Tempos atrás, lecionei na Universidade Federal de Alagoas. Mas não era em Maceió, não... Era lá no sertão mesmo, onde o sol é quente, o povo é bom e as histórias são melhores ainda. Foi uma fase maravilhosa da vida, cheia de descobertas — de paisagens, pessoas e causos. E foi justamente numa dessas andanças que ouvi uma das histórias mais inacreditáveis que já chegaram aos meus ouvidos. Estava numa van (ou "Topic", como o povo chama por lá) entre Delmiro Gouveia e Santana do Ipanema, quando a novela começou.
No alto Sertão alagoano, uma viagem de Topic entre duas cidadezinhas pode facilmente virar palco de drama, comédia e tragédia... tudo ao mesmo tempo. Eu estava na segunda fileira, sossegado, quando uma família — pai, mãe e um jovem cabra apaixonado — se acomodou bem atrás de mim. Conversa vai, conversa vem, e o que parecia ser só um desabafo familiar virou uma reviravolta mais inesperada que já ouvi.
No Sertão ainda é assim: se o cabra quer se casar, tem que construir sua casinha de taipa em um canto do terreno da família. O moço em questão já tinha feito isso — levantou as paredes, rebocou tudo direitinho, botou até porta e janela! Agora só faltava convencer o pai de que ele estava pronto pra se casar com a Mariazinha, o amor da vida dele.
E começou o debate:
— Pai, eu já fiz tudo! A casa tá pronta e eu tô empregado na loja de moto!
— Não dá, filho. Quando era só namoro, tudo bem... Mas agora tá ficando sério demais. Casamento eu não aprovo.
— Mas eu amo Mariazinha!
— Você é muito novo, meu filho. Não vai conseguir sustentar uma família.
— Eu já pago minhas contas e a casa tá lá, prontinha! – insistiu.
— E os móveis, quem vai comprar?
— Eu financio, ué!
— E se perder o emprego? Mariazinha ainda tá no colégio, nem trabalha.
— Mas ela é de família boa, pai!
— E vai ver, logo embucha!
O clima esquentou. O rapaz começou a inflar o peito, ensaiando sua emancipação:
— Pai, eu tô decidido. Com sua bênção ou sem ela, eu vou me casar com Mariazinha!
— NÃO VAI! — gritou o pai, expressando-se com raiva, mas que parecia mais ser uma aflição.
— Vou sim! E o senhor vai ter que aceitar!
— NÃO VAI...
— Não vou por quê? – desafiou o cabrito, trazendo a discussão para o campo da razão.
— Porque... – o homem, já mais vermelho que um pimentão, olhou para a mulher que estava com a cara séria, travada e impávida a olhar fixamente a estrada. Sem saída, ele respirou fundo e continuou – porque Mariazinha é sua irmã! – disse como quem se alivia de uma pressão que não se consegue mais se segurar.
Silêncio na van. Silêncio de gelar o couro no calor de 40 graus.
O rapaz arregalou os olhos, pálido que só:
— COMO É QUE É, PAI?!
O velho então respirou mais fundo ainda, encarou o filho e soltou:
— É isso mesmo – o homem voltou a olhar para a mulher que mantinha a cara séria, travada e virada para a estrada. – Mariazinha é minha filha. Eu não ia contar nunca... mas você se apaixonou por ela e agora não tem mais jeito. Traí sua mãe uma vez só, foi um erro, e Mariazinha é fruto disso. Vocês são irmãos, sim senhor. – disse mais encabulado que menino em festa de 15 anos, quando toca musica lenta.
O clima na Topic virou velório. Ninguém respirava e ninguém olhava para ninguém. O rapaz começou a soluçar:
— Meu Deus... minha vida acabou... Aaaah!!! Minha própria irmã!!! Eu fiz uma casa... juntei um dinheirinho... e agora descubro isso!!! Aaaaahhh!!! Sou um desgraçado!!! Aaaaaahhhh!!!
A mãe, que até então só escutava, decidiu virar o rosto, encarar o marido e o filho, e entrar na história:
— Calma, meu filho!
— Calma como, mãe??? Eu AMO a Mariazinha e ela é MINHA IRMÃ!!!
— Pode se casar sim!
— COMO, MÃE?! Ela é filha do pai!!!
Foi então que a mulher também bem respirou bem fundo, levantou os olhos pro céu, fez um pai nosso como quisessem se benzer de todo mal e disse:
— É, meu filho... Eu também traí seu pai uma única vez! Foi um erro. Jurei que nunca iria contar isso. Mariazinha pode até ser filha do seu pai. Mas você... você... você meu filho, não é filho dele, não. Pode se casar, sim senhor!
Novo silêncio, ainda mais pesado. O tipo de silêncio que até o motorista diminuiu a marcha só pra escutar melhor a respiração dos passageiros.
Percebendo que meu destino já estava no campo visual, foi aí que eu não aguentei:
— Ô, motorista... pode parar aqui que eu vou descer!