chegaram a declarar que Deus estava dentro deles.
Com o desenvolvimento do sufismo, fundaram-se grupos, ou ordens, em que mestres religiosos ensinavam a doutrina para seus alunos. No centro de muitas dessas ordens residia a crença de que o indivíduo deve renunciar a seu "eu" para habitar totalmente em Deus. Em referência a isso, Jalal al-Din Rumi, um mestre sufi do século XIII, escreveu a história de um árabe pobre e sua gananciosa esposa. Os dois viviam no deserto. Um dia, a mulher insiste que o marido ofereça seu pote cheio de água para Deus, na esperança de que eles receberiam alguma coisa em troca. Mesmo relutante, o marido cede à insistência da esposa e oferece o pote. Em troca, o pote é preenchido com ouro. O "tesouro", porém, não tem muito valor no deserto e, portanto, serve como lembrete de que a busca por riqueza e o interesse próprio desviam do foco correto em Deus. Na mesma parábola, Rumi narra a inveja que os anjos celestiais sentiam de Adão. Eles também abandonaram o foco em Deus. A parábola, para Rumi, é uma descrição da humanidade em geral e da tentação de seguir o "eu". Para os sufis, o foco do indivíduo deve ser negar o "eu" para buscar a experiência de Deus.
A renúncia do mundo material
Segundo o sufismo, para ter uma experiência pessoal com Deus é necessário passar por sucessivas etapas de renúncia, purificação e compreensão. Os sufis, portanto, além de serem ascetas - quebrando os laços com o mundo material por meio de pobreza, jejum, silêncio ou celibato, dão grande ênfase ao amor devocional a Deus, de um modo geral com experiências religiosas ou estados psicológicos, que incluem a repetição dos nomes de Deus (por exemplo, Deus, o Misericordioso, Deus, o Supremo) e exercícios meditativos de respiração. Esses exercícios ajudam os praticantes do sufismo a se desapegar dos assuntos mundanos e focar mais plenamente em Deus.
Rumi propunha o uso de música e dança para ter uma experiência direta da presença divina. Os dervixes rodopiantes, ordem sufista fundada por seguidores, utilizam o canto e movimentos do corpo para entrar em estado de êxtase e união com Deus. Segundo a tradição, a dança rítmica giratória simboliza o sistema solar, que os dervixes representam girando em torno do líder.
Na visão de muitos muçulmanos, alguns sufis extrapolaram as barreiras da ortodoxia islâmica, e o sufismo foi suprimido a partir do século XVII. Mesmo assim, ainda se encontram ordens sufistas no mundo inteiro, atraindo seguidores muçulmanos e não muçulmanos.
Em 1882, Mirza Ghulam Ahmad declarou ser um Profeta menor do islamismo, ou um reformador enviado por Deus. Segundo Ghulam Ahmad, ele tinha vindo para rejuvenescer o islamismo, recuperando sua pureza original. O movimento que se formou a seu redor foi chamado de ahmadi, ou ahmadiyya.
De acordo com o pensamento muçulmano ortodoxo, o profeta Maomé é o último profeta do islamismo, e, portanto, qualquer pessoa que afirme ser um profeta deve ser denunciada. Mas Ghulam Ahmad não afirmou trazer uma nova revelação. Ao contrário, sua missão era apenas oferecer uma nova interpretação do Alcorão, com o objetivo de conduzir a comunidade muçulmana de volta a suas raízes. Desse modo, Ghulam Ahmad era comparável a outros profetas menores, que não trouxeram a lei, mas a restauraram: Aarão, por exemplo, que, para os muçulmanos, foi enviado por Deus para revitalizar a mensagem transmitida a Musa (Moisés). Ghulam Ahmad já havia desenvolvido algumas ideias não ortodoxas. Segundo ele, Isa (Jesus) não morreu na cruz nem foi salvo por Deus na crucificação, para depois ascender ao paraíso, conforme a crença muçulmana. De acordo com sua versão, Jesus desfaleceu, recobrou os sentidos e foi para o Afeganistão e para a Caxemira em busca das tribos perdidas de Israel. Ghulam Ahmad também causou polêmica entre os muçulmanos com sua visão em relação à jihad. afirmando que a única forma aceitável de jihad era a espiritual, cujo propósito seria disseminar pacificamente a mensagem do islamismo - uma ideia bastante significativa no contexto da Índia no século XIX, onde o número de rebeliões antibritânicas crescia.
Declarações controversas
Com o aumento da quantidade de seguidores, as declarações de Ahmad tornaram-se cada vez mais polêmicas. Ele declarou, por exemplo, que, além de ser o reformador profético do islamismo, era o redentor do islã (figura messiânica conhecida para os muçulmanos como mahdi, Messias) — e o sucessor espiritual de Jesus. Para muitos muçulmanos, Ahmad foi longe demais, desrespeitando o lugar de Maomé, e, por esse motivo, Ghulam Ahmad e seus seguidores foram rejeitados por grande parte da comunidade muçulmana.
Mesmo dentro do próprio movimento ahmadi, as declarações de Ghulam Ahmad causaram controvérsia. Após sua morte em 1908, os ahmadis dividiram-se em duas facções: os qadiani, que mantiveram os ensinamentos de Ghulam Ahmad, e uma nova facção, conhecida como ahmadi lahore. A ramificação lahore aceitava Ahmad como renovador da religião islâmica, mas nada além disso. Em sua visão, Ghulam Ahmad não era profeta.
Em 1973, os ahmadis qadiani foram declarados não muçulmanos no Paquistão, e em 1984 foi promulgada uma lei permitindo a punição de qualquer qadiani que afirmasse ser muçulmano, utilizasse a terminologia islâmica ou se referisse a sua religião como islamismo. Foi então que mudaram a sede internacional do movimento para Londres.
No final do século XVIII, os maiores poderes muçulmanos do mundo estavam em declínio. Os impérios Otomano e Mogol haviam perdido influência política, e as forças do Ocidente começaram a colonizar regiões predominantemente muçulmanas do norte da África e parte da Ásia — a África do Norte francesa, o Oriente Médio e a Índia britânica e a Indonésia holandesa. Alguns muçulmanos receberam bem as mudanças e modernizações resultantes da presença ocidental. Outros, porém, foram forçados a considerar o lugar que a ciência, a tecnologia, a política, a economia e até a moda ocidental ocupava em sua vida. Alguns queriam apenas proteger o islamismo da secularização decorrente da modernização; outros tomaram uma postura antiocidental mais militante, procurar.do derrubar o governo imperialista; outros ainda aceitavam a influência do Ocidente até certo grau, contanto que se definisse claramente o que era islâmico ou não.
Dentro desse contexto, surgiram diversos pensadores e reformadores islâmicos de grande influência. Embora cada um tivesse uma visão própria, todos tinham consciência da fragilidade da comunidade islâmica global na época, afirmando que grande parte disso se devia à deserção muçulmana do isla. Sua missão, portanto, era revitalizar o papel do islamismo na sociedade muçulmana
Muitos revivalistas muçulmanos sentiam que a melhor forma de seguir adiante era livrar-se da influência do Ocidente e enfatizar a superioridade da religião islâmica. Para isso, atentaram para a importância da jihad (p. 278) na vida religiosa e política do povo. Nesse contexto, a jihad tornou-se uma luta revolucionária contra forças não islâmicas, eliminando o mal em busca do que os revivalistas consideravam justo e honesto. Os revivalistas acreditavam também que os governos imorais deveriam ser substituídos por sistemas islâmicos estabelecidos de acordo com princípios divinos. Na cabeça de muitos revivalistas muçulmanos, um governo baseado no Alcorão e no islamismo possibilitaria um sistema social perfeito, e a melhor maneira de conseguir isso era por meio de uma jihad de militância, resistência e revolução.
Ativismo egípcio
Sayyid Outb, ativista muçulmano egípcio do século XX, foi um dos mais influentes pensadores revivalistas. Segundo Qutb, o Egito estava cada vez mais fraco e corrompido sob o domínio colonial britânico. Desiludido com a experiência ocidental e sua influência cultural, o objetivo de Qutb era livrar seus companheiros muçulmanos da dominação estrangeira e conduzi-los de volta ao islā. Qutb escreveu muitos artigos sobre o Alcorão e suas interpretações, assim como matérias sobre religião e Estado, passando a fazer parte da Irmandade Muçulmana, um grupo formado no Egito na década de 1920 com o propósito de utilizar a religião islâmica como forma de "organizar a vida da família, dos indivíduos, da comunidade e do Estado muçulmano".
Eras de ignorância
As interpretações de Qutb referentes à jihad condiziam com a visão do islamismo como uma religião que oferecia um modelo perfeito de vida. Qutb acreditava que os muçulmanos tinham a obrigação de estabelecer padrões morais na Terra, de modo que todos pudessem beneficiar-se desses padrões. A jihad, então, tornou-se uma luta contínua contra a descrença e a injustiça, ou o que Qutb chamou de jahiliyya. Esse termo foi usado tradicionalmente para descrever a era da ignorância — o período anterior à revelação do Alcorão, mas Qutb aplicou-o a tudo o que considerava alheio ao islamismo. Para ele, jahiliyya não era apenas um período de tempo, mas um estado que se repetia toda vez que a sociedade desviava-se do caminho islâmico.
Governança islâmica
Qutb aplicou o conceito de jahiliyya a governos que não considerava propriamente islâmicos. Ele opunha-se fortemente a qualquer sistema de governo baseado na "servidão aos outros", afirmando que tal sistema constituía uma violação da soberania divina. Nessa categoria incluíam-se nações comunistas (por conta do ateísmo imposto pelo Estado), nações politeístas, como a Índia, e Estados cristãos e judaicos. Qutb também afirmou que muitos países muçulmanos viviam num estado de jahiliyya, porque aceitavam ideias alheias — sobretudo ocidentais — e tentavam incorporá-las em seu governo, leis e cultura. Para Qutb, a única maneira eficaz de livrar a sociedade do estado de jahiliyya era adotando uma forma de vida islâmica, com suas estratégias e crenças superiores para governar a humanidade.
A jihad renovada
Seguindo essa linha de raciocínio sobre a jahiliyya, Qutb e seus seguidores passaram a promover a adoção da jihad. Nesse contexto, a jihad seria necessária para cada nova geração de muçulmanos, pelo menos enquanto estivessem sob a influência de forças não islâmicas. Isso significava que os estudiosos muçulmanos que interpretaram o Alcorão afirmando que a jihad não era mais aplicável ao mundo moderno estavam equivocados. Qutb dizia que a jihad deveria ser aplicada da mesma forma que na época da revelação do Alcorão. O objetivo era não só eliminar o poder não muçulmano, mas também livrar o mundo da influência do Ocidente. Os muçulmanos deveriam fazer o que fosse necessário para possibilitar a criação de um sistema de governo puramente islâmico, sem as pressões de forças não islâmicas. Desse modo, Qutb ajudava a definir não apenas a visão de mundo de futuros revivalistas, mas também a visão ocidental do islamismo no final do século XX.
Uma das principais questões enfrentadas pelos muçulmanos hoje em dia é incorporar a religião islâmica à vida secular moderna — questão que se torna ainda mais premente quando os muçulmanos se mudam para o Ocidente, trazendo não apenas sua religião, mas as práticas religiosas de um contexto cultural específico. O que acaba acontecendo é uma dissociação entre o que é islâmico e o que é secular, ou ocidental.
A ideia desenvolvida por Tariq Ramadan — estudioso islâmico, cuja família saiu do Egito e exilou-se na Suíça por causa da afiliação de seu pai à Irmandade Muçulmana (p. 289) — é que é possível ser ao mesmo tempo muçulmano e americano ou europeu: religião e cultura nacional são conceitos isolados, e um muçulmano tem o dever não apenas de respeitar as leis do país onde vive, como também "contribuir, onde estiver, para o bem e a igualdade entre os humanos". Ramadan incentiva os muçulmanos a pegar as fontes tradicionais citadas pelos eruditos islâmicos — o Alcorão e a Suna — e interpretar essas escrituras no contexto cultural em que estão inseridos, assumindo responsabilidade por sua religião. O objetivo de Ramadan é ajudar os muçulmanos a contextualizar as questões islâmicas para eles se tomem muçulmanos ocidentais com cultura e religião compatíveis.
A religião sikh foi fundada por Guru Nanak, um homem com devoção espiritual desiludido com o hinduísmo da região onde foi criado, perto de Lahore (atual Paquistão), no século XV. O islamismo também teve influência sobre essa área desde o século X, ganhando importância com a expansão do Império Mogol na Índia.
Guru Nanak via a ênfase hinduísta no ritual, na peregrinação e na reverência a profetas e indivíduos sagrados como um obstáculo para o que Ele considerava mais importante — nosso relacionamento com Deus. Embora usasse muitos nomes diferentes para Deus, Nanak reconhecia que ele era uma entidade única, onipresente e transcendente, similar ao conceito de brahman do hinduísmo. Após uma revelação divina aos trinta anos, ele decidiu dedicar a vida à pregação do caminho da salvação, afirmando que a forma como conduzimos nossa vida é uma parte integral da união com Deus e da salvação. Aceitando o título de "guru" (mestre), dado pelos seguidores, Nanak tornou-se o primeiro de uma série de dez gurus. sikhs, cujos ensinamentos estão reunidos no livro sagrado do sikhismo, o Adi Granth. Esse livro passou a ser considerado como o 11° e último guru do sikhismo, e é conhecido como Guru Granth Sahib (p. 303). Os seguidores de Nanak ficaram conhecidos como sikhs, palavra em sânscrito que significa aprendiz ou discípulo, sendo guiados na vida por Deus e pelos gurus.
Encontrando Deus numa vida de júbilo
Como os hindus, os sikhs acreditam no ciclo de morte e renascimento, mas têm uma visão diferente do propósito da vida humana. Segundo o sikhismo, o objetivo não é alcançar um lugar no paraíso, pois não existe um destino final de céu ou inferno. Nascer como ser humano é uma oportunidade dada por Deus de tomarmos o caminho da salvação, que se divide em cinco estágios e vai do pecado à libertação do ciclo de morte e renascimento. Os cinco estágios são: transgressão, devoção a Deus, união espiritual com Deus, conquista da glória eterna e libertação do renascimento.
Para tirar o máximo proveito dessa oportunidade, os sikhs seguem um estrito código de conduta com rígidas convenções, estabelecido formalmente pelo décimo guru, Guru Gobind Singh, que criou a ordem Khalsa, a comunidade de todos os sikhs batizados na religião, em 1699.
Virtude e coragem
A ideia de justiça social é a essência da ordem Khalsa (o termo significa "puro" ou "livre"). Seus membros são incentivados não só a compartilhar com os outros, mas também a proteger os pobres, fracos e oprimidos — uma parte crucial da filosofia original de Guru Nanak, reforçada no período dos dez gurus, quando os sikhs foram perseguidos pelas autoridades muçulmanas e pelos hindus, que consideravam o sikhismo uma fé herética. A intenção de Guru Gobind ao fundar a Khalsa era estabelecer uma ordem de sikhs que incluísse a dupla virtude do bhakti (espiritualidade ou devoção) e do shakti (força ou poder), concebendo o ideal de sant-sipahi ("soldado santo"), um indivíduo que dedicaria a vida a Deus, como os santos, mas que também atuaria como soldado para defender a religião e combater a injustiça, caso necessário.
A missão dos membros da ordem Khalsa era proteger os fracos e dedicar-se a uma vida de castidade e temperança, livrando-se dos cinco vícios — luxúria (kaam), raiva (krodh), cobiça (lobh), apego emocional (moh) e vaidade (ahankar) — e lembrando-se de Deus o tempo todo. Guru Gobind Singh criou um estilo de vida apropriado para todos os sikhs ao estabelecer a ordem Khalsa. Além de proibir rituais, peregrinações e práticas supersticiosas, definiu as virtudes necessárias para uma vida dedicada a Deus, como honestidade, simplicidade, monogamia e restrição total de álcool e drogas.
Os membros da ordem Khalsa não precisavam renunciar ao mundo em sua devoção a Deus. Ao contrário, deveriam desempenhar um papel ativo na sociedade, comprometendo-se com a família e a comunidade e demonstrando consciência social, uma das virtudes mais elevadas do sikhismo.
Guru Gobind Singh ressaltou a importância de os sikhs agirem como soldados só em casos de necessidade, no contexto de uma vida santa — deveriam ser santos com atributos de soldado, não soldados com atributos de santo —, e todos os sikhs deveriam seguir o princípio "não há nada a temer". Singh comparou a coragem necessária para se comportar dessa maneira com a coragem de um leão, e sugeriu que os sikhs que fossem batizados na ordem Khalsa adotassem o sobrenome Singh (leão) ou Kaur (leoa).
Cinco artigos de fé
Após o batismo na ordem Khalsa, os sikhs devem usar os cinco artigos de fé, conhecidos como "os cinco Ks", uma expressão externa de sua condição de soldado-santo. Cada um dos artigos — kesh (cabelo sem cortar), kanga (pente), kara (bracelete), kachera (roupa de baixo) e kirpan (espada) — tem um profundo significado simbólico, além de ajudar a identificar a vestimenta dos sikhs.
O cabelo é considerado pelos sikhs como uma dádiva de Deus, e o kesh (a prática de não cortar o cabelo nem a barba) é visto, em parte, como uma forma de evitar a vaidade. O cabelo, contudo, é também uma representação simbólica do ideal de viver a vida de acordo com os planos de Deus, sem interferências, e, portanto, constitui um importante símbolo externo do código de conduta da Khalsa.
Os sikhs devem manter o cabelo limpo e arrumado, penteando-o duas vezes por dia com a kanga, um pente especial usado também para prender o cabelo debaixo do turbante. Essa aparência ordenada é um lombrote constante do dever sikh de ter uma vida virtuosa dedicada a Deus, o que explica por que a kanga é considerada um dos cinco artigos de fé.
Um dos aspectos mais chamativos dos homens sikhs, o turbante, na verdade não faz parte dos cinco artigos de fé. Mesmo assim, o turbante tornou-se um item essencial da vestimenta sikh, contribuindo para a identidade e a coesão social dos praticantes do sikhismo. O turbante foi adotado por sugestão de Guru Gobind Singh, que lembrou que todos os gurus haviam usado turbante e que usá-lo, portanto, ajudaria os sikhs a seguir seu exemplo. O principal propósito do turbante, porém, é prender e proteger o cabelo dos homens sikhs.
Provas contra tentação
Tão importante quanto seguir as virtudes positivas é evitar os vícios. A pulseira de aço, conhecida como kara, é um símbolo dos votos feitos pelos sikhs durante o batismo, de se afastarem dos cinco vícios. Como é usada no pulso, num lugar visível, serve como lembrete para evitar transgressões. No jainismo, os jainas usam um acessório muito parecido, na forma da emblemática mão para cima (p. 70): uma ajuda para parar e considerar a intenção por trás de cada ação. Do mesmo mcdo, a kachera, uma espécie de short largo feito de algodão usado como roupa de baixo tanto por homens quanto por mulheres, é um artificio utilizado para controlar o desejo sexual, servindo para lembrar que os sikhs devem superar qualquer tipo de desejo em prol de uma vida dedicada à religião.
Defendendo a fé
O aspecto militar do sikhismo é sintetizado na kirpan, a espada cerimonial que simboliza coragem e dignidade. A kirpan deve ser usada para defender a religião e seus valores morais e para proteger os oprimidos da tirania.
O sikhismo foi, em diversas instâncias, associado com movimentos políticos nacionalistas no Punjab, onde surgiu. A região sofreu bastante com conflitos religiosos, que inevitavelmente envolveram os sikhs. Chegou até a existir um curto Império Sikh, fundado em 1799 e desfeito pelos britânicos em 1849. Após a formação do Akali, movimento de reforma sikh na década de 1920 e do partido político Akali Dal em 1966, houve reivindicações para a criação de um estado sikh autônomo no Punjab, onde violentos incidentes entre sikhs e hindus, além das tensões entre o Paquistão muçulmano e a Índia hindu, continuam até a atualidade. Fora do Punjab, porém, a diáspora sikh, de um modo geral, teve bom resultado de integração.
O código de conduta do sikhismo foi atualizado no Sikh Rehat Maryada, em 1950, um guia com orientações referentes à vida pessoal e social, incluindo cerimônias e cultos. No entanto, conforme ensinado anteriormente por Gugu Nanak, a devoção a Deus e a responsabilidade social são elementos muito mais importantes no sikhismo do que rituais e reverências. Tal postura reflete-se na construção do gurdwara, que além de ser um templo para orações é também o centro de atividades da comunidade sikh. Os gurus sikhs não recomendam rituais além da oração da manhã, em que os praticantes utilizam o "mul mantra" composto por Guru Nanak para meditarem no nome de Deus. Essa meditação pode ser feita em qualquer lugar, não somente no gurdwara, e, como não existe sacerdócio no sikhismo, meditações, leituras e hinos do Guru Granth Sahib podem, ao espírito do igualitarismo sikh, serem realizados por qualquer pessoa.
O sikhismo é uma das religiões mais igualitárias que existem. Todos são bem-vindos nos gurdwaras (templos sikhs), independentemente do credo. Não existem sacerdotes — as decisões são tomadas pela comunidade —, e tanto os homens quanto as mulheres podem ler o livro sagrado sikh. Essa abrangência remonta às origens do sikhismo, quando Guru Nanak (p. 301), após uma revelação divina, anunciou: "Não há hindu nem muçulmano. Que caminho seguir, então? Seguirei o caminho de Deus".
Desiludido com as religiões existentes na Índia naquela época e com as desigualdades sociais que via em todas as religiões, Guru Nanak afirmou que, do ponto de vista de Deus, os rótulos religiosos — como "hindu" ou "muçulmano" — eram irrelevantes. Em vez de nomes, Guru Nanak ofereceu uma alternativa, uma religião abrangente baseada na devoção a Deus, sem necessidade de observar rituais e reverenciar indivíduos sagrados.
Um legado de igualdade
Os ensinamentos de Guru Nanak foram consolidados pelos gurus sikhs subsequentes. O décimo guru, Guru Gobind Singh, estabeleceu a ordem Khalsa — em que a maioria dos sikhs é iniciada (p. 299), abrindo-a para todo mundo. De modo controverso para a época, Guru Gobind denunciou o sistema de castas e a discriminação de sexo, abolindo também o sacerdócio, que, segundo ele, havia se corrompido e passado a servir apenas aos próprios interesses — como os vícios que a religião procurava combater. Guru Gobind nomeou guardiões do livro sagrado, o Guru Granth Sahib, em cada templo, permitindo seu acesso a todo mundo, homens e mulheres, no gurdwara ou em casa.
Os sikhs não precisam realizar nenhum ritual nem fazer peregrinações, mas devem demonstrar devoção a Deus na vida diária. Não existe nem o preceito de rezar no gurdwara. Esses templos servem como "centros sociais" e simbolizam o espírito de comunidade, tão importante no sikhismo. Para os sikhs, todos aqueles que acreditam em um único Deus seguem o mesmo caminho do sikhismo, e sua religião merece respeito. Segundo os sikhs, à religião de cada indivíduo é, em grande parte, resultado da cultura na qual ele foi criado. Hindus, muçulmanos, cristãos e sikhs têm uma inspiração em comum, mas a forma específica que ela assume é determinada pela sociedade. Por esse motivo, os sikhs não tentam converter as pessoas de outras crenças.
As religiões afro-americanas são práticas e crenças que se organizaram em toda a América desde o século XIX, e que mantém alguma referência aos antigos sistemas rituais africanos. As etnias africanas vítimas do processo de escravização buscaram reconstruir no Novo Mundo os antigos sistemas de relações sociais e cosmológicas de suas terras natais. Recriando seus territórios sob as novas condições e em constante troca com as crenças e práticas dos nativos americanos e dos colonizadores europeus, nasceram religiões afro-americanas como santeria e lukumi (Cuba), vudu (Haiti), candomblé, batuque, xangô, tambor de mina e umbanda (Brasil), entre outras.
O principal ponto comum a estas religiões é o culto de possessão dedicado a entidades denominadas orixás, inquices ou voduns. O sacrifício de animais como oferenda também é difundido. Além disso, também são comuns técnicas oraculares como o jogo de búzios (Brasil) e o oráculo de Ifá (Cuba). Outra característica é a incorporação de elementos do cristianismo, principalmente pela identificação dos deuses africanos aos santos católicos. Esse mecanismo, conhecido como "sincretismo", ajudou seus praticantes a evitarem perseguições e perpetuarem seus ritos. No Brasil, entre inúmeros outros cultos, os mais conhecidos são o candomblé e a umbanda, que são encontrados por todo o território nacional.
Candomblé
Estruturado a partir da reunião de africanos de distintas origens, organiza-se em torno da constituição de famílias de santo cuja figura central é o pai (babalorixá) ou a mãe (yalorixá) de santo, e que compartilham uma mesma energia denominada axé. O axé constitui todas as coisas e fenômenos do mundo. Em cada terreiro ocorre o culto aos orixás, que são ao mesmo tempo ancestrais míticos, forças e elementos da natureza, e também energias que habitam e compõem os corpos dos religiosos iniciados. Há ainda um deus supremo, Olodumaré, criador do mundo, dos orixás e de todas as coisas. O processo de iniciação no candomblé, mediado pela figura do pai ou mãe de santo, tem a ver com a consolidação e o fortalecimento das relações entre o filho de santo que se inicia e os orixás que o "governam". As práticas rituais e sacrifícios servem para manter estas relações de troca de axé entre o religioso e seus ancestrais. Os iniciados ainda devem cumprir ritos periodicamente para seus orixás.
Umbanda
É composta a partir do candomblé, do espiritismo kardecista, das mitologias indígenas e do catolicismo Apesar dos esforços contrários, cada tenda apresenta práticas diversas. De modo geral, os umbandistas acreditam na existência de um Deus único chamado Olorum e nos demais orixás, muitas vezes identificados com santos católicos: em guias espirituais (ciganos, pretos-velhos, caboclos, exus, pombagiras etc.); na reencarnação; na lei de causa e efeito relativa às ações na terra e na evolução espiritual.
Em resposta ao racionalismo do Iluminismo europeu nas colônias americanas do século XVIII, o cristianismo foi retomado nos Estados Unidos no início do século XIX, com a formação de muitos grupos cristãos dissidentes. Esses grupos rejeitaram as tradições da Igreja estabelecida e incorporaram elementos carismáticos da fé — "dons do espírito" —, como profecia e visões. Houve também um movimento para "restaurar” o cristianismo segundo os princípios do Novo Testamento.
Foi nesse contexto que Joseph Smith Jr. teve a primeira de uma série de visões, em que Deus e Jesus Cristo vinham lhe dizer que ele havia sido escolhido para trazer de volta a verdadeira Igreja. A diferença entre a ‘Igreja de Cristo" e outros grupos restauracionistas foi explicada quando Smith disse que um anjo o orientara a encontrar e traduzir um texto, O Livro de Mórmon, que descrevia como Deus havia levado seus seguidores ao novo mundo. Smith ficou sabendo da “grande apostasia" que ocorreu após a ascensão de Cristo e o martírio dos apóstolos, quando a Igreja cristã original se corrompeu e foi desfeita. Deus conferiu a Smith a autoridade de restabelecer a Igreja cristã.
Profetas da atualidade
Smith e seus sucessores são considerados por seus seguidores como "profetas, videntes ou revoladorca” da atualidade, indivíduos que receberam orientação de Deus por meio de revelações de Jesus Cristo. Membros da Igreja de Cristo acreditam que, em vez de seguir a doutrina de alguma Igreja existente, é melhor viver como Cristo lhes ensinou, como “santos dos últimos dias" — um termo adotado por Smith quando estabeleceu a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, embora o movimento seja mais conhecido como mormonismo. Além de se basearem nas revelações, os santos dos últimos dias acreditam que devem seguir o exemplo de Jesus. A pergunta mais importante para eles é: “O que Jesus faria?".
Após a morte de Joseph Smith, o movimento dividiu-se em diversas ramificações, com a maioria seguindo Brigham Young (1801-1877), que estabeleceu uma comunidade mórmon em Utah. Esse grupo respeita um rígido código moral, “A Palavra de Sabedoria”, evitando álcool, tabaco, café, chá e relações extraconjugais. O casamento é um dos rituais que eles julgam necessários para a salvação. Os primeiros mórmons eram polígamos, mas a poligamia foi abandonada em 1890.
No islamismo xiita, a maioria dos seguidores acredita que o mahdi, o descendente de Maomé que virá para restaurar a religião de Deus, é Muhammad al-Mahdi, o "12 ima", que viveu na Terra até 941. Seu retorno para trazer paz e justiça ao mundo é um pilar da ramificação xiita conhecida como "os xiitas dos doze imas" (p. 271). Essa crença predominou na Pérsia do século XIX, onde o islamismo xiita era a religião oficial havia centenas de anos Foi na Pérsia, em 1844, que Siyyid 'Ali Muhammad Shirazi (1819- -1850) declarou ser o Bab ("portão"), vindo para estabelecer uma religião para a chegada "daquele que Deus manifestará".
As autoridades islâmicas perseguiram seus seguidores, conhecidos como babis, por suas crenças. Entre eles estava Mirza Husayn 'Ali Nuri, que acreditava ser o indivíduo cuja vinda havia sido prevista pelo Bab. 'Ali Nuri adotou o nome Baha'u'lah ("glória de Deus") em 1863, proclamando que era um mensageiro de Deus, o último de uma série de mensageiros, incluindo Moisés, Buda, Jesus e Maomé. Ao longo da história, explicou Baha'u'llah, as religiões foram estabelecidas por esses mensageiros, cada um apresentando a verdade religiosa de acordo com a época e o lugar. Cada mensageiro também profetizou a vinda de outro mensageiro, numa revelação progressiva e contínua da mensagem de Deus.
A natureza da mensagem
Em seus escritos, Baha'u'llah explica que Deus tem dois motivos para enviar esses profetas ao mundo: 'O primeiro é libertar os filhos dos homens da escuridão da ignorância e conduzi-los à luz da verdadeira compreensão. O segundo é garantir a paz e a tranquilidade da humanidade e oferecer todos os recursos para que isso se torne possível".
A missão de Baha'u'llah, conforme previsto por profetas anteriores, era trazer uma mensagem relevante para o mundo moderno, uma mensagem de paz mundial, unidade e justiça. Um ponto central de seu ensinamento é o conceito de união religiosa, aceitação de todas as religiões e respeito pelos profetas como mensageiros de Deus. Com essa lição, Baha'u'llah esperava evitar o que havia sido, até o momento, uma fonte de conflitos religiosos, promovendo a unidade dos seres humanos e rejeitando a desigualdade, o preconceito e a opressão.
O Tenrikyo é uma das chamadas "novas religiões japonesas" do século XIX, consideradas ramificações do xintoísmo. O Tenrikyo foi fundado por uma camponesa, Nakayama Miki, após revelações feitas a ela por Tenri-O-no-Mikoto ("Deus- -Parens"), durante um ritual de exorcismo budista em 1838. Miki registrou o conteúdo dessas revelações no Ofudesaki, o texto sagrado do Tenrikyo, e ficou conhecida como Oyassama ("Nossa Mãe") por seus seguidores.
Os seguidores do Tenrikyo acreditam em um Deus único, benevolente, que deseja a felicidade dos seres humanos em sua vida na Terra. Grande parte da prática Tenrikyo é seguir o modelo de uma "vida plena de alegria e felicidade", evitando as tendências negativas. O que outras religiões consideram pecado, o Tenrikyo descreve como "poeira mental", que precisa ser varrida por meio do hinokishin atos de bondade e caridade. Existem oito poeiras que precisam ser limpas para alcançarmos uma vida plena: oshii (mesquinhez), huoshii (cobiça), nikui (ódio), kawai (amor-próprio). urami (rancor), haradachi (raiva), yoku (ambição) e koman (arrogância). O hinokishin também é praticado para agradecer a Tenri-O-no-Mikoto pelo corpo "emprestado", que nos permite reencarnar num ciclo de reencarnação baseado na ideia de kashimono-karimono ("coisa emprestada e tomada emprestada").
Devido ao comércio e ao colonialismo ocidental do século XIX, muitos bens de consumo modernos chegaram às ilhas do Pacífico, gerando, apesar dos esforços dos missionários cristãos, um impacto inesperado no sistema de crenças indígenas. Os habitantes das ilhas passaram a acreditar que aquela riqueza material, a "carga" dos comerciantes ocidentais, possuía origem sobrenatural e tinha sido enviada para eles como presente de seus antigos ancestrais, sendo depois confiscada pelo homem branco. Eles desenvolveram a ideia de uma "era dourada" futura, em que a carga lhes seria devolvida, e os ocidentais seriam expulsos de suas terras.
Esse cultos começaram a surgir em partes da Melanésia e da Nova Guiné, proliferando-se na década de 1930 com o desenvolvimento do transporte aéreo. A proliferação dos cultos intensificou-se durante a Segunda Guerra Mundial, devido à utilização das ilhas como base para as forças americana e japonesa, que traziam grandes quantidades de equipamento e provisão. A principal figura da religião, John Frum, reverenciado na ilha de Tanna, em Vanuatu, como um Messias, aparentemente era um soldado americano. Além de desenvolverem cerimônias religiosas especiais imitando treinamentos militares, com bandeiras e uniformes, os seguidores do culto construíram embarcadouros, pistas de aterrissagem e até mesmo modelos de avião em tamanho real para atrair as pessoas que traziam os produtos.
O culto à carga ainda existe em algumas regiões remotas do Pacífico, mas, na maioria dos lugares, foi substituído por alguma outra crença ocidental.
As Testemunhas de Jeová surgiram do movimento dos estudantes da Bíblia, nos Estados Unidos da década de 1870. Os seguidores dessa crença veem sua religião como uma volta aos conceitos originais do cristianismo do século I e referem-se a essa antiga interpretação da Bíblia como “a Verdade”. O grupo acredita que todas as outras religiões e todas as formas de governo atuais são controladas por Satanás e serão completamente destruídas na guerra de Armagedom. Só os verdadeiros cristãos — as Testemunhas de Jeová — se salvarão.
De acordo com o movimento, a era atual está próxima do fim, tendo entrado em seus “últimos dias” em outubro de 1914. A princípio, acreditava-se que essa era a data do início da guerra de Armagedom, mas agora a ideia aceita é a de que esse é o momento em que Deus, conhecido como Jeová, confiou o reino dos céus a Jesus Cristo, que, então, expulsou Satanás para a Terra. Durante a fase final, Jesus, ajudado por um "escravo fiel e discreto no corpo governante das Testemunhas de Jeová, manterá seu domínio invisível sobre o planeta. Para as Testemunhas de Jeová, não haverá uma segunda vinda de Jesus. Ao contrário, em algum momento desconhecido, Jesus começará a guerra contra Satanás, depois da qual Deus nos concederá o reino dos céus, criando um paraíso na Terra durante o reinado milenar de Cristo. As Testemunhas de Jeová acreditam que Cristo é o representante oficial de Deus, e não parte de uma Trindade. Do mesmo modo, o Espírito Santo não faz parte da divindade, mas se manifesta em forças como a gravidade.
Durante o reinado de mil anos de Cristo na Terra - um longo "Dia de Julgamento", os mortos ressuscitarão e serão julgados por Jesus, enfrentando um teste final com a libertação de Satanás no mundo. Só os verdadeiros fiéis, um seleto grupo de 144 mil, sobreviverão quando Jesus devolver o domínio do reino a Deus.
Por considerarem as outras religiões (incluindo outros credos cristãos) corrompidas por Satanás, as Testemunhas de Jeová foram rejeitadas pela maioria das religiões. A opinião pública em relação ao grupo também não é boa, devido ao trabalho de evangelização de porta em porta e à venda de suas publicações, A Sentinela e Despertai, revistas de grande circulação mundial. Mas o repúdio das Testemunhas de Jeová aos governos "corruptos" teve resultados assombrosos. Muitas Testemunhas de Jeová que não lutaram pelos nazistas acabaram em campos de concentração. Em outros lugares, a recusa em participar das guerras dos governos seculares contribuiu para mudanças nas leis de objeção conscienciosa, e a recusa em abrir mão de suas crenças deu lugar a muitos processos judiciais, influenciando a legislação de direitos civis em diversos países.
Ao contrário das religiões dos escravos negros no Caribe (pp. 304-305), o movimento rastafári tem pouca relação com as religiões africanas tradicionais, baseando-se, sobretudo, na Bíblia cristã, apesar da ênfase na ligação com a África.
O movimento rastafári (seus seguidores detestam o termo "rastafarianismo", assim como qualquer "ismo") é uma religião e um movimento político e social, que surgiu num período de crescente "africanidade" da população negra do Novo Mundo. O movimento começou no século XIX, mas ganhou força na década de 1920 e 1930, particularmente pelo trabalho do ativista político Marcus Garvey (1887-1940). Garvey teve grande influência em seu país, a Jamaica, que ainda estava sob o domínio britânico na época.
A denúncia da opressão e da exploração tinha a ver com a condição de pobreza de muitos jamaicanos. A grande maioria da população da Jamaica, descendente de escravos africanos, foi obrigada a abandonar suas crenças e tradições e adotar a religião dos senhores de escravo britânicos, o cristianismo protestante. Como resultado, surgiu uma interpretação jamaicana das escrituras cristãs, em vez de uma síntese das duas religiões.
Um salvador em Sião
Inspirados pelo nacionalismo negro e pelo pan-africanismo, alguns jamaicanos afirmaram que a Bíblia foi, em grande parte, modificada pelo homem branco, dentro de sua política de opressão africana. Segundo os jamaicanos, a terra de Sião (do Antigo Testamento) era a África, o um salvador viria para redimir o povo africano da opressão da "Babilônia" — os europeus corruptos. O salvador, de acordo com a profecia, viria da família de Judá. Quando Ras Tafari assumiu o trono da Etiópia com o dinástico título de "Sua Majestade Imperial Haile Selassie I, Leão da Tribo de Judá, Eleito de Deus e Reis dos Reis da Etiópia", a profecia foi considerada cumprida, nascendo o movimento rastafári. A maioria dos rastafáris acredita que a vinda de Haile Selassie é a segunda vinda de Jesus, uma encarnação de seu Deus, Jah, mas alguns o consideram apenas um representante divino na Terra.
O movimento rastafári espalhou-se nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, com a imigração dos caribenhos para a Inglaterra e os Estados Unidos, em busca de trabalho. A cultura e a música jamaicanas, sobretudo o reggae, tornaram-se muito populares nesses países durante as décadas de 1960 e 1970, e o movimento rastafári ganhou muitos adeptos na esteira dessa popularidade.
Em 1920, um funcionário público vietnamita, Ngô Van Chiêu, afirmou que fez contato com o Ser Supremo durante uma sessão espírita, e este lhe informou que havia chegado o momento de unir todas as religiões do mundo. Referindo-se a si mesmo como Cao Dai ("Palácio Supremo" ou "Altar"), Deus explicou que, no passado, sua mensagem havia sido revelada pelos profetas em dois períodos de revelação e salvação, dando origem às grandes religiões do mundo. Agora, num terceiro período, Deus havia decidido revelar sua mensagem em sessões espíritas. Ngô Van Chiêu, junto com outros indivíduos que receberam revelações semelhantes, fundou a Dai Dao Tam Ky Pho Do ("religião do terceiro grande período de revelação e salvação"), conhecida como Cao Dai.
Combinando elementos de diversas religiões, sobretudo a filosofia budista e confuciana, o Cao Dai reverencia os profetas das grandes religiões do mundo, além de figuras inusitadas, como Joana d'Arc, Shakespeare, Victor Hugo e Sun Yat-sen. Ao unificar as religiões e eliminar as diferenças religiosas que geram violência, o Cao Dai visa atingir a paz mundial. Apesar dessa ambição, o Cao Dai ficou associado, em meados do século XX, com o movimento nacionalista vietnamita, envolvendo-se na resistência política e militar ao colonialismo francês e mais tarde, ao comunismo.
A cientologia como filosofia religiosa surgiu do trabalho do autor de ficção científica L. Ron Hubbard nas décadas de 1930 e 1940 sobre dianética — um sistema de autoajuda baseado em elementos de psicoterapia cuja ênfase é lidar com traumas do passado para alcançar a reabilitação espiritual. Esse processo de orientação psicológica, conhecido como "audição", é a essência da cientologia.
Os seguidores da cientologia acreditam que a verdadeira natureza espiritual do homem encontra-se na thetan, a alma eterna que reencarnou diversas vezes e, consequentemente, perdeu sua pureza original. Em sessões individuais de audição, com a ajuda de um "E-meter" (um instrumento para detectar corrente elétrica, criado por Hubbard), os praticantes podem livrar a mente inconsciente de imagens traumáticas e voltar ao estado "limpo" — sua verdadeira identidade espiritual. Avançando por diversos níveis de audição, o indivíduo acaba chegando ao nível de "thetan operante" e redescobre seu potencial original. Hubbard decidiu obter o respaldo de celebridades, e por isso, além do alto custo das sessões de audição e material de estudo, a cientologia foi acusada de ser um culto para fazer dinheiro. Após longos processos judiciais nos Estados Unidos e em outros lugares, a cientologia hoje pode ser praticada como religião "sem fins lucrativos", mas ainda não é reconhecida em muitos países.
A Associação do Espírito Santo para a Unificação do O Cristianismo Mundial, conhecida também como Igreja da Unificação ou pelo termo mais pejorativo "moonies", foi fundada por Sun Myung Moon em Seul, Coreia do Sul, em 1954. Sua família confuciana converteu-se ao cristianismo quando Moon tinha dez anos, e, na adolescência, ele teve uma visão de Jesus, que lhe pediu para terminar sua missão de redenção.
Com essa incumbência, Moon estabeleceu a Igreja da Unificação, que ele via como uma denominação cristã baseada na Bíblia e em seu livro, Princípio divino, mas com uma interpretação completamente diferente da história da queda que ocasionou o pecado original: Moon acreditava que o relacionamento espiritual de Eva com Satanás antes da relação sexual com Adão fez com que toda a sua progênie nascesse com o defeito do pecado. Jesus veio para corrigir isso, mas foi crucificado antes de conseguir se casar, alcançando, portanto, uma redenção parcial.
Filhos sem pecado
O caminho para a redenção da humanidade, dizia Moon, começava com seu próprio casamento com Hak Ja Han em 1960, continuando com os casamentos em massa característicos da Igreja da Unificação e suas principais cerimônias. Os filhos desses casamentos, em que as relações pré-conjugais e extramaritais são proibidas, nasceriam puros, anunciando o advento de um mundo sem pecado.
Provavelmente a mais conhecida das religiões neopagãs do século XX, a Wicca originou-se na Inglaterra, sendo popularizada por um funcionário público aposentado, Gerald Gardner, na década de 1950. Embora Gardner se referisse à religião como bruxaria e a seus adeptos como wica, a versão que ele fundou e as diversas ramificações ou tradições subsequentes são conhecidas hoje como Wicca.
Os seguidores da Wicca centram-se nos princípios de masculino e feminino, conforme personificado pelo Deus Cornífero e a Grande Mãe, e na existência de um "outro mundo" conhecido como Terra do Verão, para onde as almas vão após a morte. Muitas ramificações da Wicca também acreditam em reencarnação e veem a Terra do Verão como um lugar de descanso para as almas entre vidas, onde elas podem examinar a última vida e se preparar para a próxima. Essas almas costumam ser invocadas pelos seguidores da Wicca em cerimônias de magia, semelhantes às do espiritismo, com médiuns e tabuleiros ouija, mas essa prática não é universal. Embora os seguidores da Wicca acreditem em vida após a morte, eles procuram fazer o máximo na vida presente em rituais baseados na natureza, incluindo a celebração das estações e os ritos de passagem, como iniciação, wiccaning (similar ao batismo) e casamento ou união sexual.
Por suas semelhanças com o satanismo (o Deus Cornífero, por exemplo), a Wicca é confundida com magia negra, sofrendo preconceito e perseguição, sobretudo nos países cristãos.
Em 1958, Maharishi Mahesh Yogi viajou para o Ocidente para ensinar Meditação Transcendental (MT), com a intenção original de fundar um movimento de retomada do hinduísmo. Seus métodos baseiam-se nas técnicas hindus de meditação mântrica, com o mesmo objetivo de transcender os limites da consciência física e acessar a força criativa.
Cultivando a paz interior
Na MT, os praticantes meditam sentados por vinte minutos, duas vezes ao dia, utilizando um mantra pessoal. Acredita-se que tal prática melhore o bem-estar físico e psicológico e aumente o potencial para a criatividade, permitindo que o indivíduo vivencie um estado de "comunhão com a fonte da vida" e supere pensamentos negativos, que se tornam meras "gotas num oceano de felicidade".
No começo, os iniciados na МT eram incentivados a agradecer às divindades hindus pelo conhecimento e a estudar os Vedaş e o Bhagavad-Gita. Hoje, os proponentes da МТ oferecem na como um método científico de autodesenvolvimento aberto a todos. As técnicas de MT foram adotadas não só por indivíduos, mas também por empresas e consultórios médicos, levantando a questão de se a MT deve ser considerada uma religião ou simplesmente uma forma de terapia baseada em técnicas indianas tradicionais.
A Unitarian Universalist Association (UVA) foi formada em 1961 pela fusão de dois movimentos do século XIX: a Universalist Church of America e a American Unitarian Association. Embora tenha vindo de uma tradição basicamente cristã e alguns membros professem o cristianismo, a UUA visa ser uma "religião sem credos nem doutrinas, que apoia a liberdade de crença individual". Os universalistas reconhecem a necessidade de uma dimensão espiritual e religiosa para a vida e acreditam que podemos aprender com todas as religiões do mundo. A ênfase está na busca humanista por verdade e sentido, não na crença em um ser supremo e na salvação após a morte. Alguns seguidores, aliás, são agnósticos e até mesmo ateus.
Para os seguidores do unitário-universalismo, a experiência, a consciência e a razão pessoal constituem a base da fé religiosa. Opiniões e crenças de todos os indivíduos, portanto, devem ser respeitadas. A noção de respeito permeia a filosofia da UUA e seus "Sete Princípios": o valor e a dignidade inerentes de cada pessoa; justiça, igualdade e compaixão nas relações humanas; a aceitação mútua e o estímulo de crescimento espiritual; uma busca livre e responsável por verdade e sentido; o direito de consciência e o uso do processo democrático dentro das congregações e sociedade em geral; a meta de uma comunidade mundial; e respeito pela rede interdependente de toda a existência.
O movimento Hare Krishna ou ISKCON (International Society Krishna Consciousness) é conhecido pela prática de cantar o maha mantra. A ISKCON tem suas raízes no movimento Gaudiya Vaishnava do hinduísmo, fundado por Chaitanya Mahaprabhu (1486- 1534), no qual os seguidores usam práticas devocionais conhecidas como bhakti para agradar o deus Krishna e desenvolver um relacionamento de amor com ele, que é considerado a suprema personalidade de Deus.
O maha mantra
O mantra é entoado como forma de clarear a mente e limpar o coração. O uso repetido do nome sagrado permite que a "consciência de Krishna" se desenvolva na alma, sem as distrações da consciência física ou sensorial. O canto "Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare" está voltado para a energia de Deus (Hare), o "todo atraente" (Krishna) e o "prazer eterno mais elevado" (Rama).
Chaitanya dizia que, usando esse mantra, qualquer pessoa poderia atingir a consciência de Krishna. Na década de 1960, um dos seguidores de Chaitanya, A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, viajou para os EUA e fundou a ISKCON. Suas ideias foram bem aceitas dentro da cultura hippie, devido ao novo interesse na espiritualidade do Oriente, e espalharam-se pela Europa, após terem sido popularizadas por celebridades como os Beatles.
Na segunda metade do século XX, ressurgiu o interesse pelos exercícios de meditação conhecidos como qigong ("cultivação da energia vital") na China. Enquanto as autoridades comunistas viam a prática como uma forma de melhorar a saúde pública, muitos encontraram nela um sentido espiritual. Li Hongzhi era uma dessas pessoas e fundou o movimento Falun Dafa (conhecido popularmente como Falun Gong) no início da década de 1990. Hongzhi defendia a prática do Falun Gong ("prática da roda da lei") não só como um meio de cultivar a energia vital, mas também como uma forma de colocar os praticantes em contato com a energia do universo para elevá-los a níveis mais altos de existência.
Em seu livro Girando a roda da lei, Hongzhi apresenta cinco exercícios principais para cultivar a mente, o corpo e o espirito, explicando que o Falun (a "roda da lei") está situado no abdômen inferior e que sua rotação — em sintonia com a rotação do universo — livra o praticante de influências negativas, permitindo o acesso à energia cósmica. Complementando os exercícios, existe uma filosofia baseada nas virtudes de zhen-shanren (verdade, compaixão e tolerância), similar às ideias confucianas, taoistas e budistas, que governa a conduta dos praticantes do Falun Dafa.
Visto por alguns como uma nova religião, mas por outros como uma continuidade da prática tradicional chinesa de cultivar a mente, o corpo e o espírito, o Falun Dafa atraiu muitos seguidores na China, sendo proibido mais tarde por suas conotações religiosas.
Legenda
(B) Budismo
(C) Cristianismo
(H) Hinduísmo
(I) Islamismo
(J) Judaísmo
(Jn) Jainismo
(S) Sikhismo
(T) Taoismo e outras religiões chinesas
(X) Xintoísmo
(Z) Zoroastrismo
Adi Granth (S) Ver Guru Granth Sahib
Advaita Vedanta (H) Escola da filosofia hindu desenvolvida no século IX, que fornece uma explicação unificada dos Vedas e foca na ideia de brahman.
Ahadith (I) Ver Hadith.
Ahimsa (B, H, Jn) Doutrina de não violência em pensamentos e ações.
Akhand, o caminho (S) Recitação completa e ininterrupta do Guru Granth Sahib
Alá (I) O nome do Deus único.
Alcorão ou Corão (I) As palavras de Deus reveladas ao profeta Maomé e depois escritas, compondo o texto sagrado do islamismo.
Aliança (J) Acordo entre Deus e o povo judeu, identificado como o grupo escolhido para desempenhar um papel especial no relacionamento entre Deus e a humanidade.
Amrit (S) Água sagrada adocicada usada em cerimônias religiosas: a cerimônia de iniciação específica do sikhismo.
Analectos (T) A compilação dos ensinamentos de Confúcio e de seus contemporâneos, escrita por seus seguidores.
Ananda (H) Estado de glória.
Anata (B) Estado de libertação do ego a que os budistas aspiram.
Anicca (B) A impermanência da existência.
Arhat (B) Ser perfeito que atingiu o nirvana
Artha (H) A busca de riqueza material, um dos deveres de uma pessoa no estágio de "chefe de família", o segundo estágio do ashrama
Ashrama (H) Os estágios da vida. O indivíduo passa por quatro estágios no sistema social hindu: aluno, chefe de família, aposentado e asceta.
Asquenaze (J) Judeus da Europa Oriental e Central e seus descendentes no mundo.
Atman (H) O ser individual.
Avatar (H) Encarnação de uma divindade hindu, sobretudo as diversas encarnações de Vishnu.
Avestá (Z) Os textos sagrados do zoroastrismo.
Ayat (I) Os menores registros do Alcorão; versículos curtos ou “sinais”.
Bar/bat mitzvah (J) A cerimônia que marca a entrada na idade adulta religiosa de um menino judeu ou menina judia.
Batismo (C) O sacramento que marca a entrada de uma pessoa na Igreja cristã. Ritual que envolve imersão em água.
Bhakti (B, H) Devoção religiosa ativa a uma divindade, levando ao nirvana.
Bíblia (C) Conjunto de livros que constituem o texto sagrado do cristianismo. A Bíblia cristã compreende o Antigo Testamento, que inclui os livros judaicos de leis, história judaica e os profetas, e o Novo Testamento, que trata da vida e obra de Jesus, de seus discípulos e da primeira Igreja. Ver também Bíblia hebraica.
Bíblia hebraica (J) Conjunto de escritos sagrados que formam a base do judaísmo, incluindo a Torá, as revelações dos profetas e outros textos; o equivalente ao Antigo Testamento da Bíblia cristã.
Bodhisattva (B) Alguém no caminho para se tornar buda, que posterga a iluminação final para ajudar outras pessoas a alcançarem o mesmo estado.
Brahma (H) O deus criador, um dos três da trindade hindu, ou trimurti.
Brahman (H) A realidade divina, impessoal e imutável, do universo. Todos os outros deuses são aspectos do brahman
Brâmane (H) Sacerdote ou indivíduo que busca o conhecimento; a classe sacerdotal e guardiões do dharma.
Caaba (I) Uma das construções mais sagradas do islamismo, situada em Meca, dentro da mesquita Masjid ai-Haram; principal destino de quem realiza o hajj
Cabala (J) Antiga tradição mística judaica baseada numa interpretação esotérica da Bíblia hebraica.
Carma (B, H) A lei de causa e efeito que influencia nosso renascimento após a morte.
Canonização (C) O processo pelo qual a Igreja cristã declara que um indivíduo é santo.
Charismata (C) "Dons espirituais" conferidos pelo Espírito Santo de Deus aos fiéis, manifestando-se como capacidade de cura ou de falar outras línguas.
Cristo (C) Em sentido literal, "o ungido": título concedido a Jesus.
Confirmação (C) Ritual no qual aqueles que foram batizados confirmam a fé cristã.
Darshan (H) A adoração de uma divindade por meio da visualização de sua imagem.
Dhamma (B) Variação de dharma, mais utilizada no budismo.
Dharma (H) O padrão ou caminho oculto que caracteriza o cosmos e a Terra; refere-se também ao caminho moral que uma pessoa deve seguir.
Dukkha (H) Sofrimento ou insatisfação; a ideia de que a vida é feita de sofrimento, a primeira das Quatro Nobres Verdades definidas por Buda.
Encarnação (C) A crença de que Jesus Cristo encarna a natureza humana e a natureza divina ao mesmo tempo.
Eucaristia (C) Um dos principais sacramentos, envolvendo a ingestão de vinho e pão como símbolos do sangue e corpo de Cristo; conhecido como “Missa" no catolicismo, “Sagrada Comunhão” na Igreja Anglicana, sendo liturgia de diversas igrejas ortodoxas.
Evangelho (C) Os quatro livros do Novo Testamento da Bíblia, de autoria atribuída aos apóstolos Mateus. Marcos, Lucas e João, que contam sobre a vida e os ensinamentos de Jesus; "evangelho’' também pode se referir ao conteúdo do ensinamento cristão.
Fatwa (I) Decisão judicial sobre um ponto da lei islâmica emitida por uma autoridade religiosa.
Fravashi (Z) Anjo da guarda que protege a alma dos indivíduos na luta contra o mal.
Gathas (Z) O texto mais sagrado do zoroastrismo, de autoria atribuída ao próprio Zoroastro.
Gentio (J) Não judeu.
Granthi (S) Oficial que faz a guarda do Guru Granth Sahib e do gurdwara. Um granthi é também um leitor do livro sagrado com muita experiência.
Gurdwara (S) Templo sikh; o lugar onde está guardado o Guru Granth Sahib.
Guru (H) Mestre; (S) Um dos dez líderes fundadores do sikhismo.
Guru Granth Sahib (S) O livro sagrado do sikhismo, também conhecido como Adi Granth.
Hadith (I) Relatos tradicionais das ações e dos ensinamentos do profeta Maomé; a segunda fonte de consinta da lei islâmica e dos princípios morais depois do Alcorão.
Hafiz (I) Termo de respeito para uma pessoa que memorizou o Alcorão.
Hagadá (J) O corpo de ensinamentos dos primeiros rabis contendo lendas, narrativas históricas e preceitos éticos.
Hajj (I) A peregrinação a Meca, o quarto dos cinco pilares do islamismo; todos os muçulmanos esperam fazer essa viagem pelo menos uma vez na vida.
Halal (I) Conduta permitida sobretudo em relação ao abate de gado e à carne dos animais abatidos da maneira correta
Haram (I) Conduta proibida; algo sagrado ou inviolado.
Haskalá (J) O iluminismo judaico, um movimento dos judeus europeus nos séculos XVIII-XIX.
Hassid (J) Membro do grupo judaico fundado no século XVIII, com forte ênfase no misticismo.
Ícone (C) Imagem sagrada, geralmente de Cristo ou um dos santos, usada como foco de devoção, sobretudo nas Igrejas ortodoxas.
Iluminação (B) Descoberta da verdade suprema e o fim do dukkha.
Imã (I) Líder de orações em uma mesquita; um dos maiores líderes da comunidade muçulmana na ramificação xiita.
Jihad (I) Dever religioso de lutar contra o mal em nome de Deus, seja espiritual ou fisicamente.
Jina (Jn) Mestre espiritual. Ver tirthankara.
Kachera (S) Short largo usado como roupa de baixo pelos sikhs; um dos "cinco Ks" do sikhismo.
Kalam (I) Discussão e debate, sobretudo em relação à teologia islâmica.
Kami (X) Espírito ou divindade no xintoísmo. Existem milhares de kamis no panteão xintoísta.
Kanga (S) Pequeno pente usado no cabelo pelos sikhs; um dos "cinco Ks” do sikhismo.
Kara (S) Pulseira de aço usada pelos sikhs no pulso direito, um dos "cinco Ks” do sikhismo.
Kasher (J) Sancionado por lei religiosa, sobretudo comida, de consumo permitido segundo leis da dieta judaica.
Kesh (S) Cabelo comprido; um dos ''cinco Ks” do sikhismo.
Khalsa (S) A comunidade de sikhs iniciados, fundada por Guru Gobind Singh.
Khanda (S) Faca de dois gumes do tipo usado por Guru Gobind Singh num ritual que marcou a fundação da Khalsa; hoje, um símbolo do sikhismo.
Kirpan (S) Espada usada pelos sikhs; um dos ‘'cinco Ks” do sikhismo.
Kirtan (S) Prática de cantar hinos, parte importante do ritual de devoção sikh.
Koan (B) No zen-budismo, problema ou charada sem solução lógica, cuja intenção é produzir insights.
Kojiki (X) O texto sagrado do xintoísmo.
Kundalini (H) Força vital ou energia contida na base da espinha dorsal.
Lama (B) Mestre espiritual no budismo tibetano, geralmente iogue, ou alguém considerado a reencarnação de um mestre espiritual anterior.
Mandala (B) Diagrama sagrado, geralmente retratando uma concepção do cosmos, usado como foco de meditação e em outros rituais, sobretudo no budismo tibetano.
Mantra (B, H) Som ou palavra sagrada usada para gerar transformação espiritual; no hinduísmo, os salmos métricos da literatura védica.
Matha (H, Jn) Escolas monásticas.
Matsuri (X) Festival ou ritual do xintoísmo, muitas vezes com procissões de devotos.
Maya (H) A ilusão do mundo conforme percepção dos sentidos.
Mihrab (I) Nicho no hall de orações da mesquita, indicando a qibla.
Mishná (J) O primeiro grande registro escrito das leis orais judaicas e também a primeira grande obra do judaísmo rabínico.
Mitzvah (J) Preceito de Deus; refere-se aos dez mandamentos ou aos 613 preceitos encontrados na Torá.
Moksha (H) Libertação do ciclo de vida, morte e renascimento, também conhecido como mukli.
Mudra (B, H) Gesto simbólico, geralmente com as mãos.
Mulá (I) Erudito religioso, que também pode pregar e conduzir orações na mesquita.
Mui mantra (S) Afirmação da crença sikh na unicidade de Deus, composta por Guru Nanak.
Murti (H) Imagem ou estátua de uma divindade, vista como seu local de residência ou corporificação.
Nirvana (B) O estado de libertação do ciclo de morte e renascimento.
Nobre Caminho Óctuplo (B) O caminho da vida de disciplina que os budistas seguem na esperança de se libertarem do ciclo de morte e renascimento. O seguidores almejam: visão correta, intenção correta, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção correta, concentração correta.
Puja (H) Devoção por ritual.
Puranas (B, H, Jn) Escritos não incluídos nos Vedas, com relatos sobre o nascimento e as ações dos deuses hindus, a criação, a destruição ou a recreação do universo.
Purusha (H) O ser eterno original que permeia todas as coisas do universo.
Qi (T) A força vital ou princípio ativo que anima as coisas no mundo, de acordo com a filosofia chinesa tradicional.
Qibla (I) A direção de reza dos muçulmanos — a direção da Caaba, em Meca.
Qigong (T) Sistema de respiração e exercício para a saúde física, mental e espiritual.
Quatro Nobres Verdades (B) Ensinamento central do budismo, explicando a natureza do dukkha, suas causas e como superá-lo.
Rabi ou rabino (J) Mestre ou líder espiritual na comunidade judaica.
Rabínico (J) Referente ou pertencente aos rabinos.
Ramadã (I) O nono mês do Calendário islâmico , um mês de jejum diário do amanhecer ao anoitecer.
Ren (T) Benevolência ou altruísmo no confucionismo.
Sacramentos (C) Os ritos solenes do cristianismo. As Igrejas católica e ortodoxa reconhecem sete: batismo, eucaristia, confissão, confirmação (ou crisma), ordenação, extrema-unção e matrimônio. A maioria das Igrejas protestantes reconhece apenas dois; batismo e eucaristia.
Sadhu (H) Homem sagrado que dedicou a vida à busca de Deus.
Salat (I) Oração; o segundo dos cinco pilares do islamismo. Os muçulmanos devem rezar cinco vezes por dia.
Samsara (B, H) O ciclo contínuo de nascimento, vida, morte e renascimento.
Samskara (H) Impressões deixadas na mente por experiências da vida atual ou vidas passadas; ritos hindus de passagem.
Sangha (B) Ordem de monges e monjas budistas.
Satya (H) A verdade, ou o que é certo e imutável.
Sawm (I) Jejum, sobretudo durante o mês de Ramadã, o quarto dos cinco pilares do islamismo.
Sefardita ou sefaradi (J) Judeus que vêm da Espanha, Portugal ou África do Norte e seus descendentes.
Sefirot (J) As dez emanações luminosas, atributos de Deus na cabala.
Seva (S) Serviço aos outros, um dos princípios fundamentais do sikhismo.
Shabat (J) O dia de descanso da semana judaica, que vai do pôr do sol de sexta ao pôr do sol de sábado.
Shahada (I) Profissão de fé muçulmana, traduzida como "Não há Deus além de Alá, e Maomé é o mensageiro de Deus"; o primeiro e mais importante dos cinco pilares do islamismo.
Sharia (I) O caminho a ser seguido pelos muçulmanos. Lei islâmica baseada no Alcorão e no Hadith.
Shirk (I) O pecado da idolatria ou politeísmo.
Shruti (H) Os Vedas e parte dos Upanishads.
Sufi (I) Membro de alguma ordem islâmica mística, entre muitas, cujas crenças estão centradas na relação pessoal com Deus. As ordens sufistas Vishnu e Shiva — ou uma imagem tripla deles. podem ser encontradas em sunitas, xiitas e outros grupos islâmicos. O suíismo está associado com as danças extáticas dos dervixes rodopiantes.
Suna (I) Modo de vida de Maomé, usado como modelo para os muçulmanos e registrado nos hadiths
Sunitas (I) Um dos dois principais grupos de muçulmanos, seguidores daqueles que apoiam califas eleitos. Ver também xiitas.
Sutra (B, H) Conjunto de ensinamentos, sobretudo frases de autoria atribuída a Buda.
Talmud (J) Texto composto por discussões e interpretações da Torá. compilado por eruditos e rabinos, fonte de orientação ética, sobretudo para judeus ortodoxos.
Tantra (B) Texto usado em algumas vertentes do budismo (principalmente no Tibete) para ajudar os praticantes a alcançarem a iluminação, ou as práticas baseadas nesse texto.
Tao (T) O caminho que o indivíduo almeja seguir; o padrão ou caminho oculto que governa as obras da natureza.
Terra Pura (B) O paraíso para onde, de acordo com algumas vertentes do budismo, as almas dos seguidores vão após a morte; no budismo japonês, jodo.
Tirthankara (Jn) Um dos 24 mestres espirituais ou jinas que indicaram o caminho do jainismo.
Torá (J) Os primeiros cinco livros da Bíblia hebraica, considerados a representação dos ensinamentos de Deus, entregues a Moisés no monte S:nai.
Trimurti (H) A trindade dos principais deuses hindus — Brahma, Vishnu e Shiva — ou uma imagem tripla deles.
Trindade (C) Representação tripla de Deus, compreendendo o Pai. o Filho e o Espírito Santo em uma única divindade.
Upanishads (H) Texto sagrado contendo os ensinamentos filosóficos do hinduísmo; também conhecido como Vedanta, o fim dos Vedas.
Vedas (H) Conjunto de hinos e outros escritos em devoção às divindades.
Wa (T) Harmonia. O grupo tem prioridade em relação ao indivíduo.
Wu wei (T) Ação sem esforço.
Xiitas (I) Um dos dois principais grupos de muçulmanos, composto por aqueles que acreditam que o primo de Maomé, 'Ali, era o sucessor legitimo do Profeta. Ver também sunitas
YKVH (J) A s quatro letras que representam o nome de Deus no judaísmo, considerado sagrado demais para ser pronunciado. Provável pronúncia "iavé”.
Yin-yang (T) Os dois princípios do cosmos na filosofia chinesa, vistos como forças opostas, mas complementares, que interagem para produzir um todo maior do que cada parte isolada.
Yoga (H) Forma de treinamento físico e mental. Uma das seis escolas da filosofia hindu.
Zakat (I) Caridade aos pobres; o terceiro pilar do islamismo.
Zazen (B) Meditação sentada.
Zurvan (Z) O Deus do tempo; em algumas vertentes do zoroastrismo, o ser primordial, origem do sábio senhor Ahura Mazda e do espirito hostil Angra Mainyu.