Estudo da obra A ciência e a hipótese (1902), de Henri Poincaré.
[Sobre a natureza do raciocínio matemático] O capítulo questiona a natureza do raciocínio matemático. Seria ele puramente analítico? Se sim, a matemática não seria fértil, reduzindo-se a transformações de identidade. Por outro lado, se fosse puramente empírico, como justificar seu rigor? Ao passar por uma série de exames sobre verificações e demonstrações, chega-se no papel da recorrência e indução matemática. A recorrência permite que condensemos uma série infinita de silogismos em uma fórmula única, e viabiliza a geração de novos conhecimentos. Assim sendo, resguarda-se o caráter científico e criativo da matemática. Conclui-se que o raciocínio por recorrência é sintético a priori, pois o aprendemos via reflexão, mas, em último caso, ele guarda lastro em um faculdade de nosso próprio espírito.
[A grandeza matemática e a experiência] Poincaré examina a natureza do contínuo e efetua distinções entre o contínuo matemático e físico. O contínuo físico é engendrado a partir dos dados brutos dos sentidos, enquanto o matemático vem do espírito. O contínuo matemático é infinitamente iterativo e resolve contradições que emergem do reino empírico, como é o exemplo da lei de Fechner, ou do reino da imaginação. A inspiração do contínuo matemático no contínuo físico motivou a construção do espaço geométrico.
[As Geometrias não-Euclidianas] No terceiro capítulo do livro “ A Ciência e Hipótese”, Poincaré coloca uma questão central a ser discutida: Os axiomas geométricos são sintéticos a priori ou experimentais? A Geometria se baseia em um certo numero de axiomas indemonstráveis e a partir deles outros enunciados são logicamente derivados. A Geometria euclidiana que durante séculos foi considerada a única geometria possível se baseia em 5 axiomas e 5 postulados. Lobachevsky e Riemann, ao negarem o postulado 5 e manterem outros axiomas, construíram outras Geometrias chamadas não-euclidianas (respectivamente a hiperbólica e a elíptica). Voltando à pergunta central do capitulo, se os axiomas geométricos são sintéticos a priori, não seria possível uma construir uma geometria não-euclidiana e, se fossem experimentais, a Geometria não seria uma ciência exata e estaria constantemente submetida a revisão. Para Poincaré, os axiomas são convencionais e a Geometria euclidiana é mais cômoda que as outras por ser mais simples e por ter características mais semelhantes com as coisas do nosso mundo.
Modelo de Poincaré para o espaço de Lobatchevski [João Luís Assirati]
[O Espaço e a Geometria] Podemos distinguir entre dois objetivos perseguidos por Poincaré ao longo deste capítulo. O primeiro é o de mostrar onde se encontra, mais precisamente, o “erro de Kant”. O segundo é oferecer uma explicação alternativa para a gênese da noção de espaço geométrico, uma vez tendo refutado as posições kantiana e empirista, que davam uma resposta precisa a essa questão da gênese. O "erro de Kant" é o de ter feito uma confusão entre o espaço representativo (i.e., o espaço onde as representações sensíveis estão localizadas) e o espaço geométrico (i.e., o espaço em que os objetos sobre os quais raciocinamos são projetados). A questão da gênese da noção de espaço geométrico é respondida investigando-se as condições empíricas do surgimento de deslocamentos (movimentos de posição de sólidos). A geometria é uma idealização de leis empíricas dos deslocamentos e, enquanto tal, ela não é empírica. No fim do capítulo, Poincaré dá exemplos de condições empíricas distintas (entre estes, encontra-se o famoso exemplo da esfera de Poincaré) que poderiam motivar a adoção de geometrias não-euclidianas. A despeito desses exemplos, é sempre possível usar a geometria Euclidiana para descrever tais condições, o que mostra o caráter convencional da escolha de uma geometria (ainda que essa escolha seja guiada pela experiência).
[A experiência e a geometria] Este capítulo traz, como tema principal, a discussão a respeito da possibilidade de se tratar os princípios da geometria como fatos experimentais. Para mostrar que é inviável esse tipo de abordagem com relação aos princípios da geometria, Poincaré propõe alguns argumentos e experimentos mentais. Desses experimentos e argumentos é conveniente destacar dois: primeiramente, a linha de raciocínio que visa verificar se é possível distinguir, em uma linha reta, propriedades que se manifestariam em um espaço euclidiano e não se manifestariam em um espaço não euclidiano. Ao examinar essa possibilidade, o autor francês desenvolve uma argumentação cujo aspecto mais relevante parece ser a afirmação de que não existe um critério absoluto que permita reconhecer a linha reta e distingui-la de qualquer outra linha. Após desenvolver essa perspectiva, Poincaré procura examinar uma questão que pode ser assim exposta: não poderia acontecer que a geometria (euclidiana ou não euclidiana) só pudesse estar de acordo com a experiência violando o princípio de razão suficiente e o de relatividade do espaço? Lidando com essa questão, o autor francês desenvolve um experimento mental referente a um “sistema material qualquer”; ao propor esse experimento, Poincaré visa responder à seguinte questão: tanto de um ponto de vista euclidiano quanto de um ponto de vista não euclidiano os experimentos (no referido “sistema material”) estariam de acordo com o que ele (Poincaré) denomina “lei da relatividade”? Essa questão é respondida de maneira afirmativa, uma vez que que os experimentos são capazes de informar, unicamente, o estado das diversas partes do universo e as distâncias mútuas de tais partes.
Exemplo da página 74 - Hexágono bipiramidal [João Luís Assirati]
[A mecânica clássica] No capítulo 6 de A Ciência e A Hipótese, Poincaré aborda os princípios da Mecânica Clássica. De início, ele afirma que há uma grande confusão sobre qual seria a natureza de cada um desses princípios, não sendo claro quais deles seriam dados experimentais, deduções, convenções e hipóteses. A refutação da noção de espaço absoluto newtoniano é um corolário da segunda parte do livro, que apresenta a geometria como uma convenção, e a impossibilidade de definir igualdade entre dois intervalos de tempo a não ser por convenção também refuta o conceito de tempo absoluto. A seguir, apresenta uma formulação generalizada do princípio da inércia: as equações de movimento para todas as partículas são equações diferenciais de segunda ordem, e se pergunta se esse seria um fato sujeito à refutação experimental. Ele mostra então que, caso fossem observadas partículas que obedecessem equações do ordem maior do que dois, tais equações poderiam ser reduzidas a equações de segunda ordem com a introdução de novas partículas “invisíveis”, e portanto o lei da inércia deve ser considerada uma convenção. Poincaré passa então à análise da segunda lei de Newton, mostrando que, diante da impossibilidade de definir força, essa lei deveria de fato ser considerada como a definição desse conceito em termos de massa e aceleração, o que o leva em seguida à análise do conceito de massa. Ele mostra como massas em interação que respeita a lei da ação e reação podem ser determinadas pelo movimento do seu centro desde que essas massas não estejam sujeitas a forças externas, mas argumenta que o único sistema livre de forças internas é o universo como um todo, cuja observação objetiva é impossível. Conclui assim que a massa não pode ser observada fisicamente, mas é apenas uma definição útil que simplifica as equações de movimento. Quanto à igualdade entre forças de ação e reação, esta deve ser reconhecida também como uma definição, devido à impossibilidade de medir essas forças. O capítulo termina com a observação de que, apesar de convencionais, as leis da mecânica não devem ser consideradas arbitrárias, pois sua adoção se baseou em experiências que, a seu tempo, foram suficiente para adotá-las.
Leitura das três primeiras páginas.
[Movimento absoluto e movimento relativo] Poincaré, contrariamente a Newton, recusará a ideia de um espaço absoluto. Ele nos fala que o movimento dentro de um sistema deve obedecer às mesmas leis, seja de um ponto de vista absoluto, seja de um ponto de vista relativo. Por um caráter psicológico, parece-nos natural supor um espaço absoluto. Poincaré dirá, então, que o princípio do movimento relativo, primeiro, nos é mais cômodo (e nossa experiência o confirma), e que, segundo, seria difícil ao nosso espírito aceitar coisa diferente. Na sequência ele conclui que a aceleração de um corpo só depende de sua velocidade relativa, e não absoluta, e que esse princípio, combinado com a lei da reação, deve, pois, também servir para as acelerações absolutas. Na física, entretanto, podemos admitir um espaço absoluto como convenção se ela tornar as leis mais simples e mais cômodas, sem que isso leve à atribuição de uma realidade objetiva a tal espaço.
[Energia e Termodinâmica] Poincaré trata do conceito de energia na mecânica e na termodinâmica. Ele inicia abordando a o sistema energético da mecânica, fundado no princípio da conservação da energia e no princípio variacional de Hamilton. Esse sistema, ao contrário da formulação newtoniana, exclui a a possibilidade de movimentos incompatíveis com a conservação da energia e não impõe equações de movimento para massas pontuais. Por outro lado, apresenta novas dificuldades por não permitir a identificação da função energia sem ambiguidades a não ser nos casos mais simples. Além do mais, o princípio variacional de Hamilton choca a intuição ao fazer parecer que a partícula tem a capacidade de escolher entre diversas trajetórias aquela que o satisfaz. Em seguida, passa ao exame do conceito de energia na termodinâmica, reconhecendo inicialmente que a lei geral da conservação da energia, incluindo a mecânica, o calor e quaisquer outras formas, deve ser considerada um fato experimental. Ele argumenta que, apesar de fundado em observações particulares, o princípio da conservação da energia ocupa um lugar privilegiado na física e está destinado a nela permanecer por muito tempo: além de apelar fortemente à intuição por impedir a existência do movimento perpétuo e unificar harmoniosamente diversos campos da ciência, a energia é um conceito suficientemente flexível para que novas variáveis sejam nela incluídas para que continue permanecendo válida. O capítulo se encerra com uma conclusão da terceira parte, que resume a ideia principal de que a observação guia a construção de definições e convenções convenientes, que não podem ser refutadas pela experiência, mas que a mecânica, ao contrário da geometria, retém uma ligação com a experiência que é profunda e não pode ser superada.
[As hipóteses em física] Um dos objetivos de Poincaré nesse capítulo é identificar o lugar da física matemática. Tendo em vista que, com o passar do tempo, as generalizações científicas frequentemente revelam-se equivocadas ou motivo de vergonha futura, a experiência pareceria ser, portanto, a única fonte de verdade. Entretanto, ele demonstra que uma boa experiência é aquela que é capaz de "prever" e, para isso, é necessário generalizar. O fato particular só interessa ao cientista na medida em que pode ser generalizado. Ressalta, então, que não é possível ao experimentador livrar-se de ideias preconcebidas, mas ter consciência destas torna-as menos perigosas. "Mais vale prever sem certeza do que absolutamente não prever". O papel da física matemática seria, assim, guiar generalizações para aumentar o rendimento da ciência, indicando aquilo que deve ser melhor experimentado. Poincaré aborda também nossa crença na unidade e simplicidade da natureza, concede a unidade, porém julga que não temos mais o direito de concluir que a natureza seja profundamente simples, já que não resiste à constante precisão de nossos métodos de medida. Para ele, toda a generalização é uma hipótese; e as divide em três: "absolutamente naturais", "Indiferentes" e "verdadeiras generalizações". Por fim, ao tratar das origens da física matemática, afirma que os sábios sempre dividiram fenômenos complexos da experiência em fenômenos elementares por três maneiras diferentes: no "tempo", no "espaço" e em "movimentos simples". O conhecimento do fato elementar permite colocar o problema em forma de equação e deduzir o fenômeno complexo por integração. A razão pela qual, na física, a generalização toma frequentemente a forma matemática não é apenas a necessidade de expressar leis numéricas, mas porque o fenômeno observável é produto da superposição de um grande número de fenômenos elementares que se assemelham entre si; assim as equações diferenciais são naturalmente introduzidas.
[As teorias da física moderna] O verdadeiro objeto de estudo de uma ciência tratada de maneira satisfatória é o dos objetos ocultos e sua estrutura, não de sua imagem, descrição do fenômeno aparente. O entendimento desses objetos pode ser feito de diversas maneiras equivalentes por meio de diferentes convenções e o uso particular de cada uma delas deve ser feita por conveniência. Existem dois movimentos na ciência em termos desses entendimentos e descrições: um de simplicidade e unificação e outro de complexidade e diversificação. No entanto, a ciência contemporânea apresenta características combinadas de unificação e diversificação.
[O cálculo das probabilidades] Se, por um lado, a natureza não estabelece contratos seguros e absolutos sobre o futuro de seus fenômenos, por outro, somos forçados a agir como se tal fosse o caso. Nas ciências naturais, nunca podemos dizer que um fenômeno sempre se repetirá, apenas que acreditamos, com base em uma pletora de experimentos, que é pouco provável que mude inexplicavelmente. O cálculo das probabilidades está no cerne de toda a ciência, mas representa um paradoxo: como calcular algo que é incerto? Em exame, vemos que tal cálculo pressupõe convenções e hipóteses, sem os quais não é possível fazer ciência.
[A ótica e a eletricidade] Poincaré sustenta que é impossível conhecer além das relações. Uma relação efetiva implica um ou mais de um relacionado. Jamais se conhecerá o que é que se relaciona, jamais se conhecerá como é cada um do(s) relacionado(s). Por isso, certamente a concepção do éter deixa de persistir, já que quanto a tal ponto o critério não é para ser senão comodidade... Contudo, acerca do que concerne puramente a uma relação, isso sim é para permanecer em toda teoria, já que é possível e, também, humanamente possível conhecê-lo. Com efeito, as leis da Ótica (Fresnel), por exemplo, são efetivamente verdadeiras. Aliás, já que “a [chamada] teoria das ondulações se baseia numa hipótese molecular”, e que toma-se emprestado das hipóteses moleculares só “[i] o princípio da conservação da energia e [ii] a forma linear das equações que é a lei geral dos pequenos movimentos, assim como de todas as pequenas variações”, na teoria eletromagnética da luz subsiste a maioria das conclusões de Fresnel. Outro ponto que Maxwell acrescenta é também “outras relações [...] entre as diferentes partes da Ótica e o domínio da Eletricidade.” Além disso, “Demonstra que os fenômenos óticos não passam de um caso particular dos fenômenos eletromagnéticos.” Ou seja, de toda teoria da eletricidade é dedutível de maneira imediata uma teoria da luz; a exata recíproca, entretanto, é falsa.
[O fim da matéria] Ora, poderia a matéria não possuir nenhuma massa? E se fosse esse o caso, como esclarecer as pesquisas e teorias postuladas até então? O que parece mobilizar Poincaré nesse capítulo é a célebre discussão que se passa em meados dos anos 1900 - quando havia o debate a respeito do papel desempenhado pela velocidade no tocante ao estatuto da massa das partículas. Essa hipótese deveria ser explicada em relação aos elétrons e prótons. Poincaré parece aceitar que a experiência de Walter Kaufmann demonstre a nulidade da massa dos elétrons. Ora, e o caso dos prótons? Seguindo as pesquisas de Lorentz, considera Poincaré que se os prótons tivessem massa perceberíamos alguma alteração em fenômenos ópticos/elétricos dada a translação da Terra. Todavia, como reconhece o próprio autor do livro, a discussão em sua época não estava completamente esclarecida - subsiste aqui a impressão de que sua adoção dessa hipótese se deve ao grau de maior simplicidade, especialmente se considerarmos o período no qual o autor tece suas considerações.
[A eletrodinâmica] Poincaré discorre sobre as teorias da eletrodinâmica, iniciadas por Ampère no começo do século 19. Ampère formula uma lei de força magnética entre circuitos fechados de corrente baseada no conceito de elemento de corrente aberta. Ele postula uma lei de força entre esses elementos a partir da qual, por integração, se obtém a lei de força entre quaisquer circuitos fechados. Essa lei de força entre elementos, postulada como agindo na mesma direção que une os dois elementos de corrente, não tem a propriedade de conservação da energia mecânica quando esses elementos são deslocados no espaço, mas a fórmula para a força entre circuitos fechados tem. Apesar de Ampère considerar sua teoria inteiramente baseada na experimentação, Poincaré mostra que as possibilidades de elementos de corrente aberta eram de difícil realização na época e que portanto a lei de força fundamental era uma hipótese de verificação impossível, embora a fórmula de força resultante entre circuitos fechados tenha sido verificada por ele. Em seguida, Poicaré apresenta a teoria alternativa de Helmholtz que postula uma lei de força diferente entre elementos de corrente. Essa lei tem a propriedade de conservar a energia mecânica entre elementos de corrente e ao mesmo tempo produzir uma fórmula para a força entre correntes fechadas idêntica à de Ampère. A decisão entre as duas teorias dependeria da produção e observação direta de correntes abertas. No entanto, com o surgimento da teoria eletrodinâmica geral de Maxwell, de grande sucesso teórico e experimental, se tornou claro que qualquer corrente aberta produz também uma “corrente de deslocamento”, que é a variação de temporal de campo elétrico, no sentido contrário. Dessa forma, a força magnética entre dois elementos de corrente não pode ser medida independente da força magnética da corrente de deslocamento e assim uma lei de força entre elementos de corrente aberta se demonstra inverificável experimentalmente. No entanto, no novo contexto da teoria de Maxwell, o próprio conceito de força entre elementos de corrente desaparece. Essa hipótese se torna desnecessária porque na nova teoria as correntes elétricas não interagem diretamente, mas mediadas pelo novo conceito de campo magnético. Finalmente, com o complemento de Lorentz para a teoria de Maxwell, toda corrente passa a ser descrita como um fluxo de matéria carregada; não existem mais diferenças entre correntes de condução e convecção e a última possibilidade de realizar correntes abertas por meio de condução e convecção também desaparece, sendo toda corrente fechada ou por convecção ou por corrente de deslocamento.
Discussão geral da resenha de Russell.