Cidade em quarentena

Uma Porto Alegre fantasma em 1918

Parecia uma ameaça distante. Em uma época de comunicações precárias, um surto de um tipo de gripe fulminante na Europa em guerra não parecia ser motivo de maiores precauções para os moradores de Porto Alegre, a maior cidade ao sul do Brasil, mas distante dos grandes fluxos de pessoas e mercadorias.

Os primeiros registros da doença que viria a ficar conhecida como influenza espanhola aparecem em março de 1918, nos Estados Unidos. Mas é na Europa conflagrada, com intensa movimentação de tropas, que o vírus se espalha com força nos meses seguintes, somando, em agosto, milhares de mortos em diversos países.

No Brasil, os primeiros casos surgem em setembro. Os navios mercantes e militares que percorriam os continentes são os vetores de transmissão. Nos jornais da época, as notícias de embarcações mantidas em quarentena em portos e de tripulantes com suspeita da doença chegam de cidades como Recife e Rio de Janeiro.

O Correio do Povo, mais importante jornal gaúcho da época, noticia, em 27 de setembro de 1918, que a epidemia havia acabado de assolar as guarnições brasileiras em Dakar, capital do Senegal. Já era a expansão do contágio pela costa africana.

Em 3 de outubro, A Federação, outro importante jornal de Porto Alegre, publicado pelo Partido Republicano Riograndense, que por mais de 30 anos governou o Rio Grande do Sul, estampa com destaque em sua capa, pela primeira vez: “A influenza hespanhola – a epidemia a bordo das nossas unidades de guerra”. A partir de relatos de jornais cariocas, traz informações sobre o estado de saúde dos infectados, a repercussão no governo e no Congresso e as medidas que já eram adotadas na então capital federal para “evitar a invasão da ‘influenza hespanhola’ no porto do Rio de Janeiro”.

Enquanto a epidemia alastra-se pelo Rio, com as primeiras mortes – “A notícia, agora divulgada, de que a peste da guerra já causou alguns óbitos, é de molde a aumentar o alarma de que já se acha possuída a população”, publicou A Federação em 15 de outubro –, o Rio Grande do Sul entra em situação de alerta. Em 19 de outubro, o médico Dr. Ulisses de Nonohay publica um artigo no jornal. “O público está alarmado com a ameaça da invasão na nossa capital da influenza hespanhola”, escreve na abertura do texto, no qual discorre, com objetivo de tranquilizar a população, sobre as formas de transmissão e os tratamentos.

No começo de outubro, o vapor Itajubá chega ao porto de Rio Grande com seus 38 tripulantes contaminados. Na mesma época, casos são confirmados na estação ferroviária de Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina. Os dois principais meios de transporte da época eram o caminho da transmissão. Em 16 de outubro de 1918, sete pessoas desembarcam no cais de Porto Alegre contaminadas com a doença. Sem qualquer tipo de quarentena, entraram em contato com os moradores da capital. 

Com a população apavorada, o Correio do Povo, em 29 de outubro, cobra dos governos municipal e estadual quais iniciativas seriam adotadas para conter a influenza, segundo a transcrição da doutora em História Janete Abrão:

“Pedimos, anteontem, que, como medida preventiva, fossem desinfetados os hotéis, casas de pensão, [...], casas de cômodos, enfim, todas as casas de habitação coletiva. Essa providência ainda não foi tomada, [...]. É necessário também que essas desinfecções se estendam aos casebres que abundam na cidade, a começar pelo Areal da Baronesa, onde todas as epidemias encontram campo franco para o seu desenvolvimento. [...]. Parece que a Administração Municipal faz garbo em não atender às reclamações do público e manter suja a cidade. Na época que atravessamos não é possível tolerar tal coisa. [...]. É possível que o número de funcionários da Diretoria de Higiene seja exíguo para o momento atual. Se assim for, cumpre ao governo contratar médicos e demais funcionários para atender ao excesso de serviço”.

A resposta do governo Borges de Medeiros veio no dia seguinte, publicada na capa de A Federação: a cidade foi dividida em 25 quarteirões, com médicos e enfermeiros escalados para os atendimentos dos moradores dessas áreas. Estudantes de Medicina foram requisitados na faculdade e, naquele ano, não houve formatura solene: o batizado dos futuros médicos se deu na prática.

As imagens ao lado são reproduções do jornal A Federação. Edições de 14, 19 e 26 (as três últimas) de outubro de 2018 e fazem parte do acervo do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.

As fotografias abaixo foram publicadas nas edições semanais da revista Máscara ao longo de novembro de 1918.

A influenza atingiu a cidade de maneira desigual: nos arrabaldes, como o Areal da Baronesa, onde hoje fica o bairro Cidade Baixa, eram mais frequentes os casos. O governo estadual criou o Comissariado de Abastecimento e Socorros Alimentícios. A população mais pobre, em sua maioria formada por negros, formava filas para receber as doações, realizadas também por instituições, como a loja maçônica do Grande Oriente do RS, e empresas, a exemplo da confeitaria Rocco.

Para enfrentar a pandemia, a cidade se fechou. “A cidade tem, durante o dia, um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre [...], as casas de diversões fechadas, os cafés, os bares, tudo escuro, dando à capital a forma de uma cidade morta, sem vida [...], raro é o transeunte que anda [...], o êxodo das famílias já é notável, apresentando o centro da capital desolador aspecto”, transcreveu a pesquisadora Janete Abrão do jornal O Independente.

Aglomerações públicas e o Campeonato Gaúcho foram suspensos. Cinemas, cassinos, teatros e bares foram fechados. As escolas não funcionaram. A Rua da Praia ficou vazia e o tráfego de bondes foi reduzido. Houve escassez de alimentos e alta de preços, com falta de limão, quinino (remédio para febre) e óleo rícino (para limpeza dos doentes). O governo foi obrigado a instituir tabelamento de preços e a racionar a venda por cliente. No Mercado Público, faltou frango, ingrediente básico das canjas indicadas para o tratamento dos enfermos. Os enterros ocorriam à noite para não assustar a população, muitos em valas comuns, já que os coveiros também foram acometidos pela doença e havia poucos para tanto trabalho.

A revista Máscara noticia desolada, na edição de 16 de novembro, que o fim da I Guerra Mundial não pôde ser comemorado como deveria em uma Porto Alegre em quarentena em razão das contaminações:

Foi uma lástima, exemos. srs., que esta epidemia ainda estivesse grassando por ocasião da capitulação da Alemanha... Imaginem vocês, exemos. srs., o delírio da Rua por ocasião da chegada desses telegramas! Entretanto apenas alguns foguetes fizeram ouvir o seu rumor incômodo”.  

No mesmo texto, a publicação lembra outro impacto da epidemia: com as operadoras de telefonia doentes, não era possível completar ligações, tão necessárias e urgentes para uma cidade enferma – vale lembrar que, na época, para dar um telefonema, era preciso solicitar a uma telefonista (mulheres atuavam nessa função) que realizasse a chamada

Reproduções ao lado da tabela de preços publicada por A Federação em 5/12/1918, texto sobre a assistência aos pobres e o impacto no dia a dia da cidade (Máscara, 23/11/1918)

A Rua da Praia encheu-se de bandeiras com as primeiras notícias sobre o fim da Primeira Guerra

Assim como chegou de assombro, a epidemia se foi. Depois do auge no mês de novembro, o número de casos foi diminuindo ao longo de dezembro, até o desaparecimento total em janeiro de 1919 – talvez o vírus não tenha resistido ao calor tropical. 

As atividades voltaram à normalidade (como contou a revista Máscara em 7/12/1918 - veja a imagem ao lado), mas o saldo foi trágico: estima-se que pelo menos 3 mil pessoas morreram no Rio Grande do Sul, sendo 1,3 mil em Porto Alegre, segundo os dados do Relatório da Diretoria de Higiene do Estado. 

Os números devem ser maiores, já que muitos óbitos não foram registrados. Uma característica das vítimas: homens entre 20 e 40 anos que precisavam sair de casa para trabalhar, impedidos de ficar isolados para evitar a contaminação.

Porto Alegre novamente uma cidade fantasma

Se em 1918 a imprensa ficava restrita aos jornais, em 2020, quando eclodiu a pandemia da covid-19, o mundo vivia mergulhado em fontes de informação. Além dos ainda resistentes jornais, há rádio, TV, internet e redes sociais. 

Um século antes, as notícias levavam dias, até mesmo semanas, para chegar aos lugares mais distantes. Agora, a instantaneidade deixa tudo mais próximo e, assim, acompanhamos as primeiras notícias sobre o surgimento de um vírus desconhecido e mortal na China. Logo, as preocupações foram se alastrando.

Em 1918, o vírus da influenza espanhola viajou de navio entre os continentes. Desta vez, a viagem foi de avião, e logo os casos de infecção pelo coronavírus eram noticiados em diferentes países. O primeiro grande surto, depois do originário em Wuhan, foi em Milão, na Itália. Foi questão de dias para chegar ao Brasil, começando por São Paulo, a cidade com maior fluxo aéreo. 

Em Porto Alegre, o primeiro caso foi confirmado em 11 de março de 2020. No mesmo dia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou como pandemia a ocorrência do coronavírus no mundo todo. A primeira morte na capital gaúcha ocorreu no dia 24 de março: uma senhora de 91 anos. 

No final do mês, o governo do Estado determinou o fechamento do comércio em todas as cidades. As aulas foram suspensas. As ruas ficaram vazias e as famílias organizaram-se, como foi possível, para ficar em casa. Nos supermercados, os clientes fizeram filas, já que a presença do público foi limitada para evitar aglomerações.

Quem pôde, passou a trabalhar em casa, e home office passou a ser uma expressão comum. Mas entre os mais pobres, as dificuldades foram muitas. Primeiro, não havia condições para trabalhar em casa. Além disso, quem trabalhava como informal ficou sem renda. 

A imprensa assumiu principalmente a função de orientar a população. Inicialmente, explicar o que era o coronavírus e como prevenir a contaminação. Havia muitas dúvidas sobre a força do vírus, os sintomas e os tratamentos da covid-19. Além disso, era preciso desmentir boatos e mentiras que proliferavam nas redes sociais e em grupos de WhatsApp.

Nos hospitais, novos espaços foram abertos e as UTIs, ampliadas. Os velórios foram praticamente extintos e os enterros só podiam reunir poucas pessoas. Os cemitérios enterravam cada vez mais vítimas da pandemia, mas não chegou a faltar túmulos em Porto Alegre. 

Depois de meses de isolamento, a cidade começou a retomar uma rotina sob a pandemia, o novo normal, como se passou a definir: uso de máscara e álcool gel para prevenir a contaminação pelo coronavírus. 

Ao lado, reproduções de páginas impressas e de sites de jornais (de cima para baixo):