Cores em vidro

Vidro não é só incolor e transparente. Confira!

A produção de vidros coloridos

Quero propor um desafio! Você consegue responder a pergunta: O que uma coleção de tampinhas de garrafa e a estrutura de um vidro têm em comum? Faça uma pausa, pense e veja se consegue chegar em alguma resposta. Pensou? Ótimo! Agora vem comigo, porque nesta publicação vamos te mostrar como podemos usar uma coleção de tampinhas de garrafa para entender a estrutura de um vidro!

Figura 1. À esquerda, vitral da Mesquita de Nasir al-Mulk no Irã. À direita, vitral “O bom samaritano”, da Catedral de Notre-dame, França, produzido no século 13. Cores e respectivos íons - geometria: azul profundo Co2+ tetraédrico; roxo Mn3+ octaédrico; azul claro Cu2+ octaédrico; verde mistura de Cu2+ e Fe2+; vermelho / rubi Cu0 nanoparticulado.

Cor em vidros

A cor de um vidro depende da absorção, espalhamento ou reflexão da luz em comprimentos de onda na região visível do espectro eletromagnético, situada entre 400 e 800 nm. Além disso, a fonte de luz incidente e a sensibilidade ocular do observador também impactam na coloração observada. A natureza e a intensidade das bandas de absorção ocorrem em vidros principalmente por: 1- transições eletrônicas entre orbitais d desdobrados pelo campo cristalino em complexos de metais de transição; 2- processos de transferência de carga/densidade eletrônica entre o íon (M) e seus ligantes (L) ou outros metais de transição vizinhos; 3- efeitos causados por nanopartículas metálicas. Na ausência de agentes colorantes ou de defeitos estruturais, a maioria dos vidros óxidos (silicatos, boratos, fosfatos, germanatos e etc) são incolores (não absorvem a luz visível). Na presença de agentes colorantes - como metais de transição - os vidros são coloridos pela absorção de energia em regiões específicas do espectro visível, que apenas ocorre se os níveis de energia mais externos do átomo estiverem parcialmente preenchidos e espaçados tais que a diferença desta energia corresponda à esta faixa do espectro eletromagnético. Esses requisitos são preenchidos pela maioria dos íons de metais de transição, com exceção dos íons d0 e d10.

Coloração por complexos de metais de transição

Íons de metais de transição apresentam transições eletrônicas entre diferentes níveis de energia dos orbitais d ou f parcialmente preenchidos e presentes no complexo formado com íons O2-, no caso dos vidros óxido. A energia e a intensidade dessas transições variam em função do íon do metal de transição, seu estado de oxidação e seu entorno (simetria local e natureza do ligante). Como as transições d–d são proibidas por paridade (Regra de Laporte), os elementos de transição em princípio não deveriam colorir eficientemente os vidros, o que é particularmente verdadeiro para elementos lantanídeos, onde os orbitais 4f são blindados pelas camadas eletrônicas mais externas (5s). Como resultado, o coeficiente de absorção molar dos lantanídeos é de 5 a 10 vezes menor que o dos elementos 3d, produzindo vidros com cores fracas. Para os metais de transição, os orbitais d não são blindados por orbitais externos, o que permite alguma mistura com outros estados no local ocupado pelo íon (complexos distorcidos, sítios tetraédricos ou penta-coordenados). Essa mistura relaxa parcialmente as Regras de Seleção de Laporte, tornando elementos como Fe, Cu, Cr, V, Mn, Co e Ni os principais agentes corantes em vidros (Quadro 1).

Quadro 1. Cores produzidas por vários íons de metais de transição em vidros, considerando os três processos de produção de cores: formação de complexos, transferência de carga e efeitos causados por nanopartículas. Nenhuma transição ocorre para: orbitais d vazios - não possuem elétron excitável (ex.: d0, Ti4+); orbitais d completos - não possuem orbital desocupado para receber o elétron excitado (ex.: d10: Cu+, Zn2+, Ag+).

Em vidros óxido, os metais de transição formam complexos coordenados com 4, 5 ou 6 oxigênios:

  • Complexos tetraédricos (NC = 4) são mais comuns (ex.: Ni2+, Zn2+, Fe3+).

  • Complexos octaédricos (NC = 8) são menos comuns (ex.: Cr3+, V3+ e Zr4+ e composições específicas de Co2+ e Ni2+).

  • Fe2+, Ni2+ e Fe3+ podem apresentar diferentes geometrias que variam de acordo com a composição do vidro.

Nenhuma transição ocorre para: orbitais d vazios - não possuem elétron excitável (ex.: d0, Ti4+); orbitais d completos - não possuem orbital desocupado para receber o elétron excitado (ex.: d10, Cu+, Zn2+, Ag+).

Como o estado de oxidação afeta a cor dos vidros

A energia relativa dos orbitais d varia em função do número de coordenação e da distorção do sítio ocupado pelo elemento de transição, e pela covalência da ligação com os ligantes, dando origem a absorção de radiação que confere ao vidro cor. A intensidade dessas transições é determinada por regras de seleção: as bandas de absorção são menos intensas quando a transição implica uma mudança no spin do elétron.

Ex.: Fe3+ têm cinco elétrons ocupando os cinco orbitais d, logo as transições d-d são proibidas por spin e tem baixa intensidade. Por outro lado, o Fe2+ tem 6 elétrons d, com um orbital completamente preenchido, o que leva a uma intensa banda de absorção no infravermelho próximo derivada de transições eletrônicas permitidas por spin, conferindo uma coloração verde intensa ao vidro, Figura 2.

Figura 2. Espectro de absorção de vidro de silicato de soda-cal contendo 0,87 %m/m de Fe2O3. As transições eletrônicas de Fe2+ e Fe3+ ocorrem no infravermelho próximo e no UV-visível, respectivamente. A distribuição eletrônica de ambos os íons indica que o Fe3+ apresenta um elétron distribuído em cada orbital, o que torna as transições d-d proibidas por spin e reduz a absortividade molar do complexo formado.

Como as espécies vizinhas afetam a cor dos vidros

Um caso particularmente interessante é o do Ni2+, Figura 3. A coloração que este íons confere é sensível à estrutura local e varia de acordo com o número de coordenação do metal no complexo. Esta coordenação pode ser modificada pela composição, que altera a basicidade óptica dos mesmos: em vidros ácidos, a coordenação octaédrica prevalece, enquanto em vidros mais básicos, a coordenação tetraédrica é dominante. Assim, a cor do vidro dopado com Ni2+ depende desse equilíbrio entre os complexos tetraédrico ([4]Ni2+), bipirâmide trigonal ([5]Ni2+) e octaédrico ([6 ]Ni2+). Em vidros borato e borossilicato, a geometria do complexo e a cor mudam de octaédrico (verde) para octaédrico distorcido (amarelo), bipirâmide trigonal (marrom) e finalmente tetraédrico (roxo) com o aumento de íons de metais alcalinos ou alcalino-terrosos (aumento da basicidade). Pesquisas recentes indicam ainda a existência de complexos de Ni3+ em vidros com alta basicidade.

Figura 3. Espectros de absorção e modelos estruturais de vidros borossilicato dopados com Ni2+ e as suas diferentes colorações roxa, marrom e verde derivadas de complexos tetraédricos, trigonal planos e octaédricos, respectivamente. Neste caso, [6]Ni provavelmente está associado à estruturas borato e [5]Ni e [4]Ni à silicato.

As transições por transferência de carga e as famosas e úteis garrafas âmbar

Como visto anteriormente, os íons Fe3+ (d5) conferem coloração muito fraca aos vidros óxidos. Entretanto, um dos itens de vidro mais utilizados no nosso cotidiano - as garrafas de cor âmbar - são fabricadas com a adição de Fe3+ e uma fonte de sulfeto à composição do vidro. Esta mistura gera a coloração âmbar devido à transição eletrônica por transferência de carga do íon S2- para Fe3+. Isso ocorre devido a maior polarizabilidade do S2- em comparação ao O2-, o que desloca a transição para a região do espectro visível (~ 410 nm), Figura 4.

Figura 4. Espectro de absorção e esquema do processo de transição eletrônica por transferência de carga entre o ânion S2- e o íon Fe3+. Este processo origina a banda de absorção na região de 410 nm e a cor marrom escuro aos vidros silicato comumente utilizados para armazenar bebidas, medicamentos e cosméticos.

Nanopartículas e a cor em vidros: a Taça de Licurgo

A taça de Licurgo é talvez uma das mais antigas e belas ilustrações da coexistência dos dois processos ópticos: absorção e espalhamento por partículas. Isso porque a taça contém nanopartículas coloidais de ouro (Au0), que ao mesmo tempo interagem com a radiação por plásmon de superfície e espalham a radiação incidida por espalhamento Rayleigh. A produção deste tipo de vidros requer maiores cuidados para que a formação das nanopartículas ocorra, como o uso de um agente redutor, atmosfera redutora e aplicação de tratamento térmico.

Figura 6. A Taça de Licurgo apresenta coloração esverdeada quando observada sob luz normal (reflectância) (a), mas uma coloração avermelhada é desenvolvida quando uma fonte de luz é colocada dentro do copo (transmissão) (b).

AUTORES:

Guilherme Felipe Lenz.


Publicado em: 20 de outubro de 2022.

Última atualização em:


REFERÊNCIAS

VOGEL, Werner. Glass chemistry. Springer Science & Business Media, 2012. RICHET, Pascal (Ed.). Encyclopedia of Glass Science, Technology, History, and Culture. John Wiley & Sons, 2021. MUSGRAVES, J. David; HU, Juejun; CALVEZ, Laurent (Ed.). Springer handbook of glass. Cham: Springer, 2019.