o crime de hermenêutica citado por Sergio Moro no Senado já estaria vigente?
Em 1965 com a edição da Lei 4.898 ficou regulado o direito de representação e a responsabilidade Administrativa civil e penal para os casos onde se constituem o abuso de autoridade, dentre outros, o de ordenar ou executar medida preventiva da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder - (art. 4º, a).
Não obstante, o código de processo penal, por cautela, determina que não será permitido o emprego da força, exceto no caso em que o preso resista à prisão ou tente fugir – (art. 234), situação em que o uso da força e por consequência a utilização de algemas tornar-se-iam indispensáveis.
O Código Penal Brasileiro, no que tange aos crimes contra a administração da justiça, comina a pena de detenção de um mês a um ano àquele que ordena ou executa medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder – (art. 350)
Da conjunção do exposto até aqui, temos que, é passível de representação e de processo de responsabilidade administrativa cível e penal, a não observação das formalidades legais ou abuso de poder, ao executar medida preventiva de liberdade individual, sob pena de detenção.
Pelo conjunto da obra, ficou evidente até então, a proteção à dignidade da pessoa humana (CF/88, 1º, III) e ao tratamento humano e não degradante (CF/88, 5º, III); a garantia à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (CF/88, 5º, X) e da integridade tanto física como moral (CF/88, 1º, XLIX) do indivíduo, assegurados como direitos e garantias fundamentais pela Constituição da República.
No entanto para que se pudesse fazer o uso legal das algemas, o Supremo Tribunal Federal, publicou no Diário Oficial de 22/08/2008, a Súmula Vinculante nº 11, com fundamento nos dispositivos supra transcritos, o seguinte verbete:
Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A jurisprudência[1], posteriormente ao enunciado, passou a entender o uso de algemas como exceção que desafia fundamento idôneo devidamente justificado na forma escrita.
Foram mais de 8 anos sob a Égide do enunciado, que finalmente, em 27 de setembro deste ano (2016), publicou-se o Decreto Federal 8.858/16, que regulamenta o disposto no art. 199 da lei 7.210 de 1.984 – LEP – LEI DE EXECUCOES PENAIS.
O referido artigo[2] expressava que o uso de algemas seria regulado por decreto federal.
Fundado na Constituição Federal, o dito decreto tem como diretrizes, a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante.
Também orienta o dispositivo, o tratado internacional de direitos humanos, conhecido como REGRAS DE BANGKOK que são regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, resolução 2010/16 de 2010.
A regra 24, vem complementar as regras 33 e 34 das Regras mínimas para o tratamento de reclusos[3].
Tal regra (24), trata dos instrumentos de contenção, e sua proibição de uso em mulheres em trabalho de parto, durante e em período imediatamente posterior.
Por fim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto 678 de 6 de novembro de 1992, estabelecendo seu cumprimento na integra[4], neste caso o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.
Quanto ao emprego de algemas, o art. 2ª do Decreto 8.858/16, apenas o permite em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.
Finalmente o art. 3º, veda expressamente o emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.
Note que o referido Decreto nº 8.858 publicado em 27 de setembro de 2016, ao regulamentar o uso de algemas, conforme previsto no art. 199 da LEP, adota de forma expressa a regra 24, das REGRAS DE BANGKOK, como já abordado (veja referência 3).
Não obstante, o uso de algemas sem que atenda às Formalidades Legais, agora expressas no Decreto ora em comento, sujeita à representação e processo de responsabilidade administrativa civil e penal, responsabilidade objetiva do estado, e indenização por dano moral, “o agente que executa, o que ordena e o próprio Estado, enfim, às autoridades[5] que no exercício de suas funções cometam o abuso.
As formalidades legais, cujo não atendimento ensejam direito de invocar a responsabilidade objetiva do Estado mediante ação de reparação por danos morais, se resume comumente à não resistência e alegação de receio de fuga ou de risco a integridade física infundada, bem como a falta de justificativa escrita do uso excepcional das algemas.
O fundamento legal é a Lei 4.898/65, art. 4º, alínea a, c/c Decreto 8.858/16, e artigos, 5º e 37, § 6º da CF/88.
Não obstante, cabe ressaltar que, nos termos do art. 351 do Código Penal, se por falta de diligencia do responsável, houver a promoção ou facilitação à fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança detentiva, incorre este à pena de seis meses a dois anos de detenção.
Neste viés, torna-se extreme o cuidado em se utilizar ou não a excepcionalidade das algemas.
Vindo o Decreto Federal regulamentar o previsto no art. 199 da Lei 7.210 de 1.984 – LEP – LEI DE EXECUCOES PENAIS, no que tange ao uso de algemas, a excepcionalidade (uso de algemas) agora é Lei.
Se considerarmos a fundamentação supra, o chamado "crime de hermenêutica", - citado pelo Excelentíssimo Dr. Juiz Federal Sergio Moro, quando de sua participação em debate temático à mesa do Senado, demonstrando sua preocupação no que tange à interpretação da lei no momento do ato, - neste caso já esta ressuscitada.
Digo isto porque, como o citado Magistrado mesmo disse, tal crime estava sepultado a mais de 100 anos, mediante atuação do Advogado Rui Barbosa no STF. A lei de Abuso de autoridade a ressuscitaria.
Disponível em: http://advogadonil.jusbrasil.com.br/artigos/401725474/uso-de-algemas
[1] Rcl 22557, Relator Ministro Edson Fachin, Decisão Monocrática, julgamento em 15.12.2015, DJe de 17.12.2015.
[2] Lei de Execucoes Penais – 7210/84. Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal.
[3] 33. A sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção. Mais ainda, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação só podem ser utilizados nas seguintes circunstâncias:
a) Como medida de precaução contra uma evasão durante uma transferência, desde que sejam retirados logo que o recluso compareça perante uma autoridade judicial ou administrativa;
b) Por razões médicas sob indicação do médico;
c) Por ordem do diretor, depois de se terem esgotado todos os outros meios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causar prejuízo a si próprio ou a outros ou de causar estragos materiais; nestes casos o diretor deve consultar o médico com urgência e apresentar relatório à autoridade administrativa superior.
34. O modelo e o modo de utilização dos instrumentos de coação devem ser decididos pela administração penitenciária central. A sua aplicação não deve ser prolongada para além do tempo estritamente necessário.
[4] Art. 1º A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.
[5] Lei 4898/65 - Art. 5º Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.