Pico da curva e populismo pandêmico


Por definição, o chamado pico da curva da COVID é o ponto em que a taxa de novos casos da doença começa a cair. A taxa só vai cair se menos pessoas forem contaminadas progressivamente. Isso ocorre se a pessoa contaminada reduzir o contato com outras pessoas e o contágio, uma vez em que o vírus é transmitido principalmente pelo ar.

Outra possibilidade para a curva cair é a imunidade de rebanho. Se a quantidade de pessoas curadas e imunizadas for alto o suficiente, menos pessoas estarão acessíveis para serem contaminadas, e a taxa de transmissão cai.

A variável principal para entender a evolução da epidemia é a taxa de contágio. Se for maior que 1, quer dizer que o número de novos infectados vai aumentar sem parar a cada período. Se for menor do que 1, a incidência diminui com o tempo, e o estoque de contaminados naturalmente se estabiliza.

Quando a taxa de contágio diminui, naturalmente a epidemia se estabiliza, com redução gradual de novos casos. A Europa está próxima de zerar o número de casos em um futuro não muito distante, assim como ocorreu em países diversos, como China e Nova Zelândia. Brasil e Estados Unidos ainda não estabilizaram o número de casos. Por serem países grandes, em alguns lugares o pico já foi atingido; em outros, a taxa ainda está alta e acelerando.

Controlar a epidemia enquanto ela avança no vizinho é como “enxugar gelo”. A flexibilização deveria estar condicionada a que a taxa de contágio seja menor que 1. Essa poderia ser uma métrica nacional para permitir uma maior flexibilização. O grau ótimo de flexibilização que garanta uma taxa de contágio menor que 1 é uma questão empírica. Alguma coisa entre o lockdown e o antigo normal.

Infelizmente, faltou muita comunicação e coordenação dos líderes políticos. Pelo contrário, a cada semana anunciavam uma nova data para o pico da curva. Do jeito que é geralmente colocado, é difícil entender o que é isso e qual a estratégia para depois. Mais do que isso, o fatídico “pico” depende do comportamento da população: se houver fortes medidas profiláticas agora, o pico será agora.

Não importa o quê o Bolsonaro fale. Na linguagem de incentivos na economia, o presidente não está com a "pele em jogo" - não é o governo federal quem gasta e se responsabiliza por hospitais lotados, contratações de médicos e equipamentos (incluindo os superfaturados...) Essas são obrigações dos prefeitos e governadores. Esses que terão que gastar diretamente e impedir a crise no sistema de saúde, caso contrário serão diretamente punidos eleitoralmente.

Na tempestade perfeita brasileira, as coisas sempre podem complicar. Esse ano tem as eleições municipais, o que abre brechas para um tipo de “populismo pandêmico”: deixar a coisa ir degringolando aos poucos, com uma taxa de contágio não muito alta, mas acima de 1, até depois das eleições. Com isso, seria possível evitar parcialmente medidas impopulares e custosas eleitoralmente, como o isolamento social e o fechamento do comércio.

O problema é que quanto maior o número de casos, mais difícil e imprevisível fica para controlar a propagação da doença. Controlar a propagação quando temos 10 mil casos é uma coisa. Quando o número de infectados chega na casa dos milhões é outra coisa. Se o número de novos casos for pequeno, os custos para tratar, rastrear os contatos das pessoas contaminadas e controlar a epidemia serão muito menores.

Deixar a epidemia aumentar sem parar é completamente inviável, pelo menos do ponto de vista dos gestores de saúde municipais. Qualquer taxa acima de 1 é explosiva - a diferença é só no "quanto". Aumentos explosivos de casos significa aumentos explosivos de gastos em saúde.

Uma cidade grande como Belo Horizonte possuía (até o início de junho) cerca de 240 leitos de UTI na rede municipal. Se 0.1% do total da população de cerca de 2,5 milhões de pessoas necessitasse de UTI, isso significaria uma demanda extra por 2500 leitos.

O governo federal poderia ser mais útil estabelecendo uma métrica nacional para permitir a abertura das atividades, além de atuar coordenando as políticas regionais. Em primeiro lugar, poderia haver uma métrica determinando que só deve haver flexibilização quando a taxa de contágio for menor que 1. Além disso, ao contrário do que dizia o ministro da economia, é um bom momento para aumentar as transferências aos municípios vinculadas em saúde.


[1] Marcelo Araújo Castro, professor de Economia na Universidade Federal de Uberlândia. Homepage: https://sites.google.com/view/marcelo-castro/home