Criatividade

8. De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?


Enquanto criancinha, minhas irmãs (tenho quatro) me contavam muitas histórias. Depois, a partir de 5 anos, comecei a ler bastante, e eu pensava muito, passeando na natureza, com o meu gato Popolasca., que também dormia comigo.

Meu pai trabalhava na administração da floresta e tive sorte de morar em lugares bonitos e inspiradores, em particular na Córsega, conhecida como L’Île de Beauté (A Ilha da Beleza). É de fato um dos lugares mais belo do mundo, com cachoeiras, rios, lagos, montanhas nevadas e o mar ... um lugar encantador. Perto da nossa casa, que ficava na entrada da Scala di Santa Regina, tinha cogumelos de tamanho gigantesco, em particular o famoso cogumelo vermelho com pontos brancos, Amanita Muscaria.

A Corséga ficou famosa através do conto Colomba (1840) de Prosper Mérimée, um dos melhores escritores de língua francesa, autor também do conto Carmen, que se tornou famoso através da ópera de Bizet, e de um celebre ditado, um verdadeiro desafio para quem acha que sabe escrever corretamente o Francês (O Imperador Napoleon III fez 75 erros, quem ganhou foi o embaixador da Áustria, o princípio Richard Klemens von Metternich, que fez só três erros apesar do fato que o Francês não era a língua nativa dele).

Morei também nas montanhas perto de Genebra e do Mont Blanc, outro lugar incrível. Nossa casa era do lado do castelo de Francisco de Sales, um famoso santo da igreja católica, autor de Introdução a Vida Devota (1609), o livro mais vendido da igreja católica depois da Bíblia.

Na escola tive uma professora que nos fazia praticar um exercício bem interessante: botava uma música de longa duração, tipo sinfonia, e devíamos escrever uma história. Eu me lembro em particular de ter escrito uma história no ambiente de Quebra-Nozes de Tchaikovsky. Eu tinha muita imaginação. Felizmente até agora nunca me faltou criatividade.

Tive outra professora que nos fazia praticar um exercício mais clássico, a recitação de poemas. A parte criativa era devida ao fato que a professora deixava-nos escolher os poemas que recitávamos. Eu gostava de Jean de La Fontaine e escolhia as fábulas mais longas para desafiar a minha memória (uma tem mais de 500 versos). Tenho boa memória e acredito que isso facilita a escrita, não no sentido de repetir o que já lemos, mas para fazer a síntese de uma grande quantidade de ideias diferentes.

Muitas ideias me vendo conversando com outras pessoas e viajando, em particular organizando e participando em congressos, assim que dando aulas, mas também falando informalmente com amigos e amigas.

No Brasil, conversei por dias com o Tarcísio Pequeno passeando no Ceará (Guaramiranga, Praia de Iracema, Canoa Quebrada ...). Ele era professor de inteligência artificial da UFC (Universidade Federal do Ceará) e agora é diretor da FUNCAP (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico). O resultado disso são dois artigos, um sobre regras de jogos, The Rules of the Game (artigo conjunto), outro sobre o acaso, Dice: a hazardous symbol for chance? (artigo para um livro em homenagem a ele).

Mesma coisa com minha namorada Catherine Chantilly, pintora, viajando no mundo inteiro. Isso levou em particular a dois artigos, um sobre a pintura, no ambiente da Ilha de Pascoa, The Hexagon of Paintings (artigo conjunto), outro sobre o riso, no ambiente de Sinaia na Romênia, Risoto et Rosita au Pays du Rire - A Comic Trip for the Few Happy Francophones (como falou Schopenhauer, o riso é a única qualidade divina do ser humano)


Colaborei e continuo colaborando também com meu ex-orientador Newton da Costa, um dos pensadores mais originais e criativos do Brasil, tão bem que organizei em dezembro de 2019 no Rio de Janeiro o primeiro congresso mundial da Academia Brasileira de Filosofia em homenagem aos 90 anos dele, escolhendo com temática a criatividade (CREATIVITY'2019).

Da Costa foi fundamental no início para me guiar na escritura de artigos de lógica matemática. O excelente artigo do Paul Halmos How to write mathematics me auxiliou também um tanto.

Com o da Costa escrevemos mais de 10 artigos conjuntos, em Francês e Inglês. O derradeiro se chama Is God Paraconsistent? (2020). Ademais escrevemos juntos um livro (do qual participou também Otávio Bueno) sobre a teoria dos conjuntos (em Português) e fiz a tradução do livro principal do Newton da Costa, Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica, para o Francês.

Outra tradução que eu fiz do Português para o Francês, a pedido de uma amiga, a presidente da sociedade lacaniana em Paris, foi uma parte de Raízes do Brasil do Sérgio Buarque de Holanda (isso foi em 1994, ainda não tinha tradução em Francês deste livro). Mas o exercício de tradução não me apetece muito. Tem um artigo meu que foi traduzido em Português, O Suicídio segundo Schopenhauer (publicado na revista Discurso da USP), mas não fui eu que fiz a tradução. A tradução não é um processo de escrita muito criativa, é mais um quebra-cabeça, e não tenho interesse a quebrar a minha cabeça.


Praticar várias línguas é bom, mas traduzir é meio forçado (cf. o projeto de Barbara Cassin, Le Dictionnaire des Intraduisibles, do qual participa meu colega do PPGF/UFRJ, Fernando Santoro). Da mesma forma que podemos gostar de dirigir um Corcel 73, uma Opala Commodore, um Jeep Compass, mas transformar um Corcel em Jeep seria meio absurdo.

Todavia gosto da ideia de Raymond Queneau, que ele desenvolveu junto com François le Lionnais formando o grupo OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), de seguir alguns restrições e regras. Queneau, um dos meus autores favoritos, começou como surrealista, mas depois ele achou meio bobo a escritura automática que consiste a escrever tudo que passe pela nossa cabeça, tanto que de seguir regras tradicionais (tal que a versificação alexandrina).


A ideia dele foi: nem vamos escrever sem seguir regras, nem seguindo regras conhecidas, vamos sair dessa dicotomia, inventando e seguindo novas regras. Um clássico da literatura Oulipiana é A Vida Modo de Usar do Georges Perec, obra prima da literatura francesa do século vinte.

Este procedimento foi de fato o início da política na Grécia, com a criação de uma variedade de legislações por Licurgo, Sólon, Drácon, para citar os mais famosos legisladores da antiguidade grega. Mais na frente Jean-Jacques Rousseau fez um projeto interessante de constituição para a Córsega, e também um pouco depois foram formuladas a Constituição dos Estados Unidos (1787) e, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

É importante que o ser humano não se torne escravo das leis, se lembrando que as leis foram feitas pelo ser humano, para o ser humano, e que sempre há possibilidade de ajustar, transformar, melhorá-las.

Na perspectiva Oulipiana, a criatividade é nas regras que inventamos e na maneira de escrever em função dessas regras, buscando o equilíbrio entre a forma e o conteúdo. Eu sigo essa metodologia quando escrevo.