Terry Dobson (1937-1992)
DOBSON, Terry. In Christina Kornfeld, Jack. Histórias da alma, histórias do coração.
O trem atravessava, sacolejando, os subúrbios de Tóquio, numa modorrenta tarde de primavera. Nosso vagão estava relativamente vazio: apenas algumas donas de casa com seus filhos e uns velhos indo fazer compras.
Eu olhava distraído pela janela a monotonia das casas sempre iguais e das sebes cobertas de poeira.
Chegando a uma estação, as portas se abriram e, de repente, a quietude da tarde foi rompida por um homem que entrou cambaleando no nosso vagão, gritando violentas e incompreensíveis imprecações. Era um homem forte, estabanado, com roupas de operário. Estava bêbado e imundo. Aos berros, esbofeteou uma mulher que carregava um bebezinho, fazendo-a cair no colo de um casal idoso. Só por um milagre nada aconteceu ao bebê. Aterrorizado, o casal deu um pulo e fugiu correndo para a outra extremidade do vagão. O operário tentou ainda dar um pontapé na velha, mas errou o alvo e ela conseguiu escapar. Isso o deixou em tal estado de fúria que agarrou a haste de metal no meio do vagão e tentou arrancá-la do balaústre. Pude ver que uma de suas mãos estava ferida e sangrava.
O trem seguiu em frente, com os passageiros paralisados de medo. Eu me levantei. Na época, cerca de vinte anos atrás, eu era jovem e estava em excelente forma física. Vinha treinando oito horas de Aikido quase todos os dias há quase três anos. Gostava de lutar corpo a corpo e me considerava bom de briga. O problema é que minhas habilidades marciais nunca haviam sido testadas em um combate de verdade. Nós alunos de Aikido somos proibidos de lutar. “Aikido”, meu mestre não cansava de repetir, “é a arte da reconciliação. Aquele cuja mente abriga o desejo de brigar perdeu o elo com o universo. Se ele tentar dominar as pessoas estará derrotado de antemão. Nós estudamos como resolver conflitos, não como iniciá-los.”
Eu ouvia essas palavras e me esforçava. Chegava a atravessar a rua para evitar os “chimpira”, freqüentadores de videogames que costumam vadiar perto das estações de trem. Ficava exultado com minha própria tolerância e me considerava um valentão reverente, piedoso mesmo. No fundo do coração, porém, desejava uma oportunidade absolutamente legítima em que pudesse salvar os inocentes destruindo os culpados. “Chegou o dia!” Pensei comigo mesmo, enquanto me levantava. “Há pessoas correndo perigo e se eu não fizer alguma coisa é bem possível que elas acabem se ferindo”.
Quando me viu levantando, o bêbado percebeu a chance de canalizar a sua ira.
_ Ah! _ rugiu ele. _ Um estrangeiro! Você está precisando de uma lição de boas maneiras japonesas!
Eu estava de pé, segurando de leve nas alças presas ao teto do vagão, e lancei-lhe um olhar de desprezo. Pretendia acabar com sua raça, mas precisava esperar que ele me agredisse primeiro. Queria que ficasse com raiva, por isso curvei os lábios e mandei-lhe um beijo insolente.
_ Agora chega! _ gritou ele. _ Você vai levar uma lição! E se preparou para me atacar. Mas, uma fração de segundo antes que ele pudesse se mexer, alguém deu um berro: _ Ei!
Foi um grito estridente, mas lembro-me que tinha um estranho timbre, jubiloso e cadenciado, como quando estamos procurando alguma coisa junto com um amigo e ele subitamente a encontra: “Ei!”
Virei para a esquerda, o bêbado para a direita. Nós dois olhamos para um velhinho japonês que estava sentado em um dos bancos. Devia ter bem mais de 70 anos, esse minúsculo senhor, e vestia um quimono impecável. Não me deu a menor atenção, mas sorriu com alegria para o operário, como se tivesse um importantíssimo e delicioso segredo para lhe contar.
_ Vem aqui _ disse o velhinho num tom coloquial e amistoso. _ Vem aqui conversar comigo. Insistiu, chamando-o com um aceno de mão.
O homenzarrão obedeceu, mas postou os pés beligerantemente diante dele e gritou por cima do barulho das rodas nos trilhos:
_ Por que diabos vou conversar com você?
Ele agora estava de costas para mim. Se o seu cotovelo se movesse um milímetro que fosse eu o esmagaria. Mas o velhinho continuou sorrindo para o operário.
_O que você andou bebendo? _ perguntou, com os olhos brilhando de interesse.
_ Saquê _ rosnou de volta o operário _ e não é da sua conta! _ completou, lançando perdigotos no rosto do velho.
_ Que ótimo _ retrucou o velho. _ Excelente mesmo. Eu também adoro Saquê! Todas as noites, eu e minha esposa (ela está com 76 anos, você sabe) aquecemos uma garrafinha de saquê e vamos até o jardim nos sentar num velho banco de madeira. Ficamos olhando o pôr-do-sol e vendo como vai indo nosso caquizeiro. Foi meu bisavô quem plantou essa árvore, e estávamos preocupados achando que ela não fosse se recuperar das tempestades de gelo do último inverno. Mas a nossa arvorezinha saiu-se melhor do que esperávamos, principalmente se considerarmos a má qualidade do solo. É gratificante olhar para ela quando levamos uma garrafinha de saquê para apreciar o final da tarde, mesmo quando chove!
Ele olhava para o operário, com os olhos reluzentes.
O rosto do operário, que se esforçava para acompanhar a conversa do velhinho, foi se abrandando e seus punhos, pouco a pouco, foram relaxando.
_ É, é bom. Eu também gosto de caqui... _ mas sua voz acabou num sumiço.
_ São deliciosos _ concordou o velho, sorrindo. _ E tenho certeza de que você também tem uma ótima esposa.
_ Não _ retrucou o operário. _ Minha esposa morreu.
Suavemente, acompanhando o balanço do trem, aquele homenzarrão começou a chorar.
_ Eu não tenho esposa, eu não tenho casa, eu não tenho emprego. Eu só tenho vergonha de mim mesmo.
Lágrimas escorriam pelo seu rosto; um frêmito de desespero percorreu-lhe o corpo.
O trem chegou à minha estação. Chegou a minha vez de descer. Lá estava eu, com toda a minha imaculada inocência juvenil, com toda a minha vontade de tornar o mundo um lugar melhor para se viver, sentindo-me de repente mais sujo do que ele. Enquanto as portas se abriram, ouvi o velho dizer solidariamente:
_ Minha nossa, que desgraça! Sente-se aqui comigo e me diga o que houve...
Voltei-me para dar uma última olhada: o operário escarrapachara-se no banco, e colocara a cabeça no colo do velhinho, que afagava com ternura seus cabelos emaranhados e sebosos.
Enquanto o trem se afastava, sentei-me num banco da estação. O que eu pretendera resolver pela força fora alcançado com algumas palavras meigas. Eu acabara de presenciar o Aikido num combate de verdade, e a sua essência era o amor. A partir daquela hora, eu teria que praticar a arte com um espírito totalmente diferente. Muito tempo se passaria antes que eu voltasse a falar sobre a resolução de conflitos...