Sobre o filósofo...
Sobre o filósofo...
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu na pequena cidade de Roecken, perto de Leipzig, na Alemanha, em 15 de outubro de 1844.
Aos cinco anos, perdeu o pai, que era pastor luterano. Estudou letras clássicas na célebre Escola de Pforta e na Universidade de Leipzig. Com 24 anos foi convidado a lecionar filologia clássica na Universidade da Basileia (Suíça). Em 1870 participou da Guerra Franco-Prussiana como enfermeiro. No período em que viveu na Basileia foi amigo de Richard Wagner e escreveu O nascimento da tragédia (1872), Considerações extemporâneas (1873-6) e parte de Humano, demasiado humano. Com a saúde frágil, em 1879 aposentou-se da universidade. A partir de então, levou uma vida errante, em pequenas localidades da Suíça, Itália e França. Dessa época são Aurora, A gaia ciência, Assim falou Zaratustra, Além do bem e do mal, Genealogia da moral, O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, O Anticristo e Ecce homo, sua autobiografia. Nietzsche perdeu a razão no início de 1889 e viveu em estado de demência por mais de onze anos, sob os cuidados da mãe e da irmã.
Nessa última década suas obras começaram a ser lidas e ele se tornou famoso. Morreu em Weimar, em 25 de agosto de 1900, em decorrência de uma infecção pulmonar. Além das obras que publicou, deixou milhares de páginas de esboços e anotações, conhecidos como “fragmentos póstumos”.
(Uma Terapia a partir de Nietzsche)
Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo alemão que se autodenominou 'psicólogo', sua psicologia consistia num diagnóstico da decadência que assola a cultura e a humanidade ocidental, por meio de uma genealogia da moral, propondo uma transmutação dos valores, favorecendo a afirmação e potencialização da vida, ao invés de sua negação.
Em suas obras ele colocou em questão os valores da cultura ocidental, a filosofia e a moral tradicional, criticando as diversas formas de imposição de modos de vida, de condutas e de verdades. Suas críticas partem de uma análise sobre os costumes, a moral e a tradição, voltando-se para as questões humanas ao invés de buscar verdades metafísicas. Sua obra influenciou e influencia muitos dos psicólogos da contemporaneidade.
Para propor uma terapia a partir Nietzsche, é preciso inicialmente apresentar sua filosofia, que não visava elaborar um sistema de verdade, mas colocar em questão os distintos sistemas de verdade, compreendendo uma multiplicidade de perspectivas, ao invés de uma verdade única e universal. Sua filosofia propõe valorizar a experiência concreta ao invés da abstração metafísica, encarando a vida tal como acontece, ao invés de buscar um ideal.
"Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra do homem." (Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra').
Segundo o filósofo, a moral tradicional se baseia na repressão dos instintos primários, enfraquecendo nossa potencialidade criadora, reduzindo as pessoas a meras reprodutoras de um sistema moral, de uma verdade e modos de vida engessados. Em sua genealogia, ele constata que esse modo de vida submisso, acomodado e repetido, que serve a um propósito do além, ao invés de experimentar a vida do aquém, desvalorizou a vida terrena e promoveu uma falta de sentido.
Nietzsche constatou que a humanidade caminha para sua decadência, por negar a vida terrena e a potência criadora em nome de uma vida "eterna" e "ideal". As promessas e os ideais de "felicidade eterna" e de uma vida além impedem que as pessoas vivam e experimentem de maneira alegre e criativa a vida do aquém. Portanto, sua psicologia propõe, de início, um questionamento sobre os valores que sustentam nossos modos de vida.
A decadência consiste justamente na inversão dos valores da vida, que no decorrer da história do ocidente passou a valorizar a racionalidade, a objetividade, a ordem, a forma, a medida, a seriedade, ao invés das emoções, das paixões, do corpo, dos impulsons, da desmedida e dos desejos. Os instintos passaram a ser vistos como algo que deveria ser combatido, ao invés de apropriados, caminhando para a decadência, uma doença que nega o corpo em favor da ordem e da repetição.
"Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria." (Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')
O grande valor atribuído à razão foi suprimindo o contato com as emoções, com o corpo e com os saberes instintivos. Uma terapia com base em Nietzsche deve possibilitar que cada pessoa possa faça uma revisão de seus valores, daqueles que fazem bem e dos que não fazem, para que esta possa ir de encontro aos que potencializam sua experiência de vida, se distanciando dos que inferiorizam, aproximando-se de seus afetos e de seu corpo, se abrindo à novas experimentações e formas de vida.
O primeiro passo consiste na genealogia dos valores de uma pessoa, de modo a constatar aqueles que expandem e os que contraem sua experiência de vida, entendendo que não somos submissos a valores já dados, mas seres criadores de valores e de modos de vida, de modo que podemos transvalorar. Os valores que não possibilitam a ampliação podem ser trocados por valores potencializantes, por meio da experimentação, que não acontece apenas em nível racional, mas por meio dos sentidos, dos impulsos e do corpo.
A filosofia de Nietzcshe retoma o valor dos afetos e das paixões, entendendo como favoráveis a uma vida mais intensa e potente. Não se entende a saúde como um estado de paz e ausência de emoções ou sofrimentos, pelo contrário, a saúde está relacionada com a possibilidade de emocionar-se com a vida, e também com de criar e assumir valores potencializadores da experiência de vida. O diagnóstico desses funcionamentos parte sempre do corpo, da análise de seus afetos e desafetos.
"Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor estabelecida do que a crença no espírito." (Nietzsche, em 'Fragmentos Póstumos')
Uma terapia nietzschiana reconhece a possibilidade de cada pessoa transformar seus valores para a expansão de sua existência, afirmando a vida em sua beleza e em seu caos, experimentando seus riscos. O reconhecimento e a aceitação do caótico, do triste e do trágico é também um ponto importante de sua psicologia trágica, pois entende que a vida não é feita apenas de momentos alegres e saúde, mas também de loucuras e melancolia. A experiência de sofrimento pode potencializar a experiência de saúde, para isso é preciso avaliar e transmutar valores.
Fonte: https://www.ex-isto.com/2020/09/terapia-em-nietzsche.html
Confira abaixo algumas gotas nietzschianas para te ajudar a refletir sobre a vida e em seu processo terapêutico.
Fontes consultadas:
Friedrich Nietzsche. 100 aforismos sobre o amor e a morte. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. Editora Penguin, Companhia das Letras.
Nietzsche para Estressados. Allan Percy. Editora Sextante.
Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! — e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua “posse”; e outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como “bom”. Nosso amor ao próximo — não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades? Pouco a pouco nos enfadamos do que é velho, do que possuímos seguramente, e voltamos a estender os braços; nem a mais bela paisagem estará certa de nosso amor, após passarmos três meses nela, e algum litoral longínquo despertará nossa cobiça: em geral, as posses são diminuídas pela posse. Nosso prazer conosco procura se manter transformando algo novo em nós mesmos — precisamente a isto chamamos possuir. Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo. (Pode-se também sofrer da demasia — também o desejo de jogar fora, de distribuir, pode ter o honrado nome de “amor”.) Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportunidade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz o homem benfazejo e compassivo, que também chama de “amor” ao desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer semelhante ao de uma nova conquista iminente. Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional e única da pessoa desejada, quer poder incondicional tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável. Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos “conquistadores” e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente, pálido, sem valor, e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo. Nisso, evidentemente, o uso linguístico foi determinado pelos que não possuíam e desejavam — os quais sempre foram em maior número, provavelmente. Aqueles que nesse campo tiveram posses e satisfação suficientes deixaram escapar, aqui e ali, uma palavra sobre o “demônio furioso”, como fez o mais adorável e benquisto dos atenienses, Sófocles: mas Eros sempre riu desses blasfemos — eram, invariavelmente, os seus grandes favoritos. — Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas: mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade.
Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; no entanto, pode prometer aqueles atos que normalmente são consequência do amor, do ódio, da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos: pois caminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa de sempre amar alguém significa, portanto: enquanto eu te amar, demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar, continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outros motivos: de modo que na cabeça de nossos semelhantes permanece a ilusão de que o amor é imutável e sempre o mesmo. — Portanto, prometemos a continuidade da aparência do amor quando, sem cegar a nós mesmos, juramos a alguém amor eterno.
Por que superestimamos o amor em detrimento da justiça e dizemos dele as coisas mais belas, como se fosse algo muito superior a ela? Não será ele visivelmente mais estúpido? — Sem dúvida, mas justamente por isso mais agradável para todos. O amor é estúpido e possui uma abundante cornucópia; dela retira e distribui seus dons a cada pessoa, ainda que ela não os mereça, nem sequer os agradeça. Ele é imparcial como a chuva, que, segundo a Bíblia e a experiência, molha até os ossos não apenas o injusto, mas ocasionalmente também o justo.
Para a doença masculina do autodesprezo o remédio mais seguro é ser amado por uma mulher inteligente.
É fácil as mães sentirem ciúme dos amigos de seus filhos, quando eles têm sucesso extraordinário. Habitualmente a mãe ama, em seu filho, mais a si mesma do que ao próprio filho.
Se os cônjuges não morassem juntos, os bons casamentos seriam mais comuns.
Um casamento no qual cada um quer alcançar um objetivo individual através do outro se conserva bem; por exemplo, quando a mulher quer se tornar famosa através do homem, e o homem quer se tornar amado através da mulher.
Em geral as mulheres amam um homem de valor como se o quisessem ter apenas para si. Bem gostariam de trancá-lo a sete chaves, se isto não contrariasse a sua vaidade: pois esta requer que a importância dele seja evidente também para os outros.
Há mulheres que, por mais que as pesquisemos, não têm interior, são puras máscaras. É digno de pena o homem que se envolve com estes seres quase espectrais, inevitavelmente insatisfatórios, mas precisamente elas são capazes de despertar da maneira mais intensa o desejo do homem: ele procura a sua alma — e continua procurando para sempre.
Ao iniciar um casamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com esta mulher até na velhice? Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte do tempo é dedicada à conversa.
O intelecto das mulheres se manifesta como perfeito domínio, presença de espírito, aproveitamento de toda vantagem. Elas o transmitem aos filhos, como sua característica fundamental, e a isso o pai acrescenta o fundo mais obscuro da vontade. A influência dele determina, por assim dizer, o ritmo e a harmonia com que a nova vida deve ser tocada; mas a melodia vem da mulher. — Ou, para aqueles que sabem cogitar essas coisas: as mulheres têm a inteligência; os homens, o sentimento e a paixão. Isso não está em contradição com o fato de os homens realizarem muito mais coisas com a sua inteligência: eles têm impulsos mais profundos, mais poderosos; são estes que levam tão longe a sua inteligência, que em si é algo passivo. Não é raro as mulheres secretamente se admirarem da veneração que os homens tributam ao seu sentimento. Se os homens, na escolha do cônjuge, buscam antes de tudo um ser profundo e sensível, enquanto as mulheres buscam alguém sagaz, brilhante e com presença de espírito, vê-se claramente que no fundo o homem busca um homem idealizado, e a mulher, uma mulher idealizada, ou seja, não um complemento, mas sim um aperfeiçoamento das próprias qualidades.
Às vezes bastam óculos mais fortes para curar um apaixonado; e quem tivesse força de imaginação para conceber um rosto, uma silhueta vinte anos mais velha, talvez passasse pela vida imperturbado.
A idolatria que as mulheres têm pelo amor é, no fundo e originalmente, uma invenção da inteligência, na medida em que, através das idealizações do amor, elas aumentam seu poder e se apresentam mais desejáveis aos olhos dos homens. Mas, tendo-se habituado a essa superestimação do amor durante séculos, aconteceu que elas caíram na própria rede e esqueceram tal origem. Hoje elas são mais iludidas que os homens, e por isso sofrem mais com a desilusão que quase inevitavelmente ocorre na vida de toda mulher — desde que ela tenha imaginação e intelecto bastantes para ser iludida e desiludida.
Após uma desavença e disputa pessoal entre uma mulher e um homem, uma parte sofre mais com a ideia de ter magoado a outra; enquanto esta sofre mais com a ideia de não ter magoado o outro o bastante, e por isso se empenha depois, com lágrimas, soluços e caras feias, em lhe amargurar o coração.
Essas mulheres nobres e livres, que assumem como tarefa a educação e elevação do sexo feminino, não devem ignorar uma consideração: o casamento concebido em sua mais alta forma, enquanto amizade espiritual entre duas pessoas de sexo diferente, isto é, realizado como o futuro espera que seja, com o fim de gerar e educar uma nova geração — um tal casamento, que usa o elemento sensual apenas, digamos, como um meio raro e ocasional para um fim maior, provavelmente requer, devemos desconfiar, um auxílio natural, o do concubinato. Pois, se por razões de saúde do homem a esposa deverá também se prestar sozinha à satisfação da necessidade sexual, então na escolha de uma esposa será determinante uma consideração errada, oposta aos fins indicados: a obtenção da prole será casual, e a educação bem-sucedida, bastante improvável. Uma boa esposa, que deve ser amiga, ajudante, genitora, mãe, cabeça de família, administradora, e talvez tenha de, separadamente do marido, cuidar até do seu próprio negócio ou ofício, não pode ser ao mesmo tempo concubina: em geral, significaria exigir demais dela. Assim poderia ocorrer, no futuro, o oposto do que se deu em Atenas na época de Péricles: os homens, que em suas esposas tinham pouco mais que concubinas, recorriam também às Aspásias, porque ansiavam pelos encantos de uma convivência liberadora da mente e do coração, que somente a graça e a docilidade espiritual das mulheres podem criar. Todas as instituições humanas, como o casamento, permitem apenas um grau moderado de idealização prática, de outro modo remédios grosseiros se fazem necessários.
Se vivemos próximos demais a uma pessoa, é como se repetidamente tocássemos uma boa gravura com os dedos nus: um dia teremos nas mãos um sujo pedaço de papel, e nada além disso. Também a alma de uma pessoa, ao ser continuamente tocada, acaba se desgastando; ao menos assim ela nos parece afinal — nós nunca mais vemos seu desenho e sua beleza originais. — Sempre se perde no relacionamento íntimo demais com mulheres e amigos; às vezes se perde a pérola de sua própria vida.
O amor e o ódio não são cegos, mas ofuscados pelo fogo que trazem consigo.
O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de medo-respeito. Mas o amor não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele não reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas.
Quem realmente quiser conhecer algo novo (seja uma pessoa, um evento ou um livro), fará bem em receber essa novidade com todo o amor possível, e rapidamente desviar os olhos e mesmo esquecer tudo o que nela pareça hostil, desagradável, falso: de modo a dar ao autor de um livro, por exemplo, uma boa vantagem inicial, e, como se estivesse numa corrida, desejar ardentemente que ele atinja sua meta. Pois assim penetramos até o coração, até o centro motor da coisa nova: o que significa justamente conhecê-la. Se alcançamos este ponto, a razão pode fazer suas restrições; a superestimação, a desativação temporária do pêndulo crítico, foi somente um artifício para fazer aparecer a alma de uma coisa.
Esquecemos muitas coisas de nosso passado e as tiramos intencionalmente da cabeça: isto é, queremos que nossa imagem, que desde o passado nos clareia, nos engane, lisonjeie nossa presunção — nós trabalhamos continuamente nesse autoengano. — E agora vocês, que tanto falam e louvam o “esquecer-se de si mesmo no amor”, a “dissolução do Eu no outro”, acham que isso é algo essencialmente distinto? Ou seja, quebramos o espelho, transpomo-nos para uma pessoa que admiramos e fruímos a nova imagem de nosso Eu, embora já o chamemos pelo nome da outra pessoa — e todo esse processo não seria autoengano, egoísmo, gente extravagante! — Penso que aqueles que escondem de si algo de si e aqueles que se escondem de si inteiramente são iguais no fato de cometer um roubo na câmara de tesouro do conhecimento: de onde se vê contra qual delito nos adverte a frase “conhece-te a ti mesmo”.
Tratar todos com igual benevolência e ser bom sem distinção de pessoa pode ser decorrência tanto de um profundo desprezo como de um sólido amor à humanidade.
Todo grande amor traz consigo o cruel pensamento de matar o objeto do amor, para subtraí-lo de uma vez por todas ao sacrílego jogo da mudança: pois o amor tem mais receio da mudança que do aniquilamento.
Quem sempre vive no calor e plenitude do coração e, por assim dizer, na atmosfera de verão da alma, não pode imaginar o tremor de arrebatamento que assalta as naturezas mais invernais, quando excepcionalmente são tocadas pelos raios do amor e pelo ar morno de um ensolarado dia de fevereiro.
As paixões tornam-se más e pérfidas quando são consideradas más e pérfidas. Desse modo, o cristianismo conseguiu transformar Eros e Afrodite — grandes poderes passíveis de idealização — em espíritos e gênios infernais, mediante os tormentos que fez surgir na consciência dos crentes quando há excitação sexual. Não é algo terrível transformar sensações regulares e necessárias em fonte de miséria interior, e assim pretender tornar a miséria interior, em cada pessoa, algo regular e necessário? E isso permanece uma miséria escondida e, portanto, de raízes mais profundas: pois nem todos têm a coragem de Shakespeare, ao admitir seu ensombrecimento cristão nesse ponto, como faz nos sonetos. — Então é preciso considerar mau o que deve ser combatido, conservado em certos limites ou, em algumas circunstâncias, banido por completo da mente? Não é próprio de almas vulgares imaginar sempre mau um inimigo? E pode-se chamar Eros de inimigo? As sensações sexuais têm em comum, com aquelas compassivas e veneradoras, que nelas uma pessoa faz bem a outra mediante o seu prazer — tais arranjos benevolentes não se acham com frequência na natureza! E denegrir justamente um deles e estragá-lo com a má consciência! Irmanar a procriação dos seres humanos à má consciência! — Por fim, essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o “demônio” Eros veio a tornar-se mais interessante para as pessoas do que todos os anjos e santos, graças ao murmúrio e sigilo da Igreja nas coisas eróticas: seu efeito, até em nossa época, foi tornar a história de amor o único verdadeiro interesse comum a todos os círculos — num exagero incompreensível para a Antiguidade, e que um dia dará lugar à risada. Toda a produção de nossos poetas e pensadores, da maior à mais insignificante, é mais que caracterizada pela excessiva importância da história de amor, que nela surge como história principal: por conta disso, talvez a posteridade julgue que em toda a herança da cultura cristã há algo mesquinho e maluco.
Aquele está oco e quer ficar cheio, este está repleto e quer esvaziar-se — cada qual é impelido a buscar um indivíduo que sirva a seu propósito. E esse processo, entendido em sua mais alta acepção, é designado com uma só palavra nos dois casos: amor — como? o amor deveria ser algo não egoísta?
Não deveria ser permitido tomar uma decisão sobre a própria vida quando se está enamorado, e fixar de uma vez por todas o caráter de sua companhia devido a um capricho violento: o juramento dos amantes deveria ser publicamente invalidado, e o seu casamento, interdito: — pela razão de que o matrimônio deveria ser levado muito mais a sério! De modo que, justamente nos casos em que ele até agora se realizou, não se realizaria normalmente! A maioria dos casamentos não é de espécie tal que não se deseja um terceiro como testemunha? E justamente esse terceiro — a criança — quase nunca falta, e é mais do que testemunha, é o bode expiatório!
O medo promoveu mais a compreensão geral dos homens que o amor, pois o medo quer descobrir quem é o outro, o que ele pode, o que ele quer: enganar-se nisto seria perigoso e desvantajoso. Inversamente, o amor tem um secreto impulso de enxergar no outro as coisas mais belas possíveis, ou de erguê-lo o mais alto possível: enganar-se nesse ponto seria, para ele, prazeroso e vantajoso — e assim ele faz.
Começa-se por desaprender de amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais digno de amor em si mesmo.
Devemos temer quem odeia a si próprio, pois seremos vítimas de sua cólera e de sua vingança. Cuidemos, então, de seduzi-lo para o amor a si mesmo!
Naturezas como a do apóstolo Paulo não veem com bons olhos as paixões; delas conhecem apenas o que é sujo, deformador e lancinante — daí a sua tendência idealista visar a destruição das paixões: veem no que é divino a completa purificação delas. De modo bem diferente de Paulo e dos judeus, os gregos dirigiram a sua tendência idealista justamente para as paixões e as amaram, elevaram, douraram e divinizaram; evidentemente, com as paixões eles sentiam-se não apenas mais felizes, mas também mais puros e mais divinos. — E os cristãos? Queriam eles tornar-se judeus nesse ponto? Terão se tornado?
Eis o que sucede conosco na música: primeiro temos que aprender a ouvir uma figura, uma melodia, a detectá-la, distingui-la, isolando-a e demarcando-a como uma vida em si; então é necessário empenho e boa vontade para suportá-la, não obstante sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua expressão, de brandura com o que nela é singular: — enfim chega o momento em que estamos habituados a ela, em que a esperamos, em que sentimos que ela nos faria falta, se faltasse; e ela continua a exercer sua coação e sua magia, incessantemente, até que nos tornamos seus humildes e extasiados amantes, que nada mais querem do mundo senão ela e novamente ela. — Mas eis que isso não nos sucede apenas na música: foi exatamente assim que aprendemos a amar todas as coisas que agora amamos. Afinal sempre somos recompensados pela nossa boa vontade, nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que a estranheza tira lentamente o véu e se apresenta como uma nova e indizível beleza: — é a sua gratidão por nossa hospitalidade. Também quem ama a si mesmo aprendeu-o por esse caminho: não há outro caminho. Também o amor há que ser aprendido.
Eis o que sucede conosco na música: primeiro temos que aprender a ouvir uma figura, uma melodia, a detectá-la, distingui-la, isolando-a e demarcando-a como uma vida em si; então é necessário empenho e boa vontade para suportá-la, não obstante sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua expressão, de brandura com o que nela é singular: — enfim chega o momento em que estamos habituados a ela, em que a esperamos, em que sentimos que ela nos faria falta, se faltasse; e ela continua a exercer sua coação e sua magia, incessantemente, até que nos tornamos seus humildes e extasiados amantes, que nada mais querem do mundo senão ela e novamente ela. — Mas eis que isso não nos sucede apenas na música: foi exatamente assim que aprendemos a amar todas as coisas que agora amamos. Afinal sempre somos recompensados pela nossa boa vontade, nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que a estranheza tira lentamente o véu e se apresenta como uma nova e indizível beleza: — é a sua gratidão por nossa hospitalidade. Também quem ama a si mesmo aprendeu-o por esse caminho: não há outro caminho. Também o amor há que ser aprendido.
Que em meus escritos fala um psicólogo sem igual é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor — um leitor como eu o mereço, que me leia como os bons filólogos de outrora liam o seu Horácio. As proposições sobre as quais no fundo o mundo inteiro está de acordo — para não falar dos filósofos de todo mundo, dos moralistas e outros cabeças ocas, cabeças de repolho — aparecem em mim como ingenuidades do erro: por exemplo, a crença de que “altruísta” e “egoísta” são opostos, quando o ego não passa de um “embuste superior”, um “ideal”… Não existem ações egoístas, nem altruístas: ambos os conceitos são um contrassenso psicológico. Ou a proposição: “o homem busca a felicidade”… Ou “a felicidade é o prêmio da virtude”… Ou “prazer e desprazer são opostos”… A Circe da humanidade, a moral, falsificou no cerne — moralizou — todos os psychologica [as questões psicológicas], até chegar ao horrendo absurdo de que o amor deve ser algo “altruísta”… É preciso estar firmemente assentado em si, é preciso sustentar-se bravamente sobre as duas pernas, caso contrário não se pode absolutamente amar. Isso sabem as mulherezinhas muito bem, afinal: não sabem que diabo fazer com homens desinteressados, puramente objetivos… Posso, aliás, arriscar a suposição de que conheço as mulherezinhas? É parte de meu dom dionisíaco. Quem sabe? Talvez eu seja o primeiro psicólogo do eterno-feminino. Todas elas me amam — uma velha história: excetuando as mulherezinhas vitimadas, as “emancipadas”, as não aparelhadas para ter filhos. — Felizmente não estou disposto a deixar-me despedaçar: a mulher realizada despedaça quando ama… Eu conheço essas adoráveis mênades… Ah, que perigoso, insinuante, subterrâneo bichinho de rapina! E tão agradável, além disso!… Uma pequena mulher correndo atrás de sua vingança seria capaz de atropelar o próprio destino. — A mulher é indizivelmente mais malvada que o homem, também mais sagaz; bondade na mulher é já uma forma de degeneração… No fundo de todas as chamadas “almas belas” há um inconveniente fisiológico — não digo tudo, senão me tornaria “medicínico”. A luta por direitos iguais é inclusive um sintoma de doença: qualquer médico o sabe. — A mulher, quanto mais é mulher, mais se defende com unhas e dentes contra os direitos em geral; o estado de natureza, a eterna guerra entre os sexos, dá-lhe de longe a primeira posição. — Houve ouvidos para a minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. Amor — em seus meios a guerra, em seu fundo o ódio de morte dos sexos. — Foi ouvida a minha resposta à questão de como se cura — se “redime” — uma mulher? Fazendo-lhe um filho. A mulher necessita de filhos, o homem é sempre somente o meio; assim falou Zaratustra. — “Emancipação da mulher” — isso é o ódio instintivo da mulher que não vinga, ou seja, não procria, à mulher que vingou — a luta contra o “homem” é sempre apenas meio, pretexto, tática. Ao elevarem a si mesmas, como “mulher em si”, como “mulher superior”, como “idealista feminina”, querem rebaixar a posição geral da mulher; nenhum meio mais seguro para isso do que instrução secundária, calças e direitos políticos de gado eleitoral. No fundo as emancipadas são as anarquistas no mundo do “eterno-feminino”, as que fracassaram, cujo instinto mais básico é a vingança… Todo um gênero do mais maligno “idealismo” — que aliás também ocorre em homens, por exemplo em Henrik Ibsen, essa típica solteirona — tem o objetivo de envenenar a boa consciência, a natureza no amor sexual… E para não deixar nenhuma dúvida quanto às minhas convicções nesse ponto, tão honestas quanto estritas, comunicarei mais uma sentença contra o vício extraída do meu código moral: sob o nome de vício combato toda espécie de antinatureza, ou, para quem ama belas palavras, idealismo. A sentença diz: “A pregação da castidade é um incitamento público à antinatureza. Todo desprezo pela vida sexual, toda impurificação da mesma através do conceito de ‘impuro’ é o próprio crime contra a vida — é o autêntico pecado contra o santo espírito da vida”.
Deixando à parte as exigências da religião, é lícito perguntar: por que seria mais louvável para um homem envelhecido, que sente a diminuição de suas forças, esperar seu lento esgotamento e dissolução, em vez de, em clara consciência, fixar um termo para si? Neste caso o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio. Já o anseio de prolongar dia a dia a existência, com angustiante assistência médica e as mais penosas condições de vida, sem força para se aproximar do verdadeiro fim, é algo muito menos respeitável. — As religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida.
A maneira como uma pessoa pensa na morte, durante sua vida mais plena, no apogeu de seu vigor, é testemunha eloquente daquilo que denominamos seu caráter; mas a hora da morte em si, sua atitude no leito de morte, quase não importa quanto a isso. O cansaço da existência que se vai, sobretudo quando morrem pessoas idosas, a nutrição irregular ou insuficiente do cérebro nesse derradeiro instante, a dor eventualmente muito forte, o que há de novo e não experimentado em toda a situação, e, com frequência, o surgimento ou retorno de impressões e angústias supersticiosas, como se muita coisa estivesse em jogo e uma ponte das mais horríveis fosse então ultrapassada — isso tudo não consente utilizar o ato de morrer como atestado acerca do vivo. Também não é verdadeiro que o moribundo, em geral, seja mais honesto que o vivo: sucede, isto sim, que a atitude solene dos circunstantes, as torrentes de lágrimas e emoções, francas ou contidas, induzem quase todo moribundo a uma comédia da vaidade, ora consciente, ora inconsciente. A seriedade com que todo moribundo é tratado certamente constitui, para muitos pobres coitados, o mais delicado prazer de toda a sua vida, e uma espécie de indenização e pagamento parcial por tantas privações.
Quando cai a noite, muda a nossa sensação das coisas mais próximas. Eis o vento, que anda como por caminhos proibidos, sussurrando, como que buscando algo, aborrecido porque não o encontra. Eis a luz da lâmpada, com brilho turvo e avermelhado, olhando cansada, de má vontade resistindo à noite, impaciente escrava do homem desperto. Eis a respiração de quem dorme, seu ritmo assustador, a que um incômodo sempre recorrente parece soprar a melodia — nós não a ouvimos, mas, quando o peito de quem dorme se eleva, sentimo-nos de coração apertado, e, quando o alento decresce e quase se apaga num silêncio de morte, dizemos conosco: “Descanse um pouco, pobre espírito atormentado!” — a todo vivente desejamos, porque vive tão oprimido, um repouso eterno; a noite persuade a morrer. — Se os homens carecessem do sol e conduzissem a óleo e luar a luta contra a noite, que filosofia os envolveria no seu véu? Já se nota muito bem, na natureza espiritual e psíquica do homem, como é entenebrecida, no conjunto, pela metade de escuridão e privação de sol que amortalha a vida.
Não há, entre os seres humanos, banalidade maior do que a morte; em segundo lugar vem o nascimento, pois nem todos os que morrem chegaram a nascer; depois vem o matrimônio. Mas, em todas as suas não contadas e incontáveis apresentações, essas pequenas tragicomédias são representadas por novos atores, e por isso não cessam de ter novos espectadores interessados: quando seria de crer que a plateia inteira do teatro terreno, enfastiada com ele, há muito tempo já se enforcou em todas as árvores. Tanta importância têm os novos atores, tão pouca tem a peça.
Assistindo a uma morte, constantemente nos surge um pensamento que reprimimos de imediato, por um falso sentimento de decoro: o de que o ato de morrer não é tão significativo como pretende o respeito geral, e de que provavelmente o moribundo perdeu coisas mais importantes na vida do que o que está para perder. O fim, no caso, certamente não é a meta.
Em mim me produz uma melancólica felicidade viver nessa profusão de vielas, de necessidades, de vozes: quanta fruição, quanta impaciência e cobiça, quanta sede e embriaguez de vida não se manifestam aí a cada instante! Mas logo haverá tanto silêncio para todos esses viventes ruidosos e sequiosos de vida! Como atrás de cada um está sua sombra, sua obscura companheira de viagem! É sempre como no último minuto antes da partida do navio de emigrantes: as pessoas têm mais a se dizer do que nunca, a hora urge, o oceano e sua desolada mudez esperam impacientes por trás de todo o ruído — tão cobiçosos e seguros de sua presa. E todos, todos acham que o Até-então foi pouco, muito pouco, e o futuro iminente será tudo: daí toda a pressa, a gritaria, o atordoar-se e avantajar-se! Cada um quer ser o primeiro nesse futuro — mas a morte e seu silêncio são a única coisa certa e comum a todos nesse futuro! Estranho que essa única certeza e elemento comum quase não influa sobre os homens e que nada esteja mais distante deles do que se sentirem irmãos na morte! Fico feliz em ver que os homens não querem ter o pensamento da morte! Eu bem gostaria de fazer algo para lhes tornar o pensamento da vida mil vezes mais digno de ser pensado.
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido?, perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança?, disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais — quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior — e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação — e no entanto eles o cometeram!” — Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus e túmulos de Deus?”.
Também eu estive no mundo inferior, como Ulisses, e frequentemente para lá voltarei; e não somente carneiros sacrifiquei para poder falar com alguns mortos: para isso não poupei meu próprio sangue. Quatro foram os pares [de mortos] que não se furtaram a mim, o sacrificante: Epicuro e Montaigne, Goethe e Spinoza, Platão e Rousseau, Pascal e Schopenhauer. Com esses devo discutir quando tiver longamente caminhado a sós, a partir deles quero ter razão ou não, a eles desejarei escutar, quando derem ou negarem razão uns aos outros. O que quer que eu diga, decida, cogite, para mim e para outros: nesses oito fixarei o olhar, e verei seus olhos em mim fixados. — Que os vivos me perdoem se às vezes me parecem sombras, tão pálidos e aborrecidos, tão inquietos e oh!, tão ávidos de vida: enquanto aqueles me aparecem tão vivos, como se agora, depois da morte, não pudessem jamais se cansar de viver. Mas o que conta é a eterna vivacidade: que importa a “vida eterna” ou mesmo a vida!
41 - "Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado.
42 - "Quem tem uma razão de viver é capaz de suportar qualquer coisa.
43 - "Precisamos pagar pela imortalidade e morrer várias vezes enquanto estamos vivos.
44 - "Nossos tesouro está na colmeia de nosso conhecimento. Estamos sempre voltados a essa direção, pois somos insetos alados da natureza, coletores do mel da mente.
45 - "O homem que imagina ser completamente bom é um idiota.
46 - "Precisamos amar a nós mesmos para sermos capazes de nos tolerar e não levar uma vida errante.
47 - "Alegrando-se por nossa alegria, sofrendo por nosso sofrimento — assim se faz um amigo.
48 - "Não devemos ter mais inimigos que as pessoas dignas de ódio, mas tampouco devemos ter inimigos dignos de desprezo. É importante nos orgulharmos de nossos inimigos.
49 - "Falar muito de si mesmo pode ser uma forma de se ocultar.
50 - "O reino dos céus é uma condição do coração e não algo que cai na terra ou que surge depois da morte.
51 - "Os maiores êxitos não são os que fazem mais ruído e sim nossas horas mais silenciosas.
52 - "O indivíduo sempre lutou para não ser absorvido por sua tribo. Se fizer isso, você se verá sozinho com frequência e, às vezes, assustado. Mas o privilégio de ser você mesmo não tem preço.
53 - "Não há razão para buscar o sofrimento, mas, se ele surgir em sua vida, não tenha medo: encare-o de frente e com a cabeça erguida.
54 - "Não deveríamos tentar deter a pedra que já começou a rolar morro abaixo; o melhor é dar-lhe impulso.
55 - "A maneira mais eficaz de corromper o jovem é ensiná-lo a admirar aqueles que pensam como ele e não os que pensam de forma diferente.
56 - "Quem deseja aprender a voar deve primeiro aprender a caminhar, a correr, a escalar e a dançar. Não se aprende a voar voando.
57 - "Quem luta contra monstros deve ter cuidado para não se transformar em um deles.
58 - "São muitas as verdades e, por esse motivo, não existe verdade alguma.
59 - "A mentira mais comum é a que o homem usa para enganar a si mesmo.
60 - "Se ficar olhando muito tempo para o abismo, ele olhará para você.
61 - "Preciso de companheiros, mas de companheiros vivos, não de cadáveres que eu tenha que levar nas costas por toda parte.
62 - "Todos os grandes pensamentos são concebidos ao se caminhar.
63 - "Quem não sabe guardar suas opiniões no gelo não deveria entrar em debates acalorados.
64 - "Estava só e não fazia outra coisa além de encontrar-se consigo mesmo. Então, aproveitou sua solidão e pensou em coisas muito boas por várias horas.
65 - "A potência intelectual de um homem se mede pelo humor que ele é capaz de manifestar.
66 - "Gosto dos valentes, mas não basta ser um espadachim: também é preciso saber a quem ferir. E, muitas vezes, abster-se demonstra mais bravura, reservando-se para um inimigo mais digno.
67 - "Para chegar a ser sábio, é preciso querer experimentar certas vivências. Mas isso é muito perigoso. Mais de um sábio foi devorado nessa tentativa.
68 - "O cérebro verdadeiramente original não é o que enxerga algo novo antes de todo mundo, mas o que olha para coisas velhas e conhecidas, já vistas e revistas por todos, como se fossem novas. Quem descobre algo é normalmente este ser sem originalidade e sem cérebro chamado sorte.
69 - "O homem amadurece quando reencontra a seriedade que demonstrava em suas brincadeiras de criança.
70 - "Ninguém é tão louco que não possa encontrar outro louco que o entenda.
71 - "Ninguém é tão louco que não possa encontrar outro louco que o entenda.
72 - "Um poeta escreveu em sua porta: “Quem entrar aqui me honrará. Quem não entrar me proporcionará um prazer”.
73 - "Seus maiores bens são seus sonhos.
74 - "Não é raro encontrar cópias de grandes homens. E, como acontece com os quadros, a maior parte das pessoas parece mais interessada nas cópias do que nos originais.
75 - "Os poços mais profundos vivem suas experiências lentamente: esperam um bom tempo até saberem o que caiu em suas profundezas.
76 - "Quantos homens sabem observar? E, desses poucos que sabem, quantos observam a si próprios? “Cada pessoa é o ser mais distante de si mesmo.”
77 - "Quem vê mal sempre vê pouco. Quem escuta mal sempre escuta demais.
78 - "Toda vez que me elevo, sou perseguido por um cachorro chamado Ego.
79 - "Você tem o seu caminho. Eu tenho o meu. O caminho correto e único não existe.
80 - "Você tem o seu caminho. Eu tenho o meu. O caminho correto e único não existe.
81 - "Toda convicção é uma prisão.
82 - "Nossa vida nos parece muito mais bonita quando deixamos de compará-la com as dos outros.
83 - "Eis a fórmula da felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta.
84 - "A melhor maneira de começar o dia é se comprometer a fazer feliz ao menos uma pessoa antes de o sol se pôr.
85 - "O amor não é consolo — é luz.