Joyce, Igor e Bruno enfrentam dia após dia a precarização da informalidade
A uberização do trabalho é um novo modelo de ocupação profissional, criado a partir de plataformas digitais. Essa tendência inovadora inaugura um novo método de obtenção de lucro que promete maior autonomia e flexibilidade aos trabalhadores das empresas cadastradas. No Brasil, o termo surgiu em 2014, junto com a chegada da Uber e tomou grande proporção após três anos, devido à queda de contratações nos empregos formais.
A modalidade também abrange outras plataformas, como Ifood, Happy, 99 e outros da chamada “Gig Economy", que prevê contratação a partir de demanda e sem vínculo empregatício. De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), hoje, 1,7 milhão de pessoas atuam como entregadores e motoristas de aplicativo. A aparente liberdade e autonomia de quem trabalha sem relógio de ponto e sem chefia, na verdade contrasta com a dura realidade que esses trabalhadores enfrentam ao longo da jornada.
Há um ano, quem encara na prática as condições desfavoráveis da uberização é Joyce Maia. Tudo começou em setembro de 2023, quando a jovem teve de tomar uma decisão que mudaria a realidade do seu cotidiano. Para cuidar do avô acamado, Joyce necessitou pedir demissão de um emprego com carteira assinada em Santos e seguir viagem para Aracaju, no Nordeste. Após dois meses ao lado do avô, veio a dor do luto e ela voltou para a Baixada Santista em busca de qualquer proposta de trabalho na qual pudesse assumir rapidamente.
Joyce, de 24 anos, e Mayara, sua irmã mais velha, são as duas colunas que sustentam financeiramente o lar. No apartamento tradicional e grande, localizado na avenida Conselheiro Nébias, também residem a mãe Marinalva, a avó Marizete, além dos sobrinhos Nicolas e Marina. A caçula, entre todas as mulheres da residência, precisava de uma recolocação imediata para equilibrar as finanças domésticas.
Foi quando Joyce decidiu alugar um carro e se cadastrar como motorista no aplicativo da Uber. Desconhecedora sobre locações de veículos, ela conta que procurou um amigo da mãe que já era atuante da informalidade e possuía dicas valiosas na ponta da língua para lhe explicar sobre valores e requisitos necessários. Com a incerteza transformada em determinação, portando um cartão de crédito, a jovem foi até uma locadora e saiu de lá preparada para encarar o trabalho informal nas ruas.
Na labuta do trânsito, a jovem foi aprendendo sozinha as melhores estratégias de lucro conforme ia realizando as corridas pela cidade de Santos e região. Segundo ela, os desafios que ainda viriam pela frente já se tornavam como sombras em sua mente.
Joyce relembra que o início da nova jornada foi marcado por situações incômodas. A motorista recorda que, no primeiro dia, com o coração acelerado e as mãos firmes no volante, levou um passageiro da avenida Pedro Lessa à Rodoviária de Santos e, durante o trajeto, com as palavras em tom de deboche, o rapaz fez questão de apontar que ela não sabia mudar a marcha do carro e que não deveria estar ali. Apesar da experiência desagradável, a Joyce foi resiliente e aceitou a viagem seguinte.
A jovem conta que grande parte dos idosos são os protagonistas responsáveis pelos conflitos. Segundo ela, além do comportamento impaciente, quando o percurso é do supermercado para casa, os viajantes da terceira idade frequentemente pedem para entrar na garagem dos prédios onde moram. No calor da tarde, quando o sol começa a refletir no carro, mesmo com o clima ameno, muitos passageiros também cobram que o ar-condicionado esteja ligado, simplesmente por estarem desembolsando a corrida. Esta situação também é um incômodo da informalidade para a motorista.
Para levantar um bom dinheiro todos os dias, Joyce mantém uma disciplina espartana. Acorda às seis, prepara seu café da manhã reforçado, sai de casa às sete para levar a irmã ao trabalho e os sobrinhos na escola e, em seguida, próximo das oito horas, liga o aplicativo para começar a rodar. Embora seja um horário de pico, a motorista comenta que o período mais lucrativo começa a partir das 17 horas.
Além da gestão do seu cotidiano, Joyce precisa ter na ponta do lápis seus gastos financeiros, tendo em vista as despesas mensais da sua casa. Um mantra que se repete em sua mente enquanto se prepara todas as manhãs para mais um dia de trabalho é a meta diária de 200 reais de lucro. Para alcançá-la, a jovem deve completar 25 viagens, cada uma delas com a esperança da renda mensal em torno de 6 mil reais.
Hoje Joyce encara o trabalho nas ruas com o seu próprio veículo financiado, um bem que até pouco tempo atrás parecia um sonho distante. Ela afirma que ter o seu carro foi um alívio, pois quando fazia as viagens com os alugados, cada quilômetro percorrido era um lembrete de que todo o lucro conquistado se destinaria para cobrir os custos das locações.
Apenas com uma parada para o almoço, sua jornada vai de domingo a domingo, rodando cerca de 12 horas para atingir a referida meta. No entanto, se surge alguma intercorrência, a jovem precisa prolongar o serviço para compensar o tempo perdido. Joyce revela que dez viagens de aproximadamente três quilômetros estão custando em torno de 6 a 7 reais, um montante que cobre tão somente o abastecimento do combustível de seu carro dia após dia.
Segundo a jovem, o valor repassado pela plataforma aos motoristas é calculado com base na tarifa aplicada aos passageiros, da qual a Uber retira em torno de 15% a 20% e o restante fica com o motorista. Joyce explica que a sua meta estipulada é uma projeção mínima para cobrir o desembolso diário de cerca de 70 reais para a gasolina e a troca de óleo, realizada a cada 2 meses no valor de 320 reais. Além disso, ela reitera que a empresa só libera o acesso ao saldo total das corridas após três dias úteis, mediante uma taxa de transferência de 2,50 reais. Caso os motoristas precisem do dinheiro com urgência, precisam pagar 4,50 reais para o saque instantâneo.
Outra questão preocupante diz respeito ao bem-estar psicológico para encarar o trânsito diário e os diversos perfis de passageiros. Joyce conta que a Uber oferece o “Seguro Renda Protegida” , no entanto, essa garantia de compensação só pode ser acionada caso o motorista sofra algum tipo de acidente, roubo e dano ao veículo. Na hipótese de afastamento para tratar da saúde mental, diferente do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), o seguro não cobriria o período de ausência do trabalho.
Joyce, com o olhar cansado mas determinada, faz questão de enfatizar que grande parte dos motoristas de Uber estão sempre à beira de um burnout, dirigindo entre a urgência do dinheiro e o peso da rotina. Entre março e julho deste ano, ela encontrou uma trégua na informalidade, conciliando seu trabalho nas ruas com um emprego fixo em uma casa de acolhimento de mulheres para fazer uma renda extra. Ali, ela atuava como educadora social, um papel que para ela era um refúgio em meio à tempestade do estresse que as corridas proporcionam. Às 7 horas da manhã, entrava no seu novo mundo e quando saía às 19h, ligava o aplicativo para começar as viagens em uma jornada que normalmente se estendia até meia noite.
Joyce considera que o principal problema da uberização é a remuneração insuficiente. A motorista diz que a tão comentada autonomia e liberdade se vai no momento em que as finanças da casa, vida social, tempo de lazer e solidão são comprometidos. "A gente faz de tudo para não faltar nada dentro de casa, mas no final falta a gente", salienta a jovem.
Graduada em radiologia, a motorista pretende deixar a ocupação na Uber a partir do ano que vem para tentar uma oportunidade na área em que é formada. A jovem esclarece que o trabalho informal atende uma necessidade financeira atual. No entanto, sua insatisfação já a impulsiona a planejar um futuro seguro no que diz respeito à sua carreira. " Para quem for entrar, saiba que é um cenário totalmente instável no aspecto financeiro", reitera Joyce.
Bruno Souza trabalha como entregador há cinco anos pelas ruas de Santos. A trajetória dele na informalidade começou em meio aos tempos difíceis da pandemia, quando a sua avó idealizou um delivery de máscaras e ele foi o responsável por realizar as entregas de bike. Posteriormente, o jovem se aventurou nas plataformas que dominam o mercado: Rappi e Ifood. Atualmente Bruno trabalha como entregador sob a bandeira da Avante Delivery.
Já Igor Santos, de 34 anos, atua como motoboy pelas plataformas Uber Moto, Ifood e Loocal. Às 8 horas, ele deixa o aconchego da sua casa e montado em sua moto, vai em busca das entregas. Com o nascer do sol, os comerciantes de padaria se deparam com o motoqueiro na calçada à espera dos pedidos. O jovem estende o horário de trabalho até às 16 horas para aproveitar os deliverys do almoço e, após cumprir as demandas da tarde, vai para casa. O entregador volta para as ruas às 18 horas e finaliza o expediente por volta da 1 da manhã.
Apesar da jornada exaustiva, dos riscos de acidente no trânsito e do baixo rendimento, os conflitos diários com os clientes são o único ponto negativo apontado pelos dois entregadores. Os contratempos que mais incomodam Igor são as ocasiões em que o cliente não é encontrado no local de entrega.
Já Bruno destaca que, quando há atrasos na preparação dos pedidos, os clientes se queixam dos entregadores, pois acreditam que a culpa é do transporte até o local de destino. Além disso, o profissional conta que alguns moradores de prédios pedem para entrar no condomínio para levar as entregas até o apartamento, obrigando-o a deixar a bicicleta em frente aos edifícios e torcendo para que ela não seja furtada.
Para o motoboy e o entregador de bike, mesmo com esses transtornos, a autonomia é o que mais os atrai nesse tipo de trabalho. Ambos são registrados como microempreendedores individuais e possuem respaldo da Previdência Social. No entanto, não descartam a sensação de insegurança devido ao interesse das plataformas nas quais estão cadastrados buscarem parcerias privadas com empresas de seguros, diminuindo a compensação relacionada à renda dos trabalhadores informais.
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