Boatos e fake news

O mal dos boateiros

Na Porto Alegre do início do século XX, os boatos corriam de boca em boca. Percorriam a Rua da Praia entre paradas nas rodas de conversa nas esquinas ou nos cafés da região central da capital. Quando a cidade precisou enfrentar uma epidemia sobre a qual pouco se sabia, não foi diferente. 

Com escasas informações oficiais, já que o governo do estado controlava as divulgações e censurava as publicações, a população, alarmada, se informava muito pelo que se dizia por aí, desde dicas de tratamentos - a cachaça era recomendada, por exemplo - até relatos de mortos recolhidos das ruas ou insepultos no cemitério da Santa Casa.

A situação chamou a atenção do redator da revista Máscara (veja dois trechos da edição de 23/11/1918 ao lado):

"'Eu vi com esses olhos cinco mortos na rua dos Andradas; disseram-me que os coveiros cavam noite e dia as sepulturas; fulano (que está vivo e um poucochinho doente) acaba de morrer...' e outras e outras afirmações que só a polícia correcional podia evitar. 

Dessa forma, andam pelas ruas, ilesos, os 'boateiros' explorando a situação enferma da cidade, acendendo perigos onde não existem, criando flagelos e amedrontando a calma da população, entregue agora a um trabalho de preocupações mais úteis. 

Pudéssemos assinalar, pelas ruas, esses 'boateiros' com as mesmas vestes que trazem os condenados e o 'boato' abandonaria a cidade, varrendo-a desses desocupados que a infestam e de quem a 'influenza' não se apiedou..."

Além dos boatos, havia também um embate de narrativas na imprensa. O Correio do Povo, independente, cobrava que o governo estadual adotasse medidas para conter a propagação do vírus e apresentasse uma estratégia. A Federação, publicada pelo partido que comandava o estado, fazia o contraponto, até mesmo com ironias aos "jornalistas independentes". O discurso de A Federação tinha como característica reduzir o impacto da influenza espanhola no dia a dia de Porto Alegre, como no exemplo ao lado (terceira imagem). Nesse sentido é que o jornal publica o artigo do Dr. Ulysses Nonohay, que reduzia a gravidade da doença e procurava reduzir a ansiedade da população. 

A vez das fake news

Assim como em 1918, desacreditar a força da pandemia foi a primeira atitude do governo brasileiro em 2020. Gripezinha foi a palavra usada pelo presidente Jair Bolsonaro para caracterizar o vírus que se espalhava pelo mundo provocando mortes que, em outubro de 2021, passaram de 600 mil.

A CPI da Covid, realizada no Senado ao longo de 2021, apontou Bolsonaro como "líder e porta-voz" das fake news que marcaram a ocorrência do coronavírus no Brasil. O presidente e seus filhos políticos minimizaram a crise sanitária, contrariaram orientações de especialistas e da Organização Mundial da Saúde (OMS), promoveram tratamentos ineficazes e desprezaram vacinas. O governo, segundo a CPI, montou uma organização ancorada em médicos, jornalistas e blogueiros para sustentar um discurso sem ligação com a ciência, nem mesmo com o que se via no dia a dia da pandemia.

Enquanto a maior parte da imprensa associou-se a especialistas para orientar a população sobre as formas de prevenção da covid-19 e cobrou medidas efetivas por parte do governo federal, um grupo menor, mas ferozmente alinhado a Bolsonaro e seus apoiadores, atuou para disseminar informações falsas e promover o desserviço em favor da sociedade brasileira.

Em emissoras de rádio e TV, colunas de jornais e sites e, principalmente, em redes sociais e grupos de WhatsApp e Telegram, essas pessoas mentiram e distorceram fatos. O negacionismo imperou em comparativos esdrúxulos, como fez um desses comentaristas em uma emissora de TV, dizendo que mais pessoas morriam engasgadas do que por covid-19 e nem por isso deixávamos de comer. O lado sério do jornalismo fez emergir com força os mecanismos de checagem, que precisaram dispender horas de trabalho em desmentir as mais absurdas histórias, como a afirmação de que as vacinas contra covid deixavam o corpo magnetizado.

Por um lado, a atual pandemia da covid-19 mostrou que as pessoas podem cooperar e ajudar umas às outras nas mais difíceis situações, sendo com pequenos auxílios em dinheiro, doações de alimentos ou até mesmo de utensílios que preveniriam o contágio com o coronavírus (como máscaras e álcool gel). 

Por outro lado, a pandemia foi capaz de revelar um lado um tanto quanto sombrio das pessoas, capazes de desviar verbas públicas de setores da saúde pública, além do drástico aumento nos valores do álcool gel por parte de algumas empresas e a disseminação de boatos e mentiras sobre a pandemia, geralmente motivados por alguma ideologia anticientífica.

Reproduções ao lado

BBC Brasil - 27/11/20202

El País - 20/10/2021

CNN Brasil - 21/10/2021

O Estado de S. Paulo - 23/10/2021

GZH - 14/06/2021

Aos Fatos - 17/05/2021