Engenharias em baixa? Não, apenas preconceitos em alta mesmo...

O que se espera quando um editorial de um grande jornal coloca como título "Engenharias em baixa"? Dados mostrando a redução da procura de egressos do curso era o que eu esperava. Alguma tragédia, alguma catástrofe. No mínimo, eu esperava alguma pálida indicação de que o mercado de trabalho poderia estar desacelerando...


Mas, como eu descobri após ler preocupado, não vai achar nada disso quem ler o recente editorial da Folha de São Paulo com esse título. Ao contrário, apesar de sua popularidade entre nossos colegas o editorial reconhece a dificuldade que gestores de RH tem hoje de encontrar mão de obra especializada na área de engenharia.

Um título enganoso

Isso é exagerado, estranho ou excessivo? De forma alguma. Segundo o MEC (tabela5), em um período menor, entre 1994 e 2011 (em 17 anos), o número de matrículas no ensino superior no Brasil aumentou quatro vezes. Isso significa que o número de estudantes de engenharia aumentou pouco na proporção do ensino superior.


Nada além disso.


A própria Folha admite isso quando comenta que o aumento de matrículas em engenharia de 2001 a 2011 foi de 152% e, no mesmo período todos os cursos superiores se expandiram em 146%. Um aumento de matrículas de 4% acima da média dificilmente seria razão para se declarar que alguma área está em baixa ou se expandindo rápido demais. De fato, se é uma área com deficit, isso é razão para pensar que está se expandindo devagar demais.


O Brasil tem, segundo dados recentes, aproximadamente 6,1 engenheiros para cada mil habitantes. Média inferior a de países até menos industrializados (12 a 13) e bem inferior a países desenvolvidos (25 a 30). Temos poucos engenheiros.


Além de termos poucos engenheiros, mesmo com todo o aumento recente o Brasil forma poucos engenheiros. Dados do IPEA (tabela 1) mostram que apenas 9.3% dos nossos formados são em engenharias. Para dar idéia do que isso significa: países ricos com economias estáveis tem um percentual maior (12.2% média da OCDE) e países em processo de industrialização, um percentual ainda maior (Chile 18%, México 35,2%, Turquia 21%). Formamos poucos engenheiros.


A procura de engenharias é uma das mais altas entre grandes áreas de graduação. Segundo dados do MEC, em 2011, foram ofertadas em todo o país 67.733 vagas de Engenharia Civil e 35.761 vagas de Engenharia Elétrica. Essas duas áreas tiveram 327.017 e 105.325 inscritos, respectivamente. Em instituições públicas foram 180 mil inscritos para menos de dez mil vagas em Engenharia Civil e 63.7 mil inscritos para pouco mais de seis mil vagas de Engenharia Elétrica. Engenharias públicas tem procura acima de dez candidatos por vaga.


No nosso instituto todas as engenharias tem tido procura superior a dez candidatos por vagas independente de local e turno de oferta. Isso ocorre em Pelotas (Elétrica 20.4, Química 18.9), Sapucaia do Sul (Mecânica 30.8) e Passo Fundo (Civil 20,6 e Mecânica 15,1). A procura de engenharias está em alta.

Se lembrarmos que essa divisão entre cursos com conceito baixo e cursos com conceito alto é sobretudo uma divisão entre instituições fica claro que o apelo contra a expansão feito pelo editorial é cínico. Nada que as instituições publicas de qualidade fizerem irá melhorar a qualidade dos 40% de cursos com conceito digno de fechamento que se encontram em outras instituições. Instituições que, como um todo, têm conceito baixo (dados do MEC, ver tabela 3).


Não é deixando de expandir a oferta de cursos públicos de qualidade em engenharia que se vai mudar essa realidade. Se a UFRGS ou o IFSul não abre uma engenharia, isso não melhora a qualidade do curso precário de uma privada em algum lugar. Isso apenas protege essas instituições ao expor mais gente a cursos de qualidade duvidosa.

A origem da discussão

O editorial repercute de forma enviesada dados mais recentes de um debate que começou com força em 2009. Naquele ano, com o crescimento do PIB houve uma grande preocupação de que o deficit de engenheiros aumentasse tanto que não seria possível ser suprido sem a importação de mão de obra. Mas, o PIB não cresceu, pelo contrário: o PIB industrial encolheu. O deficit de engenheiros segue grande, mas ano passado artigos começaram a apontar que, se a oferta de engenharias continuar aumentando na mesma taxa e o PIB seguir crescendo pouco não haverá apagão quantitativo. O fracasso econômico reduz a pressão de demanda mas seguimos tendo de recuperar o atraso e não há ainda nenhum indício de saturação.


O professor Mario Salerno, em artigo de 2013 sistematizando o debate, explica que há alguns indicadores que apontam gargalo (mais gente formada em engenharia trabalhando em engenharia e aumento real de salários na área) outros não. Onde ocorre total ausência de pessoal para atender vagas (gargalo) esse se devem sobretudo a demanda por engenheiros em lugares onde não havia necessidade antes (por exemplo novos pólos industriais que não existiam*) e um grande gap de engenheiros com experiência, devido ao apagão das décadas de oitenta e noventa.


Continuamos com deficit, não apagão.

A importância das ofertas públicas e prescrições equivocadas

Temos hoje duas engenharias já avaliados no IFSul, ambas com conceito 4. Essas engenharias abriram em 2007 e 2008. Com a transformação em IF não tivemos mais nenhuma expansão por vários anos**. Nossa falta de ação não ajudou o cenário. Se é possível tirar alguma moral do texto é que instituições de qualidade deveriam abrir mais cursos de engenharia. Ao sugerir indiscriminadamente que se pare a expansão, o editorial favorece quem acha que devemos parar de fazer nosso trabalho direito para não prejudicar os que lucram com essa situação.


Como há gente sem muita cabeça que acha que tudo que for ruim para a engenharia é bom para os técnicos me permitam explicar: se a crise econômica perdurar realmente chegaremos ao equilíbrio no número de engenheiros em mais uma década. Mas lembrem que a desindustrialização atinge primeiro e em muito maior escala os cargos operacionais. Ou seja, se algo é ruim para o futuro da engenharia é pior ainda para o presente dos técnicos. Se o país continuar parado até 2020 não é a engenharia que perde: toda a expansão da rede esta ameaçada.

Encerrando

Muitas vezes vemos grandes empresários criticando cursos superiores na área tecnológica e enfatizando que precisam de técnicos de nível fundamental de cursos rápidos: operadores, montadores. A verdade é que querem alguém que faça algum trabalho técnico que eles não entendem e que custe menos que um graduado.


Isso não é visão de mercado, é preconceito explícito!


Não se reconhece que sabendo mais sobre os processos se pode melhora-los e modifica-los. Não é a toa que com mais horas de trabalho o que produzimos seja menos de um quinto do que produz o trabalhador americano. Rendemos pouco não porque trabalhamos menos e sim porque trabalhamos mal! Isso é assim porque o trabalhador é formado, e o chefe, não. Não deixa de ser um reflexo da visão escravagista altamente disseminada de que quem faz o trabalho final não deve ganhar muito e que o chefe manda não porque sabe, mas porque é o dono.


Para encerrar deixo as palavras da conclusão do professor Mario Salerno, aquele que fez o estudo sobre demanda de engenheiros usado de pretexto para a matéria atravessada:

"Queremos, contudo, deixar claro que a não existência de gargalos não significa absolutamente que não haja necessidade de ampliar os investimentos na ampliação do ensino de engenharia, particularmente nas universidades públicas. Como mostramos no início do texto, a engenharia está intimamente ligada ao desenvolvimento econômico e à inovação e o Brasil apresenta baixo índice de engenheiros por habitante ou por formados no ensino superior. Ademais, a formação em engenharia capacita a pessoa a inúmeras atividades, dentro ou fora daquelas chamadas típicas...o problema maior é não ter engenheiros e ter uma economia que pouco necessite deles."


Após nos surpreender com o título, o jornal diz que o número de escolas de engenharia vem se ampliando há pelo menos uma década e destaca que há hoje 650 faculdades, um aumento de mais de quatro vezes comparadas com dados de quase um quarto de século atrás (inicio da década de noventa).

Engenharias Públicas e a Qualidade

Os cursos de maior qualidade em engenharia estão também sobretudo nas instituições públicas. Nessas a expansão da oferta foi muito inferior a verificada nas privadas. O artigo fala que 40% das atuais vagas em engenharia estão em cursos com notas 1 e 2. Verdade. Em grande parte isso se deu justamente porque a expansão de vagas nas instituições públicas, com avaliações mais altas, foi tímida.


Ai me aproximo do final colocando isso. De onde vem esse editorial? Se temos poucos engenheiros, formamos poucos engenheiros, o mercado segue aquecido, e a procura segue alta, que papo é esse de engenharias em baixa?


Se o país continuar parado até 2020 vamos conseguir repor o deficit histórico de engenheiros. No entanto, o que os dados indicam é que não vamos conseguir fazer isso com qualidade pois quase metade dos formados podem ser oriundos de cursos com conceitos tão ruins que deveriam ser fechados. Nisso, enquanto instituições federais podemos e devemos fazer bem mais.


Há no Brasil uma forte tradição de se menosprezar o conhecimento técnico. O nosso baixo número de engenheiros é, em muitos aspectos, um reflexo desse menosprezo. Tudo o que é técnico, raciocinam os jecas, é simples e pode ser comprado de fora. A razão disso é pobreza cognitiva. Nosso empresariado, mesmo o milionário, raramente ultrapassa a formação de ensino médio. É normal que pessoas se não entendem algo, não achem que seja importante, ou que não acreditem que o que é difícil seja valioso e útil.


É isso... O resto é preconceito a serviço do atraso.


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* Pólos industriais novos como Camaçari na Bahia, Não-me-toque ou Rio Grande, no RS. Há varias situações similares também causadas por migração tecnológica, aqui no RS por exemplo são poucos os engenheiros com formação forte em instrumentação analógica ou eletrônica de alta frequência, mesmo sendo questões fundamentais para o desenvolvimento da área biomédica.

** Abrimos uma Engenharia Química em Pelotas em 2012 e duas engenharias (Civil e Mecânica) em Passo Fundo em 2013.