Capítulo 2 – Friaca irada

por Lorde Milio do Outono


Um a um, cada um dos doze aventureiros foi despertando de seu profundo transe. Confusos, acordaram sobre um chão, literalmente, gelado, sem nenhum equipamento ou item que carregavam, e, ainda, tendo que lidar com uma tonteira, sem saberem se decorrente de resquícios da festança ou devido à habilidade de Seraphine. Ao retomarem, completamente, a consciência, perceberam que não estavam mais na estalagem Fada do Dante, mas se encontravam em uma câmara grande, retangular, com pé direito alto, totalmente construída e revestida com gelo. 

Após discutirem sobre a situação em que se encontravam, os aventureiros resolveram investigar a câmara congelada. Em um dos lados da sala, três esqueletos eram notados, com seus braços erguidos, punhos algemados em correntes que se prendiam à parede. Os aventureiros aproximaram-se dos esqueletos e ao analisar, detalhadamente, perceberam que os dedos indicadores, das respectivas mãos direitas pendentes nas algemas dos três esqueletos, apontavam para uma mesma direção na parede oposta. Após triangularem e observarem, minunciosamente, a parede indicada, perceberam cinco pequenos furos nela, alinhados verticalmente e moderadamente espaçados, semelhante a olhos mágicos de uma porta. Ao olharem por essas frestas, aqueles que não conseguem enxergar na escuridão, não conseguiram ver nada; ao passo que, quando o primeiro aventureiro dotado dessa habilidade olhou pelo furo superior, conseguiu ler uma mensagem na parede oposta, numa espécie de antecâmara bastante estreita, ou seja, uma extensão da sala congelada.

No exato momento em que a primeira mensagem foi lida pelo olho mágico, três portas, uma azul, uma verde e outra vermelha, surgiram em uma das paredes laterais da sala. Para resolver o problema da escuridão, um dos aventureiros quebrou o dedo indicador de um dos esqueletos e lançou luz sobre esse inusitado objeto, jogando esse dedo (imbuído em magia) por um dos buracos da parede, iluminando, portanto, a antecâmara e permitindo a leitura das demais mensagens por todos os presentes, que enunciavam de cima para baixo os seguintes dizeres:

“A chave para escapar está escondida atrás de uma dessas portas.”

1. Porta Vermelha: 'A chave está na porta verde.' 

2. Porta Azul: 'A chave não está na porta azul.' 

3. Porta Verde: 'A chave está nesta porta ou na porta vermelha.' 

“Qual porta leva ao caminho correto? Anunciem, em uníssono, a cor da porta que deverá ser aberta, expressando a escolha do grupo.

Decorrido longuíssimo período de confabulação, inspeção direta das portas, com alguns danos colaterais, como queimadura ao encostar na porta vermelha, perfuração de dedos em farpas congeladas na porta azul ou sentir uma levíssima corrosão ao encostar na porta verde, além da análise profunda das mensagens, o grupo de aventureiros tomou sua decisão e a anunciaram:

- Verde!

A porta verde se abriu e os aventureiros se deram conta de que a câmara congelada, na verdade, parecia se tratar de um porão-calabouço congelado, uma vez que, a partir da porta, estendia-se uma longa escada acima, que terminava em uma abertura iluminada pela luz do dia. À proporção que subiam, deslizando pela escadaria de gelo, sentiam a fria brisa, carregada de pequenos flocos de neve, descendo pelo estreito corredor.

Ao irromperem pela abertura final do corredor, os aventureiros chegaram à base de um desfiladeiro, cercado por duas planícies de cada lado e iluminados por um tímido sol que se colocava no horizonte. Mas não era apenas o cenário que se destacava. Eu estava apoiado com meu pé direito em cima de uma rocha congelada e o outro pé estava no chão. Minhas mãos estavam cerradas e se apoiavam na cintura, devido a uma angulação perfeita de meus braços, e, claro, eu estava trajando minha capa em tons alaranjados e arroxeados, que esvoaçava com a brisa.

-  Oi, meu nome é Milio! Bem-vindos ao Snow Ball, que traduzido do inglês, possui duplo sentido: baile de inverno ou guerra de bola de neve! E eu, que já sou uma criança crescida, no auge de meus doze anos de idade, desafio vocês a vencerem a mim e meus Fuemigos nessa guerra fria!

Os aventureiros reconheceram as simpáticas bolinhas de fogo que lhes levaram o convite para o Snowball, mas que diferente do primeiro encontro, dessa vez, reluziam uma chama azul-claro, que se misturava com o pano de fundo. Em conjuntos de três, um sobre o outro, os Fuemigos se transformaram em um pequeno exército de bonecos de neve sob o comando de Milio.

Nesse momento, sobrevoando com um rasante sobre a cabeça dos aventureiros, Seraphine surge em seu palco flutuante e passa a levitar sobre minha cabeça, na posição em que eu me encontrava, mantendo minha postura de comandante.

- Todo e qualquer jogo, opa, quero dizer, desafio, fica mais divertido se tiver narração! – Disse Seraphine, lançando mão de seu microfone e projetando sua voz através das caixas de som embutidas em seu pequeno palco. – Posso contar com a torcida de vocês?

Vários Fuemigos, que estavam no alto da planície (e que, agora, virou uma arquibancada), começaram a torcer pelos seus companheiros no campo de batalha que se formou.

- MILIO, MILIO, MILIO! – Vibravam os Fuemigos torcedores.

Após uma fervorosa e intensa batalha de bolas de neve voando de um lado para o outro no campo de batalha, magias de fogo conjuradas derretendo a neve, plantas enredando parte do exército e cerceando seus movimentos e, até mesmo, áreas de escuridão surgindo para ofuscar os oponentes (às vezes, até aliados), os aventureiros venceram o desafio e derrotaram Milio e sua legião de bonecos de neve.

- E os vencedores são: nossos aventureiros visitantes! – Anunciou Seraphine sobrevoando o campo de batalha e, literalmente, cortando o céu com seu palco. A cada movimento que ela fazia, o campo de batalha ia se desfazendo, como se ela cortasse uma grande cortina, que caía e revelava o verdadeiro cenário por detrás, que era a própria estalagem Fada do Dante.

E como num piscar de olhos, os aventureiros viram-se sentados na estalagem, ao redor de uma grande mesa circular de madeira e que Milio ocupava uma das cadeiras, balançando suas pequenas pernas, com um largo sorriso e um grande pedaço de pão na boca:

- HAHAHAHAHA... uma das melhores partes de fazer a seleção anual para o baile de inverno com certeza é provar essas iguarias deliciosas que o Chef Pamplona prepara. – Depois de uma leve pausa, eu percebi que os aventureiros estavam acordados. - Ah, vocês acordaram! Bem-vindos de volta! – Dei um grande sorriso para eles enquanto coçava a nuca. 

- Não se preocupem, vocês não estavam em um campo nevado de verdade... Tudo não passou de uma ilusão criada por meu poder de origem Psicoacústica, em que eu criei os desafios para a seleção deste ano – Disse Seraphine rodando seu microfone e com semblante satisfeito com o trabalho que executara. – Bom, Milio, eu preciso ir na frente para acelerar os preparativos para o baile. Nos vemos mais tarde, você e nossos convidados. Vê se não demora muito, afinal temos muitos detalhes para acertar.

- Pode deixar, Seraphine, em breve nos juntaremos a você na capital de Fey para  celebrarmos o verdadeiro Snow Ball! – Eu disse isso já ajeitando o guardanapo em meu pescoço para continuar me deliciando no banquete especialmente preparado para a seleção deste ano.

- Voltando ao que interessa: vocês não vão comer nem beber nada? Certeza de que não querem experimentar essas iguarias? – Indaguei aos aventureiros. – Não se assustem, estão todos bem, mas só vocês doze venceram o desafio. 

Ao tomar consciência da realidade que os cercava, os aventureiros perceberam que o restante dos convidados, que antes festejavam na estalagem, estavam desacordados e espalhados pelo estabelecimento. De fato, os únicos acordados eram os próprios aventureiros, Milio e alguns Fuemigos, Dante, Aluá e Chef Adrian Pamplona.

- Não se preocupem, esse pessoal vai demorar um pouco para acordar, mas ficarão aos nossos cuidados. – Bradou a voz de trovão de Dante.

- A sopa de regeneração já está quase no ponto de ser servida para eles. Coloquei apenas ingredientes selecionados em sua composição. – Disse o Chef Pamplona com sua voz esganiçada (de fato, percebia-se um cheiro adocicado e apetitoso vindo da cozinha).

- Eu vou preparar para eles um drink especial para repor as energias: água geladinha. – Falou, sarcasticamente, Aluá  por detrás do balcão de bebidas.

- A cada ano eu me divirto mais com vocês, Dante. – Eu disse isso olhando para cima, afinal eu estava sentado e o alto orc estava parado, de pé, ao meu lado. – Vou explicar para nossos convidados do que realmente se tratava o convite. – Disse eu, repousando o garfo e a faca sobre o prato e voltando minha atenção aos aventureiros. - Todo ano, eu utilizo do método qualitativo de pesquisa, coincidentemente, chamado de snowball [1], para selecionar cidadãos de Fey que são convidados pela Corte Máxima das Fadas para integrarem o Baile Anual de Inverno. No entanto, como o castelo não comporta toda a população do reino, permitimos que duzentos seletos cidadãos passem por alguma provação e  aqueles que superam os desafios ganham o passaporte para ingressar na Corte. E aí, aceitam participar do baile deste ano, como convidados de honra? – Eu disse com um largo sorriso estampado no rosto.

Alguns aventureiros aceitaram o convite de prontidão, outros ficaram um pouco ressabiados, mas, no fim, todos aceitaram participar do Baile de Inverno Anual da Corte das Fadas. Entreguei a eles a Capa da Corte do Outono, que é idêntica àquela que eu utilizo, e que serve de passaporte e garantia de permanência na Corte das Fadas. Expliquei que essa capa deve ser trajada durante todo o tempo de permanência na Corte das Fadas, inclusive, durante o baile de inverno.

- Então vamos usar meu poder de origem Fuemigos para abrir um portal nos ligando diretamente à capital de Fey. Fuemigo, faça as honras, por favor! – Eu concluí, pegando um último pãozinho para viagem enquanto o Fuemigo crescia e abria sua bocarra, criando um portal mágico.


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Referências:


[1] VINUTO, Juliana. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.