Destaque: Artigo de pesquisadores do OSF recebe Prêmio ABDE-BID 2022

Os pesquisadores Norberto Montani e Luca Boligan receberam o primeiro no lugar no Prêmio ABDE-BID 2022, na Categoria 2 – Micro, Pequenas e Médias Empresas na agenda sustentável, com o artigo " A pandemia da covid-19 e o crédito às micro, pequenas e médias empresas no Brasil". A premiação ocorreu no auditório do Ipea em Brasília e a cerimônia, que inclui uma mesa com apresentação do trabalho, está disponível no YouTube. O livro com os artigos ganhadores está disponível no site da ABDE: https://abde.org.br/wp-content/uploads/2023/07/Premio-ABDE-BID_Edicao-2022.pdf.

A queda do Credit Suisse: escândalos, prejuízos e aquisição pelo rival

Por Gabriel Porto

Publicado em 18/04/2023

O segundo maior banco da Suíça precisou ser adquirido pelo seu principal concorrente para não ter que encerrar suas atividades, resultando na união entre dois dos maiores conglomerados financeiros do mundo. Como isso ocorreu e quais são os possíveis aprendizados?  

O Credit Suisse foi fundado em 1856 para financiar a construção de ferrovias e, assim, modernizar o país que carrega em seu nome. Em mais de 160 anos de história, a instituição se expandiu e cruzou diversas fronteiras, a ponto de ser enquadrado como um dos bancos sistemicamente importantes em escala global (designação conferida a partir do Acordo de Basileia III aos maiores bancos com atuação internacional e que implica maiores exigências regulatórias para essas entidades).

As suas principais atividades são distribuídas entre quatro divisões [1]:

O modelo de negócios é notável, entre outros aspectos, porque as atividades bancárias mais tradicionais, como a concessão de crédito para financiar imóveis ou automóveis, são apenas uma parte da operação e ficam concentradas no mercado doméstico. As prioridades recaem principalmente sobre operações com títulos e valores mobiliários, como a distribuição, gestão, oferta e negociação desses instrumentos em escala internacional.

Isso implica que uma avaliação sobre o seu modelo de negócios não pode se restringir aos resultados financeiros e ao tratamento prudencial dos respectivos riscos. A conduta praticada passa a ser outro elemento essencial para essas análises – e é precisamente nessa área que a instituição protagonizou diversos escândalos recentes.

Os casos Greensill e Archegos são os mais notáveis. Resumidamente, a Greensill Capital era uma instituição britânica que concedia empréstimos usando recebíveis como garantias, em operações conhecidas como supply chain finance. Observando o rápido crescimento desse modelo de negócio, o Credit Suisse decidiu lançar uma família de fundos de investimento, destinada a seus clientes de patrimônio mais elevado, que aplicava em empréstimos relacionados à Greensill.

Esses fundos contavam com um patrimônio de aproximadamente US$ 10 bilhões em março de 2021, quando foram encerrados. A decisão veio pouco depois de um dos principais devedores da Greensill interromper seus pagamentos. Ela foi motivada por uma avaliação do Credit Suisse sobre a volatilidade dos créditos na carteira desses fundos e sobre os seguros que deveriam cobrir perdas com esses ativos, que não foram renovados pelos últimos seis meses [2].

A Greensill faliu e na sequência foi noticiado que parte dos empréstimos que ela havia cedido para os fundos do Credit Suisse foram concedidos contra recebíveis “prospectivos” ou “futuros”, alguns dos quais nem eram reconhecidos pelas empresas que suspostamente deveriam pagá-los [3]. O resultado é que em 2022, cerca de um ano após o encerramento dos fundos em questão, seus cotistas haviam recuperado pouco mais de 70% do investimento, mas ainda estavam em disputa cerca de US$2 bilhões, com questões associadas à cobertura dos seguros e à execução de garantias.

Já o Archegos Capital Management era um family office (normalmente, um gestor de patrimônio para uma ou mais famílias de elevado patrimônio) localizado em Nova York. Esse escritório usou serviços de alguns dos maiores intermediários financeiros do mundo para alavancar sua posição, em torno de US$ 20 bilhões ao final de 2020, por quase cinco vezes [4].

Uma desvalorização das ações que ele investia, também em março de 2021, resultou em volumosas chamadas de margem (necessidade de constituir mais garantias para manter um contrato vigente) que o Archegos não foi capaz de honrar. Como resultado, o escritório encerrou suas atividades e as instituições com as quais operava perderam mais de US$ 10 bilhões – com o maior prejuízo tendo sido atribuído ao CS, em US$ 5,4 bilhões [5].

Importante destacar que esses não foram casos isolados, motivando questões sobre os controles internos e até a própria administração do conglomerado. Foram registrados episódios de espionagem entre os executivos do banco, uso de jatos corporativos para viagens pessoais contra restrições associadas à pandemia da covid-19, uma condenação sobre lavagem de dinheiro oriundo do tráfico de drogas e uma investigação sobre evasão fiscal [6].

Ainda assim, os episódios Greensill e Archegos são importantes porque movimentaram enormes quantias, com consequências diretas e indiretas sobre o valor de mercado do Credit Suisse. Os principais eventos relacionados a esses episódios foram noticiados em março de 2021, mês em que as ações da instituição caíram mais de 20%, saindo de SFr 12,07 para SFr 9,62.

O conglomerado registrou um prejuízo de SFr 4,2 bilhões em 2021; e as suas perdas apenas aumentaram em 2022, alcançando o valor histórico de SFr 6,5 bilhões. As ações deslizaram para baixo durante a maior parte desse último ano, saindo de SFr 8,79 para SFr 2,76 entre o primeiro e o último dia de negociação do período selecionado.

O Credit Suisse sofreu resgates de depósitos à vista e a não-renovação de depósitos a prazo em volumes consideráveis durante todo esse período, que foram particularmente acentuados no último trimestre de 2022. Como consequência, o conglomerado precisou usar parte das suas reservas de liquidez, mas não conseguiu atingir temporariamente exigências regulatórias para algumas das entidades que o compõem [7].

A última grande baixa ocorreu em março de 2023, quando o preço da ação despencou de SFr 2,50 para em torno de SFr 0,83. Os seguintes eventos podem explicar esse movimento:

9 de março de 2023: o Credit Suisse postergou a publicação do seu relatório anual, após o regulador de valores mobiliários dos EUA (SEC) levantar algumas dúvidas, principalmente sobre os fluxos de caixa consolidados e respectivos controles internos. A prática não é comum e motivou perdas imediatas no valor de mercado do grupo financeiro [8]

10 de março de 2023: o Silicon Valley Bank entrou em regime de administração nos EUA (ver Sistema Financeiro em Debate #24), posteriormente contaminando a precificação de grandes bancos na Europa. O Credit Suisse foi aquele que mais se desvalorizou entre seus pares na esteira desses acontecimentos.

15 de março de 2023: um dos principais investidores do conglomerado, que detém cerca de 10% das suas ações, afirmou em entrevista que não poderia aportar mais capital na instituição. O banco central e o regulador financeiro da Suíça publicaram uma nota pouco depois, informando que seriam disponibilizados empréstimos de até SFr 50 bilhões para o Credit Suisse [9].

O valor de mercado da instituição registrou uma queda de 24,2% nesse último dia. Ao mesmo tempo, os credit default swaps (derivativos que funcionam como uma garantia contra o não-cumprimento de instrumentos de dívida) se aproximaram do pico registrado durante a Crise Financeira Global, de 2008, indicando que um risco de crédito muito elevado estava sendo atribuído para essa instituição.

O Credit Suisse perdeu cerca de SFr 35 bilhões nos dias seguintes, enquanto contrapartes bancárias mostravam cada vez mais cautelosas para realizar operações de crédito de curto ou curtíssimo prazo. As autoridades suíças concluíram, então, que o conglomerado financeiro teria muitas dificuldades para retomar suas atividades na 2ª-feira [10].

A solução encontrada para evitar esse cenário foi promover a aquisição do Credit Suisse pelo UBS, o maior banco do país. A operação de resgate foi anunciada no domingo (19/3), antes que os mercados abrissem no dia seguinte.

A aquisição deverá ser consumada até o final de 2023, quando o UBS será a única instituição sobrevivente. Os acionistas do Credit Suisse receberão ações do concorrente pela razão de 22,48 por 1, representando a compra da instituição por SFr 3 bilhões [11].

A despeito da solução rápida, os termos do acordo ainda geraram alguma controvérsia. Primeiro, a aquisição foi deliberada em um final de semana, de modo que o governo federal editou uma norma para assegurar que essa decisão pudesse ser tomada sem a aprovação dos cotistas das duas instituições (com efeito, as respectivas assembleias gerais foram realizadas apenas alguns dias depois). 

Segundo, o Credit Suisse contava com dívidas conversíveis em ações de aproximadamente SFr 16 bilhões. O regulador financeiro da Suíça (FINMA) determinou que tais dívidas seriam completamente exauridas, efetivamente recorrendo aos recursos desses credores antes dos acionistas (prevê-se o contrário em situações normais).

Terceiro, o acordo ainda envolveu recursos públicos para mitigar os riscos incorridos pelas partes. O banco central da Suíça estendeu linhas de liquidez de até SFr 100 bilhões para as instituições, na forma de empréstimos; enquanto o governo federal ressarcirá eventuais perdas do UBS com essa operação em até SFr 9 bilhões.

O preço acordado e todos esses incentivos fizeram com que a aquisição fosse descrita por uma pessoa envolvida nas negociações pelo lado do UBS como “uma oferta que não poderíamos recusar” [12]. O conglomerado resultante será enorme, com mais de US$ 5 trilhões em ativos sob gestão nas divisões de wealth management, e substanciais possibilidades de redução de custos durante a reestruturação [13].

Os resultados desse resgate poderão ser melhor avaliados com o passar do tempo, inclusive em termos da cultura que permanecerá na instituição após as prováveis rodadas de demissões e mudanças nos desenhos organizacionais. Ainda assim, é possível ensaiar algumas conclusões.

Em síntese, o exemplo do Credit Suisse demonstra como casos de má conduta podem impactar os resultados de instituições financeiras e, com isso, corroer seu valor de mercado. Na ausência de remédios adequados, o custo de captação dessa instituição pode aumentar com o tempo e assim tornar sua situação mais instável, até que um episódio crítico faça da sua sobrevivência insustentável.

Os termos do resgate emergencial realizado ainda informam que as reformas coordenadas internacionalmente para diminuir os custos da administração pública com a falência de instituições financeiras precisam ser reavaliadas. A aquisição pelo UBS evitou que as autoridades competentes assumissem a administração do Credit Suisse, mas ainda assim exigiu que o governo assumisse obrigações potencialmente maiores que os desembolsos feitos pela instituição remanescente, o que pode tornar a estratégia realizada uma opção ainda bastante custosa.

Notas e referências

[1] CREDIT SUISSE. Annual Report 2022. 2023a.

[2] Morris. S. “Credit Suisse pulls plug on $10bn of frozen Greensill-linked funds”. Financial Times, 2021.

[3] SMITH, R.; HUME, N. “Trafigura warned Credit Suisse over Gupta invoice last year”. Financial Times, 2021.

[4] MARTIN, K.; WIGGLESWORTH, R.; FLETCHER, L. “’They can do what they want’: Archegos and the $6tn world of the family office”. Financial Times, 2021.

[5] LEWIS, L.; WALKER, O. “Total bank losses from Archegos implosion exceed $10bn”. Financial Times, 2021.

[6] FINANCIAL TIMES. “Credit Suisse: what next for the crisis-hit bank?” FT Film. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PyuUc74Qdzs. Acesso em: 5/4/23. U.S. SENATE FINANCE COMMITTEE. Credit Suisse’s role in U.S. tax evasion schemes. 2023.

[7] Ver nota 1, acima.

[8] Illien, N.; HIRT, O. “Credit Suisse delays annual report after SEC call, shares drop”. Reuters, 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/business/finance/credit-suisse-delays-publication-annual-report-following-sec-call-2023-03-09/. Acesso em: 11/4/23.

[9] ELDER, B. “Now even its cornerstone investor is kicking Credit Suisse”. Financial Times, 2023.

WALKER, O.; MORRIS, S.; NOONAN, L; JONES, S. “Swiss central bank offers Credit Suisse liquidity backstop. Financial Times, 2023.

[10] MORRIS, S. FONTANELLA-KHAN, J. MASSOUDI, A. “How the Swiss ‘trinity’ forced UBS to save Credit Suisse”. Financial Times, 2023.

[11] CREDIT SUISSE. “Credit Suisse and UBS merger: Ad hoc announcement pursuant to Art. 53 LR”. Press Release, 2023b.

[12] “an offer we couldn’t refuse”. Ver nota [x], acima.

[13] UBS. “UBS to acquire Credit Suisse: Ad hoc announcement pursuant to article 53 LR.” Media Release, 2023.

Pagamentos: o cenário atual e as tendências e oportunidades

Por Dalton Boechat Filho

Publicado em 17/01/2022

Nos últimos anos o ritmo de difusão de inovações no âmbito dos serviços financeiros tem sido muito intenso, em especial, nos processos que envolvem os serviços de pagamento (digitalização, identificação, liquidação etc.). Esse fenômeno vem reforçando as diferenças tanto nos sistemas de pagamento ao redor do mundo, como na cultura e formas de pagamentos por parte dos consumidores e de cobrança por parte dos ofertantes de produtos e serviços. Refletem também fatores históricos e regulatórios, dentre outros, e levam ao crescimento de métodos alternativos de pagamentos.

Ressalte-se que não são apenas mudanças nos instrumentos utilizados nas negociações, mas também no canal buscado por parte desses participantes. Fato é que dinheiro em espécie e cheques são cada vez menos usados nessas transações e os tradicionais cartões (de débito e de crédito) passam a ter concorrentes mais disruptivos como os QR Codes, carteiras digitais [i] e moedas digitais privadas e dos bancos centrais. Os pagamentos presenciais perdem significativamente espaço para os virtuais e, mesmo nestes ambientes, há uma crescente procura por realização dos pagamentos não pelo site das instituições financeiras, mas nos próprios ambientes das redes sociais, às quais se está 7 dias e 24 horas conectado.

Na esteira da crescente digitalização das informações e em linha com os avanços tecnológicos surgiram as fintechs [ii], que passaram a ocupar não apenas um espaço cada vez maior em um novo ecossistema de serviços financeiros e no universo dos sistemas de pagamento, mas também um papel importante no processo de inclusão de parcela da população sem acesso a serviços financeiros tradicionais, tema amplamente tratado em diversas publicações oficiais e acadêmicas.

Em todo o mundo, os sistemas de pagamentos têm caráter público e são infraestruturas sociais que suportam todas as atividades econômicas, as transações e a circulação de volumes gigantescos de recursos, cada vez mais sob a forma digital e com cada vez mais atores envolvidos em todo esse processo de transferências de fundos.

Os bancos centrais são o centro dos sistemas de pagamentos na maior parte dos países e mesmos os sistemas que são privados seguem a regulamentação destas autoridades. Os outros principais atores são os bancos comerciais, mas muitas fintechs passaram a participar não apenas na função de pagamento, como também na liquidação, custódia etc.

O Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) compreende as entidades, os sistemas e os procedimentos relacionados com o processamento e a liquidação de operações de transferência de fundos, de operações com moeda estrangeira ou com ativos financeiros e valores mobiliários. Esse conjunto de entidades e sistemas são chamados, coletivamente, de entidades operadoras de Infraestruturas do Mercado Financeiro (IMF). Mais recentemente, o SPB passou a incluir também os arranjos e as instituições de pagamento, nicho essencial de atuação das fintechs no país.

Em complemento, o Banco Central brasileiro criou o Sistema de Pagamentos Instantâneos, Pix, ao final de 2020, dando celeridade às transferências e pagamentos por meio de canais digitais. Em pouco tempo, o Pix transformou-se num dos principais meios de pagamento do país.

Essa iniciativa atendeu a expectativa de aumento da escala dos sistemas à medida que os pagamentos se tornam ainda mais absorvidos pelas jornadas comerciais e de consumo, com a explosão dos números do e-commerce em tempos de pandemia. Também veio em linha com a adoção cada vez maior de pagamentos em tempo real e da demanda de instantaneidade das transferências de recursos entre os agentes econômicos.

As estatísticas e as projeções divulgadas ano a ano calculadas pelo Relatório Global de Pagamentos [iii], publicado pela consultoria McKinsey, mostram o crescimento de 19% dos volumes transacionados no e-commerce em 2020 (último dado disponível), o maior em cinco anos, com a pandemia de covid-19 reforçando a tendência do uso de carteiras digitais como o método de pagamento mais utilizado pelos consumidores globais no comércio eletrônico.

Segundo o relatório, “a maior participação das carteiras digitais no comércio eletrônico se deve à diminuição do uso de cartões de crédito, transferências bancárias e pagamento na entrega.” As informações divulgadas para 2020 mostram que essas carteiras responderam por 44,5% do total, seguidos do uso do cartão de crédito com 22,8%, entre as diferentes modalidades de pagamento no e-commerce. A publicação estima que para 2024, esses números serão de 51,7% e 20,8%, respectivamente.

Outra referência interessante na discussão das tendências para pagamentos é o curso ministrado em 2020 proferido pelo professor do MIT, Gary Gensler, atual presidente da Securities and Exchange Commission (SEC) [iv].  Ele destaca que um grande fator de estímulo às transformações e à competição nos sistemas de pagamentos passa pela diferenciação de custo para os usuários dos diferentes instrumentos, com clara vantagem aos sistemas das carteiras digitais, com operações a custo zero para várias delas, e pelas transferências de recursos em tempo real, seja em ambientes internos ou em arranjos internacionais de pagamentos.

Em dois textos recomendados no curso, “7 Key Payments Innovations in Fintech for 2020” [v] e “9 Payment Trends That Will Shape 2020” [vi], são elencadas tendências que foram sendo confirmadas no último ano para o ecossistema de pagamentos e na atuação de seus participantes. Entre as principais previsões vale destacar:

- Os pagamentos se tornarão invisíveis para uma experiência perfeita do cliente. Caso do usuário do Uber que uma vez tendo inserido os dados no app, todas as solicitações de viagens são aceitas sem qualquer contato com a palavra pagamento;

- Os pagamentos começarão a aparecer nos lugares que você menos espera. De fato, os adesivos utilizados como meios de pagamento de pedágios e estacionamentos, por exemplo, tendem a incorporar entradas em estabelecimentos, abastecimento em postos de combustíveis e tantas outras alternativas aos usuários.

- O faturamento para pequenas e médias empresas fará a transição para o digital. Em linha com a digitalização crescente de várias etapas da atividade econômica e com iniciativas como os crediários digitais (formato buy now, pay later – BNPL) [vii], tradicionais no comércio varejista brasileiro (antes representados pelos carnês de loja), que passaram a ser bastante utilizados nos demais países e motivo de preocupação por vários de seus reguladores.

- As regulamentações continuarão a aumentar. De fato, mais do que corrigir eventuais assimetrias entre as operações dos incumbentes e insurgentes, muitos dos novos produtos e atuações passaram a ser ponto de preocupação e regulação por autoridades de todos os níveis governamentais e já motivaram a implementação de diversas normas locais e internacionais.

- A tokenização [viii] se tornará uma forma comum de proteger os detalhes de pagamento. Solução encontrada para dar mais segurança às operações não presenciais evitando o roubo virtual dos principais dados dos clientes e os prejuízos decorrentes.

- Otimização e digitalização do Back Office para enfrentar o open banking. A crescente adoção nos países do sistema financeiro aberto tem levado à aceleração dos processos de digitalização e integração dos seus sistemas, principalmente nas instituições incumbentes.

Muito do previsto reflete a consolidação das carteiras digitais e a necessidade de adaptação tecnológica para dar conta da demanda por maior velocidade das transações.  Adicionalmente, a absorção de pagamentos em toda a jornada comercial e de compra por parte dos consumidores e dos comerciantes dá origem a ecossistemas que exigem serviços novos e mais robustos e abre novas possibilidades para as empresas de tecnologia financeiras (fintechs e BigTechs).

Empresas de tecnologia e os concorrentes do ecossistema já estão se concentrando nesses elementos atraentes da cadeia de valor de pagamentos, em vez de buscarem receitas apenas nas taxas tradicionais de intercâmbio, aquisição e transação vinculadas aos fluxos de pagamento.

Afinal, estima-se um mercado global de pagamentos de US$ 100 trilhões, com receitas anuais entre 1 e 2%, ou seja, entre US$ 1 e 2 trilhões [ix]. A disputa concorrencial no segmento vem exigindo das instituições incumbentes, líderes na intermediação de pagamentos, uma transição mais rápida dos serviços físicos para os virtuais, evitando as possíveis perdas de market share para as empresas de tecnologia financeira.

Este é o quinto de uma série de artigos sobre fintechs do Observatório do Sistema Financeiro que irá consolidar as discussões do Grupo de Estudos sobre FinTechs (2021-2).

Notas e referências

[i] Uma carteira digital se refere a um aplicativo, um dispositivo eletrônico ou um serviço online que permite que indivíduos ou empresas façam transações eletronicamente.

[ii] Definidas aqui, como no relatório IMF-World Bank 2018, àquelas empresas que trazem “avanços em tecnologia com potencial para transformar a prestação de serviços financeiros, estimulando o desenvolvimento de novos modelos de negócios, aplicações, processos e produtos.”

[iii] https://worldpay.globalpaymentsreport.com/pt/

[iv] https://ocw.mit.edu/courses/sloan-school-of-management/15-s08-fintech-shaping-the-financial-world-spring-2020.

[v] Olechowski, Artur - https://codete.com/blog/7-key-payments-innovation-in-fintech-for-2020.

[vi] Mense, Estelle - https://home.bluesnap.com/snap-center/blog/9-payments-trade-that-will-shape-2020.

[vii] https://www.kansascityfed.org/research/payments-system-research-briefings/the-rise-of-buy-now-pay-later-bank-and-payment-network-perspectives-and-regulatory-considerations/

[viii] Processo de transformar uma parte significativa dos dados, como um número de conta, em uma sequência aleatória de caracteres chamada token, que não tem valor significativo se violada. Os tokens servem como referência para os dados originais, mas não podem ser usados para adivinhar esses valores.

[ix] Idem nota v.

Blockchain e Criptoativos: de onde vem e para que servem essas tecnologias?

Por Moisés Yechua Mizrahi

Publicado em 11/01/2022

Nenhum tema tem sido mais dominante nos últimos anos do que as discussões em torno do blockchain e dos criptoativos, bem como de todo o universo de possibilidades projetadas a partir da adoção em massa dessas tecnologias disruptivas nas mais variadas áreas do conhecimento e, em particular, no sistema financeiro. A cada dia surgem novas aplicações e são propostos diferentes modelos de negócios envolvendo estes conceitos, que estão literalmente moldando uma nova visão para o mundo em que vivemos, cada vez mais distante da realidade atual.

Neste texto iremos situar os aspectos históricos da criação destas tecnologias, caracterizar os problemas que tais soluções se propõem a resolver – especialmente quanto à criação, posse e transferência de valores no ambiente virtual –  e mostrar por que elas de fato parecem constituir uma ruptura na abordagem destas questões [1]. Alinham-se ainda a essas questões as discussões acerca da criação e da disseminação das moedas digitais e da atuação dos bancos centrais com o objetivo de se tornarem protagonistas nesse movimento.

É importante registrar, de início, que muitas iniciativas para se transferir valores através da Internet já haviam sido lançadas desde o início da década de 1990, como, por exemplo, o Digicash (1994) e o Bit Gold (1998), mas não produziram resultados práticos, com baixa adesão pelo mercado. A razão do seu insucesso se deveu ao fato de não terem resolvido a questão do “gasto duplo”, pela qual é preciso garantir que um mesmo ativo digital não possa ser gasto simultaneamente mais de uma vez. Anos depois, soluções de pagamento móvel, como Visa, Mastercard, PayPal e AliPay, foram criadas, tendo galgado forte aceitação, mas resolvem o problema do “gasto duplo” com processamento das transações totalmente centralizado.

O ponto de corte se deu a partir de um artigo publicado em 2008, cuja autoria é atribuída ao pseudônimo Satoshi Nakamoto [2]. Nele o autor conseguiu dar forma a uma ideia proposta em 1992 por um grupo de programadores denominado Cypherpunk, que defendia, então, a privacidade de suas informações e a capacidade de se comunicarem e  interagirem de forma anônima, o que incluiria também a criação de uma forma de “dinheiro eletrônico” para lastrear as transações financeiras entre eles.

Eles entendiam que o aumento vertiginoso da capacidade computacional e a disseminação do uso da Internet ensejariam, num futuro próximo, a criação de uma rede global para a realização de transações financeiras que, de alguma forma, poderia ficar fora da administração pelas instituições bancárias tradicionais e do controle pelos governos nacionais.

No artigo [3], Nakamoto concebeu um novo sistema de “moeda eletrônica” a partir de um conjunto confiável de assinaturas digitais com o uso de criptografia, em que a inscrição de cada registro é feita de forma cronológica, imutável e transparente numa espécie de livro de registro eletrônico, o blockchain, onde se garante o anonimato dos detentores dos endereços eletrônicos que participam da transação. O blockchain é, em última instância, uma forma de tecnologia de registro distribuído (distributed ledger technology ou DLT) em que os registros são armazenados de forma descentralizada e compartilhada e onde os validadores se obrigam a entrar numa espécie de consenso para garantir a inclusão de um novo registro de forma encadeada no “livro contábil”. Neste esquema, cada nó de um administrador da rede detém toda a informação, mas nenhum deles é capaz de alterá-la individualmente sem a anuência dos demais, o que confere estabilidade ao sistema à medida que este se expande.

Uma “moeda” virtual, o Bitcoin (BTC), foi criada como forma de remunerar as terceiras partes validadoras dos registros, que disputam entre si a primazia de registrar a transação no blockchain. Recebe o prêmio, em Bitcoins, quem for mais rápido para resolver, por tentativa e erro, um problema matemático altamente complexo para acertar o identificador de cada bloco de informações e registrá-lo no blockchain. Esse processo demanda enorme capacidade computacional e grande gasto de energia elétrica por parte dos assim chamados “mineradores”. Uma forma engenhosa de valorizar a moeda criada foi limitar sua emissão total a um número fixo – 21 milhões de unidades –, a ser alcançado apenas no ano de 2140. Na prática, a remuneração por cada bloco “minerado” foi programada para ser reduzida de tempos em tempos, criando uma escassez de modo a sustentar o valor da moeda ao longo do tempo. Até o início de janeiro de 2022, cerca de 18,9 milhões de Bitcoins já haviam sido “minerados”, perfazendo um total de US$ 800 bilhões emitidos e em poder do público, considerando os preços atuais.

Segundo alguns autores, a excessiva concentração dos Bitcoins nas mãos de poucos desenvolvedores, “mineradores” e investidores de grande porte inviabiliza o discurso de que se trata de uma forma de luta contra o “totalitarismo financeiro” e a “vigilância institucional irrestrita”, como pregavam seus precursores.  As funções básicas da moeda como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta ainda estão longe de serem cumpridas pelo Bitcoin em função, respectivamente, de sua baixa adoção nas transações do mundo real, de sua extrema volatilidade e de seu elevado valor unitário, o que inviabiliza a precificação de bens e serviços  em BTC. Mas o blockchain do Bitcoin não é o único, nem o principal: existem dezenas de outras redes, com milhares de aplicações em desenvolvimento, cada qual com sua especificidade e sua moeda; há desde redes com soluções business-to-businees (B2B) envolvendo transações de dados corporativos entre bancos, até aquelas destinadas exclusivamente a suportar jogos online com milhões de usuários cadastrados.

Existe atualmente uma divergência em relação à conceituação do que seriam criptoativos, moedas digitais e outras terminologias usadas mundo afora para defini-los. Através de um processo chamado de tokenização, moedas virtuais podem ser criadas e distribuídas através de contratos inteligentes (smart contracts), que são códigos pré-programados e autoexecutáveis que definem, de forma automática e sem interferência humana, todos os eventos previstos para esses criptoativos.

Utilizados para remunerar ou taxar determinadas funcionalidades executadas pelos usuários nas diferentes redes, ou simplesmente para representar digitalmente o valor de bens físicos, essa arquitetura garante, teoricamente, a transparência e a auditabilidade destes processos, gerando maior eficiência e menores custos de transação em relação às operações com moedas bancárias. Reunindo todo o universo destas categorias, existem hoje aproximadamente 16.500 criptomoedas diferentes, que possuem um valor de mercado acumulado da ordem de US$ 2,0 trilhões, do qual o Bitcoin representa cerca de 40%.

Segundo Gensler [1], os principais desafios na adoção das tecnologias de blockchain e criptoativos estão associados à escalabilidade, performance e eficiência, respeitadas as garantias de privacidade, segurança e interoperabilidade das diferentes redes existentes e obedecendo a critérios de governança que permitam sua aceitação tanto pelos governos quanto pelos usuários privados.

A análise estratégica dos projetos de novos serviços em rede com o uso destas tecnologias, quando comparados com aplicações tradicionais na arquitetura cliente-servidor, deve considerar, para cada caso, as vantagens ou desvantagens da computação descentralizada, da escolha da natureza (pública ou privada) da rede e da necessidade ou não da criação de uma moeda própria para suportá-los, além de prever a adequação dos novos critérios de governança e modelos de consenso que estão surgindo [4].

Visando manter seu poder de controlar a base monetária e aumentar a sua capacidade de prover novos e confiáveis meios de pagamento num mundo que caminha para a completa digitalização da moeda, os bancos centrais passaram a ter forte interesse na emissão de moedas digitais próprias [5]. Além da conversibilidade garantida com as moedas nacionais, as moedas digitais dos bancos centrais (MDBCs) complementam a expansão dos sistemas de pagamento digitais, como o PIX, cujo sucesso estrondoso no Brasil neste último ano permitiu a inclusão de boa parte da população não bancarizada no sistema financeiro com baixíssimo custo.

As moedas dos bancos centrais buscam resolver também o problema trazido pela explosiva disseminação do uso das moedas digitais privadas em nível global que, em tese, poderiam fomentar a criação de sistemas paralelos de pagamento, impedindo a atuação das autoridades na definição da taxa de juros e do controle do fluxo cambial das economias, mormente naquelas afetadas por taxas mais elevados de inflação, que corrói o poder de compra da moeda circulante.

As moedas digitais dos bancos centrais surgem também com o objetivo de impedir o crescimento descontrolado das moedas digitais estáveis (stable coins) privadas globais, como a USD Tether (USDT), a USD Coin (USDC) e a Binance USD (BUSD), que já possuem uma capitalização conjunta de mercado de mais de US$ 150 bilhões. Criadas especialmente para garantir um pareamento com as moedas fiduciárias nacionais, com as próprias criptomoedas ou até com outras commodities, elas ainda não são objeto de regulação pelo mundo e possuem escassa transparência.

Afinal, não há supervisão externa que garanta que as reservas que elas representam não sejam fracionárias ou estejam aplicadas em ativos de risco, já que sua emissão não é supervisionada por nenhuma autoridade, o que gera um risco sistêmico para todo o ecossistema de criptoativos. Os desafios a serem enfrentados pelas MDBCs, além da garantia da estabilidade financeira dos mercados, incluem a mudança dos modelos de funding dos bancos comerciais e de seus efeitos no crédito e no investimento.

No futuro próximo virão à tona, com cada vez mais frequência, questões relativas às bolsas de negociação de criptoativos e os caminhos que estão sendo seguidos pelas autoridades em todo o mundo para a regulação destas plataformas. As aplicações dessas tecnologias no conjunto de práticas conhecido como Finanças Descentralizadas (DeFi, na sigla em inglês) e como elas podem mexer com os mercados de crédito e investimento nas economias capitalistas também serão um ponto de atenção. Os novos mercados a serem criados a partir do uso de tokens não fungíveis (non-fungible tokens ou NFTs) e a enorme expectativa criada em torno do Metaverso, que promete revolucionar as relações entre pessoas e empresas no mundo virtual, completam a extensa agenda de pesquisa sobre criptoativos e novas tecnologias no sistema financeiro [6].

Este é o quarto de uma série de artigos sobre fintechs do Observatório do Sistema Financeiro que irá consolidar as discussões do Grupo de Estudos sobre FinTechs (2021-2).

Notas e referências

[1]  Baseado na aula 05 do curso “FinTech: Shaping the Financial World”, de Gary Gensler, ministrado em abril de 2020 através do MIT OpenCourse: https://ocw.mit.edu/courses/sloan-school-of-management/15-s08-fintech-shaping-the-financial-world-spring-2020/

[2] A identidade de Nakamoto ainda hoje permanece em segredo, mas se espera que seja revelada num futuro próximo, já que se trata do detentor de uma das maiores fortunas do mundo, estimada em várias dezenas de US$ bilhões.

[3] Nakamoto, S. Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Mimeo, 2008.

[4]  Instituto Propague. Regulação de criptomoedas no Brasil e no mundo: abordagens e tendências. Carta Propague, v. 3. Rio de Janeiro: Instituto Propague, nov. 2021.

[5] Kosinski, D. Bitcoin e Criptomoedas: A utopia da neutralidade e a realidade política do dinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020.

[6] LAB – Laboratório de Inovação Financeira. Descentralizar para desintermediar: estudo sobre emissão, distribuição e negociação de valores mobiliários digitais no Brasil. Rio de Janeiro: ABDE, BID, CVM e GiZ, 2021.

Inteligência artificial em finanças: as ferramentas que dominaram o setor

Por Gabriel Porto

Publicado em 10/11/2021

Análise de dados, reconhecimento de padrões, processamento de linguagem natural e automação de processos robóticos. A inteligência artificial e seus subconjuntos, entre os quais o aprendizado por máquinas seria o mais conhecido, viabilizam formas inovadoras de realizar atividades como essas que, com ferramentas menos sofisticadas, competiam apenas aos humanos.

O potencial transformador dessa tecnologia é enorme para uma sociedade, um setor, uma firma e até mesmo para as pessoas que se deparam com formas diferentes de interagir com as máquinas. Isso é particularmente evidente quando consideramos que as aplicações mencionadas acima refletem usos da inteligência artificial em sua definição mais restrita.

O objetivo desse artigo é explorar, em poucas palavras, os efeitos da inteligência artificial sobre os sistemas financeiros. Nesse sentido, é necessário recuperar uma conclusão que foi apresentada nos artigos anteriores dessa série: a adoção das tecnologias digitais constitui uma mudança paradigmática para o setor em análise [1].

O uso da inteligência artificial pelos sistemas financeiros se insere nesse contexto. Como argumentaremos na sequência, a adoção dessa tecnologia não representa um paradigma tecnológico efetivamente "novo", dado que ela é parte das tecnologias digitais. Porém motiva mudanças substanciais nas técnicas de produção até então dominantes.

Alguns conceitos são necessários para seguirmos por essa argumentação. As técnicas de produção são os conjuntos dos métodos de produção, definidos para cada mercadoria, que compõem uma determinada economia. Já os métodos de produção estabelecem as relações entre as quantidades de mercadorias e de trabalho necessárias para produzir uma determinada mercadoria [2].

As técnicas de produção variam quando surge uma nova indústria ou quando se alteram os métodos adotados pelas indústrias existentes. Isso significa que diferentes métodos podem ser conhecidos ao mesmo tempo, ficando a competição responsável por selecionar aqueles que apresentam menores custos de produção (dados os preços e as variáveis distributivas) [3]. 

Seriam necessárias algumas abstrações para aplicar esses conceitos à provisão de serviços, particularmente de serviços financeiros. Para simplificar, vamos supor que os serviços da nossa economia, incluindo os financeiros, como concessão de empréstimos, gestão de recursos, distribuição de produtos de investimento e subscrição de seguros, podem ser tratados como mercadorias básicas [4].

Isso permite responder de modo bastante intuitivo uma das perguntas recorrentes sobre o tema: a inteligência artificial deve ser tratada como uma ferramenta ou como um serviço? [5]

Quando se analisa uma economia, o desenvolvimento do setor que provê soluções em inteligência artificial pode ser equiparado ao surgimento de uma nova indústria. O produto da sua atividade seria entendido como um novo serviço, passível de ser incluído nos métodos de produção dessa e demais indústrias. 

Quando se analisa o recorte mais específico do setor financeiro, o mesmo diagnóstico seria verdadeiro apenas se a adoção da inteligência artificial permitisse o desenvolvimento de novos serviços financeiros. Esse não parece ser o caso, ao menos nesse momento, de modo que a inteligência artificial deve ser entendida então como uma ferramenta que se insere no método de produção desse setor. 

Alguns dos usos mais difundidos de inteligência artificial pelas instituições financeiras se encontram nas interfaces com os clientes, como em chatbots para apoio no atendimento, algoritmos para avaliação de crédito e robo-advisors para indicação de investimentos. Em mercados de atacado, alguns usos que merecem destaque incluem os algoritmos para selecionar estratégias de negociação (e.g. para assegurar menor custo de execução), assim como as soluções para complementar os processos de decisão de investimento pelos gestores [6] [7].  

A inteligência artificial é utilizada também em soluções para observância regulatória pelas instituições financeiras e supervisão pelas autoridades competentes (respectivamente conhecidas como RegTech e SupTech). As ferramentas para onboarding dos clientes (cadastro e início da relação cliente-firma), detecção de fraudes e monitoramento de lavagem de dinheiro podem ser enquadradas nesse contexto, assim como as soluções para remessa de informações regulatórias e monitoramento de mercados.

O sistema financeiro do Brasil não está distante dessa realidade. O uso de inteligência artificial por aqui também é mais difundido pelas interfaces entre os bancos e seus clientes, como em chatbots e ferramentas de onboarding (e.g. identificação por foto) e detecção de fraudes. Para o setor não-bancário, os usos mais comuns da inteligência artificial passam pelas recomendações por robo-advisors e pelas ferramentas para auxiliar com a precificação, o gerenciamento de riscos e a análise macroeconômica – ainda que outras aplicações tenham ganhado evidência nos últimos anos, como aquelas utilizadas para apoio às transações de alta frequência (high-frequency trading) e à alocação de portfólio por fundos de investimento [8]. 

O desenvolvimento e a adoção de soluções com base em inteligência artificial, como nessas áreas mencionadas acima, são comumente motivadas pela proposta de reduzir custos, além de outros benefícios, como aumentar a eficiência e diminuir erros humanos [9]. Considerando que essa proposta tenha se confirmado em ao menos um caso de uso, para dados preços e variáveis distributivas, pode-se concluir que alguma quantidade de inteligência artificial passou a integrar os métodos de produção dominantes utilizados pelo setor financeiro.

As instituições financeiras, fintechs e até bigtechs que conseguirem explorar novas economias de custo e ganhos de eficiência pelo uso dessa tecnologia no sistema financeiro poderão obter lucros extraordinários. Contudo, a discussão acima busca evidenciar como a inteligência artificial passou a ser uma técnica tão difundida, ao ponto de que uma instituição financeira teria dificuldades de sustentar sua rentabilidade em relação às demais sem utilizar essa tecnologia em alguma medida.

Essa conclusão estaria incompleta sem mencionar que o desenvolvimento e a adoção da inteligência artificial no sistema financeiro levantam questões em termos de políticas públicas. As análises divulgadas por reguladores ao longo dos últimos anos apontam algumas dessas questões, assim como os remédios que estão sendo implementados.

Em termos gerais, as demarcações dos chamados “perímetros regulatórios” vêm demandando particular atenção das autoridades nos últimos anos, devido à difusão de modelos de negócio que não são trivialmente enquadrados nas definições tradicionais de atividades e instituições reguladas. Contudo, as avaliações sobre inteligência artificial parecem menos motivadas por essa questão e, reforçando as conclusões apontadas acima, estão mais voltadas à identificação de novos riscos que os usos dessa tecnologia podem trazer.

As preocupações mais recorrentes tratam sobre (a) vieses e equidade, (b) interpretabilidade e transparência e (c) privacidade e segurança [10]. Além desses três conjuntos mais amplos, os reguladores de conduta apontaram preocupações sobre a governança das instituições reguladas, o desenvolvimento, teste e monitoramento dos algoritmos, a terceirização e o estabelecimento de padrões éticos adequados para o uso da inteligência artificial [11].

Pela perspectiva dos reguladores prudenciais, é possível complementar esse levantamento com algumas preocupações em termos de risco sistêmico. Como exemplo, está a possibilidade de que os usos de inteligência artificial venham a motivar novas e inesperadas interconexões entre mercados e instituições (entre outros cenários, devido à exploração de dados que antes não eram relacionados); ou então que a adoção de soluções desenvolvidas por alguns poucos provedores leve ao surgimento de instituições sistemicamente importantes fora do perímetro regulatório [12].

Muitos desses aspectos podem ser tratados com base nas regulações existentes [13], enquanto outros poderão demandar alterações ao longo dos próximos anos. Portanto, é relevante que os reguladores financeiros continuem monitorando riscos que venham a se manifestar com o progressivo desenvolvimento e a adoção da inteligência artificial em suas esferas de atuação.

Este é o terceiro de uma série de artigos sobre fintechs do Observatório do Sistema Financeiro que irá consolidar as discussões do Grupo de Estudos sobre FinTechs (2021-2).

Notas e referências

[1] Uma característica marcante do paradigma digital é a primazia dos dados. Essas informações, sejam elas estruturadas ou não, são geradas pelos agentes econômicos em alto volume, velocidade e variedade.

Os dados apresentam algumas particularidades microeconômicas, que os diferenciam dos bens ou serviços mais tradicionais – até mesmo do petróleo, que é uma comparação particularmente recorrente. Em primeiro lugar, eles são não-rivais, uma vez que não existem limitações físicas para diferentes agentes possuírem uma mesma informação. Em segundo lugar, os dados são relacionais, uma vez que a possibilidade de extrair valor de uma informação está condicionada à combinação com outras.

[2] Petri (2021). Microeconomics for the Critical Mind: Mainstream and Heterodox Analyses. Zug: Springer. Ver Cap. 2, p. 119 et seq.

[3] Ver nota 1, acima.

[4] Para uma resenha e discussão sobre o papel das finanças nessa abordagem clássica, ver Dvoskin e Feldman (2019). “On the role of finance in Sraffa’s system”. Centro Sraffa Working Papers, n. 37.

[5] A questão é apresentada na 3ª aula do curso de Gary Gensler, ministrado no segundo semestre de 2020 e intitulado “FinTech: Shaping the Financial World.” As gravações das aulas estão disponíveis no seguinte endereço: https://ocw.mit.edu/courses/sloan-school-of-management/15-s08-fintech-shaping-the-financial-world-spring-2020/ (último acesso em 25/10/21).

[6] IOSCO. (2021). The use of artificial intelligence and machine learning by market intermediaries and asset managers. Disponível em: https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD684.pdf (último acesso em 26/10/21).

[7] FSB. (2017). Artificial intelligence and machine learning in financial services. Disponível em: https://www.fsb.org/2017/11/artificial-intelligence-and-machine-learning-in-financial-service/ (último acesso em 26/10/21).

[8] ANBIMA. (2020). “Consulta da IOSCO sobre o uso de Inteligência Artificial e de Aprendizado de Máquina por intermediários e gestores de recursos: Resposta da ANBIMA. Disponível em: http://54.207.18.200/data/files/0F/91/AE/81/6B1C57107CA1B9576B2BA2A8/Uso%20de%20inteligencia%20artificial%20e%20machine%20learning%20_Resposta%20a%20Consulta%20da%20Iosco_.pdf (último acesso em 27/10/21).

[9] Ver notas 6 e 7, acima.

[10] Adaptado do curso de Gary Gensler (2020). Ver nota 5, acima.

[11] Ver nota 6, acima.

[12] Ver nota 7, acima.

[13] Ver nota 8, acima.

Novas Tecnologias e as FinTechs: o que há de novo no front

Por Luiz Macahyba

Publicado em 03/11/2021

O post anterior “FinTechs: mais que um nome, um paradigma”, publicado em 21/10, sugere que as FinTechs sejam analisadas, fundamentalmente, pela ótica das tecnologias que adotam. Elas estariam na raiz de todas as potenciais transformações que esses insurgentes podem provocar no ambiente competitivo das instituições bancárias. Diga-se, inicialmente, que esta abordagem é compartilhada pela grande maioria dos especialistas que estão debruçados sobre a compreensão do fenômeno das FinTechs.

Este segundo post da série pretende, de forma complementar ao anterior, analisar como funcionam estas tecnologias e identificar suas potenciais aplicações no mundo das finanças. Antes, entretanto, duas perguntas se fazem necessárias: Afinal será que elas são novas mesmo? Configuram um paradigma tecnológico?

Freeman e Perez em artigo seminal de 1988 sugerem uma taxonomia aplicável às inovações tendo por base a intensidade com que se disseminam na economia [1]. De forma sintética, para esses autores, paradigmas tecnológicos podem ser entendidos como aquelas inovações que se difundem amplamente nos setores industriais e de serviços, com aplicações que provocam um salto significativo na produtividade dessas atividades.

Nesse contexto, as discussões acerca do impacto das novas tecnologias – Inteligência Artificial, Aprendizado de Máquina, Computação em Nuvens, entre outras – na “linha de produção” do setor financeiro precisam envolver, no mínimo, reguladores, agentes de mercado e o meio acadêmico. É evidente o fato de que cada um dos grupos citados acima tem percepções distintas entre si acerca deste fenômeno.

Por exemplo, no âmbito da Academia, um debate profundo sobre as novas tecnologias é capaz de dar origem a uma agenda ampla e diversificada de temas para monografias, dissertações e teses de mestrado e doutorado em Economia, Direito, Ciência da Computação entre outras áreas do saber. Nós do OSF esperamos que essa seja a realidade no Instituto de Economia para os próximos anos. Há um espaço quase infinito de possibilidades de pesquisa a partir das diversas linhas de abordagens teóricas que busquem explicar a relação entre inovação bancária, riscos emergentes, regulação financeira e concorrência.

Já os reguladores têm múltiplas preocupações que se intensificam à medida que esses novos entrantes ganham espaço no mercado financeiro. Estão certamente atentos à necessidade de evitar a assimetria regulatória e promover o nivelamento do campo de jogo competitivo entre os novos entrantes e as instituições bancárias tradicionais. Preocupam-se também com a emergência de novos riscos ou com a intensificação dos já existentes. Do outro lado dessa “moeda” há também o reconhecimento de que a atuação dos bancos centrais não pode representar um desestímulo à inovação.

Ao contrário, a expectativa das autoridades é a de que a regulação seja um elemento propulsor do desenvolvimento de novas formas de produzir e distribuir produtos financeiros que resultem em custos menores e serviços mais adaptados às necessidades dos clientes e possam, até mesmo, provocar algum nível de inclusão financeira. A criação dos chamados sandboxes regulatórios - ambientes experimentais em que participantes recebem autorizações temporárias e descontos regulatórios para o desenvolvimento de inovações financeiras - é uma das várias iniciativas adotadas pelos reguladores em diversas jurisdições visando reduzir os custos e os riscos associados ao desenvolvimento de novas soluções tecnológicas.

As firmas e as famílias, por sua vez, olham para as FinTechs com a expectativa de que elas possam aumentar a gama de serviços atualmente prestados pelos incumbentes, ampliando os canais de distribuição, tornando-os mais personalizados e com custos menores que os atuais. Nesse sentido, o texto para discussão "Fintechs: o que são e quais as perspectivas concorrenciais na indústria financeira brasileira" registra um primeiro esforço dos pesquisadores do OSF para identificar se a atuação das FinTechs de pagamento formalmente constituídas – ou seja, reguladas pelo Banco Central do Brasil – já foram capazes de impactar o ambiente competitivo para os cinco maiores bancos brasileiros.

Há uma vasta literatura sobre estas questões. Entretanto, este pequeno artigo se inspira em um texto produzido pelo Financial Stability Board (FSB) [2],  de onde foram retiradas as definições apresentadas a seguir. Outra fonte de consulta foram as aulas proferidas pelo professor do MIT, Gary Gensler [3], em um curso no qual são apresentadas as principais tecnologias que estão impactando a dinâmica concorrencial no setor financeiro e algumas de suas aplicações mais comuns. Gensler atualmente ocupa a função de presidente da Securities Exchange Commission (SEC) americana.

A publicação do FSB é de leitura quase obrigatória para os que querem se iniciar no mundo dessas novas tecnologias. Além de uma descrição inicial acerca do ritmo com que estão se difundindo, o relatório dispõe de um glossário com as definições apresentadas a seguir.

Inteligência Artificial (Artificial Inteligence – AI) pode ser entendida como a aplicação de ferramentas computacionais para realizar tarefas que usualmente exigem o raciocínio humano. O professor Gensler adota definição semelhante em seu curso, mas complementa o conceito sugerindo que os computadores só podem imitar ou emular (mimicking) o comportamento humano através do processamento de informações armazenadas em grandes bancos de dados. Inteligência Artificial seria, portanto, a capacidade das máquinas em estabelecer correlações e tomar decisões a partir de um volume imenso de informações que, idealmente, devem ser “limpas” antes de serem oferecidas ao processamento.  

Segundo Gensler, as primeiras aplicações utilizando o conceito de Inteligência Artificial datam dos anos 1950. Desde então o processo de difusão desta inovação para ao setor produtivo, em geral, vem sendo turbinada pelo acúmulo de informações em bancos de dados de dimensões cada vez maiores e pela expansão na capacidade das máquinas em processar essas informações. 

Outro conceito relevante é o de Big Data. Para o FSB o termo não tem uma definição precisa, mas pode ser entendido como o processo de armazenamento e análise de bancos de dados volumosos e complexos, utilizando-se inclusive, mas não somente, a Inteligência Artificial. Gensler sugere que as correlações vão ser melhor aprendidas pelas máquinas se as perguntas forem corretamente formuladas pelos programadores e se os bancos de dados estiverem adequadamente estruturados.  Especificamente no que diz respeito ao armazenamento de informações outra inovação a ser destacada é a Computação em Nuvens (Cloud Computing), ou seja, a possibilidade do uso de uma rede online de servidores de hospedagem de modo a aumentar a escala e a flexibilidade das capacidades de processamento dos equipamentos.

Já Aprendizado de Máquina (Machine Learning) pode ser entendido como um sub-conceito de Inteligência Artificial. A medida em que os dados vão sendo inseridos, os computadores se adaptam, ou melhor, aprendem com as novas informações. Novos padrões de comportamento são identificados com base na “experiência adquirida” pela máquina. Assim, outras camadas de correlações vão se superpondo o que leva a um processo dinâmico de aperfeiçoamento das hierarquias de decisão. As primeiras aplicações com essas características remetem à década de 1980.

Aprendizado Profundo (Deep Learning) é também um sub-conceito de Inteligência Artificial. Neste caso, os algoritmos usam as chamadas redes neurais artificiais que simulam o funcionamento do cérebro humano, sobretudo sua capacidade cognitiva.  Associado a este conceito está o chamado Processamento de Linguagem Natural (Natural Language Processing). Esta tecnologia resulta da combinação entre os princípios da Inteligência Artificial e da Computação Linguística permitindo as máquinas entender as linguagens humanas e interagir com os indivíduos. Robôs que interagem com usuários e os equipamentos que reconhecem gestos e expressões faciais são dois exemplos que estão se tornando cada vez mais comuns em diversas atividades de prestação de serviços.

A difusão destas tecnologias no mercado financeiro parece configurar uma trajetória sem volta.  Aquelas instituições que não aderirem a essas inovações estariam fadadas a desaparecer pressionadas pelas firmas disruptivas. São eles as FinTechs e BigTechs que, nesse ecossistema, apresentariam um conjunto de vantagens competitivas resultantes da inexistência de sistemas legados e, no caso das BigTechs, da disponibilidade de bancos de dados gigantescos com informações originadas em outras áreas de negócio dessas empresas.

O próximo post apresentará em detalhes como essas tecnologias estão sendo aplicadas tanto pelas firmas disruptivas quanto pelas instituições incumbentes. Ainda assim, dando um spoiler do que vem pela frente, vale a pena compartilhar dois exemplos interessantes que dão uma pequena indicação de quão vasta é a aplicabilidade desses novos instrumentos.

Um dos usos mais frequentes das novas tecnologias ocorre na avaliação do risco de crédito dos tomadores em operações de financiamento. O uso de inteligência artificial na análise das operações de financiamento a carros usados no EUA reduziu em mais de 30% o nível de inadimplência. Interessante notar que os algoritmos identificaram que o risco de um devedor não honrar seu empréstimo estava diretamente atrelado ao número de vezes em que o candidato ao crédito acessava sites de empresas que revendiam pneus recauchutados. Este caso gerou, inclusive, um debate sobre a possibilidade de as máquinas adotarem decisões viesadas e possivelmente preconceituosas. Os indivíduos que optavam por comprar pneus reciclados por questões de meio ambiente foram discriminados no fornecimento de crédito, sem que ficasse comprovada qualquer relação entre esse grupo e o risco de inadimplência.

Outro exemplo refere-se à estratégia da BlackRock, maior empresa de gestão de recursos do mundo, em utilizar o Processamento de Linguagem Natural para avaliar as informações disponibilizadas pelas empresas quando anunciam seus resultados periódicos e com base nessas informações tomar decisões de alocação. A gestora desenvolveu uma série de algoritmos que “leem” os relatórios periódicos produzidos pelas empresas, “ouvem” as entrevistas concedidas por seus executivos, “vasculham” as repercussões em jornais especializados e ainda “analisam” os resultados contábeis produzindo ao final recomendações de compra ou de venda de posições para cada uma delas.

Os resultados em termos de rentabilidade das carteiras têm sido bastante positivos. Quem certamente não deve estar gostando do desenvolvimento de aplicações com este perfil são os analistas de investimentos, profissionais que por anos acompanham a trajetória de empresas ou setores econômicos e que estão sendo substituídos pelas opiniões formuladas pelos algoritmos. Os defensores das máquinas alegam que as decisões tomadas por elas em relação às empresas são comparáveis entre si na medida em que seguem padrões e causalidades que são extraídos racionalmente daquelas informações. Portanto não estão “impregnadas” das subjetividades e das emoções que afetam as decisões dos seres humanos.

Nesse sentido há um caso que ficou bastante conhecido no mercado brasileiro e que envolveu uma das primeiras gestoras de fundos a adotar esses mecanismos de tomada de decisão.  Um dos principais argumento de marketing desta casa era o de que seus algoritmos haviam sido desenvolvidos para impedir a atuação humana enquanto o computador estivesse operando.  Segundo seu executivo, as máquinas eram capazes de tomar decisões mais corretas porque “não se emocionavam”. O acirramento da volatilidade dos preços das ações em função da emergência de uma crise de grandes proporções ocorrida alguns meses depois do início do funcionamento desta gestora foi suficiente para comprovar que os algoritmos não estavam preparados para lidar com a turbulência. Em pouco tempo ela teve que fechar suas portas.

O próximo post explorará os efeitos dessas aplicações no setor financeiro, que se evidencia em áreas como Seguros, Combate a Fraudes, Prevenção ao Financiamento ao Terrorismo, Gestão de Riscos, Operações de Compra e Venda de Ativos, Relacionamento com Clientes e Aconselhamento a Investidores. Não há mais qualquer área de negócios das instituições tradicionais em que essas tecnologias não estejam presentes. Como mencionado anteriormente, esse é um dos principais atributos que caracteriza um novo paradigma tecnológico, o que reforça a ideia de entendermos as FinTechs “não para designar genericamente firmas ou inovações financeiras. Mas sim para designar um paradigma, o paradigma FinTech, oriundo da quinta revolução tecnológica, onde as finanças são digitais e as inovações multiplicam seus impactos nas economias e na sociedade, mudando a regulação e os sistemas financeiros como os conhecemos” [4].

Este é o segundo de uma série de artigos sobre fintechs do Observatório do Sistema Financeiro que irá consolidar as discussões do Grupo de Estudos sobre FinTechs (2021-2).

Notas e referências

[1] In: Dosi et al. Technical Change and Economic Theory. London: Pinter Publishers, p. 38-66, 1988.

[2] Financial Stability Board. Artificial intelligence and machine learning in financial services. Basel: FSB, 2017. Disponível em:

https://www.fsb.org/2017/11/artificial-intelligence-and-machine-learning-in-financial-service/ 

[3] Disponível em: https://ocw.mit.edu/courses/sloan-school-of-management/15-s08-fintech-shaping-the-financial-world-spring-2020/intro-and-key-trends/ 

[4] Martins, N. M. Fintechs: Mais que um nome, um paradigma. Blog OSF, 21 out. 2021. Disponível em: https://sites.google.com/view/osfufrj/blog#h.9z0ikc175qvk

FinTechs: mais que um nome, um paradigma

Por Norberto Montani Martins

Publicado em 21/10/2021

Bancos digitais, neobancos, bancos insurgentes (challenger banks), fintechs. O léxico do sistema financeiro ganhou nos últimos anos um sem número de novas expressões para dar conta do novo ecossistema em que as empresas financeiras e os clientes operam.

Há, de fato, novos participantes e startups. Mas também há participantes nem tão novos, que se vendem sob um novo formato, ao menos em teoria, alinhado às novas tendências e inovações tecnológicas mais recentes.

O termo fintechs vem sendo usado com várias acepções. Por vezes designa as empresas que adotam novas soluções tecnológicas para prestar serviços financeiros, funcionando como um termo guarda-chuva para designar startups e entrantes nesse mercado.

O Banco Central do Brasil adota um conceito alinhado a este sentido: “​Fintechs são empresas que introduzem inovações nos mercados financeiros por meio do uso intenso de tecnologia, com potencial para criar novos modelos de negócios. Atuam por meio de plataformas online e oferecem serviços digitais inovadores relacionados ao setor” [1].

É também este o sentido adotado pelo Instituto Propague, um think thank brasileiro especializado em sistema financeiro: fintechs são “startups do mercado financeiro que revolucionaram o setor por meio da aplicação de novas tecnologias” [2].

Outras vezes as fintechs se referem às inovações financeiras em si, sem diferenciar qual firma realiza a inovação – se um banco já estabelecido, se uma nova firma ou se uma gigante do setor tecnológico (BigTech) avançando sobre o reino dos serviços financeiros e de pagamentos.

O Financial Stability Board adota uma concepção alinhada a esse sentido: o termo FinTech, com T maiúsculo, diz respeito à “inovação tecnológica em serviços financeiros que pode resultar em novas aplicações ou novos modelos de negócios, processos ou produtos com efeito material sobre a prestação de serviços financeiros” [3].

Seja qual for a designação adotada, é preciso reconhecer que tecnologia e sistema financeiro são dois termos indissociáveis. Desde a invenção da escrita para fins contábeis, expressa nas Tábuas de Uruk da Mesopotâmia, ou à invenção do ábaco, é possível associar as duas coisas [4].

Com o passar dos séculos e a evolução das comunicações, esse entrelaçamento fica cada vez mais claro, com o telégrafo, o telefone e a Internet como alguns exemplos centrais. Todas essas novas tecnologias implicaram mudanças e inovações no reino dos serviços financeiros.

Portanto, se adotado no sentido de inovação tecno-financeira, as fintechs não parecem trazer algo de realmente novo além do nome. Ao mesmo tempo, ao analisarmos os sistemas financeiros contemporâneos é difícil dizer que não há algo novo no ar. Como então tratar as mudanças pelas quais estamos passando?

O que vivemos nos últimos anos nas finanças pode ser associado a uma quinta revolução tecnológica, que marca a era da informação e das comunicações e tem seu big-bang com a criação dos microprocessadores Intel na Califórnia, Estados Unidos [5].

Uma revolução tecnológica pode ser definida como “um conjunto de avanços radicais inter-relacionados, formando uma grande constelação de tecnologias interdependentes; um agrupamento de agrupamentos ou um sistema de sistemas” [6].

Ela pode ser vista como uma grande transformação do potencial de criação de riqueza numa economia, abrindo “um vasto espaço de oportunidades de inovação e fornecendo um novo conjunto de tecnologias genéricas associadas, infraestruturas e princípios organizacionais” [7].

Cada revolução abre espaço para a emergência de um paradigma tecno-econômico, que se articula a partir do uso e da difusão de novas tecnologias, que multiplicam seu impacto nas economias e na sociedade, modificando as estruturas institucionais, inclusive, como se organizam os próprios mercados.

No caso dos sistemas financeiros, as mudanças trazidas pela quinta revolução tecnológica levaram a uma longa transição do analógico para o digital, acelerada nos últimos anos pelos avanços na capacidade de processamento e armazenamento de dados e na inteligência artificial.

O que vivenciamos recentemente foi a consolidação desse novo paradigma, que irá enterrar o sistema financeiro de “tijolo e cimento” que prevaleceu durante séculos e séculos, em favor da integral digitalização dos serviços e das práticas vinculadas às finanças.

O novo paradigma implica necessariamente mudanças nas próprias instituições, o que se reflete, por exemplo, em diversas mudanças regulatórias que buscam abrir espaço para introdução de inovações, como no caso do open banking, ou sistema financeiro aberto, que poderá mudar radicalmente a forma de relacionamento entre clientes e instituições financeiras.

Falando em regulação, é digno de nota também o uso por novos players dos termos que mencionamos no início do artigo: bancos digitais, neobancos e bancos insurgentes (challenger banks). Originalmente, essas designações têm fins meramente mercadológicos, buscando atrair a clientela das instituições financeiras incumbentes.

Porém, abrem espaço para uma importante discussão regulatória relativa ao licenciamento de instituições financeiras e à forma que a regulação tomará nesse novo ecossistema: ela se manterá focada nas instituições ou passará cada vez mais a tratar das atividades desempenhadas pelas firmas?

À guisa de síntese, sugiro que passemos a usar fintechs não para designar genericamente firmas ou inovações financeiras. Mas sim para designar um paradigma, o paradigma FinTech, oriundo da quinta revolução tecnológica, onde as finanças são digitais e as inovações multiplicam seus impactos nas economias e na sociedade, mudando a regulação e os sistemas financeiros como os conhecemos.

Este é o primeiro de uma série de artigos sobre fintechs do Observatório do Sistema Financeiro que irá consolidar as discussões do Grupo de Estudos sobre FinTechs (2021-2).

Notas e referências

[1] BCB. Fintechs. Hotsite do Banco Central do Brasil, 2021. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs.

[2] https://institutopropague.org/cursos/fintechs-como-surgiram-e-futuro-online/.

[3] FSB. FinTech and market structure in financial services: Market developments and potential financial stability implications. Financial Stability Board, fev. 2019.

[4] Arner, D. W.; Barberis, J. N.; Buckley, R. P. The Evolution of Fintech: A New Post-Crisis Paradigm? UNSW Law Research Paper No. 2016-62, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2676553.

[5] Perez, C. Technological revolutions and techno-economic paradigms. Cambridge Journal of Economics Vol. 34, No. 1, p. 185-202, 2010. DOI: https://doi.org/10.1093/cje/bep051.

[6] Perez, 2010, p. 189, op cit.

[7] Perez, 2010, p. 190, op cit.

Colocando o sistema financeiro no centro do debate

Por Luiz Macahyba e Norberto Martins

Publicado em 11/06/2021

Esse post é um pouco diferente daqueles que normalmente publicamos por aqui. Ele não tem como objetivo registrar alguma opinião ou resenhar alguma discussão importante vinculada aos sistemas financeiros. Seu propósito é dividir algumas percepções sobre a experiência que tivemos na “primeira temporada” do Sistema Financeiro Em Debate (SFED), isto é, nas dez entrevistas ou mesas redondas que realizamos ao longo do primeiro semestre de 2021.

O SFED foi uma ideia que nasceu sob encomenda de dois colegas, Ronaldo Bicalho e Eduardo Costa Pinto, responsáveis por pensar o Canal no YouTube do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com as medidas de isolamento social decorrentes da pandemia de covid-19, as universidades passaram a buscar novas formas de levar à sociedade o conhecimento ali produzido. 

Nossa premissa ao montar o programa foi combinar discussões acadêmicas, associadas à pesquisa realizada dentro dos “muros” da universidade, com discussões práticas, do mundo real. Para tentar sair da linguagem hermética das produções acadêmicas, o debate das pesquisas foi pensado sob a forma de mesas redondas mais informais. Já para trazer as experiências do mundo real, pensamos em entrevistas com pessoas que ocupam ou ocuparam posições de destaque, como a presidência ou diretoria de instituições importantes seja no setor privado (e.g. Anbima), seja no setor público (e.g. Banco Central do Brasil ou BNDES).

Nosso desafio envolveu também uma preocupação de linguagem e comunicação, já que falar sobre sistema financeiro não é uma tarefa simples. No caso do Macahyba, são trinta anos de experiência em associações de classe do mercado financeiro e agora mais alguns de academia. No caso do Norberto, são quase quinze anos de pesquisa na área, além de um período no setor privado. Falar sobre o sistema financeiro faz parte do nosso cotidiano. Mas e para os outros?

É difícil responder à pergunta: Qual interesse a sociedade – não a academia – tem no sistema financeiro? Hoje multiplicam-se conteúdos sobre educação financeira e orientações de investimento, mas será que são só esses os temas relevantes? Cada vez mais, os sistemas financeiros integram nossas vidas, para o bem ou para o mal. Pensamos, assim, que é fundamental entender como eles funcionam, como eles vêm se modificando e como podemos nos relacionar com eles.

Nos termos em que colocamos, esse argumento soa um pouco abstrato. Mas quem nunca fez um Pix? Quem nunca precisou usar um cartão de crédito ou tomar um empréstimo para realizar uma compra? Quem nunca se irritou com uma cobrança indevida de alguma taxa na conta bancária? Enfim, ainda que no Brasil tenhamos uma parcela grande da população marginalizada em relação aos bancos tradicionais, as tecnologias financeiras cada vez mais vêm ganhando terreno.

Selecionamos para a primeira temporada temas que consideramos chave para o propósito que delineamos acima. Abrimos nossos debates recapitulando o que aconteceu de mais importante em 2020, o ano em que a pandemia de covid-19 se abateu sobre nós, mudando para sempre nossas vidas. Discutimos a dívida pública, a influência do tão famoso “mercado financeiro” e as perspectivas para a economia brasileira. Falamos sobre quem ganhou – não só os bancos, mas quem detinha ativos financeiros – e quem perdeu com a pandemia – os mais vulneráveis, além das famílias dos quase 500 mil mortos por covid-19. Discutimos o endividamento das famílias no Brasil, que ganhou proporções inéditas no atual contexto de desemprego e baixo crescimento da renda.

Discutimos como podemos financiar os investimentos tão necessários à economia brasileira e qual o papel do Estado nesse processo. Depois, tratamos das novas possibilidades para que empresas captem recursos por meio do mercado de capitais. Falamos sobre o dólar e as novas regras do mercado de câmbio, pensando na inserção internacional brasileira e como isso afeta as nossas possibilidades de desenvolvimento econômico.

Discutimos as novas tecnologias financeiras e como elas podem modificar nossas relações com os bancos ou a forma pela qual realizamos pagamentos e lidamos com o nosso dinheiro. Debatemos as criptomoedas e as moedas digitais dos bancos centrais, pensando como elas podem afetar nossas vidas. E, enfim, debatemos como o sistema financeiro vem lidando com a crise climática e quais iniciativas vêm sendo desenvolvidas para permitir que transitemos para uma economia de baixo carbono.

Em mais de 800 minutos falamos disso tudo. Trouxemos diferentes pontos de vista, diferentes vivências para sentar conosco à mesa para que pudéssemos ouvir e aprender. Enfim, gerar conhecimento. Temos uma dívida com Gabriel Porto, Ernani Torres, Ilan Goldfajn, Denise Gentil, Paula Sarno, Luciano Coutinho, Luiz Fernando de Paula, Bianca Orsi, Antônio Carlos Berwanger, Denise Pavarina, Daniel Kosinski e André Lara Resende, que tornaram possível esses debates. Também com Guilherme Aguiar e Camila Oliveira que estiveram por trás da infraestrutura necessária à realização do programa, bem como à direção do IE/UFRJ que apoiou a ideia desde o início.

Convidamos todos a navegar por esses temas conosco, revendo, compartilhando e refletindo sobre como os sistemas financeiros funcionam e como afetam nossas vidas. Nossa ideia foi colocar o sistema financeiro no centro do debate. Esperamos ter dado um passo nessa direção. E que venha a segunda temporada.

A lista completa com todos os 10 programas realizados até aqui está disponível no seguinte link: https://youtube.com/playlist?list=PLy12TFllaU67iCkv0n-A17MehmPPWz49N. Você também pode acessá-los aqui na página do OSF.

Critérios ambientais, sociais e de governança (ASG): origens, evolução e centralidade

Por Michelle Godoy

Publicado em 17/05/2021

A sigla ASG apareceu pela primeira vez no relatório Who Cares Wins, publicado pelas Organizações das Nações Unidas em 2005. Desde então, ela vem ganhando relevância nos sistemas financeiros e atualmente já não é possível discutir o futuro desses sistemas ignorando a questão. Nesse artigo, discutimos brevemente os aspectos que contribuíram para o surgimento do ASG e o entendimento acerca de seus três critérios: ambiental, social e de governança.

Um pouco da história dos critérios ASG

Nosso ponto de partida é tentar resgatar historicamente como a emergência climática e as questões correlatas ao aspecto social e de governança tornaram-se pontos fundamentais na sociedade e como tornou-se urgente considerar esses aspectos, por exemplo, nas decisões de investimento ou nas estratégias das empresas. 

Ao final do Século XX, ocorreu uma intensificação de pautas referentes às emergências climáticas e sociais no mundo. Houve uma clara sinalização da urgência em convergir o desenvolvimento socioeconômico com pautas ambientais.

Durante a Conferência Rio-92, evento realizado para debater o desenvolvimento sustentável, os principais líderes mundiais reconheceram a responsabilidade de desenvolver estratégias para mitigar os impactos ambientais enfrentados.

A partir da relevância dos temas apresentados e do ambiente político favorável, ocorreu um aumento substancial de medidas que visaram incorporar esses fatores nos diversos atores da sociedade por meio de iniciativas.

O Pacto Global das Organizações das Nações Unidas (ONU) foi um marco para o desenvolvimento dos fatores ASG. Em 2000, o então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, realizou uma chamada para as empresas alinharem suas estratégias aos Princípios Universais derivados da Declaração Universal de Direitos Humanos, aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho, à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Portanto, promovia-se diretrizes com o intuito de alinhar crescimento e sustentabilidade. 

Em 2004, Kofi Annan enviou uma carta a mais de 50 presidentes de instituições financeiras ao redor do mundo, convidando-os a colaborar na integração dos fatores ASG ao mercado de capitais. Esse apoio foi determinante para o desenvolvimento do relatório chamado Who Cares Wins, lançado em 2005, desenvolvido com apoio do International Finance Corporation (IFC) e do governo Suíço.

O relatório introduz uma série de recomendações destinada a diferentes setores do mercado de capitais em relação ao entendimento e integração dos fatores ASG na tomada de decisão de investimentos, também destacando a relevância dessas medidas para a mitigação de riscos.

Esse esforço visou definir de forma mais concisa a sigla ASG de modo a torna-la aplicável aos principais atores do mercado de capitais e apresentou estratégias, ferramentas e serviços para essa incorporação, com o objetivo de promover negócios mais sustentáveis e melhores resultados para a sociedade.

Por meio da United Nations Environment Programme Finance Initiative (UNEP FI), foi lançada em 2005 outra iniciativa de destaque na consolidação do ASG, o relatório "A legal framework for the integration of environmental, social and governance issues into institutional investment".

Esse relatório contribuiu para integrar os fatores ASG na análise do desempenho financeiro dos ativos, onde destacavam-se as evidências que correlacionavam positivamente o desempenho econômico dos ativos e a adoção dos critérios ASG na análise de investimentos.

Em seguida vieram os Princípios para Investimento Responsável (PRI). O relatório, publicado em 2006, tinha como escopo a divulgação de princípios de investimento para oferecer diretrizes para incorporação de fatores ambientais, sociais e de governança à prática de investimento.

A iniciativa apoia-se em seis princípios: (1) a incorporação de critérios ASG na análise de investimento; (2) investidores atuantes – em especial, investidores institucionais – incorporarem critérios ASG em suas políticas de investimento; (3) a divulgação de ações ligadas ao tema; (4) a promoção e implementação dos Princípios no setor de investimentos; (5) a eficácia na implementação; e (6) as atividades relativas ao progresso da implementação.

O PRI expandiu-se de forma significativa desde então. Em 2020, havia 3.038 signatários, com ativos sob gestão que chegam a US$ 103,4 trilhões.

Portanto, a partir das iniciativas realizadas durante toda a primeira década do século XXI, provocou-se um aumento expressivo no engajamento da incorporação dos fatores ASG pelos diversos atores do mercado financeiro. 

O que se constata é uma relação mútua entre o mercado e as Companhias, na medida em que se tem uma relevância dos temas nas estratégias de investimentos, ocorrendo uma implicação na realização de divulgação de informações pertinentes ao ASG pelas Empresas.

Este notório engajamento pode ser exemplificado pelas ações mais recentes adotadas pela BlackRock. A maior gestora de recursos do mundo anunciou que irá zerar os portfólios ativos de grupos em que mais de 25% das receitas proveem da produção de carvão térmico e cita a sustentabilidade como centro de suas estratégias de investimentos. 

Em linha com a decisão da gestora, o maior Fundo do mundo, o Fundo Soberano da Noruega, com sede em Oslo, decidiu excluir de seu portfólio empresas que não sigam critérios ASG. Interessante notar que dentre as empresas que tiveram suas ações excluídas do portfólio estão as brasileiras Eletrobrás e Vale, que tiveram seus papéis excluídos devido, respectivamente, a violações graves de direitos humanos e o rompimento da barragem em Brumadinho.

Critérios ASG e parâmetros de referência

Como já mencionamos anteriormente, o termo ASG aparece pela primeira vez no relatório Who Cares Wins, da ONU. Segundo o Pacto Global (2004), “O ASG é um indicador que avalia as operações das principais empresas conforme os seus impactos em três eixos da sustentabilidade – o Meio Ambiente, o Social e a Governança. A medida oferece mais transparência aos investidores sobre as empresas nas quais eles estão investindo”. 

Para efetivamente incorporar os fatores ASG aos investimentos, é fundamental estabelecer os parâmetros que devem ser considerados na análise. O relatório The Global Sustainable Investment Alliance (GSIA) é um importante guia para a classificação do investimento sustentável. Há sete diferentes categorias a serem levadas em consideração: filtro negativo, filtro positivo, best in class, a integração ASG, os investimentos sustentáveis, os investimentos de impacto/comunitários e o engajamento corporativo/ações de acionistas.

O filtro negativo baseia-se na exclusão de setores, empresas e práticas baseados nos critérios ASG, impactando diretamente na escolha de decisão de administradores e gestores para fundos e portfólios. Este desinvestimento ocorre principalmente em setores que não cumprem requisitos mínimos alinhados aos valores dos investidores e potencialmente contemplam alto risco ambiental e/ou social como armas, tabaco, energia nuclear, pornografia, apostas e bebidas alcoólicas.

Já o filtro positivo converge para a inclusão de empresas que promovem externalidades sociais ou ambientais positivas e, portanto, atendem aos critérios e normas estabelecidas. Exemplos seriam os setores de energia eólica e solar, dentre outros.

Outro modelo largamente seguido é o best in class, que realiza uma classificação que seleciona setores ou empresas com base em seu desempenho positivo em relação aos seus pares e, a partir desta análise, define os melhores para o recebimento do investimento.

Há também o modelo chamado integração ASG, que incorpora os fatores ambientais, sociais e de governança na análise financeira da empresa. Esta estratégia tem como objetivo determinar o impacto dos valores integrados a longo prazo.

Além disso, temos o modelo de investimentos sustentáveis, que está ligado a investimentos específicos de sustentabilidade como energia limpa, tecnologia ou agricultura sustentável, e o de impacto/comunitários que direciona para a solução de problemas sociais e ambientais para indivíduos ou comunidades subatendidas.

Por fim, existe o engajamento corporativo, no qual prevê-se o alcance de uma participação acionária relevante, de modo que os acionistas detenham poder suficiente para influenciar favoravelmente a adoção de políticas ASG nas empresas. 

Todas essas iniciativas concorrem para que os critérios ASG sejam incorporados a uma agenda mais ampla de desenvolvimento para toda a sociedade. Essa agenda necessariamente passa por uma maior sustentabilidade ambiental, social e de governança, que se tornou ainda mais relevante no atual contexto da pandemia da covid-19. Não basta discutir a recuperação das economias. É preciso discutir em que termos essa recuperação deverá se dar e qual papel o sistema financeiro desempenhará. Sem dúvida, não será possível pensá-la sem levar em conta essas três letras: ASG.

Integrando sustentabilidade aos fundos de investimento

Por Gabriela Goulart e Gabriel Porto*

Publicado em 10/05/2021

A transição para modelos de desenvolvimento sustentável é um desafio global, cuja emergência foi reforçada durante a pandemia da covid-19. Esse processo, contudo, é extremamente complexo e exige a coordenação entre diferentes geografias, setores políticos e áreas do conhecimento humano.

No campo da ciência econômica, é evidente que os sistemas financeiros – incluindo aí os mercados de capitais – têm um papel essencial para desempenhar. Afinal, ao conceder crédito, originar ativos e gerenciar riquezas, esses sistemas têm a capacidade de determinar quais investimentos prosperam ou não.

Há atualmente uma crescente demanda por investimentos sustentáveis, que tenham o duplo objetivo de proporcionar retornos financeiros e ganhos ambientais, sociais e de governança (ASG). Cabe ressaltar que ainda não está claro se esses investimentos geram maior retorno financeiro [1], mas é indubitável que questões relacionadas à sustentabilidade podem representar riscos materiais ao desempenho das empresas.

As emissões de instrumentos para investimentos sustentáveis também se elevaram, atingindo volumes entre US$ 30 a 80 trilhões em 2018, a depender do tipo de definição utilizado [2]. Ao mesmo tempo, mais gestoras estão criando fundos com foco em sustentabilidade e estão buscando integrar questões ASG em seus processos de análise e seleção de investimentos [3].

Diversas iniciativas internacionais e locais têm sido desenvolvidas, buscando auxiliar a implementação de acordos internacionais ligados à sustentabilidade e atender à necessidade premente de criação de referências comuns para conceituar, mensurar, informar e integrar fatores e riscos ASG.

Uma breve análise das medidas tomadas até o momento revela que algumas definições já foram alcançadas, porém ainda é preciso avançar muito. Mesmo com relação aos pontos em que já se observam avanços nas definições e recomendações, ainda não se identifica um consenso entre as diferentes entidades, principalmente no que se refere a uma sistematização das estratégias ou metodologias para integração ASG na análise e seleção e ativos.

Nos EUA, por exemplo, a Securities and Exchange Commission editou, em março de 2020, uma consulta sobre como fundos de investimento podem incorporar referências ASG em sua denominação (“rule 35d-1” ou “Names Rule” [4]). A regra, em geral, requer que 80% dos ativos de um fundo sejam consistentes com certos atributos trazidos em seu nome, de forma que a nomenclatura seja atestada.

Atualmente, aspectos ASG seriam considerados como estratégias de investimento e não necessariamente como características dos ativos investidos pelos fundos. Desse modo, a restrição de 80% do portfólio em geral não se aplicaria.

Visando rever essa determinação e sobretudo partindo da concepção de que o nome do fundo é uma fonte de comunicação importante para o investidor e passível de influenciar sua decisão, a SEC questiona se a regra também deve ser aplicada aos critérios ASG [5]. Há uma expectativa de que o resultado dessa consulta seja publicado ainda neste primeiro semestre de 2021.

Na União Europeia, o estabelecimento de um arcabouço para incorporação das questões ASG tem evoluído de forma mais consistente, tornando a região e seus países uma referência com relação ao tema. Em 2018, a Comissão Europeia anunciou um pacote de medidas por meio do plano de ação de finanças sustentáveis [6]. O plano traz 10 ações e sua iniciativa número 7 está justamente voltada ao estabelecimento de deveres aos investidores institucionais e dos gestores de ativos em relação à sustentabilidade. 

Em dezembro de 2019, foi publicado o Regulation on sustainability-related disclosures in the financial services sector (SFRD - Regulamento EU 2019/2088 [7]).   O regulamento, que entrou em vigor agora em março de 2021, estabelece requisitos de transparência e divulgação de informações para os participantes do mercado financeiro, como gestores de ativos, e consultores financeiros. São requeridas informações nos níveis das entidades, dos serviços e produtos e relacionadas à integração dos riscos ASG, impactos adversos de sustentabilidade e promoção de características ou objetivos ASG.

Mais recentemente, em fevereiro de 2021, as autoridades europeias de supervisão dos mercados financeiro, de seguros e de previdência e de valores mobiliários (respectivamente EBA, EIOPA e ESMA) [8] encaminharam à Comissão Europeia um relatório final com proposta de regulação de padrões técnicos relacionados a esse regulamento, com maior detalhamento do conteúdo, metodologia e apresentação das divulgações [9].

Destaca-se que, a nível das entidades, os principais impactos adversos em sustentabilidade das decisões de investimento devem ser divulgados nos respectivos sites. Já no tocante aos produtos financeiros, foram determinadas diretrizes para divulgação das características ou dos objetivos sustentáveis a serem dispostas nas informações pré-contratuais, em relatórios periódicos e no site. Além disso, devem ser detalhadas informações referentes a “não causar danos” à sustentabilidade. Espera-se que a Comissão aprove a proposta nos próximos três meses, com o início de sua vigência previsto para 2022.

Junto ao caso europeu, também vale apontar a experiência de selos com o objetivo de atestar fundos com relação ao seu tratamento das questões de sustentabilidade [10]. Como aponta um estudo da Anbima [11], selos em geral abordam aspectos ASG ou são mais focados em questões ambientais. Estes selos podem ser ligados à iniciativa privada ou pública, a depender da jurisdição onde foram constituídos. Com relação aos critérios para avaliação de fundo, os selos observam em geral processos para integração ASG e análise de portfólios, mas as definições de limites variam entre os selos.

No Reino Unido, é possível destacar a iniciativa prevista para classificação e padronização de fundos ASG, que será finalizada até março de 2022. Essa ação está sendo conduzida pelo governo do Reino Unido, a City of London e a British Standards Institution. O processo tem como objetivo criar uma referência global de classificação do que é um fundo ASG e aplicável aos diferentes tipos (como equities, fixed income, private equity, venture capital, hedge funds, entre outros). A ideia é que os países membros da International Organization for Standardization (ISO) adotem o arcabouço que resultar deste processo.

A iniciativa corresponde à terceira fase do Sustainable Finance Standardization Programme, programa com duração de 5 anos apoiado pelo governo britânico. Dentro dessa ação já foram desenvolvidos um arcabouço para implementação de princípios de finanças sustentáveis pelas instituições financeiras (PAS 7340 [12]) e um conjunto de requisitos para apoiar a incorporação ASG pelas gestoras de ativos (PAS 7341 [13]).

No Brasil, as iniciativas nessa área ganharam fôlego nos últimos anos [14]. Em 2020, foram anunciadas novas intenções de contornos regulatórios sobre o tema. A inclusão da dimensão de sustentabilidade no planejamento estratégico do Banco Central (Agenda BC#), que trouxe iniciativas de política, supervisão e regulação, é um destaque importante [15]. Sendo, nesse contexto, já foram publicadas duas consultas públicas [16]. A primeira, atualmente encerrada, sobre critérios de sustentabilidade nas operações de crédito rural (CP 82/2021). A segunda, com prazo até junho, busca aprimorar as regras de gerenciamento do risco social, ambiental e climático aplicáveis às IFs, bem como dos requisitos a serem observados no estabelecimento da Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC) (CP 85/2021).

Os editais de audiência pública da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foram outros marcos na área, que buscam ampliar a divulgação de questões de sustentabilidade no formulário de referência das companhias (AP 09/20) e instaurar a possibilidade de rotulagem socioambiental junto aos fundos de direitos creditórios (AP 08/20).

A agenda ASG teve espaço de destaque na audiência entre as demais propostas de modernização da regulação aplicável aos fundos de investimento [17]. Foram apresentados aprimoramentos de governança, por meio de comunicações eletrônicas e assembleias virtuais. Além disso, foi também proposta a já mencionada possibilidade de rotulagem de um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) como “Socioambiental”.  A denominação como “socioambiental” será destinada às classes de cotas de FIDC que invistam preponderantemente em direitos creditórios que gerem benefícios socioambientais. A originação de benefícios socioambientais deve ser verificada por meio de relatório de segunda opinião ou certificação de padrões com metodologias reconhecidas internacionalmente. Por fim, é prevista a denominação como socioambiental também a um fundo de investimento constituído para comprar cotas do FIDC que siga tais requerimentos.

A CVM destaca como motivador da proposta que o mercado brasileiro deve ser competitivo na atração de capitais voltados à economia sustentável e de baixo carbono. E desta forma, espera-se que gestores de FIDC socioambientais incentivem originadores de direitos creditórios a desenvolver projetos que gerem benefício socioambiental. É possível que essa iniciativa também aqueça a oferta de ativos “verdes”, fortalecendo o desenvolvimento desse segmento no mercado brasileiro.

A intenção da CVM é mais do que pertinente e bem-vinda. Corroborando as motivações trazidas pela Autarquia, entende-se que a incorporação das questões ASG junto ao buy side representa um importante passo na internalização do risco ASG aos mercados financeiro e de capitais e uma significativa fonte impulsionadora para a incorporação das questões de sustentabilidade também pelo sell side. Em termos gerais, avanços desta natureza no mercado de capitais podem impactar, por exemplo, a transição energética de baixo carbono, ao influenciar as formas de financiamento disponíveis para o setor de energia [18].

Uma maior definição regulatória contribui para um direcionamento importante das práticas, mitigando também riscos de greenwashing (fornecimento de informações indevidas ou impressões falsas relativas à sustentabilidade), relevante preocupação frente ao cenário de proliferação de fundos autodenominados como ASG. Desta forma, atende também ao mandato da autarquia de proteção ao investidor.

O prazo para considerações sobre o tema já foi encerrado. Entretanto, a proposta colocada permite alguns questionamentos sobre seus possíveis limites e o que pode ser feito além.

As estratégias adotadas em uma jurisdição podem ser classificadas de acordo com onde elas estão em relação a dois extremos: de um lado, a suposição que o mercado irá se adaptar livremente para tratar dos elementos ASG, com base nas regras existentes (como tem se mostrado o caso norte-americano); e, do outro, a noção que as autoridades precisam constituir um arcabouço regulatório condizente com os objetivos de desenvolvimento sustentável (caso europeu). Até o momento, as abordagens mais próximas desse segundo caso têm sido preferidas pelas jurisdições que buscam ganhar espaço na competição internacional pelos investidores preocupados com a sustentabilidade de seus investimentos. 

Com base nessa classificação, a estratégia adotada no Brasil estaria em algum lugar no meio do caminho entre esses dois extremos encontrados no exterior. Por um lado, a proposta de FIDC socioambiental constitui uma determinação inovadora do regulador, para fomentar o desenvolvimento do mercado local; por outro, é aplicável para um único produto, isolando seus efeitos do restante da indústria.

Então, por que não avançar nas formas de incorporação de questões ASG e na modernização das obrigações aplicáveis às atividades reguladas, como a administração de recursos de terceiros e a distribuição de valores mobiliários, estabelecendo princípios para atuação de modo alinhado aos critérios de sustentabilidade? Como evidenciado acima, estratégias como esta já vêm sendo implementadas em algumas jurisdições. Ademais, a regulação prudencial vem avançando nesse mesmo sentido, para que os riscos socioambientais sejam gerenciados pelas instituições financeiras, assim como já fazem com os riscos mais tradicionais.

Os exemplos das outras jurisdições evidenciam um aspecto que parece essencial para o sucesso de medidas como essa: os poderes executivo e legislativo precisam definir políticas públicas e diretrizes legais adequadas para que os reguladores possam avançar com maior ímpeto nas ações dentro do seu perímetro de atuação. Bem entendido, não se trata de uma definição binária, sobre ser “contra” ou “a favor” da promoção dos objetivos de desenvolvimento sustentável; mas consiste na determinação das estratégias para tratar desses temas, na medida que eles se relacionam – mas não se restringem – aos mandatos conferidos para cada regulador.

Trazer uma proposta específica sobre FIDC socioambiental pode ser pertinente em um cenário no qual o tema começa a ser incorporado pelo mercado de capitais local. Entretanto, essa experiência permite colocar três conjuntos questões para o desenvolvimento do mercado de capitais local.

Primeiro, quanto à classificação dos produtos. Quais devem ser os critérios que separam fundos e geram benefício socioambiental dos demais? Esses critérios devem se referir a uma avaliação quantitativa, como por exemplo um percentual do patrimônio do fundo, ou qualitativa, observando também os processos adotados pelo gestor ou administrador desses recursos?

Segundo, sobre a qualidade dos pareceres sobre a originação de benefícios socioambientais. Devem existir restrições quanto aos terceiros que podem prover essas certificações ou opiniões? Outras jurisdições podem se deparar com essa mesma pergunta e a resposta varia também de acordo com o tipo de ativos sendo considerados, que porventura podem se originar de operações mais pulverizados e de difícil identificação, verificação e monitoramento das suas características ASG.

Terceiro, quanto às demandas dos investidores. Utilizando o exemplo dos FIDCs, eles representam aproximadamente 0,002% do volume investido pelo segmento de varejo [19], o que é em parte justificado pelas restrições impostas à distribuição desses produtos para tais investidores. A CVM propôs retirar essas limitações, sob determinadas condições, mas a ampla adoção desse produto pelo varejo ainda pode esbarrar em outros entraves – como a não adequação ao perfil de risco dos clientes ou sua falta de conhecimento sobre o produto. Como atender à demanda dos investidores, particularmente de varejo, por produtos sustentáveis, com a confiança de que não estão incorrendo em risco de greenwashing?

Em conclusão, vale ressaltar que as questões aqui dispostas não correspondem a um afastamento da proposta de regulação trazida pela CVM. Trata-se apenas de um esforço para ampliar o escopo das discussões, contribuindo com possíveis pontos de reflexão para pesquisas posteriores, voltadas à incorporação de critérios de sustentabilidade no mercado de capitais brasileiro. Reitera-se a importância e tempestividade dessa iniciativa, que, por si só e em conjunto com os aprimoramentos no formulário de referência representam um importante passo na incorporação das questões ASG pelo mercado local.

Notas e referências

* Os autores agradecem a Norberto Martins e Luiz Macahyba pelos seus comentários, que ajudaram a aprimorar o texto, mas sem implicar nenhum dos dois nas conclusões e nas eventuais imprecisões do material. 

[1] Para referências sobre essa questão ver, por exemplo, texto do voltado às finanças sustentáveis no Global Financial Stability Report de 2019 do FMI, disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2019/10/01/global-financial-stability-report-october-2019#Chapter6 

[2] Dados compilados no relatório publicado em 2020 pela IOSCO “Sustainable Finance and the Role of Securities Regulators and IOSCO - Final Report”. Disponível em: https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD652.pdf 

[3] Como referência do caso brasileiro, ver ANBIMA (2018), “2ª Pesquisa de Sustentabilidade”. Disponível em: https://www.anbima.com.br/data/files/4C/92/36/CF/D6C17610167AA07678A80AC2/Relatorio-Sustentabilidade-2018.pdf 

[4] Disponível neste link: https://www.sec.gov/rules/other/2020/ic-33809.pdf 

[5] Vale também destacar trabalho recente feito pela Investment Company Institute que publicou em junho de 2020 um white paper que busca contribuir com entendimento comum das terminologias e de técnicas de integração ASG. Destaca-se que o material identifica duas abordagens combináveis entre si: (1) integração ASG, que trata da incorporação das questões de sustentabilidade no processo de investimento; e (2) estratégia de investimento sustentável, que difere do primeiro pela análise ESG como parte significante da tese de investimento, sendo identificadas três formas de incorporação também não excludentes entre si - (i) exclusão (de empresas ou setores) que não atendem determinados critérios de sustentabilidade; (ii) inclusão – estratégias que buscam resultados positivos relacionados à sustentabilidade, inclinando a certeira com base em fatores ESG; (iii) impacto - buscam gerar impactos ASG positivos, passíveis de serem mensurados, geridos e relatados, inclui aqui investimentos temáticos.

[6] Para mais informações, ver: https://ec.europa.eu/info/publications/sustainable-finance-renewed-strategy_en#action-plan

[7] Disponível neste link: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:32019R2088 

[8] Como referenciadas no texto, as autoridades europeias em questão são comumente identificadas pelas suas siglas em inglês. EBA é a European Banking Authority (Autoridade Bancária Europeia); EIOPA é a European Insurance and Occupational Pensions Authority (Autoridade Europeia de Seguros e Pensões Complementares de Reforma); e ESMA é a European Securities and Markets Authority (Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e Mercados). Em conjunto, são referidas como as ESAs, de European Supervisory Authorities (Autoridades Supervisoras Europeias).

[9] Documento “Final Report on draft Regulatory Technical Standards”. Disponível neste link: https://www.esma.europa.eu/sites/default/files/library/jc_2021_03_joint_esas_final_report_on_rts_under_sfdr.pdf 

[10] Ver por exemplo, texto “Overview of European Sustainable Finance Labels” publicado pela Novethic em 2020. Disponível em: https://www.novethic.fr/fileadmin/user_upload/tx_ausynovethicetudes/pdf_complets/Novethic_Overview-European-Sustainable-Finance-Labels_June_2020.pdf 

[11] Documento “Utilização de Selos ESG :A experiência europeia” – setembro de 2020. Disponível em: https://www.anbima.com.br/data/files/AC/D7/88/64/1F128710EE6DCB776B2BA2A8/ESG%20-%20Utilizacao%20de%20Selos%20_Experiencia%20Europeia_.pdf 

[12] Documento “Framework for embedding the principles of sustainable finance in financial services organizations”, disponível neste link: https://shop.bsigroup.com/ProductDetail?pid=000000000030387840 

[13] Documento “Responsible and sustainable investment management”, disponível neste link: https://shop.bsigroup.com/ProductDetail?pid=000000000030387841 

[14] Ver Observatório do Sistema Financeiro (2020). Retrospectiva do Sistema Financeiro Brasileiro 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/348885361_Retrospectiva_do_Sistema_Financeiro_Brasileiro_2020  

[15] Para mais informações, ver página dedicada no portal do BCB: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sustentabilidade 

[16] Consultas disponíveis em: https://www3.bcb.gov.br/audpub/HomePage?1 

[17] Disponível neste link: http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2020/sdm0820.html 

[18] Sobre esse tema, ver por exemplo o texto disponível no blog Ensaio Energético -  “Tendências e impactos das finanças sustentáveis sobre o setor de Energia” (2021). Disponível em: https://ensaioenergetico.com.br/tendencias-e-impactos-das-financas-sustentaveis-sobre-o-setor-de-energia/

[19] ANBIMA (2020), “Estatísticas de Varejo – Dezembro 2020”. Disponível em: https://www.anbima.com.br/data/files/2C/46/00/0F/F4D6771058A6A677882BA2A8/Estatistica%20de%20Varejo%20202012.xlsx 

Será mais fácil acessar o mercado de capitais? O que esperar das novas regras de oferta da CVM?

Por Ernani Torres, Gabriel Porto, Luiz Macahyba e Norberto Martins

Publicado em 06/05/2021

No início de março, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou sua proposta de reformulação das regras das ofertas públicas de valores mobiliários. A proposta visa aumentar a quantidade de emissores e de investidores que participam dos lançamentos de ações, debêntures, títulos de securitização, como CRAs ou CRIs, e outros ativos.

Nesse artigo, destacamos as principais inovações apresentadas pelo regulador e apontamos algumas questões que deveriam nortear o debate antes do encerramento do edital no mês de julho.

A experiência internacional revela que o mercado de capitais historicamente desempenhou um papel importante no financiamento ao desenvolvimento econômico. Ele promove a precificação e a liquidez de ativos financeiros, contribuindo para o financiamento corrente e dos investimentos das empresas. 

Por isso, é essencial que os demandantes de recursos possam emitir valores mobiliários. Ao mesmo tempo, esses lançamentos precisam resguardar os interesses do público investidor. Para tanto, as emissões devem estar amparadas em uma regulação que promova a segurança e a eficiência.

Do ponto de vista das firmas, isto significa fazer com que o processo de estruturação e distribuição desses ativos seja o menos oneroso e o mais célere possível. Só assim o emissor pode se beneficiar integralmente de janelas de oportunidade de mercado, de momentos de ampla liquidez, por vezes efêmeros.

Da perspectiva dos investidores, o ponto central é que os lançamentos ofereçam uma divulgação ampla de informações relevantes e fidedignas acerca da saúde financeira e das perspectivas de lucro do emissor. O público precisa ter condições equânimes para calcular o retorno esperado do empreendimento e projetar a capacidade de a empresa honrar seus compromissos no futuro. 

As mudanças propostas pela CVM pretendem buscar um novo equilíbrio entre esses dois elementos. Objetivam permitir que as ofertas sejam céleres e eficientes com regimes informacionais escalonados conforme o tipo de investidor que se busca acessar.

Na sua forma atual, que já data de uma década, são previstos dois tipos de oferta. Um deles, conhecido como a “400”, permite acessar todos os investidores, mas é muito burocratizado e sujeito à aprovação prévia da CVM.

O outro, a “476”, prevê procedimentos mais simples e não requer aprovação prévia, mas limita a colocação a 50 investidores profissionais, o que na prática torna esse mecanismo exclusivo de fundos e instituições financeiras. Nos últimos 5 anos, essas ofertas restritas responderam por 98% dos lançamentos das debêntures e, no caso das ações, por 58%.

Na minuta proposta, a CVM reafirma o entendimento de que os investidores têm níveis de sofisticação e experiência de mercado muito diferentes entre si. Alguns precisariam de uma tutela mais presente do regulador com relação às informações que serão disponibilizadas ao mercado.

Assim, toda oferta que incluir em seu público-alvo os investidores de menor porte (varejo), continuará sujeita à prévia anuência da CVM ou de uma entidade autorreguladora homologada pela Comissão.  A distribuição só poderá ocorrer após todos os documentos que acompanham a oferta, agora mais claros e simples, terem sido aprovados.

A minuta da CVM mantém o prazo de até 60 dias para que ela se manifeste, porém prorrogável por igual período caso os documentos caiam em exigência. Tudo indica que, na prática, não haverá redução relevante no período de aprovação dessas emissões. A Comissão, contudo, argumenta que a oferta poderá receber o registro em tempo inferior ao prazo máximo, caso os documentos protocolados estejam completos.

Outra opção para os emissores serão as ofertas destinadas a um público que já detém mais de R$ 1 milhão em ativos financeiros, os investidores qualificados, ou mais de R$ 10 milhões, os profissionais. Elas estarão quase sempre sujeitas ao chamado rito automático. O ofertante e o coordenador da operação poderão iniciar o esforço de venda tão logo um conjunto limitado de documentos - às vezes, um simples formulário - seja protocolado na CVM.

A hipótese que fundamenta este fast-track é que esses investidores têm experiência e voz suficientes para obterem as informações de que necessitam junto aos emissores. Além disso, a CVM irá regular de forma mais estrita os intermediários e coordenadores das ofertas, prevendo sanções em caso de descumprimento das normas nas emissões.

A proposta da CVM, em boa medida, consolida práticas anteriores, mas também introduz inovações importantes. A primeira delas é o fim do número máximo de investidores profissionais que podem participar da oferta. Com isso, o esforço de venda poderá ser dirigido, potencialmente, a um contingente mais amplo de investidores, ampliando a base de atores que participam da formação de preços e tornando o ambiente mais competitivo.

A segunda inovação diz respeito ao processo de precificação das ofertas, com a proposta de direcionar exclusivamente o bookbuilding a investidores institucionais. Ficam excluídos desse processo os investidores profissionais que são pessoas naturais ou jurídicas com elevado patrimônio financeiro, prática que já é consagrada, mas que passa a ser chancelada pelo regulador.

A terceira inovação que destacamos é a eliminação do prazo mínimo entre duas ofertas de um mesmo emissor, que atualmente é de 4 meses quando há esforços restritos. Essa mudança e outras alterações nas regras de período de silêncio e blackout period buscam fornecer maior flexibilidade aos emissores e permitir que aproveitem as janelas de mercado.

Todas essas mudanças nos levam a pensar de que forma as novas regras de oferta poderão contribuir para um aprofundamento do mercado de capitais brasileiro. As medidas parecem ser positivas, mas há questões em aberto que merecem reflexão.

Primeiro, a eliminação do teto atual de investidores profissionais para emissões com esforços restritos de fato ampliará a concorrência pelas novas ofertas? Será que este aumento não depende também de uma alteração dos mecanismos de alocação das ofertas (bookbuilding)?

Segundo, as emissões realizadas ao amparo do novo marco regulatório terão seus custos de estruturação reduzidos mesmo com o aumento das responsabilidades que os intermediários terão que assumir?

Terceiro, irão aumentar as emissões para os investidores de varejo ou eles só conseguirão acessa-las por meio dos fundos de investimento? A regulação mais ampla do processo de distribuição precisará ser revista, com maior foco na concorrência e no suitability?

Quarto, haverá uma ampliação da liquidez dos mercados?

Não há respostas simples a essas perguntas. É preciso debate-las amplamente e pensar, em especial, qual o papel que o mercado de capitais deve ter na retomada do desenvolvimento da economia brasileira.

30 anos de liberalização financeira no Brasil: Parte II

Por Filipe de Castro Vieira

Publicado em 21/03/2021

A liberalização financeira avançou sistematicamente no Brasil desde fins da década de 1980. Contudo, os resultados esperados pelos seus defensores, detalhados na primeira parte do artigo, não se materializaram, seja no setor bancário, no mercado de capitais e, sobretudo, nos impactos sobre o crescimento e desenvolvimento econômico do país.

O suposto aumento da concorrência no setor bancário após a entrada dos bancos estrangeiros não só não ocorreu como, mais recentemente, os bancos nacionais privados reforçaram seu posto de líderes no mercado brasileiro. A suposta maior eficiência dos bancos estrangeiros argumentada pelos planejadores da liberalização financeira brasileira foi abertamente contradita.

Em 2000 os quatro maiores bancos em operação no Brasil concentravam 52,9% das operações de crédito e 51,7% dos ativos totais do setor, em 2013 esses percentuais foram de 71,4% e 69,4%, respectivamente. O processo de concentração bancária doravante não cessou, de forma que em 2015 a razão de concentração dos cinco maiores bancos atuando no mercado brasileiro foi de 80,9% nas operações de crédito e 78,1% dos ativos totais. Já em 2019 esses índices foram de 80,7% para as operações de crédito e de 79,2% para os ativos totais do setor [1].

A oferta de crédito em porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) apresentou queda a partir de 1995, ano de reestruturação do sistema financeiro nacional e da permissão à entrada dos bancos estrangeiros, e só voltou ao mesmo patamar após mais de uma década. Somente em meados dos anos 2000 o crédito passou a apresentar trajetória ascendente graças ao bom ambiente econômico, à queda das taxas básicas de juros, às políticas públicas de crédito consignado e ao aprimoramento da alienação fiduciária e arrendamento mercantil [2].

Não obstante, a relação crédito/PIB do Brasil, mesmo após sua melhoria a partir do ano de 2003 continua muito baixa quando comparada à média do resto do mundo. A discrepância é ainda maior se comparada à média dos países integrantes OCDE, sobretudo se considerarmos que a estrutura de financiamento das firmas brasileiras é baseada no crédito bancário.

No tocante aos prazos dos financiamentos concedidos pelo setor bancário privado pouco mudou. Os bancos privados continuaram a atuar com forte concentração no curto e médio prazo, mesmo após a entrada dos bancos estrangeiros, que, por seu turno, replicaram a comportamento dos bancos privados nacionais, de sorte que o financiamento de longo prazo seguiu sem ser contemplado pelos bancos privados.

No que se refere ao fluxo de capitais, a liberalização/globalização financeira aumentou em muito o volume de capitais entrando e saindo do país, alinhando o Brasil aos ciclos de liquidez do mercado internacional.

A entrada de capitais sob a forma de investimentos diretos no país foi muito concentrada na participação de capitais e empréstimos intercompanhias e menos a investimentos que aumentam a capacidade produtiva. Já os investimentos em carteira refletiram os anseios especulativos dos investidores estrangeiros, que passaram a deter ativos denominados em reais.

A saída de capitais, por sua vez, é uma realidade em todos os momentos de instabilidade econômica, interna ou externa, tendo como seu principal canal esses mesmos investimentos em carteira, sempre causando grande volatilidade cambial, como vimos recentemente na crise da covid-19.

Referente ao mercado de capitais brasileiro os resultados da liberalização financeira podem ser avaliados de forma ambígua. De fato, houve relativo desenvolvimento desse mercado, havendo expansão dos instrumentos e do volume de operações, com participação relevante de agentes estrangeiros.

Apesar disso, os períodos de prosperidade foram curtos e interrompidos por crises externas e internas. De 2005 a 2007 no mercado de capitais brasileiros foi observada uma forte expansão do volume de operações, tanto na emissão de ativos como nos montantes negociados, trajetória que foi interrompida pela crise financeira global de 2008.

Já nos anos seguintes houve pronta recuperação, tanto que no ano de 2010 o volume dessas operações bateu recorde histórico, quando alcançou aproximadamente R$ 415 bilhões (a preços de dez/2020) [3]. No entanto, já no ano seguinte houve forte reversão, dando início a um período de desaceleração do mercado de capitais brasileiro, agravado pela crise econômica e política no Brasil deflagrada em 2015.

A partir dos cortes na taxa básica de juros iniciados em 2016 o mercado de capitais ganhou fôlego novamente, sobretudo a partir de 2018, e tem despertado esperança nos entusiastas que enxergam nele a melhor opção para o financiamento do setor privado brasileiro.

A novidade é que no atual momento, não só o volume das operações vem apresentando trajetória de crescimento expressivo, como também tem ocorrido a dilatação dos prazos de financiamentos, e a composição da propriedade de ativos vem se modificando, de maneira que os agentes domésticos têm aumentado sua participação no setor.

A expectativa é que, com a manutenção da taxa básica de juros em patamares baixos e da reorientação do setor público financeiro (menos atuante), o mercado de capitais continue a se desenvolver. Porém as recentes decisões do Banco Central do Brasil, de iniciar novamente rodadas de aumento dos juros, podem colocar em xeque esse cenário.

Não obstante o ganho de musculatura do mercado de capitais brasileiro e o aumento da entrada de capitais estrangeiros, algumas contradições e ambiguidades vêm se manifestando. A abertura financeira expandiu a fragilidade cambial no Brasil, além de potencializar os canais pelos quais ocorrem deflações de ativos em momentos de incerteza elevada [4]. Esses dois fenômenos foram observados em vários momentos da história econômica recente.

Ainda que o acúmulo de reservas internacionais tenha melhorado a capacidade do país de fazer frente a situações, potencialmente, de crises financeiras, a inserção externa do país ainda denota uma condição subordinada, uma vez que ativos domésticos são detidos por agentes estrangeiros, podendo a qualquer sinal de reversão da liquidez internacional ou de crises locais ou globais iniciar um processo de fuga de ativos, causando forte volatilidade cambial e deflação de ativos no mercado doméstico.

Ademais, embora o mercado de capitais brasileiro tenha se avolumado e alcançado relativo desenvolvimento, ainda não se percebe efeitos minimamente consistentes para a economia real. É notório o descolamento entre o setor financeiro e o lado real da economia.

Exemplo disso é o período de expansão mais recente do mercado de capitais (2016-2020) em paralelo à mais lenta recuperação econômica experimentada pelo país, com destaque para o ano de 2020, em que a economia teve uma queda de 4,1% do PIB e o mercado de capitais fechou o ano com volume de operações acima do ano anterior.

Por fim, a leitura crítica do processo de liberalização financeira em curso no Brasil há mais de 30 anos feita neste artigo não se trata de propor uma reversão radical desse processo, tampouco ser refratário à integração financeira lato sensu ou defender que em algum grau ela não deveria ter sido feita.

Trata-se de uma advertência relativa aos argumentos apologéticos proferidos pelo governo, por parte dos teóricos liberais e da grande mídia acerca das propostas e medidas que visam expandir o alcance da liberalização financeira no país.

As novas rodadas de liberalização financeira, no plano interno e externo, quais sejam, reorientação das instituições financeiras públicas, enxugamento dos recursos do BNDES, autonomia do BCB e a nova lei cambial, podem impactar decisivamente o sistema financeiro brasileiro.

Podem minar a capacidade de financiamento dos investimentos, diminuir a autonomia da política monetária (aumentando a influência de mercado financeiro em sua condução), reduzir a eficácia de políticas públicas e inviabilizar a adoção de ações anticíclicas, além de potencializar a vulnerabilidade externa e expor a economia ao risco da dolarização.

Não quer dizer que não devemos aplicar mudanças institucionais, mas sim que devemos ser cautelosos e rigorosos. Em particular, o desmonte de uma estrutura de financiamento que era consolidada no país e que já demonstrou ser capaz de ser funcional ao desenvolvimento econômico e social brasileiro, como vivenciado nos últimos anos, não pode estar isento de críticas.

A preocupação é que ampliar ainda mais o grau de abertura externa e liberalizar ainda mais o sistema financeiro interno por razões dogmáticas de cunho liberalizante que se baseiam em teorias controversas e que não encontram comprovação histórica pode minar, ao invés de fomentar, o desenvolvimento econômico.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Notas e referências

[1] BCB, Relatório de Economia Bancária, vários anos.

[2] MORA, M. (2015) A evolução do crédito no Brasil entre 2003 e 2010. Ipea. Texto

para Discussão 2022, Rio de Janeiro, jan. 2015.; PRATES, D. M.; FREITAS, M. C. P. (2013) Crédito bancário corporativo no Brasil: evolução recente e perspectivas. Revista de Economia Política, v. 33, n. 2 (131), p. 322-340, abril/junho 2013.

[3] A métrica utilizada serve como uma referência da atividade no mercado de capitais em um determinado período e é calculada pela soma dos valores dos ativos emitidos em um ano, com os valores desses e demais ativos negociados durante o mesmo período. Ambos os instrumentos de renda variável (ações) e de renda fixa (e.g., debêntures) são considerados nesse cômputo.

[4] Em países como o Brasil, de economia periférica, inserido em posição desfavorável na hierarquia financeira global e com uma economia sobremaneira instável, o fluxo de capitais é também muito instável. Em momentos de crise da economia global, ou crises localizadas, seja em países de economias centrais, seja em países de economia periférica, a tendência é que o fluxo de capitais fuja em direção a economias centrais. O caráter especulativo da esfera financeira se exacerba em momentos de crise, de modo que não obstante uma determinada economia não tenha mostrado sinais de instabilidade e de crise, há fuga de capitais em direção a ativos de menor risco, situados nas economias centrais. O elevado grau da mobilidade de capitais decorrente da globalização financeira expande os canais de transmissão de crises financeiras, de sorte que o setor financeiro dos países periféricos que realizaram a liberalização financeira padece com a fuga de capitais, podendo resultar em crises ou eventos adversos internos.

A nova regulação das ofertas públicas no Brasil: por que ela é relevante?

Por Ernani Torres, Gabriel Porto, Luiz Macahyba e Norberto Martins*

Publicado em 17/03/2021

No início de março, o principal regulador do mercado de capitais brasileiro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), apresentou sua proposta para um novo regime para as ofertas públicas de ações, debêntures, fundos de investimento e demais valores mobiliários [1]. Quando finalizada, será a maior mudança nas regras de emissão de ativos financeiros no país em mais de uma década.

Para quem não é familiarizado com as discussões sobre regulação, o termo “ofertas públicas” pode não significar muita coisa, mas o tema é central para a operação e o desenvolvimento do mercado de capitais.

O acesso das empresas aos investidores ocorre tipicamente por meio de ofertas públicas. Os ofertantes buscam outras pessoas, empresas, bancos, fundos de investimento etc. que queiram investir em suas empreitadas, seja por meio de novas dívidas ou pela participação nos negócios [2].

Para as empresas, acessar o mercado de capitais é um passo importante para conseguir realizar a gestão financeira dos seus negócios. Conseguem, assim, obter mais capital ou empréstimos mais baratos e de prazos mais longos que os fornecidos pelos bancos. Esse dinheiro é importante para financiar suas atividades correntes, mas tem uma importância ainda maior para refinanciar dívidas ou garantir fundos para investimentos.

Nas ofertas, os emissores contam com o auxílio de instituições financeiras ou outras entidades habilitadas pelo regulador, que irão coordenar as ofertas, auxiliando na preparação e divulgação de informações e na busca por investidores. Para esses agentes, trata-se de uma atividade que proporciona uma fonte importante de suas receitas com a prestação de serviços.

No caso dos investidores, o mercado de capitais é o locus em que os ativos financeiros são criados e negociados, sendo central para o gerenciamento da sua riqueza. O mercado ainda presta a eles dois outros serviços: a precificação e a facilitação da venda de seus ativos.

Por fim, o mercado de capitais também desempenha um papel importante na operação das economias. É nesse ambiente que se determinam dois preços importantes: as taxas de juros e de câmbio. Nesse ambiente são também determinados o valor da riqueza financeira e, portanto, onde as expectativas dos agentes com relação ao futuro se manifestam.

Essas potencialidades, contudo, não se materializam de forma automática. Dependem de como esse mercado é regulado. A estabilidade financeira das empresas e dos participantes de mercado, bem como a proteção dos investidores depende essencialmente do desenho regulatório e da ação dos atores públicos responsáveis.

Nesse ecossistema, a regulação das ofertas envolve uma série de procedimentos, que determinam os passos que as empresas e seus agentes financeiros precisam seguir para poderem vender esses títulos diretamente ao público.

Ela estabelece as informações mínimas que devem ser elaboradas e fornecidas ao mercado e, em alguns casos, chega a limitar os grupos de investidores que podem participar das emissões.

Atualmente, os investidores são divididos em três classes.

Há os investidores profissionais, como bancos, outras instituições financeiras, fundos de investimento, fundos de previdência e até pessoas físicas com patrimônio financeiro acima de R$ 10 milhões, que, por essa razão, frequentemente contam com o apoio de gestores, consultores e outros entes que participam do mercado de capitais e são regulados pela CVM.

Em segundo lugar, há os investidores qualificados, que incluem, além dos investidores profissionais, pessoas físicas ou jurídicas com patrimônio financeiro superior a R$ 1 milhão, pessoas naturais certificadas para operar no mercado ou clubes de investimento que contem com gestores classificados nessa categoria [3].

O restante compõe o público que a CVM mais quer proteger, os chamados investidores de varejo. São considerados menos experientes e sujeitos a uma maior dificuldade de acessar informações, o que os torna vulneráveis à ação de atores mal-intencionados.

As ofertas públicas propriamente ditas destinam-se irrestritamente aos três grupos de investidores. O comprador do ativo pode ser tanto um grande banco quanto um pequeno investidor pessoa física. Por isso, o regulador institui uma série de requisitos que devem ser cumpridos pelos emissores, com particular foco na elaboração e divulgação de informações [4]. A preocupação aqui é que os investidores devem ser capazes de tomar decisões bem informadas ao aplicar seus recursos.

No rito tradicional, essas informações são analisadas e verificadas previamente pela CVM. Documentos como o prospecto da emissão, que congrega todas as informações consideradas importantes para uma decisão informada, e o material publicitário são escrutinados. Isso, porém, adiciona alguma demora ao processo de realização das ofertas.

Além da questão informacional, a oferta envolve a busca por investidores e a formação dos chamados livros, que registram o interesse desses demandantes pelos ativos ofertados em termos da quantidade e do preço que estão dispostos a pagar.

A construção desses livros, no processo chamado de bookbuilding, é fundamental para a eficácia e o alcance das emissões. Determina também as possibilidades de negociação e, assim, da liquidez dos ativos nos mercados secundários.

No Brasil, desde 2009, os emissores podem também lançar de um segundo mecanismo de oferta, chamada de oferta pública de distribuição com esforços restritos [5]. Nesse caso, o público-alvo das ofertas abarca apenas os investidores profissionais e as empresas que vão a mercado e os intermediários que atuam na oferta podem procurar por até 75 investidores e, ao final, os ativos podem ser adquiridos por até 50 deles.

Em contrapartida, a CVM abriu mão de analisar previamente as informações elaboradas e divulgadas pelas empresas e tornava menos burocrático o processo de oferta. Isso ocorria, pois a autarquia entendia que os investidores profissionais teriam a capacidade de acessar, coletar e compreender as informações necessárias para sua tomada de decisão.

Originalmente, as ofertas restritas tinham como foco as distribuições de dívida, em particular, as debêntures, ou títulos securitizados, como certificados de recebíveis imobiliários ou do agronegócio. Tinham como foco trazer empresas de menor porte para o mercado. No entanto, ao longo do tempo, elas passaram a abarcar um número cada vez maior de instrumentos, incluindo ações, ativos estruturados e títulos mistos, como as debêntures conversíveis em ações [6].

O que ocorreu no mercado brasileiro foi que, com o tempo, as ofertas restritas passaram a dominar o mercado [7]. Nos últimos dois anos, 86% das ofertas foram realizadas sob essa modalidade, segundo dados do Boletim de Mercado de Capitais da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).

No caso das debêntures, esse percentual foi de 98%: das 643 ofertas do último biênio, 630 foram ofertas restritas. O único caso em que as ofertas públicas de amplo alcance ainda se mantêm relevantes é o caso das ações: das 94 emissões no período, só 56 foram realizadas com esforços restritos.

A proposta do novo regime de ofertas públicas ocorre num momento em que o mercado de capitais brasileiro vinha ganhando impulso, com um número relevante de novas emissões e com a entrada de novos investidores [8].

A CVM se propõe a unificar os dois regimes existentes, anunciando como objetivo proporcionar às empresas e aos intermediários uma maior agilidade no processo de oferta e diminuir os custos regulatórios, sem que que haja prejuízo às necessidades de informações para as decisões de investimento [9].

A nova norma concentra-se em agilizar as emissões, simplificando processos e eliminando documentos. Para tanto, ela busca alinhar o regime informacional diretamente à sofisticação dos investidores. Quanto menor o seu porte, maior a proteção do regulador e, portanto, maior a necessidade de documentos e informações que precisam ser chancelados por essa autoridade. Quanto mais ativos financeiros detiverem, isto é, no caso dos investidores qualificados ou profissionais, essa necessidade passa a ser praticamente nula.

Nesse sentido, a CVM irá institucionalizar o que já era prática nos últimos anos. Investidores profissionais acessavam o mercado pelas ofertas restritas. Já quando as empresas objetivavam acessar um público mais amplo, com investidores de varejo – especialmente no caso das ações –, as ofertas de amplo alcance, com toda burocracia envolvida, eram realizadas.

O novo regime, contudo, traz também inovações.

Uma primeira mudança importante é a eliminação do teto de investidores profissionais e qualificados a que os emissores e intermediários poderiam procurar e que poderiam adquirir os ativos. Eliminou-se, assim, a ideia de “esforços restritos” de distribuição, podendo todas ofertas terem alcance mais amplo, acessando uma base cada vez maior de investidores sofisticados [10]. Assim, potencialmente, amplia-se o ambiente competitivo e a base de atores que participam da formação de preços.

Outra novidade é a simplificação dos documentos usados nas ofertas destinadas a investidores de varejo, que passa por uma modernização dos prospectos das emissões e pela criação das chamadas lâminas da oferta. As lâminas são documentos de informações essenciais inspirados na regulação europeia e na experiência prévia com fundos de investimento no Brasil.

Esse documento deverá ter conteúdo padronizado, de modo a facilitar a compreensão das informações acerca dos ativos em oferta e permitir uma maior comparabilidade entre os diferentes valores mobiliários. Serão quatro modelos de lâmina, conforme a classe dos ativos: ações, dívidas, fundos de investimento fechados e títulos de securitização.

As duas mudanças mencionadas acima não exaurem o conteúdo da consulta, mas ajudam a ilustrar sua relevância.  Respectivamente, elas poderão mudar a forma com que o mercado se organiza e alterar a relação das pessoas com seus investimentos. Seus impactos sobre os emissores, intermediários e investidores, porém, ainda não estão claros em sua totalidade.

Há um conjunto de dúvidas acerca da proposta ora em audiência pública cujas respostas não são óbvias. Por exemplo, que efeitos os novos regimes de oferta terão sobre a liquidez do mercado secundário dos títulos de dívida corporativa? As emissões realizadas ao amparo do novo marco regulatório terão seus custos de estruturação reduzidos ou poderão se elevar? A eliminação atual do teto de 50 investidores para emissões com esforços restritos de fato ampliará a concorrência pelas novas ofertas? Será que este aumento não depende também de uma alteração dos mecanismos de alocação das ofertas (bookbuilding)?

A compreensão desses efeitos é fundamental para pensarmos o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro e o papel que ele pode vir a desempenhar no crescimento da nossa economia. Portanto, enquanto durar a audiência pública da CVM, publicaremos uma série de artigos sobre o tema, em que aprofundaremos algumas dessas discussões e analisaremos crítica e minuciosamente a proposta da autarquia.

Continue acompanhando nosso blog e site e siga de perto as discussões sobre o novo regime de ofertas.

Notas e referências

* Os autores agradecem aos comentários de Morgana Tolentino à primeira versão desse post. Eventuais erros ou imprecisões remanescentes são de inteira responsabilidade dos autores.


[1] Edital de Audiência Pública SDM nº 02, de 2021. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0221.html

[2] As ofertas públicas podem ser ofertas primárias, nas quais a empresa emissora oferta novos valores mobiliários (de sua propriedade), ou secundárias, que dizem respeito a ativos já existentes – isto é, não envolvem a emissão de novos ativos – e podem incluir outros ofertantes além do emissor. No primeiro caso, os recursos vão direto para o caixa da empresa, ao passo que no segundo se destinam aos bolsos dos detentores dos ativos, sejam eles quem forem.

[3] As categorias de investidores são definidas nos artigos 9º-A e 9º-B da Instrução nº 539, da CVM, de 2013.

[4] Essas ofertas são reguladas pela Instrução nº 400, da CVM, de 2003.

[5] Instrução nº 476, da CVM, de 2009.

[6] Instrução nº 551, da CVM, de 2014.

[7] Para uma análise crítica sobre a estrutura do mercado de capitais brasileiro, até pouco depois da criação do regime de oferta pública com esforços restritos, ver: Torres, E.; Macahyba, L. O Elo Perdido: O Mercado de Títulos de Dívida Corporativa no Brasil: Avaliação e Propostas. São Paulo: IEDI, 2012.

[8] Observatório do Sistema Financeiro. Retrospectiva OSF 2020. Rio de Janeiro: Instituto de Economia da UFRJ, fev. 2021.

[9] Conforme disposto no Edital de Audiência Pública SDM nº 02, de 2021.

[10] Não há dados consolidados sobre o número de investidores profissionais que são pessoas naturais. O Boletim de Private e Varejo divulgado no final de 2020 pelo ANBIMA indicava a existência de cerca de 130 mil contas de clientes com aplicações financeiras acima de R$ 3,0 milhões, classificados como clientes de private banking. Também segundo estatísticas divulgadas pela ANBIMA, há cerca de 25 mil famílias ricas cujos recursos são administrados pelos chamados gestores patrimônio.

30 anos de liberalização financeira no Brasil: Parte I

Por Filipe de Castro Vieira

Publicado em 11/03/2021

Os holofotes do debate econômico no Brasil se voltaram recentemente para dois projetos relacionados ao Sistema Financeiro Nacional (SFN). O primeiro, já aprovado pelo Congresso, dá autonomia ao Banco Central do Brasil (BCB). O segundo, que, ao que tudo indica, também será em breve aprovado, diz respeito ao novo marco legal do câmbio.

Ambos os projetos são aderentes a uma agenda que vêm sendo implementada no Brasil há mais de 30 anos, a saber, a liberalização financeira. O debate acerca do tema é constantemente realimentado, à medida que novas medidas liberalizantes são propostas e aplicadas ou que as teorias são modificadas e atualizadas.

Nesse texto, que será dividido em duas partes, faremos uma leitura crítica do processo de liberalização financeira do Brasil. Analisaremos sinteticamente as bases teóricas que advogam pela liberalização financeira e a direção das medidas e reformas adotadas, dando maior ênfase às rodadas mais recentes de liberalização. Além disso, faremos um breve apanhado dos resultados e das reflexões sobre esse processo, sem a pretensão de abarcar todas óticas de análise de um tema tão amplo.

A liberalização financeira se divide em dois planos: a liberalização financeira externa – ou abertura financeira – e a liberalização financeira interna ou “desrepressão” financeira.

A liberalização financeira externa consiste na facilitação da atuação de estrangeiros no mercado financeiro doméstico, bem como de agentes domésticos acessarem o mercado financeiro internacional. Também diz respeito à conversibilidade da moeda.

Segundo a teoria, os benefícios da abertura financeira seriam observados no aumento da entrada de capitais estrangeiros no mercado doméstico, advindos dos países com abundância de capitais, na redução dos custos de intermediação financeira e no aumento da eficiência do mercado financeiro doméstico, pela entrada de instituições estrangeiras e pela redução dos riscos para os investidores.

Por sua vez, a liberalização financeira interna refere-se, grosso modo, à eliminação da atuação governamental na esfera financeira. De acordo com os proponentes dessa agenda, a atuação governamental nos sistemas financeiros locais, seja via bancos públicos e de desenvolvimento, seja via controle da taxa básica de juros, ou mesmo na determinação dos níveis de depósitos compulsórios, causaria uma “repressão financeira”.

Esta seria caracterizada por taxas de juros situadas fora do “nível de equilíbrio” e baixos níveis de poupança, que teriam como consequência a escassez de investimentos privados, o racionamento de crédito, elevados preços dos produtos e serviços financeiros e o favorecimento de agentes não otimizadores. Em síntese, fatores que comprometeriam o desenvolvimento do sistema financeiro doméstico.

As vantagens advindas da liberalização interna, em teoria, seriam observadas no aumento da poupança interna, que financiaria o investimento e, por conseguinte, promoveria o crescimento sustentado da economia. Isso se daria pelo ajustamento das taxas de juros, via mercado, e pela eficiência alocativa resultante das políticas de liberalização.

Desde o final da década de 1980, a economia brasileira passou por um amplo processo de liberalização financeira, tanto interna como externa. Ele avançou em todos os governos desde o início dos anos 1990, mas sobretudo nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

De forma geral, as medidas de abertura financeira facilitaram e incentivaram a atuação dos agentes domésticos no mercado internacional e dos investidores estrangeiros no mercado doméstico, através de uma série de medidas normativas e de criação de instrumentos financeiros, além de modificações e simplificações do mercado cambial [1].

No plano interno, permitiu-se a entrada de bancos estrangeiros no país, realizaram-se privatizações de bancos estaduais e houve reorientação política de bancos públicos federais e de desenvolvimento [2].

Há uma clara linha de continuidade na adoção dessas medidas, mas é possível pensar o processo de liberalização em novas ondas ou rodadas que, sucessivamente, vêm afrouxando as amarras para a atuação dos agentes financeiros privados, nacionais ou estrangeiros.

Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, uma nova rodada de liberalização financeira foi implementada no governo de Michel Temer. O pouco tempo de mandato de Temer e a crise política instaurada não o impediu de efetuar reformas substanciais no SFN.

Os dois grandes destaques deste período ocorreram no âmbito da liberalização interna, a saber, a devolução antecipada dos recursos do Tesouro Nacional por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a aprovação da Taxa de Longo Prazo (TLP), em substituição à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP).

A TJLP era a taxa de juros que vigorava durante a efetuação dos projetos de investimento financiados pelo BNDES e que era a base de remuneração dos empréstimos do banco. Ela era determinada e administrada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e geralmente apresentava rendimentos menores e menor volatilidade do que as taxas de mercado.

Com a TLP, as taxas que remuneram as receitas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ingressantes no BNDES passaram a acompanhar as taxas negociadas no mercado secundário de títulos da dívida pública indexadas ao IPCA. A conjunção dessas duas medidas tornou a oferta de recursos pelo banco mais escassa e os custos dos empréstimos mais elevados. A isso aliou-se a baixa cíclica dos investimentos no país, que resultou num encolhimento significativo do banco de desenvolvimento.

Outra meta antiga da agenda da liberalização interna é a liberalização dos fundos públicos de poupança compulsória, mais precisamente, do FAT e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que, em certa medida, já estão sendo realizadas.

Esses dois fundos são fontes de recursos de suma importância para que o BNDES e a Caixa Econômica Federal (CEF), respectivamente, concedam financiamento com prazos mais dilatados e sejam instrumentos de políticas públicas funcionais ao desenvolvimento econômico e à redução das desigualdades sociais do país.

São fontes de recursos estáveis e volumosas e despertam o interesse dos grandes bancos privados e do setor financeiro como um todo. Recorrentemente surgem propostas de retirada do monopólio de administração desses fundos por parte do BNDES e da CEF para que outras instituições financeiras possam disputar a concessão desses recursos, ou mesmo para que os recursos sejam utilizados com outros propósitos que não o de fonte de recursos para financiamentos [3].

Com o governo Bolsonaro, cujo mandato teve início em 2019, as reformas liberalizantes seguiram sendo defendidas e promovidas com efusão. Ainda que não ligada diretamente aos dois campos de liberalização financeira, o recém-aprovado projeto que dá autonomia ao BCB [4] tem como principal argumento propalado a suposta “libertação” da política monetária de interesses políticos, relegando à política monetária a supostos critérios puramente técnicos.

Esse argumento também está presente na formulação da “hipótese da repressão financeira” e é amplamente utilizado pelos defensores da liberalização financeira. Para eles, também as condições impostas pelo Estado precisariam ser liberadas da influência política, que só teria como consequência o subdesenvolvimento financeiro dos países.

O argumento pode parecer atraente na forma, mas no conteúdo exprime-se uma substância antidemocrática, pretendendo tirar poder de o presidente eleito se utilizar do aparato institucional para fazer uma política monetária adequada à sua plataforma de governo. Ademais, política e economia são indissociáveis, de forma que a pretensa independência da condução da política monetária de fatores políticos não passa de uma cortina de fumaça.

O projeto pode reforçar desigualdades [5] e não resolve o problema da porta giratória, ao não ampliar o tempo de quarentena necessário para que os dirigentes do BCB possam atuar no setor privado, que atualmente é de 6 meses. Neste último ponto fica claro que a intenção não é livrar o órgão de interesses políticos, favorecendo o mercado financeiro que amiúde recruta ex-dirigentes da instituição. A questão retórica que fica é: para quem a política monetária estará a serviço? [6]

Já o projeto da nova lei cambial prevê, entre outras mudanças, a possibilidade de abertura de contas denominadas em moeda estrangeira por pessoas físicas e jurídicas (medida presente e defendida em toda a literatura favorável à liberalização financeira).

De acordo com seus defensores, o projeto objetiva simplificar transações financeiras envolvendo moedas estrangeiras, já que o marco legal do câmbio no Brasil estaria muito defasado e desmembrado, dificultando as transações cambiais e trazendo insegurança jurídica.

A regulamentação das referidas contas ficará à mercê do Banco Central, agora “independente”, porém, não foram definidos critérios, mas tão somente que tal regulamentação seria feita de forma “prudente” [7]. Não sabemos como será essa regulação, mas é inescapável que a nova lei cambial ponha uma “pulga atrás da orelha”, já que pode expor a economia brasileira ao risco de amplificar a volatilidade cambial e abrir espaço para a dolarização da economia, como ocorreu na Argentina.

Em suma, há mais de 30 anos a liberalização financeira no Brasil vem sendo aplicada em todas as frentes, havendo ampla abertura da conta de capitais, liberalização do mercado cambial e diversas reformas do sistema financeiro interno com mudança de concepção da atuação das instituições financeiras públicas.

[Continua...]

Na segunda parte desse artigo a discussão é sobre os efeitos da liberalização e os riscos que a nova rodada de medidas poderá trazer para a economia brasileira.

Notas e referências

[1] Ver detalhes em: PRATES, D. M. (1997). Abertura financeira e vulnerabilidade externa: a economia brasileira na década de noventa. Dissertação de Mestrado, IE/Unicamp; HERMANN, J. (2010) Liberalização e desenvolvimento financeiro: lições da experiência brasileira no período 1990-2006. Economia e Sociedade, Campinas, v. 19, n. 2 (39), p. 257-290, ago. 2010; MACHADO, F. A. (2011) Mobilidade de capitais e vulnerabilidade externa do Brasil: a nova qualidade da dependência financeira (1990-2010). Dissertação de mestrado, IE-UNICAMP, 2011.

[2] Ver mais detalhes em: VIDOTTO (2002) O sistema financeiro brasileiro nos anos noventa – um balanço

das mudanças estruturais. (Tese de Doutorado) – IE/Unicamp, 2002; VIDOTTO, C. A. (2005) Reforma dos bancos federais brasileiros: programa, base doutrinária e afinidades teóricas. Economia e Sociedade, v. 14, n. 1 (24), Campinas, jan./jun. 2005, p. 57-84

[3] (i) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/10/caixa-critica-competicao-pelo-file-mignon-em-discussao-sobre-gestao-do-fgts.shtml

(ii) https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/10/fgts-como-o-conhecemos-tem-que-acabar-afirma-persio-arida.shtml

(iii) https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/03/02/pec-emergencial-bndes-fat-receita-federal.htm

[4] Na nova lei o presidente da república seguirá escolhendo a direção do BCB, mas os dirigentes escolhidos terão mandatos fixos, sem poder ser demitidos com justificativa qualquer, sendo que o presidente da instituição só tomará posse no terceiro ano de governo e não poderá ser trocado ainda que o governo seja outro. 

[5] Martins e Tolentino (2021). Autonomia do Banco Central poderá reforçar desigualdades.  Blog OSF. Ver abaixo.

[6] https://brasildebate.com.br/bc-independente-de-quem-cara-palida/

[7] Lei cambial da cheque em branco para o Banco Central. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/lei-cambial-da-cheque-em-branco-para-o-banco central-diz-nelson-barbosa/ 

Autonomia do Banco Central poderá reforçar desigualdades

Por Norberto Martins e Morgana Tolentino

Publicado em 10/02/2021

A ideia de criar um Banco Central autônomo no Brasil acabou de retornar ao centro do debate econômico. Será a primeira pauta do extenso conjunto de “reformas” que o Congresso brasileiro buscará entregar ao “país” após a eleição dos seus novos líderes. Ao que tudo indica, a medida vai ser votada na Câmara hoje (10/02/21) e tem tudo para ser aprovada.

As reformas são decisões políticas e de mudança institucional que farão de certos segmentos ganhadores e de outros perdedores. É fundamental entende-las a partir dessa ótica, desmistificando a aura de “neutralidade técnica” que os proponentes de algumas delas reivindicam.

A questão da autonomia do BC não é exceção. Há diferenças entre "autonomia" e "independência", mas elas são eclipsadas pela principal ideia por trás da medida, sintetizada na fala de Roberto Campos Neto, atual presidente do BC: “Com a autonomia do banco central, você desfaz o vínculo do ciclo político com o ciclo da política monetária”.

Muito já se discutiu acerca do isolamento da política monetária em relação aos ciclos democráticos, mas o tema volta e meia regressa aos holofotes desde que o primeiro projeto de autonomia ou independência foi protocolado no Congresso brasileiro. No atual contexto de erosão da democracia no Brasil, a ideia de conferir maior autonomia a decisões de política econômica em relação à influência do corpo Executivo eleito não chega a surpreender.

Também foram inúmeras as críticas aos indicadores construídos de forma ad hoc para medir o grau de independência ou autonomia dos bancos centrais e avaliar o desempenho dos países em termos de inflação e crescimento. As métricas são problemáticas e os resultados frequentemente deixam de lado outras evidências relevantes para auferir essas conclusões.

Esses dois conjuntos de argumentos, porém, já foram repetidos inúmeras vezes, de forma incansável [1], [2], [3], [4], [5].

A teoria monetária já evoluiu significativamente nas últimas décadas, mostrando que a política monetária tem muito mais a entregar que a estabilidade de preços - além de colocar em xeque a real pertinência desse objetivo. Ela certamente cumpre um papel na estabilização do emprego e da renda, mas essa função é responsabilidade última dos rumos da política fiscal, como novamente ilustrado no caso da crise da covid-19.

Os bancos centrais, porém, cumprem a função de protagonistas na determinação das condições de estabilidade financeira, o que fica cada vez mais explícito nas ações e políticas adotadas pelos principais bancos centrais do mundo. No atual projeto, esse ponto é tratado de forma subordinada, subsidiária.

Na teoria, já está claro que as ideias monetaristas, em suas diferentes roupagens, perderam espaço: o objetivo principal dos bancos centrais deveria ser gerenciar a fragilidade financeira dos agentes e das economias, utilizando-se de um arsenal de instrumentos cada vez mais amplo, que vai da taxa de juros às compras de ativos, das linhas de assistência a liquidez à regulação financeira.

Além disso, as evidências empíricas mais recentes quanto aos efeitos da independência ou da autonomia dos bancos centrais revelam também a não neutralidade dos impactos distributivos dessa medida.

Em estudo publicado em janeiro de 2021, técnicos do Banco Mundial analisam a relação entre independência do banco central e o aumento da desigualdade nas últimas três décadas [6].

Usando dados em painel de 121 países entre 1980 e 2013, o trabalho sugere uma correlação positiva entre as medidas de independência do banco central e a renda dos 10% mais ricos, bem como uma relação negativa entre independência e a renda dos 10% mais pobres da população. Ou seja, associa-se a independência do BC a um aumento da desigualdade.

A questão das métricas, sem dúvida, se mantém como um problema, mas a discussão dos resultados do estudo traz importantes elementos para reflexão. Na interpretação dos autores, haveria três mecanismos que ligam a independência do BC a um aumento da desigualdade.

Em primeiro lugar, a independência do BC constrangeria indiretamente a política fiscal e limitaria a capacidade do governo em atuar na redistribuição. A preocupação aqui situa-se principalmente sobre a coordenação entre as diferentes políticas econômicas.

Argumenta-se que, sob a gestão de um banco central independente, poderia haver sinais trocados na implantação da política econômica, com as autoridades monetárias eventualmente anulando políticas fiscais expansionistas em momentos de desemprego e recessão. Segundo os autores, a literatura aponta várias evidências teóricas nesse sentido.

Em segundo lugar, bancos centrais independentes tenderiam a estimular os governos a desregulamentar os mercados financeiros. A liberalização financeira, na visão dos autores, cria um cenário de inflação de ativos financeiros e, como estes se concentram nas mãos dos mais ricos, o que se observa é um aumento da desigualdade.

Em terceiro lugar, sob um BC independente, os governos acabariam por ter ainda mais incentivos para promover políticas que enfraquecem o poder de barganha dos trabalhadores para conter pressões inflacionárias.

Sem poder usar a política monetária para atingir salários reais e nível de emprego, os governos se veriam pressionados a fazer reformas estruturais no mercado de trabalho, sobretudo no que diz respeito à flexibilização de salários, bem como redução das proteções aos trabalhadores.

Sob essa lógica, as reformas microeconômicas se justificariam como forma de aumentar a capacidade de o mercado de trabalho responder a choques adversos. Na prática o que se observa é que isso é feito às custas do poder de barganha dos empregados, o que tende a levar a economia a uma situação de estagnação de salários e maior precarização do trabalho - a experiência da economia brasileira nos últimos anos ilustra esse mecanismo.

As ideias do estudo aqui apresentado ainda precisam ser analisadas com mais profundidade.

Notadamente, mais do que apresentar uma ideia de causalidade entre independência do BC e desigualdade, o trabalho ressalta que essa medida reforça tendências seculares na direção de uma maior desigualdade.

Entretanto, ele aponta para uma nova área de preocupação em relação à proposta que será aprovada no Congresso [7], [8].

Além de avançar sobre preceitos democráticos fundamentais – sim, decisões de política econômica devem ser vinculadas ao ciclo político –, a mudança institucional pretendida pode a longo prazo reforçar ainda mais as desigualdades a que está sujeita a economia brasileira.

Mercados em Guerra: O que você precisa saber sobre a saga da WallStreetBets

Por Gabriel Porto

Publicado em 02/02/2021

Não se fala de outra coisa, quando o assunto é o mercado financeiro. Até legisladores [1], autoridades [2] e empresas [3] estrangeiras somaram à cacofonia nas redes sociais. Um conjunto de investidores, reunidos em um fórum da plataforma Reddit chamado “WallStreetBets”, começaram a comprar ações da GameStop e outras empresas próximas à falência, dando início a uma cadeia de eventos que aumentou quase exponencialmente o preço desses ativos.

A motivação? Ao menos parte, quebrar hedge funds bilionários que apostaram na desvalorização dessas empresas, numa espécie de luta entre Davi e Golias no imaginário coletivo. Como se a simbologia não pudesse ser mais forte, a plataforma que muitos desses investidores utilizam para realizar suas operações chama-se Robinhood.

Com todos esses elementos, a história poderia parar por aí; mas, quando se analisa atentamente, esse roteiro deixa uma série de perguntas em aberto, que precisarão ser respondidas antes da sua conclusão. Por isso, tentamos colocar um pouco de luz sobre os acontecimentos até o momento e descrever algumas dessas principais questões.

A GameStop, principal campo dessa batalha, é uma cadeia de lojas para o varejo, nos EUA e fora, que vende jogos eletrônicos e outros produtos relacionados [4]. Com o aumento das vendas por canais virtuais, uma tendência secular acentuada durante nesse ano de pandemia, a empresa se encontrava em situação preocupante. Foram mais de 700 lojas fechadas nos últimos dois anos [5] e prejuízos milionários que só devem se reverter a partir de 2023 [6].

Dado esse prognóstico negativo, alguns gestores de hedge funds dos EUA, como a Melvin Capital Management e Citron Research, e outros investidores profissionais começaram a “shortear” as ações dessa empresa. Nesse ponto, algumas definições podem ajudar os leitores.

Primeiro, hedge funds são fundos de investimento que, quando comparados aos pares mais tradicionais, como fundos de ações ou renda fixa, contam com estratégias geralmente mais arriscadas e mandato para investir em classes mais variadas de ativos. Como contrapartida, nos EUA, os fundos de hedge são geralmente distribuídos em regime de oferta privada, para um número limitado de investidores e/ou apenas para investidores qualificados (em geral, indivíduos ricos ou investidores profissionais) [7].

Segundo, ao “shortear” uma ação, investidores essencialmente esperam capitalizar em cima da queda de preço desse ativo. A expressão é adaptada de “short selling” [8], em inglês, também traduzida como venda a descoberto. Esse tipo de operação normalmente ocorre da seguinte forma: um investidor toma emprestadas as ações que ele acredita que ficarão mais baratas e, ato contínuo, vende-as ao preço de mercado. Até o prazo combinado no empréstimo, o investidor precisa comprar a mesma quantidade de ações, para então devolvê-las [9]. Se os preços caírem nesse intervalo, o investidor ganha essa diferença; se os preços subirem, o investidor paga. Estratégias como essa são geralmente consideradas bastante arriscadas. 

Voltando ao caso da GameStop, a empresa se encontrava em uma situação particular (ainda que não fosse inédita): a convicção que o preço das suas ações ia cair era tão grande que o estoque de posições vendidas superava o total de ações emitidas pela companhia [10].

Do outro lado da mesa, os pequenos investidores estavam dispostos a apostar na GameStop. As teses de investimento divulgadas no Reddit, no Youtube, no Discord e outros canais, passavam geralmente por alguma combinação de confiança no aumento das vendas online da empresa, na redução de custos pelo fechamento de lojas físicas e, especialmente, nas mudanças da diretoria (por ex. com a nomeação do investidor minoritário Ryan Cohen) [11].

Ao perceberem que as posições vendidas precisariam ser fechadas (isto é, que os fundos de hedge e outros agentes precisariam comprar de volta as ações que venderam), esses investidores da WallStreetBets deram início à campanha: segurem suas ações da GameStop. Muitas outras pessoas, mesmo sem ter experiência em bolsa, entraram na sequência.

Impulsionadas por essa combinação de eventos, as ações da companhia se valorizaram 1.784%, em janeiro de 2021 [12]. O preço passou de aproximadamente US$ 18 (cerca de R$ 94), no começo de mês, para US$ 325 (aprox. R$ 1.775), ao final, chegando a ser negociado acima de US$ 490 em determinado momento (aprox. R$ 2.650).

O que aconteceu com os fundos que haviam realizado as vendas a descoberto? Muitos precisaram fechar suas posições vendidas, para limitar as perdas. O fundo da Melvin Capital Management, mencionada acima, perdeu mais de 50% do seu valor em janeiro [13] e precisou receber uma injeção de US$ 2,75 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões) de duas outras gestoras [14].

Quanto aos investidores, existem diferentes cenários possíveis, uma vez que os preços seguem com enorme volatilidade, e seus ganhos ou perdas dependerão essencialmente do momento em que compraram e, depois, venderam essas ações. Especialistas afirmam que a cotação da GameStop estaria inflada por uma bolha e, mais cedo ou mais tarde, vai cair para um preço que reflita seus fundamentos [15].

Essa estratégia, de pressionar vendas à descoberto, é chamada de “short squeeze”. Mas, se a abordagem é conhecida, a novidade está na forma como investidores de varejo se coordenaram para praticá-la. No vocabulário dessa rede, quem vender as ações tinha “mãos de papel” (“paper hands”), mas quem resistir a essa tentação tem “mãos de diamante” (“diamond hands”) e poderá pegar o foguete “para a lua” (“to the moon”) – isto é, ficar rico [16].  

Outras iniciativas como essa foram tentadas, nos EUA, para companhias como a AMC Theaters (rede de cinemas), a Nokia e a Blackberry (telecomunicações). No Brasil, a IRB (resseguros) teria sido alvo de um princípio de abordagem como essa [17], que foi abafada após um alerta da CVM sobre a prática de “squeeze” ser considerada abuso de mercado por aqui [18].

Então, a primeira pergunta que se coloca é: os investidores do WallStreetBets estão fazendo algo ilegal?

Nos EUA, a legislação que trata das operações em bolsa é de 1934 e, entre outras provisões, estabelece que é ilegal induzir a compra ou venda de qualquer valor mobiliário ao afirmar que seu preço irá provavelmente subir ou cair devido a operações conduzidas com o propósito de aumentar ou reduzir os referidos preços [19]. Com base nesse dispositivo, não seria impossível para um procurador propor uma tese que enquadre as atividades dos investidores do Reddit nesse tipo de manipulação de mercado.

De acordo com um especialista na área [20], o ponto crucial está na interpretação sobre a palavra “induzir”. Portanto, os argumentos em defesa dos investidores recaem no entendimento que eles estariam apenas divulgando, nessas redes sociais, algumas informações públicas sobre as companhias e as suas respectivas avaliações [21], sem intuito de induzir os demais a realizarem determinadas operações.  

Existem outros elementos, de cunho mais prático, que passam pelo fato da legislação em questão ter sido criada com intuito de proteger os investidores – e não de prendê-los. Qualquer investigação, mesmo no caso de processo administrativo pelo regulador competente, vai exigir novas técnicas para identificar os “CPFs” que teriam eventualmente induzido outras pessoas a comprarem as ações, nas redes sociais. Em geral, os esforços desse tipo avançam apenas quando os investidores incorrem em danos significativos (por exemplo, caso uma queda vertiginosa do preço das ações resulte em transferência de riqueza) e os acusados de manipulação podem ser nomeados.

Os desdobramentos jurídicos desse caso ainda devem se alongar por alguns anos. Entretanto, esse caso evidencia três outras questões importantes para os mercados que temos hoje.

A primeira questão é o uso de redes sociais para conselhos sobre investimentos. Existe uma prática difundida pelos diferentes canais – YouTube, Instagram, Twitter, Reddit etc. – de pessoas físicas e jurídicas divulgando suas avaliações sobre investimentos. Essas publicações recorrentemente carregam o aviso “isso não é uma recomendação”, mas que às vezes parece mais uma referência à obra do Magritte [22].

O sucesso de fóruns como WallSteetBets e outros canais evidencia como os investidores têm essa demanda por fontes alternativas de conteúdo, que não passam necessariamente pelas instituições tradicionalmente reguladas. Também fica claro que existem pessoas, muitas delas fora do perímetro regulatório, interessadas em oferecer esse conteúdo a um custo baixo, ou mesmo de graça.

Esse caso mais recente testa alguns dos limites do modelo atual. Qualquer que seja a decisão dos reguladores competentes, ela sinalizará até onde esse tipo de conteúdo pode ir.

A segunda questão diz respeito às vendas à descoberto e suas consequências. Durante a última crise, algumas autoridades adotaram proibições temporárias para esse tipo de operação [23]. Seus defensores argumentam que as vendas a descoberto auxiliam na formação de preços e na sinalização de fraudes; enquanto seus detratores afirmam que essas operações exacerbam as pressões para queda dos preços em momentos críticos [24]. 

Qualquer que seja o efeito do “short selling” para a eficiência dos mercados, o caso da GameStop evidencia a necessidade de avaliar os potenciais riscos sistêmicos quando fundos de investimento e outros investidores profissionais registram, em conjunto, posições vendidas proporcionalmente muito elevadas em relação ao estoque de ações emitidas por uma mesma companhia.

A terceira, e não menos importante, questão trata da atuação dos intermediários. A Robinhood e outras plataformas de investimentos foram essenciais para que os pequenos investidores aumentassem sua participação em bolsa. Entre os estímulos que criaram, estão zerar os custos de corretagem e a criação de interfaces mais intuitivas para os investidores.

Em 28 de janeiro, contudo, alguns desses mesmos intermediários decidiram restringir a negociação de ações da GameStop e demais companhias mencionadas acima. A ação da varejista de jogos caiu cerca de 50% nesse dia; e, no pregão seguinte, quando as operações se normalizaram, subiu 60%.

A Robinhood argumentou que essas restrições foram impostas devido ao aumento no volume de ordens, considerando os riscos para sua compensação e as exigências de capital impostas pelo regulador [25]. De todo modo, essa decisão gerou questionamentos de legisladores, autoridades [26] e clientes [27].

A mesma plataforma já havia sido multada, em 2020, por não informar adequadamente que se remunerava por encaminhar as ordens dos seus clientes para outros intermediários e por falhar em sua obrigação de buscar as melhores condições para essas operações. Conforme apuração do regulador dos EUA, esse modelo de negócios teria resultado em uma perda total de US$ 34,1 milhões para seus clientes (mesmo considerando que não cobravam taxas de corretagem) [28].

Esses casos evidenciam algumas das potenciais limitações do “encanamento” por onde fluem as ordens de compra e venda para as bolsas nos EUA. As responsabilidades dos intermediários de lá foram revisadas há pouco, buscando assegurar que a execução dessas ordens atenda aos melhores interesse dos clientes [29]. No Brasil, por sua vez, a CVM avalia se deve adotar um regime de roteamento de ordens análogo ao dos EUA ou se opta pelo modelo europeu, com mais flexibilidade para os intermediários atenderem suas obrigações de conduta [30].

Quando se olha com esse devido distanciamento, fica claro que GameStop, WallStreetBets, Robinhood e todos esses personagens são frutos do nosso tempo.  A carta que aparece fora desse baralho é a legislação sobre negociação de valores mobiliários. A lei é antiga, apesar de progressivamente atualizada como resposta às crises do passado.

Existem duas opções: entender que essa saga mais recente é apenas um fato isolado; ou compreendê-la como um sinal das tendências que estão emergindo em diferentes mercados. Nesse segundo caso, uma revisão minuciosa da legislação aplicável, para trazer maior clareza acerca das questões acima, poderia ser importante para preparar o terreno para o desenvolvimento sustentável dos mercados a longo prazo.

Notas e referências

[1] Motherboard (2021a), “AOC, Ted Cruz Agree: Robinhood's GameStop Stock Ban Is 'Unacceptable'”.

Disponível em: https://www.vice.com/en/article/88ae5z/aoc-ted-cruz-agree-robinhood-gamestop-stock-ban-is-unacceptable

[2] FCA UK (2021). “We’re warning UK investors in certain US listed shares which are being discussed online to use extreme caution. Volatile markets are unpredictable and mean you can quickly lose money. Losses are unlikely to be covered by the Financial Services Compensation Scheme #wallstreetbets”.

Disponível em:  https://twitter.com/TheFCA/status/1355161634399023111

[3] Citron Research (2021). “The WH should have more pressing issues than to investigate stock forums on Reddit.  We are a nation based on free speech and capitalism.  Citron has fought globally for 20 years for that right and no one trading phenomenon should eliminate it.  *Our first political tweet ever”.

Disponível em: https://twitter.com/CitronResearch/status/1354507447105327105

[4] Mais informações sobre o perfil da empresa em: https://finance.yahoo.com/quote/GME/profile?p=GME

[5] Gameindustry.biz (2021), “GameStop has closed 462 stores so far this year, 783 in last two years”.

Disponível em: https://www.gamesindustry.biz/articles/2020-12-08-gamestop-has-closed-462-stores-so-far-this-year-783-since-last-year

[6] Bloomberg (2021), “How WallStreetBets Pushed GameStop Shares to the Moon”.

Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-01-25/how-wallstreetbets-pushed-gamestop-shares-to-the-moon

[7] 17 CFR Part 230.500-508 - Regulation D - Rules Governing the Limited Offer and Sale of Securities Without Registration Under the Securities Act of 1933.

Disponível em: https://www.law.cornell.edu/cfr/text/17/part-230

[8] 17 CFR Part 242.200-204 - Regulation SHO - Regulation of Short Sales.

Disponível em: https://www.law.cornell.edu/cfr/text/17/part-242

[9] A regulação dos EUA – ao contrário da brasileira – permite ainda, em condições específicas, as operações chamadas de “naked short selling”. Essas são vendas a descoberto, como as descritas anteriormente, nas quais o investidor nem mesmo aluga as ações em primeiro lugar. Entre a venda e a execução da operação, o vendedor precisa encontrar alguma forma de entregar as ações negociadas.

[10] Motherboard (2021b), “Send This to Anyone Who Wants to Know WTF Is Up With GameStop Stock”.

Disponível em: https://www.vice.com/en/article/pkdvgy/send-this-to-anyone-who-wants-to-know-wtf-is-up-with-gamestop-stock

Bloomberg (2021b), “GameStop Sellers Reload Bearish Bets After US$6 billion loss”.

Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-01-25/gamestop-short-sellers-reload-bearish-bets-after-6-billion-loss.

[11] Bloomberg (2021c), “GameStop Soards with Activist Ryan Cohen Gaining Board Seats”.

Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-01-11/gamestop-soars-with-activist-ryan-cohen-gaining-board-seats

[12] Dados apresentados por TradingView, disponíveis em: https://br.tradingview.com/symbols/NYSE-GME/

[13] Financial Times (2021a), “Hedge fund Melvin sustains 53% loss after Reddit onslaught”. Disponível em: https://www.ft.com/content/fa74a7c6-bcb0-469e-8b76-c5dfc04b9564

[14] Yahoo Finance (2021a), “Citadel, Point72 Back Melvin With $2.75 Billion After Losses”.

Disponível em: https://finance.yahoo.com/news/citadel-point72-back-melvin-2-203509666.html

[15] Yahoo Finance (2021b), “Investors fear broader stock bubble after Reddit storms GameStop and silver”. Disponível em: https://finance.yahoo.com/news/reddit-wallstreetbets-gamestop-amc-silver-stock-market-bubble-141026972.html

[16] Ver Motherboard (2021b), em nota acima.

[17] Valor (2021), “IRB diz à CVM não ter ingerência sobre movimento de investidores em redes sociais”.

Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/01/29/irb-diz-a-cvm-nao-ter-ingerencia-sobre-movimento-de-investidores-em-redes-sociais.ghtml

[18] CVM (2021), “CVM alerta: possível atuação irregular de pessoas em mídias sociais, com vistas a influenciar o comportamento de investidores”.

Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/cvm-alerta-possivel-atuacao-irregular-de-pessoas-em-midias-sociais-com-vistas-a-influenciar-o-comportamento-de-investidores

[19] 15 U.S. Code § 78i - Manipulation of security prices. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/15/78i

[20] Financial Times (2021b), “r/WallStreetBets throws down challenge to regulators”. Disponível em: https://www.ft.com/content/8a483767-6b55-40a2-b8a6-1439a2f56084

[21] Ver Mortherboard (2021b), em nota acima.

[22] René Magritte (1898-1967), pintor surrealista francês que compôs o famoso quadro “La trahison des images” (A traição das imagens), com a inscrição “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo). Mais informações disponíveis em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%A9_Magritte

[23] Anbima (2020), Radar ANBIMA #30. Disponível em: https://www.anbima.com.br/pt_br/informar/regulacao/internacional/radar/reguladores-europeus-proibem-temporariamente-as-vendas-a-descoberto-para-conter-impactos-da-pandemia.htm

[24] WFE (2020), “What does academic research say about short-selling bans?”. Disponível em: https://www.world-exchanges.org/storage/app/media/short_selling.pdf

[25] Ver Yahoo finance (2021b), em nota acima.

[26] Yahoo finance (2021b), “How the Tale of Reddit, GameStop, Robinhood is Really About 5 Big Trends”. Disponível em: https://news.yahoo.com/how-the-reddit-gamestop-robinhood-story-is-part-of-5-bigger-trends-130701087.html

[27] Motherboard (2021c), “This App Lets You Automatically Join the Robinhood Class Action Lawsuit”. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/akdaj5/join-robinhood-class-action-lawsuit

[28] CNN Business (2020), “Robinhood agrees to pay a $65 million fine for deceiving clientes”. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/12/17/investing/robinhood-sec-settlement-deceptive-practices/index.html

[29] SEC (2020), “Regulation Best Interest, Form CRS and Related Interpretations”. Disponível em: https://www.sec.gov/regulation-best-interest

[30] CVM (2020), “Audiência Pública SDM 09/2019”. Disponível em: http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2019/sdm0919.html