Futuros Ancestrais: as cantadoras de histórias

Autoras/es: Jocyele Ferreira Marinheiro, Raquel Assunção Oliveira, Ana Gretel Echazú Böschemeier, João Diego da Luz Melo, Jaine Oliveira Santos, Nicolas da Silva Nascimento, Maria Arli Correia do Nascimento, Maria Nascimento Oliveira Santos, Tereza Pereira da Silva e Vinicius Claudino Chaves

Nota de abertura: contextos


Esta história foi escrita coletivamente por pesquisadores/as indígenas tabajaras e potiguaras e por pesquisadoras não indígenas reunidos/as em torno de um grupo de trabalho vinculado ao projeto Boas Práticas de Enfrentamento à COVID-19 (Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020 - Pesquisas para enfrentamento da COVID-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias agudas graves - Processo 403104/2020-3), localizado em três estados do Nordeste brasileiro: Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.

Os processos de produção do material tiveram lugar sob modalidade online e foram alavancados a partir de discussões locais e instâncias de formação vinculados à saúde coletiva, saúde ambiental, justiça ambiental, interculturalidade e direitos humanos. As lideranças indígenas participantes são das comunidades Serra das Matas e Quiterianópolis, no Ceará. As pesquisadoras que articularam os processos de coescrita são vinculadas à Universidade Federal de Rio Grande do Norte - UFRN (Brasil). As narrativas partem do diagnóstico crítico de um presente realizado através de discussões e do mapeamento de espaços relevantes para as comunidades, como escolas e postos de saúde. A partir disso, foram retratados problemas tais como os avanços da mineração de grande escala e a extinção ou diminuição de espécies da biodiversidade local.

No texto, é ressaltada a importância da preservação da água, da demarcação do território, do saber científico desde a perspectiva da ciência cidadã (Corburn, 2005) e do acesso à clínica e psicologia interculturais. Ele configura-se como um ensaio de fabulação especulativa (Haraway, 2016) vinculada à ciência ocidental em diálogo com os saberes das várias ciências que configuram as culturas indígenas ancestrais do Brasil. Faz parte do gênero hopepunk (Rowland, 2017), costurado com a pedagogia de imaginar futuros através do esperançar e inspirado em autores brasileiros como González (1984) e Freire (1996/2004).

Pontuamos que os títulos das seções do artigo estão grafados, além de em português, em nheengatu, conhecido como Língua Geral Amazônica, idioma da família linguística Tupi-guarani pertencente ao tronco linguístico Tupi e falado em regiões do Brasil, Colômbia e Venezuela (Avila, 2021). Conforme o último censo demográfico do país, 76.295 indígenas com 10 anos ou mais de idade falam idiomas do tronco tupi no território brasileiro (IBGE, 2010). Na comunidade Mundo Novo, localizada em Monsenhor Tabosa, sertão do Ceará/Brasil, a retomada do uso do idioma ocorreu a partir de 1997 e, hoje, o nheengatu é língua cooficial do município.

Listamos abaixo as referências bibliográficas citadas nesta introdução, aqui propostas para continuar costurando mundos através da construção de futuros possíveis a nível local, regional e global:


Aupiru | Prelúdio


O crepúsculo precede o ritual em memória dos que se foram sadios. Os medos nos abandonaram e hoje, após um século do último genocidio, dançamos num solo nosso, um mundo novo ancestral, Ywaka pisasú. Escuto ao longe os parentes que nos visitam e me preparo para relembrarmos o ontem e celebrar o agora. A Jandaia canta meu nome:

- Alaya!


Musapiri Sá suiwara 2087 | 3ª colheita de 2087


A Jandaia emite sons de um credo que nunca ouvi. Mas, eles não poderiam ser mais compreensíveis. Entendo com meus ouvidos, mas também com meu ventre, meu sangue e meus dentes. Meu corpo reverbera.


Creio na lua

Creio nas estrelas

Creio nas nuvens

Creio no sol, no vento, na água e no fogo

Acredito no arco celeste

Adoro as pedras

Amo as matas e os passarinhos

Admiro os bichos, não digo nada com a chuva que molha nosso feijão

Não tenho medo do trovão porque dá chuva pra gente

Não digo más palavras

quando está chovendo, relampejando e trovejando

Não quero ver o Sete Estrelas no mês de maio, porque não alcanço o outro ano

Respeito o papai e a mamãe quando eles respeitam a gente

Acredito nos mais velhos

Porque eles são as pessoas da ciência

Acredito em tudo que é prático

Somos povo do fogo


Atraídos pelo canto, vêm todas as crianças, plantas, jovens, adultos/as, animais e anciãos/ãs da comunidade. Humanos e não humanos. Todos/as eles pareciam ter entendido o que foi cantado pela Jandaia. Um vento, ao mesmo tempo forte e delicado, nos abraçou. É isso: o futuro é agora. Com os olhos da alma, viajamos ao ontem para honrar os nossos, aqueles/as que resistiram e cujo sangue doado nos permitiu a vida.

Em círculo, nos reunimos. Apesar da polifonia de idiomas, as palavras que saíam de minha boca eram recebidas com clareza no corpo daquele/a que as ouvia, e vice-versa. Era nítido: estávamos em celebração. O agora apresentava-se como uma verdadeira graça. E foi por meio delas que encontramos a linguagem ideal para elaborar o que vivíamos.

Em meio a tantos sons, uma melodia suave engatinha em nosso íntimo, acalanto. O ar torna-se nostálgico. Os pássaros celebram. A brisa é leve, saudosa. O solo é grato.

Mirando toda a luta e sangue derramado no passado, nos demos conta: é uma alegria viver em 2087. Iniciamos a história de nossos antepassados. Dos seus sonhos, somos a realidade. Juntos, começamos a presentear uns aos outros com dádivas do presente:


Coli


Nossas terras estão demarcadas, nossos povos têm seus direitos garantidos, com suas áreas preservadas e suas crianças com direito a um ensino de qualidade em escolas abertas, onde se aprendem vários tipos de ciência, da mão de pajés, professoras/es, educadoras/es populares, lideranças, contadoras/es de histórias e rezadeiras que sentam na mesma roda para dialogar. Os troncos velhos já não se encantam mais sem realizar seu sonho de ver suas terras demarcadas. Os sonhos dos nossos troncos velhos se tornaram realidade. Como é bom chegar numa aldeia e ver todos/as os parentes felizes com suas terras demarcadas, com saúde de qualidade, com a possibilidade de aprender a partir da própria língua, com acesso a uma tecnologia social que fortaleça nossa conexão com o mundo, com o fortalecimento de um sistema básico de saúde que compreenda a importância da terra, das plantas e dos ciclos nas nossas vidas, com seu lugar sagrado preservado.

Muitos não conseguiram chegar até aqui pra ver, mas onde eles estiverem, estarão dando forças para nós seguirmos lutando e conquistando os sonhos dos nossos povos. "Terras Demarcadas, vida garantida”: essa frase significa bastante. Nós, indígenas, com nossas terras demarcadas, temos vidas garantidas, tornamos esse futuro em presente.

As árvores ao nosso redor concordam e resgatam de suas raízes lembranças de seus parentes humanos, defendendo o solo sagrado, assim como a reexistência de um ecossistema maltratado.


Barriguda (Ceiba speciosa)


Nas águas que banham a semente,

Mucunã questiona a primavera no sertão

Uma cantadora de histórias,

Despe fios do tempo,

Desvendando tramas de um não agora


Assim desatam memórias,

dores se refazem esperança

um novo amanhã

Se revela hoje


Na adormecida lembrança

A Menina e a cobra – irmãs aliadas –

Unidas num útero fatigado,

Separadas à luz da recente chegada

Tempo, não chore,

pois o amanhã na história é gozo


O pranto se fez canto,

A dor quis ser abrigo

Em uma madrugada insone

A despedida gera vida

Nasce um Novo Mundo,

Parentes, cultivos na perda,

floresceram em força


A terra nos abraça

Um abraço caloroso

Que nos fortalece,

nos alimenta

E dá motivos para agradecer


A água nos mata a sede,

saboreamos nossas conquistas,

Sede que nos dá a vontade de viver


O ar é nossa respiração,

É sopro de Tupã

em nossas vidas

É um redemoinho

nos fez entender os ciclos da vida

Com os elementos nos batizamos:

Com o abraço da mãe terra,

Com o suspiro do vento,

Com o calor do fogo,

E com a frieza da água

Louvamos ao pai Tupã


Na seca ou na abundância

Na presença ou na distância

este solo é nosso,

não mais usurpado,

O território é consagrado


Da luta nunca fugindo

Veio do Jucá nossa defesa

Em nossas mãos resistindo

Rompendo as barreiras

Dos que intentaram pertencer


Mais tramas se avizinharam

Combatemos com novos aliados

Desatamos outros nós

Resguardando nossa mãe

E o bem viver comunitário


Vivemos nas serras,

Vivemos nos morros,

Vivemos até na cidade,

Estamos em todos os lugares,

Lutamos pelo que é nosso


Somos o povo potiguara

Somos o povo tabajara

Somos vários povos

Ecoamos um mesmo desejo


Zabel


Hoje vivemos bem melhor que antes, temos liberdade, e vamos com tranquilidade colher nossos alimentos e medicinas. Nas épocas do Grande Vírus de 2020, 2031 e 2047 os nossos/as ancestrais iam à feira, mas assustados/as. Mas, hoje a feira é o nosso quintal e só plantamos e colhemos o que precisamos. Superadas as crises sanitárias, os povos se reinventaram, libertando-se da exploração das terras, dos animais e dos humanos. Vivemos e nos encantamos de modo sadio.


Neném


Não há mais cadeados, as portas se foram. A medicina tradicional foi acolhida por mais doutores/as e nos nutrimos com alimentação saudável, sem agrotóxicos (veneno para as plantas na época). A diminuição da poluição radioativa tornou nosso ar mais puro. As febres de agora não queimam como antes. Saúdo a casca de angico, o mel de malva, os pés de arruda, bem como as cuidadoras que preservam nossas farmácias vivas.


Oliveira


Hoje, eu estudo na escola indígena e gosto muito. Nossos costumes são ensinados, e a língua foi resgatada após um longo período de apagamento. Na escola aprendemos sobre o/a outro/a, enquanto descobrimos mais sobre nós. Os preconceitos étnico-raciais e de gênero foram mitigados e, com eles, a opressão. Nossa cultura é abraçada, pertencemos a um solo de igualdade.


Jara


Pertencemos a um povo guerreiro que realiza seus sonhos diariamente. Temos força e coragem. Nosso povo, que já sofreu muito anos atrás, hoje há mais facilidades. Na luta pela demarcação, vários/as foram aqueles/as que viajaram à procura de melhorias para a aldeia. Conquistamos a demarcação com nosso suor e garra. E, com a terra, conseguimos uma porção de coisas que sonhávamos no passado. Postos de saúde, escolas, universidades, praças e quadras poliesportivas para a educação, diversão e entretenimento já não são mais um sonho: temos tudo isso à nossa disposição.


Kunhã tãe-buia | Menina-cobra


Os contos de nossas dádivas ecoam além do presente. Nas nascentes dos rios, nas ondas dos mares, nas manhãs de sol e de chuva, no canto dos pássaros e na alma anciã daquela que sempre resistiu: a Mãe Natureza. Olho para as crianças e percebo os passos que se iniciam. Nossa história se fez arte, dança contínua, regida por aqueles/as que amanhã estarão recontando histórias

Volto os olhos para mim e me dou conta: meu corpo é como um tronco, cheio de seiva, prenhe de vida. Meus braços e mãos são galhos sem fim. Meus olhos são flores, abrindo e fechando a cada amanhecer. Da boca pendem frutos suculentos. Minhas raízes vão ao encontro das raízes das minhas parentas. E o ciclo se refaz. Menina e cobra se reencontram.

Ilustrações: Vinicius Claudino Chaves | Clique aqui para ler o texto traduzido para o inglês.

Hopepunk_GT Indigena

Hopepunk: imaginando futuros

O hopepunk é um subgênero da ficção especulativa oposto ao grimdark e que, de modo sucinto, caracteriza as histórias ficcionais que projetam futuros otimistas e esperançosos. Foi em torno desse subgênero que girou parte das reuniões do IV ciclo do Grupo de Trabalho Indígena, que reuniu lideranças pesquisadoras indígenas e estudantes universitários na elaboração do conto Futuros ancestrais: as cantadoras de histórias.