Além das estatísticas: Repercussões afetivas da perda por acidente de trânsito

Data de postagem: Feb 11, 2012 11:40:35 AM

Em uma noite inspiradora de quarta-feira, falava um palestrante à sua enorme platéia, cuja grande maioria era de estudantes universitários. Depois de uma ligeira pausa, demonstrando a face séria e a voz serena, continuou dizendo:

"– Meus amigos, tenho mostrado aqui vários gráficos com estatísticas de acidentes de trânsito no Brasil e no mundo. Temos discutido exaustivamente o papel dos legisladores e da fiscalização na minimização dessa tragédia. Tenho indicado o número de mortos e feridos, além dos custos financeiros dos atendimentos às vítimas e às reformas nos espaços públicos danificados. Mas ainda não falei tudo. Embora veja no olhar e na expressão de vocês que o conteúdo apresentado foi compreendido intelectualmente, ou seja, pelo raciocínio, é igualmente importante que vocês compreendam o conteúdo emocional do nosso tema, isto é, que sintam em seu coração. Existe um fato que não está contabilizado nessas estatísticas e que nos ajudará nesta tarefa: a dor emocional de perder quem se ama num acidente de trânsito. O quê vocês sabem dizer sobre isso?".

Após esta pergunta, fez-se outra pausa. A audiência, surpreendida, permanecia em silêncio, em atitude reflexiva, até que o palestrante retomou a palavra.

"– Suponho que muitos aqui não têm uma resposta pronta para esta pergunta. Assim, eu os ajudarei na sua construção...

Por favor, de olhos fechados, imagine que você perdeu agora um ente muito querido, em decorrência de um acidente de trânsito. Agora, imagine que esta pessoa é sua mãe.

Não abra os olhos. Continue o exercício.

A partir deste minuto, sua mãe simplesmente não estará mais perto de você fisicamente nos próximos natais, festas de família ou no seu aniversário.

Como seria viver sem ela pelo resto da vida? Imagine que você não terá mais seus paparicos, nem aquele cafuné.

A partir de hoje, ela não te acordará mais carinhosamente nos fins de semana, como costumava fazer. Aquela massagem leve nos dedos que te fazia despertar lentamente, isso não existirá mais.

Autor: Fábio de Cristo, psicólogo (CRP-17/1296), doutor em psicologia e pesquisador colaborador na Universidade de Brasília, onde desenvolve pós-doutorado sobre o comportamento no trânsito. Administrador do Portal de Psicologia do Trânsito (www.portalpsitran.com.br) e coordenador da Rede Latino-Americana de Psicologia do Trânsito. Autor do livro "Psicologia e trânsito: Reflexões para pais, educadores e (futuros) condutores".

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Sabe aquele abraço caloroso, aquele que te cobre todo, envolvendo a alma na mesma vibração, de coração para coração? Infelizmente, dele só restará a sensação sentida na última vez... Dificilmente, você saberá avaliar a extensão do vazio no peito por não tê-la nos momentos de decisão que a vida te exigirá; afinal, parece que só ela possuía a sabedoria, o pensamento visionário e o espírito orientador capaz de te sensibilizar e expandir a mente. Sabe aquelas risadas frouxas que você costuma dar a cada anedota que sua mãe conta? Sem elas agora, você, certamente, reconhecerá como é triste levar a vida com menos graça. Nesses momentos de descontração, você não desfrutará daquela gargalhada gostosa.

Imagine que todas essas coisas boas serão perdidas subitamente, tudo de uma vez, literalmente da noite para o dia.

Sabe os apelidos carinhosos que ela inventava para você, aqueles no diminutivo, e que só ela possuía autorização para pronunciá-los? Eles serão lentamente esquecidos pelo desuso. Em alguns raros momentos, alguém inexplicavelmente pronunciará um deles te chamando, e nessa hora, um filme passará na sua mente, relembrando alguma cena dos bons momentos com a sua mãe. Discretamente, poderá rolar uma lágrima de saudade.

Também será um golpe poder vê-la 'de verdade' apenas nos sonhos. Estes sonhos serão tão emocionantes e reais que dificilmente chegarão ao fim, pois o choro e os soluços intensos te farão acordar, seja no meio da madrugada ou durante um cochilo depois do almoço. Você tentará voltar para o sonho, mas em vão.

Mesmo amando muito sua mãezinha, só depois de muito tempo – ou anos, quem sabe –, você conseguirá visitá-la no túmulo e deixar uma flor no vaso. Isto ocorrerá depois de você ter tentado e falhado algumas vezes, o que é natural, pois não é esse tipo de visita que nos acostumamos a fazer.

Você poderá sentir uma imensa saudade de sua mãe quando menos espera. Às vezes, a saudade irromperá, seja quando contemplar uma paisagem, revirar antigas fotos ou ao tomar banho. Em alguns dias, você a buscará deliberadamente no pensamento. Em outros, você fará questão de não lembrar, mesmo que a imagem dela venha em sua mente automaticamente por algum estímulo. É muito duro não querer pensar em quem se ama, mas isso acontece. Quando você ganhar um prêmio almejado há anos, sua mãe não te dará os parabéns ao vivo, mas não por que ela não queira. Quando você fracassar, também não haverá a palavra justa de consolo que ela costumava dizer (e funcionava para você): '– Teeeenha paciência! Teeeenha paciência!'.

Passados vários anos, você ainda sentirá enormemente a sua falta, mas não é qualquer falta. Você, então, haverá aprendido que falar de acidente de trânsito não é somente discutir números, realçar a tragédia, o horror, o sangue, as latarias amassadas ou as sirenes das viaturas tocando, momentos estes que serão passageiros. Tampouco se trata apenas do instante da morte, mas fundamentalmente de algo mais duradouro, que você levará consigo até o fim: viver com a ausência e conviver com as lembranças.

Passados 14 anos, muita coisa terá mudado na sua vida. Você se formou, casou, mora em outra cidade... E, com tanta mudança, você agora não conseguirá mais imaginar como seria se ela ainda estivesse aqui.

Ainda que você escreva ou relate a sua experiência para uma ou mais pessoas, como eu faço aqui e agora, você provavelmente ainda sentirá a ausência daquela figura amorosa cujo legado teve de ser interrompido. É como se fosse o reviver da mesma dor do primeiro dia de perda, depois que ela foi sepultada nos belos jardins do cemitério...".

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O exercício, que inicialmente parecia ser “imaginário” e se transformara lentamente num belo relato pessoal sobre a perda de bons momentos, seguia para os seus minutos finais. De fato, eu sentia no coração o que o nosso interlocutor queria nos fazer compreender naquela palestra inesquecível. Abri os olhos discretamente e reparei que a platéia permanecia silenciosa e de olhos cerrados. Pelo semblante de muitos, concluí que eles também compreenderam aquele ensinamento sobre as consequências dos acidentes de trânsito, um assunto cada vez mais desumanizado e tão baseado em números que se torna, às vezes, incapaz de produzir reflexão em quem ouve. Imaginar a dor emocional de perder quem se ama aproximou o tema de cada um dos participantes (ex-espectadores), ajudando-nos a reconhecer que, em matéria de acidente de trânsito, tão importante quanto compreendê-lo intelectualmente é compreendê-lo emocionalmente, a fim de que possam germinar em nós as sementes da mudança que queremos nos outros.