Dona Lourdes era uma senhora bem esperta. Muito ativa em seus oitenta e tantos anos, foi rápida em se oferecer a ajudar seu filho, que acabara de receber a notícia que teria de se mudar de cidade.
Sabe como é. Os pais têm de cuidar dos filhos. Principalmente de um rapaz que já não era tão rapaz assim. Um rapaz velho. Um cinquentão, quase sessenta, que nunca saíra do conforto da casa da mãe. Comidinha pronta, roupa lavada, quarto sempre arrumado e poucas despesas eram os atrativos, sem falar do carinho e mimos constantes de Dona Lourdes e de seu finado marido – que Deus o tenha.
Ele não queria, mas o destino implicou em lhe transferir para outra cidade. Uma promoção do tipo: ou se pega ou cai fora. Rapaz velho não pode se dar ao luxo de perder um emprego. A realidade lhe impôs a mudança. Por sua vez, sua mãe, dona Lourdes, disse as palavras que ele queria ouvir.
- Vá meu filho! Eu vou junto.
E ele foi, levando a mãe para a nova cidade.
Como de costume, ela tomou a frente de tudo. Preocupada com o emprego do filho, encontrou uma casa para alugar, providenciou uma empresa de mudança, fez a arrumação quando os móveis chegaram na casa nova, providenciou uma boa feira e tudo mais para deixar seu filho livre para se dedicar ao novo desafio do emprego. Nada de diferente do que ela sempre fazia. Porém, para a surpresa dos dois, ele teve de viajar em treinamento, deixando-a sozinha logo na primeira semana.
- Vá meu filho! Se você precisa ir, vá! Não se preocupe comigo. Vou aproveitar para conhecer a vizinhança e o bairro. Preciso saber onde se compra as coisas por aqui.
E ele foi, deixando a mãe sozinha na nova cidade.
Dona Lourdes não perdeu tempo. Começou a conhecer a vizinhança, as mercearias, as rotas de transporte público, os prestadores de serviço, as padarias. Nada ficou sem seu olhar atento. Tudo estava muito bem anotado para quando seu filho voltasse. O que ele precisasse, ela teria na mão a solução.
Em um desses dias de grandes andanças, muito cansada, ela foi dormir contente. O filho voltaria em dois dias e ela já tinha até preparado uma bela refeição para o seu retorno. O que ele gostava mais: um guisado de galinha. Não daquelas galinhas magrinhas que só tinham ossos. Guisado de galinha matriz. Dona Lourdes havia encontrado um açougue que tinha essas tais galinhas matrizes. Comprou duas, só para garantir. Foi dormir aliviada. Mas, antes de dormir, escutou algo estranho. Já tinha notado antes, mas não tinha parado para ligar os pontos.
Da janela do seu quarto, dava-se para escutar, vez ou outra, o povo da casa vizinha. Era uma família de quatro pessoas. Um tal de Alceu (ou Alfeu, vai saber), sua esposa Letícia, dois meninos barulhentos — Pedrinho e Danilo — e uma empregada chamada Alexia. Pobrezinha da Alexia. Alexia não parava. O tempo todo, todos a chamavam para tudo. Alexia faça isso. Alexia faça aquilo. Coitada de Alexia.
Naquela noite dona Lourdes estranhou ainda mais. Será possível que não deixam Alexia em paz um instante?
- Alexia, apague a luz! – gritou Danilo.
- Alexia, ligue o som! – pediu Pedrinho.
- Alexia, ligue o ar-condicionado da sala! – ordenou Letícia.
- Alexia, a que hora será o jogo do Botafogo? – perguntou Alceu.
“Ai já é demais!”, pensou dona Lourdes, levantando-se de sua cama para espiar da janela. Até de jogo de futebol a coitada da empregada tem de saber? E não parava.
- Alexia, me lembre amanhã de levar a régua! – disse Pedrinho.
- Alexia, nos desperte às 6! – pediu Letícia.
Imediatamente, ela foi pegar uma caneta e um caderno. Começou a anotar tudo o que a família pedia à pobre e incansável Alexia, que sempre respondia de prontidão e sempre estava simpática. Dona Lourdes dormiu sobre o seu caderno. Quando acordou, notou que a última anotação foi às 23:10 h, quando o Alceu perguntou à Alexia se iria chover no dia seguinte, e a coitada respondeu que sim, dizendo até a precipitação.
Eram pontualmente 6 horas da manhã, quando dona Lourdes escutou Alexia despertando a família. Logo, Letícia perguntou se havia algum engarrafamento até a escola das crianças, e Alexia respondeu que o trânsito estava congestionado. Alceu pediu as principais notícias do dia, e a coitada da Alexia resumiu imediatamente para ele. Como ela sabia daquilo, logo cedo? Deve ter acordado bem antes para ouvir as notícias no rádio e fazer um resumo para o chefe.
Às 6:45 h, antes de sair para a escola, Pedrinho pediu para Alexia para que ela respondesse a uma ou duas questões de um exercício da escola que ele não sabia. Às 6:55 h, um pouco antes de todos saírem, Letícia pediu para Alexia lhe enviar uma receita de torta de bacalhau, fazer os pedidos numa loja que ela não se lembra do nome, mas tinha a ver com a Amazônia, e fazer reserva em um restaurante no próximo sábado. Disciplinada e obediente, Alexia disse sim para todos os pedidos.
A casa ficou em silêncio e dona Lourdes muito preocupada. Não pensou duas vezes e foi lá na casa vizinha conversar com essa Alexia. Saber se ela havia dormido à noite e como ela dava conta de tanto pedido. Bateu inúmeras vezes no portão, mas ninguém atendeu. Concluiu: “Deve estar apagada de tanto cansaço”. Daqui a pouco a família retornaria e Alexia teria de estar disposta para atender a todos os pedidos. “Isso é um absurdo!”. Essa coitada só pode ser do interior. Deve dormir aqui e trabalhar feito uma condenada.
Querendo tomar providências, dona Lourdes passou o dia registrando evidências da exploração da empregada doméstica por aquela família. Anotou e gravou tudo. Coitada da Alexia! Mas, isso não iria ficar assim não. Ao final de mais um dia de registros, dona Lourdes ligou para o disque denúncia.
O filho de dona Lourdes chegou de viagem no mesmo momento em que carros de polícia cercavam a casa vizinha. A cena parecia um episódio de Cidade Alerta. Dos veículos saíram os fiscais do trabalho e policiais fortemente armados. Arrobaram sem piedade o portão de entrada, e renderam toda a família.
Da janela do quarto, dona Lourdes e seu filho se escondiam na penumbra do ambiente para observar o que ocorria lá dentro, na casa vizinha. Pedrinho e Danilo estavam rendidos, virados contra a parede e com as mãos na nuca, sendo vigiados por uma policial com cara de pouco amiga. Letícia estava sentada no sofá, com as mãos para trás e algemada. Alceu estava deitado no chão, com uma arma apontada para sua cabeça, sendo inquerido por um fiscal.
- Vala-me Deus, Mainha! O que está acontecendo?
- Essa cidade é muito perigosa, meu filho. Ainda bem que eu vim com você.
Logo, um camburão bem obscuro encostou e levou a todos para a delegacia, inclusive os meninos. Um policial saiu por último. Estava carregando uma caixa da Amazon. Dona Lourdes apontou, convicta e orgulhosa:
— Está vendo, meu filho? Graças a Deus, Alexia vai ser libertada! Vamos! Preparei um guisado de galinha...
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