Compartilho antes, penso depois

Quais fatores cognitivos levam as pessoas a acreditarem ou não em “fake news”? Devido aos últimos acontecimentos políticos e sociais, essa questão ganha, cada vez mais, relevância no cenário acadêmico. Embora as “fake news” não sejam um fenômeno novo, o interesse por notícias falsas, e o que há por trás delas, certamente disparou desde a eleição de Donald Trump e do Brexit em 2016.

Segundo Hirst (2017), a princípio, as “fake news” não tinham cunho político declarado, não era uma questão partidária, elas se dedicavam mais à formulação de teorias conspiratórias relacionadas aos incidentes históricos como a queda do “World Trade Center” e a chegada do homem à lua ou se preocupavam em espalhar boatos baseados em lendas urbanas e curiosidades, algo, aparentemente, sem muito impacto ou relevância social.

Porém, com o aumento do acesso à internet e à popularização das mídias sociais, essas publicações noticiosas passaram a representar uma possível ameaça aos indivíduos e à sociedade: Em 2014, no Guarujá-SP, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu após ter sido espancada por dezenas de moradores na cidade do litoral paulista. O ataque à Fabiane foi motivado por uma publicação feita em uma página do Facebook chamada “Guarujá Alerta”, que mostrou um retrato falado de uma mulher que estaria sequestrando crianças para rituais de “magia negra”, os moradores associaram a vítima ao retrato falado e iniciaram a agressão. Segundo testemunhas Fabiane não teve tempo de se defender. (G1-SP, 2014).

O assassinato de Fabiane não é um fato isolado, em 2018, boatos sobre sequestros de crianças se espalharam pelo WhatsApp em uma cidade pequena do México. A notícia era falsa, mas uma multidão espancou e queimou vivos dois homens, antes de alguém checar sua veracidade. (BBC, 2018). Algo parecido, aconteceu na Índia, também em 2018: uma mulher foi linchada até a morte por ser acusada, em mensagem no WhatsApp, de sequestrar crianças. (BBC, 2018). Tal linchamento motivou o WhatsApp a limitar o número de vezes em que uma mensagem pode ser encaminhada, como forma de coibir a disseminação de informações falsas. Os três casos, em diferentes países, possuem algo em comum: o apelo emotivo da imagem de possíveis crianças que estariam sendo sequestradas e assassinadas.

O mesmo apelo emocional contaminou as campanhas políticas nos últimos anos: candidatos como Hillary Clinton (2016), Fernando Haddad (2018), Joe Biden (2020), dentre outros políticos, tiveram a sua imagem, por meio de “fake news”, associada à exploração sexual infantil ou envolvimento com rituais satânicos. Recentemente, julho de 2020, publicação ligada ao grupo Anonymous em mídias sociais, também, associaram Donald Trump e Jair Bolsonaro ao tráfico de menores. Combinar situações de comoção social, como exploração de menores, com identidade ideológica partidária, tornou-se uma poderosa estratégia política dentro das mídias sociais. E por mais inusitadas que pareçam as estórias, elas ganham público na internet e conseguem, de fato, impactar as decisões eleitorais.

Episódios que mostram a ameaça que a disseminação de notícias falsas e desinformação representa para a saúde e a democracia – na verdade apenas a ponta do iceberg – não param de crescer. Exemplos surgem com frequência assustadora, assim como iniciativas de combate ao fenômeno hoje global. Várias soluções estão sendo propostas, no âmbito da tecnologia e da regulamentação, mas elas ainda parecem imperfeitas ou insuficientes. A arma mais forte que temos, hoje, para enfrentar esse desafio de enormes proporções é quase singela. Ela envolve ensinar as crianças e jovens a interrogar as informações e estabelecer com elas uma relação inquisidora e reflexiva. E isso se aprende na escola. (FERRARI; OCHS; MACHADO, 2020, p. 45).

Pennycook e Rand (2018) defendem que, diferente do que muitos afirmam, não são apenas questões partidárias, intenção em promover ou prejudicar determinado candidato, que motivam o compartilhamento de notícias falsas. Esse comportamento, também, é impulsionado por uma falha em empregar suficientemente o raciocínio analítico para interpretar essas notícias. Ou seja, de acordo com a teoria do processo dual, as pessoas tendem a analisar “fake news” usando mais o sistema intuitivo (Sistema 1), do que o sistema analítico (Sistema 2). É um processo mais emocional do que racional.

No geral, segundo Kahneman (2012) o Sistema 1, mais intuitivo e impulsivo, funciona, automaticamente, e o Sistema 2, mais analítico e focado, normalmente fica em um confortável modo de pouco esforço, em que apenas uma fração de sua capacidade está envolvida. Assim, na maior parte do tempo as pessoas agem conforme as operações realizadas pelo Sistema 1, o que faz sentido, pois esse sistema permite a tomada de decisões de forma mais rápida e possibilita a execução de atividades corriqueiras sem que a pessoa tenha que pensar muito a respeito, atividades como dirigir um carro, por alguém que possui o hábito de dirigir, são desenvolvidas usando o Sistema 1, é uma atividade quase automática. Já, a atividade mental de verificar a validade de um argumento lógico complexo, fica sob a responsabilidade do Sistema 2, pois exige mais energia, é uma atividade mais complexa.

Pennycook e Rand (2018) afirmam que, no contexto das “fake news”, ao usar o pensamento analítico (Sistema 2), a pessoa tenderia a ser mais cética ao ler a notícia, e teria maior capacidade de discernir, se a notícia é falsa ou verdadeira, independentemente de sua visão política/ideologia. Com essa capacidade de discernimento, a pessoa deixaria de compartilhar ou interagir com conteúdos falsos, o que diminuiria a sua proliferação. O problema é que, rotineiramente, as pessoas usam o sistema intuitivo (Sistema 1), que procuram "atalhos cognitivos", que as permitem fazer escolhas e tomar decisões de forma mais rápida. É nessa tentativa de se chegar à resposta de forma mais rápida e fácil, que surge o “viés de confirmação” e o “efeito halo”, que serão abordados posteriormente. “Esses processos cognitivos são maneiras pelas quais a representação do mundo que o Sistema 1 gera é mais simples e mais coerente do que a coisa real.” (Kahneman, 2012, p. 107). O Sistema 1 procura fazer uma análise mais superficial e rasa da realidade.

Além dessa tendência natural, se for considerado que as mídias sociais são entendidas pelos seus usuários mais como plataforma de entretenimento, do que de aprendizagem, e que o pensamento analítico (Sistema 2) está mais voltado para situações de dúvidas e incertezas, pode-se concluir que é bem provável que ao interagir com os conteúdos dessas mídias, as pessoas usem mais o sistema intuitivo (Sistema 1). Se ferramentas com algoritmos e fatores como “bolha de filtro” forem adicionados a esse cenário, certamente, a pessoa não terá acesso aos conteúdos inquietantes capazes de questionar suas certezas e ideologias, mais uma razão para não se acionar o sistema 2 ao analisar as informações. Ou seja, as mídias sociais associadas às novas estratégias de comunicação, que unem emoção com “fake news”, possuem um alto potencial persuasivo e manipulatório, onde apenas pessoas com a habilidades de análise crítica desenvolvidas conseguem se desvencilhar das armadilhas presentes nesse ambiente.

Pennycook e Rand (2018) realizaram dois estudos em Yale nos EUA: o primeiro com 843 pessoas e o segundo com 2.644, onde os participantes tentaram identificar notícias falsas de verdadeira, em ambiente que simulava o Facebook, demostraram que houve uma tendência geral para indivíduos mais analíticos reconhecerem as notícias verdadeiras com mais facilidade. O estudo demostrou que, independentemente do partidarismo do participante ou da manchete tendenciosa, indivíduos mais analíticos foram mais capazes de diferenciar “fake news” de notícias verdadeiras. Além disso, a pesquisa demostrou que pessoas com maior repertório de notícias, ou seja, que já haviam visto, em outro contexto, as notícias apresentadas no estudo, conseguiram um melhor desempenho. Nos dois casos, o uso do pensamento analítico teve mais influência na tomada de decisão do que a posição ideológica/partidária do sujeito.

Esse estudo é importante para desmistificar a teoria de que pessoas com forte interesse partidário são capazes de compartilhar notícias falsas, apenas para favorecer ou prejudicar determinados candidatos. O compartilhamento de notícias falsas está mais associado aos fatores emocionais, cognitivos e de repertório do que à intenção de desinformar seus pares. Tanto a má escolha eleitoral como o linchamento público de inocentes, partiram de decisões impulsivas e emocionais. Por isso, um trabalho educativo que estimule aos estudantes a desenvolverem senso crítico para reconhecerem publicações enganosas – que, em muitos casos, são produzidas para desinformar e são pautadas mais nas emoções do que na razão – faz-se necessário para o atual contexto social e político. Deve-se estimular, nas pessoas, o hábito de checar as notícias, analisar a coerência e confrontar os aspectos factuais da publicação.

É possível que, com esse hábito, as pessoas passem a analisar criticamente as notícias de forma mais rápida e automática. Da mesma forma que dirigir, para um principiante, requer operações do Sistema 2, e com o passar do tempo da experiência para o Sistema 1. Interagir criticamente com publicações enganosas pode se tornar uma atividade mental mais rápida, basta que o sujeito adquira repertório suficiente para perceber os padrões dessas notícias, entenda como as ferramentas comunicacionais funcionam para persuadi-lo e, através de um trabalho educativo, criem o hábito de não se deixar levar pelas emoções que essas publicações suscitam.

Acesse: "fatooufake.me", jogo educativo fruto do do projeto de mestrado de Luana Costa Santos, no IF Baiano - Campus Catu, desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Fábio Carvalho Nunes e coorientação do Prof. Dr. José Rodrigues de S. Filho e com a programação de Vinícius Costa Santos.