Estudo da obra Espaço e tempo na física contemporânea (1922), de Moritz Schlick.
[De Newton a Einstein] Trata didaticamente da mudança que Einstein, com a teoria da relatividade, opera no conhecimento humano da organização do universo. Tal mudança é, para a história das ciências da natureza considerando-se a estas em si, a mais radical possível, uma vez que é o maior salto qualitativo no que se refere à purificação dos seus conceitos mais fundamentais: espaço e tempo; com efeito, expõe-nos toda determinação espacial e temporal enquanto tendo de estar, “sob qualquer ângulo que se as considere, indissociavelmente atreladas à matéria, e apenas [...] a possuir significado em relação a ela” (p.12). De fato, “a partir das concepções mais familiares e corriqueiras, [dos conceitos espaço e tempo] pode-se-lhes afastar, passo a passo, todos os pressupostos arbitrários e injustificados, para que ao fim restem o espaço e o tempo puramente como eles aparecem em funcionamento na física einsteiniana.” (p. 13).
[O princípio de relatividade restrito] Schlick inicia esse capítulo expondo as bases empíricas do princípio da constância da velocidade da luz. De acordo com o paradigma newtoniano, a teoria ondulatória da luz deveria ser explicada através da existência de um meio material elástico (o éter) que preenche todo o universo e cujas oscilações seriam a própria luz. Esse modelo implica a existência de um referencial privilegiado, aquele em que o éter está em repouso, no qual as ondas luminosas viajam com a mesma velocidade c=300000Km/s em todas as direções; mas, em qualquer outro referencial que se mova com velocidade q em relação a esse referencial privilegiado, a velocidade de propagação das ondas luminosas variaria de c-q a c+q, dependendo da direção. Esse efeito foi testado no século 19 através de diversas experiências, em particular a experiência de Michelson e Morley, com resultado negativo, isto é, a luz viaja com a mesma velocidade c em todas as direções independentemente do referencial. Isso levou H. A. Lorentz a formular a hipótese da contração dos comprimentos que preservava o paradigma newtoniano e o éter, teoria segundo a qual a variação da velocidade da luz é real mas inobservável. Segundo Schlick, a posição da física moderna deve ser então pela inexistência do éter e constância da velocidade da luz por princípio, já que algo que não pode ser medido não tem significado físico, vale dizer, não existe. Schlick passa então a mostrar como os princípios da constância da velocidade da luz e da relatividade dão origem a uma teoria consistente, embora contraintuitiva, que implica em uma alteração profunda dos conceitos de espaço e tempo newtonianos, a teoria da relatividade de Einstein. Segundo essa teoria, a simultaneidade passa a ser relativa, isto é, eventos simultâneos em um referencial podem deixar de ser em outro referencial. Segue dessa teoria que um objeto é menor (contração dos comprimentos) e um relógio funciona mais lentamente (dilatação do tempo) em um referencial em que estejam em movimento, do que no referencial em que estão parados. A contração dos comprimentos é equivalente àquela postulada por Lorenz, mas nesse caso surge como consequência de primeiros princípios e não como uma forma ad hoc de preservar o paradigma newtoniano. Outros conceitos físicos sofrem transformação igualmente profunda: há uma velocidade limite que não pode ser ultrapassada por nenhum corpo, não importa a força que se aplique sobre ele, que é a velocidade da luz, e a inércia de um corpo aumenta com a sua energia interna (equivalência entre massa e energia, E=mc²). Schlick então conclui que a teoria da relatividade forma um todo consistente quando seus princípios heurísticos são explicados pela transformação geral de coordenadas e do tempo entre dois referenciais (transformação de Lorentz), e que o campo eletromagnético deve ser pensado como uma propriedade do espaço que é independente de um meio portador como o éter.
[A relatividade geométrica do espaço] Schlick inicia sua reflexão questionando em que sentido é plausível afirmar que o “tempo” e o “espaço” existem ou são reais; certamente, enfatiza Schlick, espaço e tempo não parecem ser “reais” no mesmo sentido em que se afirma a realidade do ar que respiramos ou das cadeiras nas quais nos sentamos. Esse tipo de reflexão – que, no texto aqui estudado, irá se focar, principalmente, na consideração do espaço – evolui, ao longo do desenvolvimento do raciocínio de Schlick, até adentrar um diálogo profícuo com as ideias (a respeito do “espaço”) de autores como Helmholtz e Poincaré. Inspirando-se, principalmente, nesse último, Schlick propõe uma espécie de experimento mental: trata-se de se imaginar um “outro” universo que sofreu um aumento linear em cem vezes. Nesse contexto, Schlick procura argumentar que esse tipo de “mudança”, feitos alguns ajustes e reflexões, deveria ser tratada como sem significado. Essa concepção (Schlick) parece esta fortemente associada a certa forma de entender a noção de “real”; tal noção, pelo menos para fins da física, deveria ser entendida a partir da sentença aquilo “que se pode medir, é o que existe”.
[A formulação matemática da relatividade espacial] Schlick reitera o equívoco em considerar o espaço sem levar em consideração os corpos nele, ou o conceito de espaço absoluto. Posto isso, embora na teoria seja possível considerar a forma e comportamento físico de cada corpo dependo do seu lugar, isto seria extremamente confuso e arbitrário, e portanto, a conveniência da adoção da geometria euclidiana pela sua simplicidade.
[A inseparabilidade da geometria e da física na experiência] A escolha de um sistema geométrico para modelar o espaço não pode ser forçada pela experiência. Mais que isso, o modo pelo qual marcamos o tempo tampouco pode sê-lo. O critério para adotar qualquer sistema de interpretação do espaço-tempo como verdadeiro é o da simplicidade. A teoria da relatividade geral de Einstein é o primeiro caso em que esta escolha se concretizou. Seja como for, independentemente do sistema adotado, a medição de qualquer parâmetro é sempre feita através de processos físicos, e, sendo a realidade determinada por Schlick apenas pelo que se pode medir, deduz-se que o real é a junção do espaço, tempo e coisas, sendo qualquer tentativa de separá-los uma abstração ilusória.
[A relatividade dos movimentos e sua relação com a inércia e a gravitação] Schlick aborda os conceitos de movimento absoluto e relativo, os quais, para Newton, eram distinguidos pela presença ou ausência de forças, as chamadas forças inerciais, que necessita ser provada pela experiência. Newton fundamentou sua mecânica em uma tese que não estava provada pela experiência, visto que o espaço absoluto não pode ser observado. Para Newton, se um corpo não sofre ação de alguma força, estará em movimento retilíneo e uniforme ou em repouso, ou livre de forças centrífugas se não estiver em rotação em relação a um sistema inercial. Ao estender o princípio da relatividade restrita a toda física, Einstein tornou possível fundamentar uma mecânica tão somente em movimentos relativos. A identidade entre massa inerciais e gravitacionais é o verdadeiro dado da experiência que nos permite afirmar que os efeitos inerciais que são observados em um determinado corpo é o resultado da influência que este recebe de outros corpos.
[O postulado geral da relatividade e as determinações métricas do contínuo espaço-tempo] Este capítulo tematiza a remoção do último traço de objetividade do espaço, a saber, sua métrica. A métrica será, agora, na relatividade geral, uma propriedade local do espaço-tempo e atrelada ao campo gravitacional desse local. A relativização completa do espaço também pode ser alcançada por meio de considerações mais gerais que vinham sendo traçadas nos capítulos anteriores. Segundo essas considerações, o espaço-tempo se revela como um simples esquema quadridimensional em que ordenamos coincidências espaço-temporais observáveis entre pontos materiais quaisquer. É desejável que tal ordenação, enquanto mero esquema abstrato, não apareça na expressão das leis naturais, de modo que estas incorporem apenas o que é real/concreto (vale dizer: observável). Isso leva à exigência de covariância geral das leis físicas, a qual implica o princípio de relatividade geral. Isso levanta a seguinte questão: ``se quaisquer sistemas de coordenadas podem servir para o estabelecimento de coordenadas sem que, com isso, as leis físicas se alterem, como é possível medir algo''? A resposta de Schlick é que a medição necessitará de uma convenção, a qual será guiada pelo princípio de continuidade (segundo o qual as novas leis/teorias devem conter as antigas como casos-limite). Este princípio nos levará à seguinte convenção: sempre podemos escolher um sistema de referências local de tal forma que, em relação a ele, os corpos a serem considerados não possuam acelerações; nesse sistema de referência, vale (localmente) a teoria da relatividade restrita, que faz uso da métrica euclidiana.
[Estabelecimento e significado da lei fundamental da nova teoria] A compreensão de como se pode calcular uma distância em qualquer referencial de modo invariante com o arcabouço teórico da relatividade, combinando-se suas verificações empíricas, resulta no abandono completo dos conceitos de espaço e tempo autônomos e absolutos. Também vimos que tal teoria se livra da última ação à distância, expressando todas as leis com equações diferenciais. Isto é tido por Schlick como um progresso epistemológico. Ademais, espaço e tempo são meras sombras ou abstrações que nos servem para esquematizar a ordenação das coisas ou fenômenos, mas não podem ser mensuráveis em si mesmos, reforçando um resultado já obtido anteriormente: apenas a união entre espaço, tempo e coisas possui uma realidade autônoma.
[A finitude do universo] Neste capítulo Schlick retoma a ideia de que na física newtoniana e pré-einsteiniana o papel do espaço era independente em relação a matéria: o espaço deveria conservar suas propriedades quer estivesse preenchido de matéria ou não. No entanto, na relatividade o espaço só é possível se há matéria, a qual determina as suas qualidades físicas. Os antigos acreditavam em um espaço limitado por uma esfera de cristal. Giordano Bruno propôs a doutrina da infinitude dos universos, sem a limitação desta casca. Para Schlick o modo esteticamente mais sedutor e filosoficamente mais satisfatório é o infinito, onde nunca se deixa de encontrar novas estrelas. Ou seja: um espaço infinito que mantém uma densidade média de matéria. Porém, a mecânica de Newton é incompatível com tal universo, pois pela fórmula da gravitação massas exercem umas sobre as outras forças de atração inversamente proporcional ao quadrado da distância, e assim um universo infinito deveria exercer força gravitacional infinita e indeterminada sobre cada ponto do espaço. Além disso este universo deveria perder energia e matéria no infinito, tendendo a morrer. Von Seeliger corrigiu a teoria newtoniana supondo que a força de atração entre duas massas diminuía com a distância de forma mais forte do que previam as leis de Newton. Para Schlick é uma solução insatisfatória pois é ad hoc. Os resultados de Einstein para um espaço não euclidiano recaem nos mesmos problemas. Tentando encontrar as condições matemáticas de contorno para g no infinito, imaginou duas saídas:
1) atribuir a g o mesmo valor de contorno que lhes deve ser fixado no infinito por ocasião dos movimentos planetários.
É OK em um sistema de estrelas fixas, mas não se pode transpor ao universo como um todo. a) Seria necessária uma escolha bem particular do sistema de referência. b) a massa inercial de um corpo não estaria condicionada a outros. O corpo continuaria possuindo massa inercial mesmo a uma distância infinita de outros.
2) Imaginar condições de contorno em que a inércia de um corpo vá desaparecendo ao infinito. Ambas insatisfatórias
OK, porque nenhuma massa ou irradiação poderia se afastar rumo ao infinito. Porém é incompatível com a experiência: os potenciais gravitacionais deveriam crescer de forma ilimitada no infinito. As velocidades estelares deveriam ser relativamente muito altas, e empiricamente são muito baixas em relação à luz.
Einstein então descartou o espaço semieuclidiano e percebeu que com um pequeno ajuste nas suas fórmulas poderia considerá-lo semiesférico: análogo tridimensional da superfície de uma esfera, e, como esta, possui a propriedade de ser fechado, isto é, ele é ilimitado, mas ainda assim, finito.
[Relações com a filosofia] Dado o advento da mecânica relativística, espaço e tempo já não são mais considerados como a trama da realidade que contém todas as determinações onde qualquer coisa a ser conhecida possa ser enquadrada; a partir de agora, espaço e tempo devem ser concebidos como um esquema abstrato por meio do qual ordenamos coincidências entre pontos materiais. Nesse sentido, esquemas teóricos que sugiram a inserção de categorias no objeto a ser conhecido falham por ressaltar intuições subjetivas que devem ser reduzidas ao menor papel possível, ou mesmo excluídas de todo, no interior das teorias físicas. Ademais, tampouco devemos basear nossa epistemologia exclusivamente nos aspectos mais básicos de nossas impressões sensoriais. Afinal, a própria física revelaria a existência de certas searas que nem ao menos seriam apreendidas pelos sentidos humanos – a exemplo do campo eletromagnético. Além disso, deve-se reconhecer que os modelos científicos buscam tangenciar aspectos da realidade por meio de aproximações abstratas, e isso nos revelaria que determinados traços da representação do real apontam, adicionalmente, a determinadas características e fatores associados à própria constituição da teoria. Isso, porém, tampouco quer dizer que as teorias se baseiam unicamente em abstrações, mas que, ao tangenciarem os fenômenos físicos, dependem de determinados pressupostos. Eis aqui o primor da mecânica relativística elaborada por Einstein: segundo Schlick, trata-se da teoria mais abrangente capaz de explicar os mais variados fenômenos e, simultaneamente, desafiar a intuição sensível. Temos assim, diante de nós, um feito hercúleo – a completa abstração do senso comum e a adoção de uma série de hipóteses cunhadas nos ditames do rigor científico.