Pensamentos
A deficiência intelectual refere-se a uma condição em que a pessoa apresenta limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, abrangendo habilidades conceituais, sociais e práticas.
A deficiência intelectual refere-se a uma condição em que a pessoa apresenta limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, abrangendo habilidades conceituais, sociais e práticas.
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A cidade, no seu asfalto, grita. Ela não quer que algumas pessoas existam em seu espaço. E isso não é uma metáfora. São as calçadas irregulares, o sistema de transporte que ignora, as filas intermináveis, os barulhos que agridem. A cidade foi construída para poucos – e, entre esses poucos, a ideia de “normalidade” se faz implacável. É uma normalidade que impõe o ritmo, a percepção e o jeito certo de interagir, porque qualquer outro jeito parece inconveniente. Se é para existir, que exista em silêncio. Que não demande mais que o possível, que não peça outra lógica. O espaço público impõe, sem dizer, que qualquer um que escape ao padrão deve se adequar ou, de preferência, desaparecer.
Pessoas neurodivergentes e com deficiências intelectuais vivem em um confronto diário com essa realidade. São vidas inteiras negociando cada pedaço da cidade, cada ponto de ônibus, cada escola, cada hospital. O que para muitos é trivial – entender uma placa, esperar em uma fila, manter-se alheio ao volume e à intensidade das luzes, sons e cheiros – torna-se, para elas, uma batalha árdua. Como é possível existir quando o mundo se arma contra qualquer outra forma de presença que não seja a “esperada”? E onde está a cidade que deveria acolher?
Estudantes da APAE fazendo ginástica durante aula de educação física. Foto: Melissa Sayuri
Os mecanismos de acessibilidade que existem geralmente ignoram o corpo e a mente que fogem ao “funcionamento padrão”. As poucas rampas e banheiros adaptados atendem a alguns – mas onde está a acessibilidade sensorial? Onde estão os espaços onde o tempo possa ser outro, onde as demandas cognitivas não sufocam?
Os prédios e repartições estão longe de ser seguros para alguém que precise de intervalos, de instruções claras e visuais, de uma certa previsibilidade. Mais do que isso, não consideram o respeito à diferença. O mundo hoje é violento para quem é neurodivergente, para quem tem deficiência intelectual – violento em sua falta e em sua recusa a imaginar novas formas de convivência.
O preconceito também se esconde. “Eles não precisam disso tudo”, dizem uns; “eles são poucos”, dizem outros. Mas o que é essa fala se não um silêncio forçado? Forçar o outro a existir à margem é uma forma de apagamento; fazer com que alguém se adapte ao próprio desconforto, ao ponto de precisar escolher entre sua segurança mental e a presença no espaço público, é uma forma de apagamento. Quem decide o que é suficiente ou necessário para um ser humano existir no mundo?
Há movimentos que lutam pela mudança, pessoas que se recusam a aceitar que a cidade seja apenas para uns poucos. São famílias, são ativistas, são as próprias pessoas neurodivergentes e com deficiências intelectuais dizendo basta. Elas exigem mais do que direitos escritos. Exigem poder ocupar o espaço público sem que a presença delas seja percebida como incômoda. Querem que o direito à cidade seja pleno, que exista com respeito à multiplicidade do que é ser humano. Isso significa mais do que adaptações físicas; significa ouvir as demandas que só podem ser expressas por quem vive essa experiência, significa abrir espaço para que novas formas de ser e estar sejam possíveis.
Agora, imagine não entender o que o médico diz sobre o próprio corpo, não conseguir navegar em um site porque ele não foi pensado para ser usado por todos, ou ser tratado como incapaz em espaços que deveriam acolher. Para pessoas como Jardel, Lair e Maicon, alunos da APAE, isso é cotidiano. É também um reflexo de uma sociedade que valoriza a autonomia como símbolo de sucesso, mas nega as condições para que todos possam exercê-la.
Confira acima os relatos em vídeo de Maicon, Jardel e Lair.
Os três amigos têm algo em comum além da rotina compartilhada na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Em suas palavras, eles carregam as marcas de desafios cotidianos que ultrapassam a leitura e a escrita. “O dia que eu vim aqui na APAE, eu não sabia nada. Não sabia ler, não sabia nada. Agora eu estou aprendendo”, diz Lair, de 26 anos, com a simplicidade de quem enxerga nas pequenas conquistas um grande avanço. "Fazer entrevista, tipo agora, também dá um pouco de vergonha", explica Maicon, de 19 anos, ao comentar sobre suas dificuldades que vão além da leitura.
Frequentar a APAE não é apenas sobre aprender. Para Jardel, que aos 28 anos convive com dificuldades de leitura e episódios de convulsões controlados com medicação, o espaço representa também acolhimento. Mas fora dos muros da instituição, a realidade é outra. “Algumas pessoas ajudam, algumas não. Algumas dão risada”, conta Lair com a memória de preconceitos que insistem em atravessar sua trajetória.
Confira acima os relatos em vídeo de Maicon, Jardel e Lair.
Bruno Dani, psicólogo que acompanha os jovens, aponta que muitos dos desafios deles são invisíveis para quem não vive essa realidade. “Eles trouxeram a questão da leitura, mas tem outros aspectos também, emocionais, sociais, que a compreensão, para nós, às vezes, parece muito simples, mas para eles é um pouco mais diferente para aprenderem.”, explica.
Por trás de cada dificuldade compartilhada, há também histórias de superação e gratidão. "Eu tenho vergonha de falar pra todo mundo que eu estudo aqui. Um dia eu falei que eu vim na APAE e eles começaram a dar risada. Mas a APAE é igual uma aula assim, normal, né?", conta Lair, timidamente.
Os sorrisos tímidos ao final da conversa revelam não a vulnerabilidade, mas a força de quem, todos os dias, enfrenta o que para muitos é invisível. Na APAE, a educação vai além de letras e números. Ali, a lição mais importante é sobre humanidade.
Estudante da APAE-FW exibe trabalho de fotografia. Foto: Melissa Sayuri.
A experiência de viver na cidade para pessoas neurodivergentes é, em muitos casos, marcada por um constante mal-estar. Os sons que muitos consideram triviais, como o barulho do trânsito ou o zumbido de uma conversa, podem se transformar em uma cacofonia insuportável. As luzes fluorescentes que iluminam as lojas e os escritórios muitas vezes ofuscam, enquanto os cheiros que permeiam os espaços públicos podem provocar desconforto e até mesmo crises. Às vezes, sair de casa é um ato de coragem. Para muitos, o mundo exterior é um campo de batalha.
A acessibilidade, nesse sentido, deve ir além das rampas e das sinalizações. Jussania, diretora da instituição, aponta que as adaptações sensoriais são igualmente importantes. “Nós possuímos algumas parcerias, sim, mas no sentido de promover a acessibilidade. O que a gente busca fazer é sensibilizar as pessoas”. A luta por um ambiente que respeite as particularidades é constante e exaustiva.
A questão da educação é central nessa discussão. Muitas vezes, as pessoas que trabalham em escolas e instituições não estão preparadas para lidar com a diversidade. Jussania enfatiza: “quando nós falamos em acessibilidade para o público com deficiência intelectual, o próprio público com transtorno do espectro autista, nós falamos de uma condição que diz de como a sociedade se porta e se comporta diante daquela pessoa que em determinados momentos da sua vida não tem a produtividade esperada ou não tem um retorno acadêmico como a maioria das pessoas espera que isso aconteça”. A falta de formação é uma barreira que perpetua a exclusão e a marginalização.
A transformação não acontecerá da noite para o dia, mas a insistência na escuta e na inclusão pode ser um começo. “Mas eu desejo, sinceramente, que nós possamos construir, seguir construindo, acho que essa é a palavra correta, seguir construindo uma comunidade, uma sociedade em que a gente pense no outro, de fato”, conclui Jussania. É um apelo poderoso que ecoa em cada esquina, em cada praça, e nos convoca a repensar o que significa habitar a cidade.
Alunos da APAE-FW mostram trabalho de fotografia ao lado do professor Jeferson Cantaden. Foto: Melissa Sayuri.
Em um mundo onde a pressão por conformidade é intensa, é vital que cada pessoa possa ocupar seu espaço sem se sentir um fardo. A construção de uma cidade verdadeiramente inclusiva é uma responsabilidade compartilhada, que exige não apenas vontade política, mas um compromisso de todos em acolher a diversidade em suas muitas formas. A acessibilidade deve ser uma prática diária, um valor que permeia todas as decisões e ações. A cidade não é um mero cenário; ela é a representação de nossas escolhas coletivas. Que possamos escolher ser acolhedores, inclusivos e, acima de tudo, humanos.
Saiba quais são os principais sinais da neurodivergência no infográfico abaixo.