Mil Alqueires

Mil Alqueires

O resgate da organização dos diferentes espaços geográficos durante mais de meio século no bairro "Mil Alqueires", se justificaria tão somente por nela conter a história e trajetória de vida, erigida por um de seus mais significativos agentes, o Sr. José Joaquim das Neves e sua família composta por 12 elementos. Esse nordestino de fala mansa e "arretada", nasceu em Bom Jesus das Miras, no Estado da Bahia, em 22/10/1922, e hoje com 79 anos, se confunde com a própria história do bairro. O Sr. José foi capataz, administrador de fazenda e hoje administra o seu próprio patrimônio.

A área desse antigo bairro faz parte, atualmente do "Assentamento Santa Rosa" que se organiza com cerca de 40 famílias. As características da vegetação primitiva e do seu solo, se assemelham aos bairros vizinhos: Água do Mastro, Água da Prata e Washington Luiz.

Esse bairro reflete na sua história, a dinâmica do espaço geográfico que ocorreu "na região dos fazendeiros" deste município. Como podemos constatar pelas representações gráficas nesta página, nesse bairro já se organizaram múltiplos arranjos espaciais que se mostraram em diferentes paisagens: natural, agrícola, de pecuária de corte e atualmente agrícola e de pecuária leiteira. Com certeza muitos de seus moradores de hoje, que ali constroem um novo espaço geográfico, desconhecem as histórias que naquele local estão camufladas em sua paisagem atual que se explica somente pelo entendimento das relações sociais provindas de épocas passadas envolvendo a ganância de alguns, as ações e as omissões do Estado enquanto representante do interesse público ou de uma classe esperta e poderosa em todas as instâncias, que são os fazendeiros.

POR QUE MIL ALQUEIRES?

Segundo o Sr. Antenor Rossete, 82, pioneiro do vizinho bairro "Água do Mastro", o nome Mil Alqueires surgiu das ações do grileiro de terras, Dr. Labieno da Costa Machado, quando em meados da década de 1940 mandou demarcar mil alqueires com picadas no meio da mata, para, através de jagunços, manter a posse da área. Esse local se localizava exatamente na divisa dos domínios dos também grileiros, Antônio Sandoval Neto , Ventura Bastos e Demétrio Fioravante, que realizavam constantes incursões de ocupações no sentido norte/oeste a partir da margem direita do Ribeirão Pirapozinho interessados em ampliar seus domínios. Como podemos imaginar esse bairro estava inserido numa região disputada à bala através de jagunços, e se constituiu no último reduto de posse do Dr. Labieno na direção sul/sudoeste deste município.

Ainda segundo o Sr. Antenor, quem primeiro adquiriu as terras do bairro, foi o Sr. Mishima. Em 1947 ele comprou 250 alqueires do Dr. Labieno, arrendou uma parte, que foi logo desmatada para o cultivo do algodão. Quando a propriedade ainda possuía uma grande extensão de mata virgem, ele a vendeu para o Sr. Isaac Mellen, já no início da década de 1950.

O Sr. Isaac Melen, segundo o Sr. José Joaquim, ampliou, através de "compras" e grilagens suas posses para 666 alqueires em pouco tempo, mas em 1985, já se constatava por documentos que sua fazenda "Santa Rosa", se compunha de uma área com exatos 2.096 alqueires. Qual ou quais os segredos para tanta prosperidade assim? Neste município, além de outras em diferentes localidades, ele ainda possuía outra fazenda no bairro "Marcos Dois" com 215,5 alqueires. O caminho mais rápido e profícuo para isso, consecutivamente, foi a grilagem.

FUGINDO DA MORTE

Bem na divisa com as terras do Sr. Isaac Melen, o Sr. Matsuo Sato, 79, imigrante japonês, comprou do Sr. Funaro, em 1952, juntamente com um de seus irmãos, 50 alqueires de terras ainda cobertas de mata virgem.

Para se ter uma idéia de como realmente essa região era violenta, o Sr. Matsuo, ainda hoje relembra: "Derrubamos uma parte da mata, e plantamos algodão por dois anos. Com a gente vieram mais duas famílias de japoneses. Logo no início, quase todos os dias apareciam bandos de jagunços do Dr. Labieno e de um tal de Ventura. Cada bando afirmava ser o seu patrão o verdadeiro dono daquelas terras. Eu não sei de quem que o Funaro comprou, mas os jagunços do Dr. Labieno diziam que se não pagássemos as terras também para o seu patrão, nossos corpos iriam boiar no rio. Aí, com muito medo, abandonamos as terras e fugimos, perdendo o dinheiro que havíamos pago pela propriedade até aquele ano".

NORDESTINOS, ALGODÃO E PECUÁRIA

Segundo o Sr. Cícero Onofre Pereira, 93, nascido em Senador Pompeu – CE, e que chegou naquela área em 1953, o bairro "Mil Alqueires" e proximidades, foram colonizados por migrantes nordestinos. Ele confirma que algumas famílias de japoneses chegaram primeiro, ambicionavam ali permanecer como proprietários, mas acabaram abandonando tudo com medo dos jagunços.

Assim que os nordestinos foram chegando, no início da década de 1950, a paisagem e a organização do espaço geográfico foram se transformando completamente. Como sabemos, poucos desses migrantes traziam capitais suficientes para comprar terras e não tencionavam aqui permanecer. Nessas condições só lhes restavam as opções do arrendamento de terras para o cultivo e o trabalho como peão dos agricultores.

Em poucos anos, narra o Sr. José Joaquim, de Mirante do Paranapanema até o "Mil Alqueires", transformou-se em lavouras de algodão. Mas, também, cita que os negócios entre fazendeiros e nordestinos não duraram muito tempo. Os fazendeiros preferiram partir logo para outra atividade econômica, a pecuária de corte, que proporcionava mais lucros e menos encrenca. Em decorrência do empobrecimento do solo e o surgimento de pragas nas lavouras, que refletiam na baixa produtividade do algodão, muitos arrendatários nos finais das colheitas não conseguiam honrar seus compromissos com os proprietários das terras e também com os financiadores. Essa situação estimulou o fazendeiro, Isaac Melen, já a partir do final da década de 1950, somente arrendar a terra com o compromisso do agricultor, no ano seguinte, entregar formado com pastagem de colonião.

FAZENDEIROS E ADMINISTRADORES

A história de vida do Sr. José Joaquim das Neves construída nesse bairro, mostra-nos claramente como era o relacionamento entre fazendeiros patrões e seus colaboradores: capatazes e administradores.

Sendo suas posses, no mínimo de origens duvidosas, para não dizer "grilagens", os fazendeiros procuravam arrancar da área apossada os maiores lucros possíveis no menor espaço de tempo. Com isso, dentre todas as atrocidades praticadas, uma delas se refere à exploração de seus administradores. Nessa "região dos fazendeiros", principalmente nas décadas de 1930 e 1940, a violência andava à solta. Naquela época, antes de ser administrador, o indivíduo tinha que ser capataz, jagunço, valente e arriscar a própria sorte. A aspiração por uma porção de terra era tão atraente que muitos desses, depois de eliminarem ou repelirem à bala outros invasores "das terras" do patrão, pagavam com a própria vida o sonho de um dia também ser "dono" de uma fazenda.

Quando o Sr. José chegou nesse bairro, os conflitos pela posse da terra já se delineava menos intenso, entretanto, até hoje, eles nunca deixaram de existir nessa região. Na verdade o senhor José sempre esteve, com muita lealdade, a serviço do fazendeiro. Batalhou para que o mesmo sempre mantivesse a condição de ser o legítimo dono das terras que dominava.

A viúva, dona Gidalva Dantas dos Santos, 50, também conta que o seu esposo, Sebastião Alves dos Santos, foi assassinado em 16/10/1994, porque defendeu de outros invasores até quando pôde a fazenda São Bento de propriedade da família Sandoval. Antônio Sandoval Neto foi o maior grileiro da "região dos fazendeiros". Depois de trabalhar 33 anos para o fazendeiro, a família do Sr. Sebastião, saiu praticamente sem nada. Ainda hoje muito afligida e amargurada, a dona Gidalva desabafa: "Os netos do Sandoval negaram até o dinheiro para pagar as despesas da lavagem do corpo de meu marido assassinado por causa deles, a dez metros da porta da sede da fazenda. Não apareceu ninguém da família Sandoval no enterro. Eles sempre pensaram assim: deixa o negrão que se dane, a gente cai fora e assim livramos nossa pele. É muito triste, mas é assim que chega ao fim a vida de quem trabalha para fazendeiro. Até hoje a minha maior tristeza é quando vejo um barraco de lona preta. Isso me lembra desprezo, morte, sofrimento".

O Sr. Isaac Melen, que segundo o Sr. José era "turco", ao morrer no início da década de 1990, como não era casado e nem tinha filhos, seus irmãos herdaram todas as suas propriedades.

Na fazenda o Sr. José sempre foi administrador, mas havia também o gerente, o Sr. Daniel Rocha. No final da década de 1990, quando a fazenda foi desapropriada pelo Estado para fins de reforma agrária, o Sr. José conta que se não fosse o governo ele iria sair dali sem nada. Segundo ele também afirma, é assim mesmo que terminou a carreira da maior parte dos administradores de fazenda naquela região.

"Trabalhei com o Isaac Melen quase cinqüenta anos e não ganhei nada. Quem me deu esses 33,5 alqueires de terra foi o Estado. Fazendeiro não gosta do empregado, ele gosta mesmo é de seu serviço e de ganhar dinheiro. Empregado que foi honesto com fazendeiro acabou sem nada, mas teve gerente que saiu muito bem daqui, não sei explicar como" (José Joaquim das Neves).