Sinopse
Sobre face é uma série de desenhos a pincel, ora em tom caricato, ora realista, que comentam perfis das redes sociais a partir das imagens publicadas pelos usuários. Essas publicações dão origem a uma espécie de população de seres, que são tratados aqui como personagens, porque descreverem comportamentos diversos que nem sempre correspondem às pessoas representadas.
Texto de Gabriel Bechara
Sobre face
No início, o artista da pré-história teve receio de representar a face humana. A “Venus de Willendorf” é apenas um desses exemplos que se repetiram por toda a Europa.A primeira face realista representada foi a dos animais.Quando o homem aparece de forma mais nítida, ganha a imagem de um xamã dançando com cabeça de veado.No mundo antigo, a face humana esteve quase sempre representada sob a forma esquemática, como nas culturas do crescente fértil ou idealizadas, como na cultura clássica.A imagem realista do escriba sentado, ícone do Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu do Louvre, foi concebida apenas para a escuridão da tumba. Só no helenismo e na arte romana é que o retrato foi apresentado sem receio, expressão de uma sociedade que se laicizava com predomínio de mercadores.O fundamentalismo judaico-cristão e islâmico fez recuar essa via, trazendo de volta a imagem esquemática, quando não, a sua obsessiva proibição, interdição e iconoclastia. Afinal, a imagem do ser singular se reporta à liberdade individual e isso era visto pelos modelos fundamentalistas-totalitários, como um grave perigo, não apenas à tradição, mas ao controle das pessoas e da comunidade como um todo.
O Renascimento resgatou a imagem individual, já presente nos pincéis de Giotto, enquanto o retrato autônomo se afirmava na arte da sociedade burguesa flamenga.O realismo psicológico virou um ponto focal na arte européia, desde então, a ponto do Papa Inocêncio X reclamar de Velasquez : “É troppo vero!”.
Essa busca pela afirmação da individualidade, não apenas das elites, mas também dos mendigos, na arte de Murilo e Ceruti afora os trabalhadores na de Daumier e Millet, dominam o campo visual da arte européia que teria como inevitável conseqüência a descoberta da técnica fotográfica e com ela, a generalizada imagem globalizada da “carte-de visite”.O retrato não apenas a “virilizou” , mas se tornou obrigatório nos documentos de identidade. O velho interdito da iconoclastia, deu lugar ao uso obrigatório, até mesmo em países que guardam ciosos o fundamentalismo religioso.
Com a internet e o facebook, a auto-imagem do selfie tornou-se uma das principais plataformas da mídia. Se o retrato realista apareceu na baixa-antiguidade e no Renascimento como uma reação à dimensão niveladora da sociedade tradicional que desconsiderava a individualidade, em favor da coletividade, o selfie de hoje é uma reação ao anonimato da sociedade urbano-industrial globalizada, igualmente niveladora. Afinal, o selfie pressupõe a retirada de todas as burcas e véus...mesmo quando os neo-totalitários armazenam essas imagens para reaviar o sonho quimérico de querer um dia manipular os homens, como fizeram os “deuses”.
Chico Dantas se debruçou sobre esse último fenômeno. Ele tomou, aleatoriamente, imagens de selfies do facebook e os recriou a partir do seu olhar.Se o selfie é também uma auto-imagem onde o retratado busca apresentar, de forma seletiva, como gosta que os outros o vejam, os desenhos de Chico Dantas são uma versão irônica e transversal dessas auto-imagens.
O desenho foi sempre o núcleo central da arte do artista, desde os seus primeiros trabalhos, nos anos 70. Nele, a figura humana ganhou uma posição de destaque, logo em seguida a dos objetos. Mas as que surgem nos trabalhos dos anos 80 são espectrais, flutuam num espaço atemporal como se nos espreitassem numa outra dimensão a que o artista nos facultou a entrada. Essa série inédita que a Galeria Lavandeira da UFPb tem a honra de apresentar, trás imagens de pessoas que se mostram na rede vitual da internet .
O artista não se limita a reproduzi-las, ao contrário, ele ousa revelar o que talvez os autores dos selfies quase sempre, pretendem esconder.Os desenhos são retratos de homens e mulheres que se mostram a nós num plano virtual paralelo, ao que os autores buscaram se apresentar.Ora risonhos, ora desconfiados, tristes, irônicos, sonhadores, sarcásticos, reflexivos e descontraídos, os desenhos contornam máscaras que, paradoxalmente, buscam revelar o que se encontra por detrás delas.
Gabriel Bechara Filho