Quando do lançamento do ‘O Papafigo’, fui questionário de sua grafia. Alguns leitores que estavam presentes ao evento possuíam a certeza de que papafigo deveria ser escrito com um hífen, assim: papa-figo.
Lembro-me de ter pesquisado muito bem o assunto até adotar a grafia de papafigo para esse ser devorador de fígado humano. Uma das razões foi diferenciar o monstro do simpático pássaro de nome ‘papa-figos’ (Oriolus oriolus), que, coitado, recebeu esse nome por só comer a fruta ‘figo’. Não queria atribuir a esse a suspeita dos horrores cometido por aquele.
Muito embora superada a discussão ocorrida na cerimônia de lançamento, a polêmica em torno da grafia do papafigo não parou por aí. Certo dia, indo tomar um ônibus na rodoviária de Campina Grande, escutei três pessoas que conversavam calorosamente num barzinho de esquina, como que quem vem do Clube Campestre. Por incrível que pareça, diante de um prato de fígado acebolado e de algumas garrafas de cerveja já esvaziadas, estavam a debater o tema.
De orelhas bem atentas, postei-me por perto e escutei tudo. Tentarei ser o mais fiel possível na transcrição da discussão que ocorria entre eles.
Zezinho da Gramática:
- Minha gente, tá na cara! É papa-figo, com hífen! O hífen é o sabre de luz da ortografia! Une forças distintas para formar um ser temido e coerente. Sem hífen, vira bagunça! O hífen é o horror que dá forma ao monstro!
Dona Nair do Correio:
- Zezinho, deixa de ser besta cabra de peia. Só porque você carrega essa gramática como se fosse uma bíblia, não quer dizer que você está certo. O hífen já morreu com o tal do Acordo Ortográfico, descanse em paz! O certo é papafigo, tudo junto, como quem fala rápido pra sair correndo da criatura! Quem é que vai parar pra colocar hífen quando o bicho tá atrás do seu fígado, hein?
Seu Edmar do Bar:
- Respeitem o povo, minha gente! Vocês dois tão é tomando sol demais no quengo! Eu juro que é papa figo, separado, do jeito que o povo fala desde os tempos do rádio de válvula! Com hífen, parece nome de remédio tarja preta; junto, parece login de Wi-Fi. Mas separado... ah, separado é o correto! Minha avó dizia: “Não confie em quem junta demais!”
Zezinho da Gramática:
- Mas, Edmar, pelo amor do dicionário Aurélio! Separado parece um senhor que só come figo no café colonial! Vão achar que o sujeito tá comendo figo, a fruta! Não o fígado humano! Querem colocar o papa-figo no Tinder, é? Nome de solteiro agora? Como é que se impõe respeito ortográfico desse jeito? Um monstro desses tem que vir com hífen, nem que seja pra amedrontar os revisores!
Dona Nair do Correio:
- Respeito é ele vir tudo junto! Papafigo gruda igual medo no coração das crianças. Junto que nem pão com mortadela! Além do mais, quem põe hífen em criatura mitológica, põe também na feijoada: feijão-preto-com-carnes-diversas! E outra: se fosse separado, virava nome de receita — "papa figo ao molho madeira". Tá doido?
Seu Edmar do Bar:
- Pois eu digo mais: minha avó jurava que conheceu um papa figo em pessoa, lá em Caruaru, e ele se apresentou assim mesmo: “Muito prazer, sou o Papa Figo.” Dois nomes, como quem diz: “Sou o Zé Carlos”. Isso é tradição oral, é cultura! Vocês querem apagar a cultura do povo?
Zezinho da Gramática:
- Tradição oral que nada! Isso é tradição bucal! Papa-figo vem do latim fícum devoratus, ou algo parecido, sei lá. Eu li numa placa de banheiro uma vez. Tem hífen porque o terror exige pontuação!
Dona Nair do Correio:
- Arre égua! Se for pra usar latim de banheiro, eu também li uma vez que “carpe diem” quer dizer “coma fígado”. Então já viu, né?
Zezinho da Gramática:
- É melhor a gente parar de falar desse bichão, senão ele resolve aparecer por aqui, né? Aí o que a gente faz?
Seu Edmar do Bar:
- Se ele vier aqui agora, eu dou um copo de pinga pra ele. Resolve qualquer maldição! Enquanto isso, melhor a gente comer esse fígado acebolado logo... vai que o bicho aparece!
Como ninguém chegou à conclusão alguma, sai inquieto daquele bar. Enquanto caminhava o percurso final até a rodoviária, conclui a moral história: o verdadeiro terror do papafigo, ou do papa-figo e até do papa figo não está na certeza e sim na dúvida!