Filipenses 2.12-13 / Lucas 15.11-24
Ciclo do Tempo Comum
P. William Felipe Zacarias
Amados irmãos, amadas irmãs,
nós viemos à Igreja, participamos do culto, cumprimos o “protocolo” e, então, vamos rapidamente embora – quase sem espaço para o pastor passar no corredor – porque já fizemos o que tínhamos pra fazer e o que importa é voltar pra casa. Será que só “cumprir o protocolo” traz amadurecimento à fé? Será que só cumprir o rito nos ajuda a desenvolvermos a nossa salvação? Ou tudo isso nos faz ficarmos ainda mais na nossa “zona de conforto”, sem nos levar a algum compromisso mais sério com o Evangelho? E no dia a dia – na ausência da Igreja – como você vive a sua fé?
É mais fácil obedecer na presença do que na ausência. Mas, se você não se lançar do ninho, nunca aprenderá a voar. O processo de amadurecimento na fé se revela não apenas na presença, mas na ausência – quando não estamos dentro da Igreja, diante do pastor ou em algum ambiente dedicado à fé, mas quando estamos em casa, na escola ou no trabalho: ali é revelada a verdadeira fé, quando caminhamos no dia a dia com as próprias pernas – ou voamos com as nossas próprias asas.
1 PAULO E OS FILIPENSES
Filipos é a comunidade da alegria de Paulo. Enquanto em Corinto havia diversas divisões e brigas e em Tessalônica os cristãos deixaram de trabalhar por esperarem a volta de Jesus, em Filipos a fé cristã ia muito bem. A comunidade dos Filipenses foi iniciada através da conversão e do batismo de Lídia e toda a sua casa (cf. Atos 16.11-15). Não foi a própria vontade de Paulo que o levou a Filipos, mas o Espírito Santo (cf. Atos 16.6-10) – Deus efetuou o querer e o realizar, segundo a sua boa vontade.
Paulo era bem recebido, acolhido e amado pela “Comunidade Evangélica de Filipos”. Ele descobriu uma Comunidade que não apenas aceitou o Evangelho, mas ouvia e obedecia o Evangelho. A palavra obedecer do grego ἀκούω (akouo) significa “ouvir” e “abrir a porta”. Quem lembra quando o pai ou a mãe davam uma ordem e, quando demorava para ser cumprida, eles diziam “não escutou?” Obedecer significa ter ouvido a ordem com atenção, atendido a porta e deixado a Palavra entrar. A Comunidade de Filipos era obediente porque ouvia com atenção o Evangelho.
Agora, Paulo está preso – separado da querida Comunidade (inevitavelmente, lembro-me quando o Pastor Wilhelm Pommer foi preso em Charqueadas durante a II Guerra Mundial porque era alemão e precisou estar separado desta Comunidade). Da prisão, Paulo recebe mantimentos e notícias dos filipenses (cf. Filipenses 4.10-19). Sua alegria é tamanha ao descobrir que aquela Comunidade continua obediente ao Evangelho mesmo durante a sua ausência.
Por isso, em sua carta, Paulo pede que os filipenses “desenvolvam a sua salvação com temor e tremor” (Filipenses 2.12). É preciso amadurecer. É preciso crescer na fé. É preciso sair da mesmice. É preciso sair do ninho e aprender a voar – com profunda reverência (temor e tremor) diante de Deus. A salvação é recebida por graça e desenvolvida através da fé.
2 LUTERO E OS ALEMÃES
No século XVI, Martinho Lutero desenvolveu a sua salvação. Após conhecer as Escrituras, ele não poderia continuar como antes. Mudanças precisavam acontecer. Ele ouviu a Escritura e quis a obedecer. E, com as Escrituras nas mãos, Lutero fez questionamentos ao descobrir o quanto a Igreja da sua época se afastou da Palavra de Deus – especialmente através da venda de indulgências para a construção da Basílica de São Pedro no coração do Vaticano. Lutero arriscou sair do ninho para voar com segurança, impulsionado pela Palavra de Deus. Ele sabia dos riscos, mas também confiava no seu Castelo Forte: o Deus eterno e poderoso (cf. Salmo 46). Na ausência de lideranças fiéis na Igreja da sua época, Lutero foi levantado por Deus para ser a liderança que deveria conduzir a cristandade de volta ao tesouro do Evangelho de Jesus Cristo.
O processo de amadurecimento de Lutero não foi fácil. Primeiramente, ele desobedeceu ao seu pai que sonhava que seu filho se tornasse advogado para ser um grande político. Mas, Lutero precisava voar com suas próprias asas. Após o episódio da tempestade, Lutero entrou no mosteiro de Erfurt. Ele sofreu bastante. Buscando a misericórdia de Deus, fazia jejuns prolongados, deitava-se na geada em noites frias – tudo para que Deus sentisse pena e tivesse misericórdia dele. Mesmo assim, Lutero continuava desesperado buscando o Deus misericordioso.
Em Erfurt, Lutero tinha uma presença muito importante: Johann Staupitz, seu conselheiro e confessor – aquele que dava conselhos e ouvia as confissões de Lutero. Staupitz era como um “pai na fé” para Lutero. Mas, então, Staupitz enviou Lutero para ser professor de Bíblia na pequena cidade de Wittenberg. Distante de seu conselheiro, confessor e mentor, Lutero precisou amadurecer na fé sozinho! Seu contato com as Escrituras foi fundamental. E quando ele estudou a Carta de Paulo aos Romanos, algo aconteceu: ao meditar profundamente sobre Romanos 1.17, “o justo viverá por fé”, Lutero descobriu o tesouro do Evangelho e escreveu: “Então me senti como renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso”[1]. Ali, sozinho, tudo mudou. E para que esse dia acontecesse, primeiro foi necessário que Lutero tivesse a ausência de sua família e conselheiro para que pudesse amadurecer na fé e desenvolver a sua salvação com temor e tremor.
Foi assim que Lutero redescobriu o Evangelho. Ao ler o restante das Escrituras, Lutero percebeu que a verdade presente em Romanos 1.17 estava também presente em toda a Bíblia – e é assim que, ao olhar para a Igreja da época, Lutero descobre também o quando a Igreja se afastou do Evangelho e dá início ao seu protesto que não queria criar uma nova igreja, mas reformá-la através da autoridade da Palavra de Deus – e o restante da história nós conhecemos, especialmente o dia 31 de Outubro de 1517 quando seu protesto é pregado na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, dando início a um movimento que não pode mais ser parado.
3 NÓS E OS NOVO-HAMBURGUENSES
Os imigrantes evangélico-luteranos trouxeram os valores da Reforma quando vieram para o Brasil. Em sua bagagem havia muitas coisas – também a Bíblia na tradução de Lutero e o Evangelisches Gesangbuch (o hinário). No coração, trouxeram outros valores: Igreja, Educação e Sepultamento com dignidade. Na ausência de pastores, precisaram amadurecer na fé sozinhos e através das lideranças disponíveis: pessoas leigas que assumiam a função pastoral até começarem a chegar, mais tarde, os pastores vindos da Alemanha e, ainda mais tarde, os pastores formados em solo brasileiro. Inicialmente sozinhos, precisaram “se virar” como podiam para manter a sua fé, mesmo não podendo construir igrejas com torres, sinos e a cruz no altar.
Amados irmãos, amadas irmãs,
e hoje, será que temos amadurecido na fé? Será que temos desenvolvido a nossa salvação com temor e tremor? Ou continuamos na zona de conforto do ninho? Qual é o nosso compromisso com o tesouro da Igreja que é o Evangelho?
Muitas vezes tenho a impressão de que hoje os luteranos não querem amadurecer na fé – não querem desenvolver a sua salvação recebida pela graça. Aliás, tenho a impressão de que muitos luteranos não foram apenas salvos pela graça, mas paralisados por ela: a Comunidade se torna apenas um lugar social onde não assumo nenhum compromisso; a fé se torna apenas uma pílula motivacional; falar do pecado se torna algo arcaico e irrelevante; a Bíblia é um livro onde recorto o que eu gosto e descarto o que não gosto. Uma fé sem compromisso, sem vivência – sem nada – onde o “eu” é colocado no lugar do “nós” – porque preferimos ficar na zona de conforto do que aprender a voar, ou seja, através do ouvir da Palavra de Deus, amadurecermos na fé e conhecermos cada vez mais do amor de Deus.
Tenho a impressão de que muitos luteranos são muito parecidos com o filho mais novo da Parábola do Filho Pródigo – ele quis deixar a casa do Pai quando ainda era muito imaturo –. Temos o tesouro do Evangelho; temos os Sacramentos; temos toda a riqueza e abundância da graça para vivermos a nossa fé. E o que fazemos? Pegamos esses bens e corremos pelo mundo, vivendo como se o Pai não existisse e desperdiçando tudo o que Deus nos concedeu. O problema do filho mais novo não foi a sua saída de casa, pois isso faz parte do amadurecimento. O problema foi a sua saída sem pedir pela bênção do Pai. Na ausência da bênção paterna, ao invés de ser obediente na distância, ele se tornou desobediente.
O chamado de Deus a nós hoje é que saiamos da zona de conforto e amadureçamos na fé, desenvolvendo a nossa salvação com temor e tremor. Quem fará isso? O próprio Deus: “porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2.13). Que Deus faça isso hoje na sua vida: que você queira mudanças e possa realizar mudanças para estar mais próximo da vontade de Deus. Paulo fez esse desafio à Comunidade de Filipos; Lutero aceitou esse desafio na Alemanha. Aceite esse desafio para transformar a Comunidade Evangélica de Hamburgo Velho. Sair da zona de conforto é difícil: Paulo foi preso; Lutero quase foi morto, mas quando a graça de Deus nos basta, o poder se aperfeiçoa na fraqueza (cf. 2 Coríntios 12.9).
Minha oração é que Deus efetue hoje em você tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade, de você viver a fé cristã com mais comprometimento, obediência e permitindo o amadurecimento em sua vida. Sem amadurecimento, a fé se torna infantil, dependente e medrosa. Se você não se lançar do ninho, nunca aprenderá a voar. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes, em Cristo Jesus, amém.
[1] Bíblia com Reflexões de Lutero, p. 1047.