Neuroses
Os pacientes portadores de estruturas neuróticas caracterizam-se pelo fato de apresentarem algum grau de sofrimento e desadaptação em alguma, ou mais de uma, área importante de sua vida...
Neuroses
Os pacientes portadores de estruturas neuróticas caracterizam-se pelo fato de apresentarem algum grau de sofrimento e desadaptação em alguma, ou mais de uma, área importante de sua vida...
Sexual, familiar, profissional ou social, com o predomínio de um estado mental de mal-estar consigo próprio. Apesar de que o sofrimento e prejuízo psíquico, em alguns casos, possam alcançar níveis de gravidade, os indivíduos neuróticos sempre conservam uma razoável integração do self, além de uma boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade.
De um viés psicanalítico, pode-se discriminar cinco tipos de estruturas neuróticas:
a de angústia
histeria
obsessivo-compulsiva
fobia
e depressão
Embora na atualidade seja muito difícil de se encontrar na clínica algum desses quadros em "estado puro", porquanto de alguma forma eles aparecem mesclados, convém descrevê-los separadamente e de forma mais detalhada, levando em conta não só a abrangência e frequência clínica, mas também que, em algum grau, elas sempre subjazem a qualquer estruturação psíquica, incluída aquela que costuma ser considerada como normal.
Neurose de Angústia
Consiste em um transtorno clínico que se manifesta por meio de uma angústia livre, quer sob uma forma permanente, quer pelo surgimento em momentos de crise...
Em outras palavras, a ansiedade do paciente se expressa tanto por equivalentes somáticos (pressão no peito, taquicardia, dispneia suspirosa, sensação de uma "bola no peito", etc.), como por uma indefinida e angustiante sensação de medo de que possa vir a morrer, enlouquecer, ou da iminência de alguma tragédia.
Tais sintomas indicam que está havendo uma falha em certos mecanismos psíquicos diante de um - traumático - excesso de estímulos externos e/ou internos que estão acossando o seu ego.
Fobias
Uma complexa e diversificada combinação de pulsões, fantasias, angústias, defesas do ego e identificações patógenas pode determinar na personalidade do sujeito uma estruturação de natureza fóbica...
Pelo fato de que não há uma explicação unitária para a formação das fobias, cabe tentar classificá-las de acordo com a pluralidade causal a seguir:
Além da angústia de castração, também está presente em qualquer fobia alguma forma de ansiedade de aniquilamento e de desamparo.
Correlação entre fobias originais infantis (medo do escuro, da solidão, de estranhos...) com o medo da perda dos pais ou do amor destes.
Praticamente, sempre constatamos que houve no passado uma intensa relação simbiótica com a mãe, com evidente prejuízo na resolução das etapas da fase evolutiva da separação-individuação.
A patologia de tal fase promove uma dupla ansiedade: a de engolfamento (resultante do medo de chegar perto demais e de absorver ou ser absorvido pelo outro) e a de separação (pelo risco imaginário de perder o objeto), de tal sorte que é característico da fobia a pessoa criar um delimitado e restrito espaço fóbico para a sua movimentação.
Adquire uma importância na etiologia da fobia o tipo de discurso dos pais, repletos de significados fóbicos, nos quais prevalecem as palavras "cuidado", "é perigoso", "faz mal", "evita chegar perto", etc., e que refletem uma excessiva carga de identificações projetivas dos temores dos pais na mente da criança.
Os estados fóbicos sempre vêm acompanhados de manifestações paranóides e obsessivas, geralmente encobrindo uma depressão subjacente.
Tanto ou mais do que conflitos de natureza sexual, sempre encontramos uma má elaboração das pulsões agressivas.
Há uma acentuada tendência a manifestações de natureza psicossomática.
Basicamente, o que define uma situação fóbica é o uso, por parte do paciente, de uma "técnica de evitação" de todas as situações que lhe pareçam perigosas. Essa sensação de perigo decorre do fato de que a situação exterior fobígena (por exemplo, um elevador, um avião, uma viagem, o tratamento analítico...) está sendo o cenário onde estão sendo projetados, deslocados e simbolizados os aspectos dissociados das pulsões e objetos internos, representados no ego como perigosos.
Por saber da irracionalidade de seus sintomas, o indivíduo fóbico desenvolve uma "técnica de dissimulação", por vezes até ao nível de um falso self, tal é o seu grau de culpa, vergonha e humilhação diante de seus temores ilógicos.
Neurose Obsessivo-Compulsiva
Esta estrutura de personalidade, que diz respeito à forma e ao grau como organizam-se os mecanismos defensivos do ego diante de fortes ansiedades subjacentes, implica um acentuado grau de sofrimento, a si próprio e aos demais, em diferentes esferas da vida (tais como a familiar, profissional, social, etc.)...
Os sintomas obsessivos e compulsivos, compostos por dúvidas ruminativas, pensamentos cavilatórios, controle onipotente, frugalidade, obstinação, rituais e cerimônias, atos que, compulsiva e repetidamente são feitos e desfeitos num nunca acabar, podem atingir um alto grau de incapacitação do sujeito para uma vida livre, configurando uma gravíssima neurose, beirando à psicose.
Vale lembrar que o termo "obsessão" refere-se aos pensamentos que, como corpos estranhos, infiltram-se na mente e atormentam o indivíduo, enquanto, por sua vez, o termo "compulsão" designa os atos motores que o neurótico executa como uma forma de amenizar a pressão dos referidos pensamentos.
Resumidamente, os fatores etiológicos e caracterológicos mais marcantes consistem na existência de:
Pais obsessivos que impuseram um superego por demais rígido e punitivo.
Uma exagerada carga de agressão que o ego não conseguiu processar.
Existe uma ambiguidade e ambivalência no sujeito obsessivo, resultante do fato de que, por um lado, ele sente seu ego submetido a um superego tirânico (ele é obrigado a fazer, a pensar, ou a omitir, sob penas de...), ao mesmo tempo em que ele quer tomar uma posição contra esse superego e dar livre vazão ao id (instância mais primitiva e pulsional do nosso aparelho psíquico).
A obsessividade pode manifestar-se com dois perfis caracterológicos: sob a forma passiva e sob a forma ativa. Os obsessivos "passivo-submetidos", apresentam uma necessidade enorme de agradar (melhor seria dizer: não desagradar) a todas as pessoas, devido à sua intensa ansiedade em poder magoar ou vir a perder o amor delas. Assim, este tipo de obsessivo pode ficar no papel de criança intimidade e submetida aos objetos superegóicos, as quais passam o tempo todo pedindo "desculpas", "por favor", "com licença", "muito obrigado"..., ou adotando atitudes masoquistas. Já os obsessivos "ativo-submetedores", resultam de um processo de identificação com o agressor, pelo qual o sujeito adquire as características de exercer um controle sádico sobre os outros, aos quais ele quer sempre impor as suas verdades.
Em ambos os tipos de neuróticos obsessivo-compulsivos há uma permanente presença de pulsões agressivas mal resolvidas, de um superego rígido, muitas vezes cruel ante a desobediência aos seus mandamentos, e de um ideal de ego cheio de expectativas a serem cumpridas, sendo que tudo isso mantêm-nos em um continuado estado de culpa.
Os mecanismos de defesa mais utilizados pelo ego para poder sobreviver à carga das ameaças são de anulação (desfazer aquilo que já foi feito, sentido ou pensado), de isolamento (isolar o afeto da ideia), formações reativas (como forma de negar os sentimentos que lhe despertem ansiedade), racionalização e intelectualização (sempre a serviço de resistências). Mais ainda, existe a defesa inconsciente que consiste em utilizar um sistema de pensamentos ruminativos e cavilatórios, de sorte que a presença compulsiva e recorrente de certos pensamentos obsessivos visam justamente anular (fazer "cortina de fumaça") a outros pensamentos que estão significados como sendo desejos proibidos.
Como consequência da relação íntima que existe entre obsessividade, fobia e paranóia, observa-se muitas vezes a presença de um detalhismo obsessivo a serviço de desconfianças e da consequente defensividade paranóide. Neste caso, o sujeito adota a postura de polemizador.
Quando prevalece uma obsessividade narcisista, o sujeito exibe uma superioridade , por vezes muito bem disfarçada sob uma capa de modéstia, pela qual ele tenta convencer os outros (e a si próprio) o quanto ele é, entre todos mais, o mais honesto, dadivoso, humilde, etc. Essa superioridade obsessiva pode manifestar-se também por uma dimensão "moral", que consiste no fato de que o sujeito se torna, compulsivamente, um "colecionador de injustiças".
Também acontece seguidamente uma dificuldade em o obsessivo "soltar-se" no ato sexual, com a consequência de uma dificuldade orgástica, porquanto uma "parte" da sua mente está inconscientemente "escalada" para funcionar como "observadora" daquilo que está se passando com os dois da parceria. Quando prevalece a obsessividade narcisista, é tal o pavor de que haja um fracasso da potência ou da orgasmia, que o sujeito usa de mil subterfúgios para evitar o enfrentamento de uma ligação erótica, pois é como se estivesse se submetendo a um exame de avaliação de sua autoestima (sempre a perigo), e daí a facilidade de instalar-se um círculo vicioso de medo e evitação, que acaba adquirindo características fóbicas.
Em suma, o ideal do ego se constitui como o tirano do paciente obsessivo, forçando-o a uma idealização da perfeição e a adotar um estilo de pessoa excessivamente lógica. O sujeito esforça-se ao máximo para atingir um perfeccionismo, porém nada adianta; não vem a recompensa imaginada e com facilidade ele fica aprisionado em um estado de decepção e depressão.
Histerias
A histeria é o campo mais amplo da psicanálise, como também é o mais próximo da normalidade convencional, a tal ponto que, de certa forma, poderia abarcar todas aquelas pessoas que se caracterizam por uma nítida predominância do emprego de repressões...
Não existe uma especificidade perfeitamente circunscrita nas histerias, até mesmo porque, existe uma diversidade de enfoques, nem sempre compatíveis entre si, porém vale afirmar que as diversas modalidades de histerias podem ser entendidas a partir das identificações de cada pessoa, bem como da predominância das fixações (desde as narcísicas até as edipianas).
No entanto, algumas características comuns, embora não exclusivas, podem ser assim sintetizadas:
A existência de uma mãe histerogênica que provoca na criança sentimentos muito contraditórios, porque ao mesmo tempo em que ela é dedicada e carinhosa, também pode ser falsa, cobradora e ambígua; usa a criança como uma vitrine sua, para exibir-se aos outros, e projeta no filho culpas, responsabilidades e seus próprios aspectos histéricos; enfim, provoca na criança um estado confusional, notadamente no que diz respeito ao sentimento de identidade.
O pai, no caso das meninas, costuma ser simultaneamente sedutor e frustrador. A confusão pode aumentar nos casos em que o pai é desqualificado pela mãe. As pacientes histéricas com frequência têm um pai insatisfeito com a esposa e que se voltou para a filha em busca de uma satisfação e gratificação que não foi possível no casamento.
A experiência clínica comprova o quanto é frequente na mulher histérica que o pai era seu centro do universo, enquanto a sua mãe restou desvalorizada, em um misto de amor e ódio.
Em relação à ansiedade existente nas histéricas, além da clássica angústia de castração, todas as demais podem ser sintetizadas na angústia de cair em um estado de desamparo e baixa autoestima.
A tolerância às críticas e às frustrações, em geral, costuma ser muito baixa, vindo acompanhada por uma instabilidade emocional, sugestionabilidade e uma alternância de idealização e denegrimento dos outros.
Os mecanismos de defesa predominantes são todos aqueles que levam a algum tipo de negação e/ou de dissociação psíquica, o que faz com que tais pessoas cambiem subitamente de identidade.
Em relação ao sentimento de identidade, é bastante frequente a existência de um falso self (falta de autenticidade, insinceridade e um aparentemente inexplicável sentimento de falsidade), assim como também existe uma certa confusão quanto ao gênero sexual e outros aspectos identificatórios ("sou mulher ou sou homem?; Sou criança ou adulto?; Sou hetero ou homossexual?"; etc.)
O vínculo de reconhecimento adquire uma enorme importância nas pessoas histéricas, porquanto elas estão permanentemente pressionadas pelas suas demandas de obtenção de provas concretas de que são amadas, desejadas e valorizadas. Igualmente, há uma forte demanda de aprovação narcísica, por vezes tão intensa, que transparece um egocentrismo e infantilismo, de modo que o outro é utilizado única e exclusivamente como provedor das necessidades materiais e afetivas; assim, como não lhes basta ter o amor da pessoa amada, exigem ser o centro da vida desta pessoa.
Em razão dessa alta vulnerabilidade da autoestima, as pessoas histéricas são presas fáceis de estados depressivos, especialmente a assim chamada, "depressão narcisista". Para compensar essa permanente vazio existencial, buscam compensações na obtenção de dinheiro, beleza, prestígio, dentre tantos outros objetos e recursos materiais, o que as leva a um consumismo, muitas vezes, exagerado.
O corpo adquire uma extraordinária importância para a pessoa histérica, pois é por meio deste - uma forma de vestir, um sorriso enigmático, um olhar diferente, uma certa entonação vocal, alguma manifestação conversiva e/ou dissociativa - que a pessoa histérica pretende garantir a posse da pessoa desejada.
A sexualidade da pessoa histérica quase sempre está prejudicada e apresenta algum tipo de transtorno. De forma muito sintetizada, os seguintes aspectos deve ser destacados: 1) A permanência da fantasia de posse de uma bissexualidade (em virtude de um complexo de castração mal elaborado e uma consequente fixação narcísica); 2) A existência de transtornos da função sexual, como a homossexualidade latente, confusão de gênero, alguma forma de inibir ou de castrar a genitalidade do(a) parceiro(a), algum grau de perversão sexual (fantasias sadomasoquistas e de violação), impotência, anorgasmia.
A escolha das relações objetais, mais particularmente a escolha da parceria, adquire algumas características típicas, como pode ser: 1) A de um(a) parceiro(a) com quem vai constituir uma configuração de um recíproco e alternante sadismo e masoquismo. 2) Quando prevalece uma posição narcisista, o mais provável é que a escolha seja determinada pela necessidade de uma fusão narcísica com uma pessoa altamente idealizada (a sua "outra metade"), com quem alimenta a fantasia de alcançar a completude, perfeição, eternidade, supressão das faltas e abolição das diferenças, sendo que, mais cedo ou mais tarde, sobrevêm as decepções, seguidas de novas ilusões, em um círculo vicioso e às vezes interminável. 3) Tanto como uma forma de vingança ou como uma procura do inalcançável ideal narcísico, é bastante frequente o problema da infidelidade.
Por fim, uma outra particularidade importante e típica das pessoas histéricas consiste na sua forma de comunicação, geralmente dramatizada e hiperbólica, de narrar os fatos. Esse estilo substitui a falta de uma capacidade para, de fato, pensar as experiências emocionais. Igualmente, tais pacientes utilizam bastante a linguagem não-verbal expressada pelo corpo (atuações, conversões, somatizações).
Depressões
Diante do largo espectro clínico dos estados depressivos, torna-se indispensável que se reconheça a distinção que há entre melancolia, luto, tristeza e depressão, a qual está sempre subjacente às diversas organizações neuróticas e psicóticas da personalidade...
A tristeza indica um estado de humor afetivo que pode estar presente ou não nos estados depressivos. O luto corresponde a um período necessário para a elaboração da perda de um obeto amado que foi introjetado no ego, sem maiores conflitos. A melancolia designa que a introjeção do objeto perdido (por morte, abandono, término de relação, etc.) processou-se de uma forma muito ambivalente e conflitada. Essa "sombra do objeto recaído sobre o ego" (Freud, 1917) pode estar absorvida no próprio núcleo do ego e aí permanecer por toda a vida, assim se constituindo em um luto patológico crônico. A depressão subjacente às neuroses e psicoses refere-se ao fato de que todo indivíduo, em grau maior ou menor, é portador de núcleos melancólicos da personalidade. A depressão melancólica (a qual será melhor abordada em outros tópicos específicos) também apresenta uma ampla gama clínica de variações, tanto quantitativas como qualitativas.
Apesar dessa variação de forma e grau das depressões, alguns de seus sintomas e sinais clínicos são de presença constante como, por exemplo:
baixa autoestima;
sentimento culposo sem causa definida;
exacerbada intolerância a perdas e frustrações;
alto nível de exigência consigo próprio;
extrema submissão ao julgamento dos outros;
sentimento de perda do amor;
e uma permanente sensação de que há um desejo inalcançável.
Depressão por Perdas
1) Perda de objetos ambivalentes e necessitados; 2) Perda de objetos reasseguradores da autoestima; 3) Perdas do ego...
Embora o termo "perda" seja muito abrangente e genérico, justifica-se a sua especificação em razão de algumas singularidades. Assim, essas perdas processam-se em três níveis:
1) Perda de objetos necessitados (e ambivalentemente, amados e odiados): A essência desta vertente depressiva consiste no fato de que a perda, real ou fantasiada, do objeto bom, amado e protetor, deixa o indivíduo entregue ao objeto mau que, de seu interior, o acusa, despreza, reduz a sua autoestima a níveis ínfimos e, sobretudo, deixa-o totalmente desamparado.
2) Perda de objetos reasseguradores da autoestima do indivíduo: Trata-se de pessoas que necessitam, de forma desesperada e compulsória, do reasseguramento de que são amadas e valorizadas. Para tanto, costumam estabelecer relações com pessoas que se prestem a tal papel e, no caso de perderem-nas sentem a terrível sensação que é inerente a quem fica sem as imprescindíveis muletas.
3) Perdas do ego: instala-se uma depressão reativa quando, por circunstâncias várias, há uma perda súbita ou gradativa, das funções do ego, especialmente as relacionadas à adaptação ao mundo exterior (aposentadoria; pais e amigos que envelhecem, adoecem e morrem; filhos que casam e se mudam), como também há a perda de atributos do ego (prejuízo acuidade visual ou auditiva, da memória, da beleza, do juízo crítico, da agilidade de raciocínio, da mobilidade, dos reflexos, etc.).
Um sinal de reconhecimento comum a todos estes exemplos acima citados é o de uma ansiedade depressiva que se expressa no sentimento de que "não sou mais o mesmo...".
Depressão por Culpas
Vale destacar as seis principais fontes de culpa, que são devido...
1) A um superego estruturado como sendo rígido, punitivo e todo-poderoso: os indivíduos portadores de um superego cruel estão habitualmente protegidos por uma sólida organização obsessiva e são muito propensos à formação de quadros depressivos. Pode-se dizer que o self dos mesmos comporta-se como cenário de um permanente tribunal de julgamento em que uma severa promotoria induz o júri à aplicação da sentença de "culpado" pelo crime de transgressão (pelo que fez ou deixou de fazer em pensamentos, sentimentos e atos) e a consequente condenação a pesadas penas, que se expressam pelas inter-relações de natureza sadomasoquista.
2) Ao ódio do ego contra o próprio id: ocorre nos indivíduos em que há desarmonia entre o sistema de valores autênticos do ego e que entra em conflito com alguma pulsão contrária. Exemplo: quando uma pessoa autenticamente generosa se sente inconformada e culpada ao perceber a presença simultânea de sentimentos de inveja, ciúmes, raiva, etc.
3) Às culpas imputadas pelos outros: é muito comum nestes casos acontecer que determinados atos e "artes" das crianças, frutos de uma agressividade sadia, possam ter sido significadas pelos seus pais como agressões daninhas. Essa criança, assim, poderá carregar pelo resto da sua vida uma culpa indevida, que se expressará de forma generalizada e confusa ao longo da vida adulta.
4) À obtenção de êxitos: aqui a obtenção de alguma conquista pode ser significada pelo indivíduo A) como uma forma de traição e deslealdade em relação aos papéis que lhe foram designados a cumprir na vida; B) um outro possível fator é a culpa que se forma a partir da comparação que o indivíduo faz entre seu êxito e a infelicidade de outras figuras queridas; C) indivíduos de estrutura narcisista, para os quais a consecução bem sucedida de uma meta pela qual tanto lutaram leva-os à seguinte e angustiante questão, fruto da desproporção entre a grandiosidade da expectativa fantasiada e a da realidade bem mais modesta: "E agora? Ainda não é bem o que eu esperava de mim (ego ideal). Estou decepcionado comigo..."; D) outro fator também gerador de culpas é o sentimento de que ele possa estar despertando um estado de inveja e/ou de humilhação em outros; E) e por fim, a culpa também pode se instalar em decorrência da ânsia de exibicionismo que pode ter sido a fantasia prevalente para a consecução do êxito.
5) À descrença do ego em suas próprias capacidades reparatórias: aqui gera-se um círculo vicioso maligno de ansiedades depressivas e uma maior sensação de esvaziamento de que possua uma bondade genuína, podendo levar o indivíduo a lançar mão de falsas (maníacas, obsessivas e masoquistas) reparações (por exemplo: grandiosos projetos de redenção social, um presentear excessivo e inadequado, superproteção asfixiante, sacrifícios de toda ordem, etc.).
6) À assunção de culpas dos outros: trata-se daqueles sujeitos que, frequentemente, se sentem obrigados a reinvestir contra si mesmos os sentimentos de ódio, raiva e culpa que, de fato, caberiam a um outro alguém (aos pais, por exemplo). Isso radica-se na necessidade que muitas crianças tiveram (ou ainda têm) de protegerem (e de protegerem-se) as figuras parentais que não se mostraram capazes de aguentar uma forte carga agressiva e que, por essa razão, tanto poderiam reagir depressivamente (uma mãe depressiva ou hipocondríaca, por exemplo), como poderiam revidar de forma violenta.
Depressão Decorrente do Fracasso Narcisista
Um indivíduo portador de uma forte organização narcisista da personalidade, sente-se em um permanente estado de angústia diante da possibilidade de não corresponder plenamente às fortes exigências provindas de dentro ou de fora de si mesmo...
Por essa razão, ele vai necessitar de um constante aporte de elogios, aplausos ou de qualquer outra prova que lhe reassegure a autoestima. Resulta daí a explicação de por que a perda de um objeto externo reassegurador da autoestima pode se constituir como um importante fator desencadeador de uma depressão.
É preciso considerar dois elementos inerentes aos indivíduos narcisistas: um é o emprego de uma forma lógica, do tipo binária, isto é, ou ele é o melhor ou ele é o pior, e assim por diante. O outro elemento, decorrente deste, é uma permanente atitude de comparação com os demais, e isso gera uma consequência muito importante: um estado depressivo resultante do "êxito dos outros".
É fácil depreender que, neste último caso, a inevitável comparação que o indivíduo narcisista sempre faz determina que o sucesso alheio faz-lhe sentir uma insuportável sensação de derrota, fracasso e humilhação, o que decreta um rude golpe em sua frágil autoestima e, daí, uma depressão.
Depressão pela Ruptura com Papéis Designados
Boa parte do inconsciente da criança é modelado pelo discurso dos outros, por meio das mensagens veiculadoras de inúmeros significados, especialmente daquelas provindas dos conflitos inconscientes dos próprios pais...
Dessa forma, o indivíduo, desde a tenra idade, é ensinado a "como" e a "quem" ele deve ou não deve ser, e quais os papéis que ele deverá desempenhar pela vida afora, a fim de garantir o amor dos pais e de jamais trair as expectativas que estes depositam nele.
Uma desobediência a este princípio pode custar um terrível preço: a pecha de ingratidão e a ameaça de perda dessas figuras de que ele necessita e ama, além do inevitável surgimento do sentimento culposo.
É bastante comum no curso de um processo terapêutico psicanalítico que, ao começarem a se libertar de tais papéis e estereótipos que lhes foram imputados, e ao caminharem de forma mais autêntica, autônoma e emancipada, com mudanças de valores e relações interpessoais, os pacientes/analisantes, fortemente influenciados por certas transformações psíquicas, experimentem alguns sentimentos de confusão, despersonalização, de perda de identidade e de depressão, mas que, com o devido manejo técnico por parte do analista, são superados ao longo do processo.
Pseudodepressões
É muito comum que determinados indivíduos atravessem a vida inteira aparentando desvalia e pobreza que não correspondem à sua realidade...
As causas mais frequentes que levam a essa aparência de esvaziamento e pseudodepressão são as seguintes:
Medo de atrair a inveja retaliadora dos demais.
Medo de vir a ser considerado pelos outros uma inesgotável fonte de provimento das necessidades deles, e daí o risco de vir a ser exigido, cobrado, sugado.
Necessidade de proteger as pessoas com quem convive, a partir da fantasia de que um estado de felicidade seu pode ser entendido como um tripúdio àquelas pessoas as quais, por isso, ficariam magoadas, humilhadas e deprimidas.
Necessidade de sofrimento que certos indivíduos se impõem, como uma espécie de "cota de sacrifício". Trata-se geralmente de pessoas que, quando crianças, foram "programas" a conseguir as coisas e os afetos de que necessitavam às custas de muita reclamação, choro e sofridas negociações com seus pais. O choro fácil é uma manifestação habitual nesses sujeitos, mas na maioria das vezes não expressa um estado de sofrimento real, mas sim uma senha para conseguir algo ou não ser dele privado.
Pode-se mesmo dizer que para esses indivíduos pseudodeprimidos a exibição de sofrimento funciona como um passaporte para o amor.
Borderline
Até há pouco tempo, essa denominação designava o estado do psiquismo de um paciente que, clinicamente, estivesse na fronteira limítrofe entre a neurose e a psicose. Na atualidade os estudiosos dos casos borderline preferem considerar essa condição psíquica como sendo uma estrutura, com características específicas e peculiares...
De forma abreviada, cabe destacar as seguintes características destes pacientes:
Existência de fortes pulsões destrutivas, com predomínio da inveja e voracidade.
Essas pulsões, quando agindo dentro do próprio psiquismo e contra ele, determinam o surgimento de uma intensa angústia de aniquilamento.
Como forma de lidar com essa intensa angústia, os núcleos psicóticos da personalidade lançam mão de defesas extremamente primitivas, como são as de negação onipotente, dissociação, projeção e identificação projetiva, introjeção e identificação introjetiva, idealização e desvalorização.
Existe um baixíssimo limiar de tolerância às frustrações e, por isso, esses pacientes tratam de evitar as frustrações no lugar de procurar enfrentar e modificá-las.
As relações mais íntimas caracterizam-se por vínculos de natureza sadomasoquista.
Existe um grande ódio a toda realidade que seja penosa, tanto à interna quanto à externa. Por conseguinte, resulta uma preferência pelo "mundo das ilusões" e, para manter este estado ilusório, a "parte psicótica da personalidade" (PPP - conceito psicanalítico cunhado pelo psicanalista Wilfred Bion), comete um "ataque aos vínculos" ligados à percepção e ao juízo crítico, com um resultante prejuízo na capacidade das funções de pensamento verbal, simbolização de conceitos, construção de conhecimento e do uso da linguagem como forma de expressão e comunicação.
A onipotência, onisciência, imitação e a prepotência substituem o necessário, porém demasiadamente doloroso para este sujeito, processo de "aprendizagem pela experiência".
A perda/prejuízo da capacidade de discriminação, acarreta uma confusão entre o que é verdadeiro e o que é falso, tanto do seu próprio self como de tudo o que está fora dele.
Existe a presença de um "super"-superego, o qual dita as próprias leis e quer impô-las aos outros, pois acredita que "tudo pode, sabe, controla e condena" e que, portanto, os demais devam, incondicionalmente, acatar a sua arrogância.
No entanto, diferentemente do que acontece nas psicoses clínicas bem-estabelecidas, os pacientes borderline conservam um juízo crítico e senso da realidade...
Existe a presença permanente de uma ansiedade difusa e a sensação de um vazio crônico que acompanham uma neurose polissintomática.
Essa última refere que esses pacientes recobrem as suas intensas angústias depressivas e persercutórias, com uma fachada de sintomas e traços caracterológicos de fobias diversas, manifestações obsessivo-compulsivas, histéricos, narcisistas, psicossomáticos, perversos, etc., os quais podem se dar concomitante ou alternadamente.
É bastante frequente a vivência de uma sexualidade com características sadomasoquistas.
Em casos mais graves e avançados de estruturação borderline, podem aparecer manifestações "pré-psicóticas", como é o caso de personalidade paranóide, esquizóide, hipomaníaca, neuroses impulsivas, transtornos alimentares graves, adicções, etc.
Há, geralmente, um sério transtorno do "sentimento de identidade", o qual consiste na dificuldade que esse paciente tem de transmitir uma imagem integrada, coerente e consistente de si próprio, o que também deixa os outros confusos em relação a ele.
Esse estado decorre do fato de que o paciente borderline faz um uso excessivo da defesa de dissociação dos distintos aspectos do seu psiquismo, que permanecem contraditórios ou em oposição entre si, de modo que ele se organiza como uma pessoa ambígua, instável e exageradamente compartimentada.
Somatizações
Por que algumas pessoas se tornam neuróticas, psicóticas ou perversas, e outras, ainda, somatizam?
A ciência ainda não encontrou uma resposta precisa e definitiva para essa questão. No entanto, é certo que a psicanálise contemporânea, tal como a ciência que é, não pode ignorar os inegáveis avanços de outros ramos científicos, tais como a biologia, psicologia experimental, neurologia, psicofarmacologia, psicoimunologia e das neurociências em geral.
Levando em consideração algumas das descobertas destas áreas e sob uma perspectiva psicanalítica, podemos levantar os seguintes pontos para as nossas reflexões acerca deste tema:
Toda e qualquer pessoa possui uma "potência somática" que, em determinadas situações emocionais pode ser ativada e manifesta na corporalidade orgânica.
Um possível estancamento da libido (energia pulsional) ligada aos conflitos da sexualidade continua sendo um fator considerável.
Igualmente importantes são os elementos psíquicos da agressão sádico-destrutiva ligados à pulsão de morte que, quando fortemente negados, de alguma forma podem aparecer sob forma de distintas somatizações.
As pessoas que desenvolveram bem suas capacidades de expressão (linguagem) simbólica estão menos propensas à somatização, sendo que o inverso disso pode tornar tais pessoas mais vulneráveis aos transtornos de natureza psicossomática.
É assim que, acima de tudo, a psicanálise atual atribui um papel de primeira grandeza para a compreensão dos pacientes somatizadores a uma incapacidade destes indivíduos em conseguir pensar (ler) as suas experiências emocionais dolorosas e estabelecer, a partir disso, uma devida comunicação entre elas, a fim de que, posteriormente, elas possam ser expressadas para fora de si.
Adicções
O termo "adicto", formado a partir de "a" (privação) + "dicto" (dizer com palavras) designa aquele sujeito que carece de linguagem falada para expressar os seus conflitos de natureza psíquica e emocional...
O que na situação analítica se manifesta ora por mutismo, ora por uma avalanche de palavras vazias - que não se prestam à comunicação - e que podem ser tão destrutivas como o seu mutismo.
Desta forma, o "a-dicto" vai criando um mundo secreto, com a negação dos afetos. Isso cria um sentimento de que ele está prisioneiro, de forma inevitável, de um "destino imutável e fatal". Daí resulta uma "neurose de impulsão", e o sujeito apela para a adicção (drogas lícitas e/ou ilícitas) como uma tentativa de manter a sensação de estar vivo, enquanto a abstinência gera nele a sensação de aniquilamento.
De forma geral, entende-se que as adicções estão sempre ligadas a uma tentativa de o sujeito preencher "vazios existenciais", decorrentes da primitiva angústia de desamparo e, para tanto, ele lança mão do uso de drogas tóxicas e euforizantes, bebidas alcóolicas, etc., o que pode resultar, em alguns casos e posteriormente, em problemas de relacionamentos interpessoais.
No entanto, também existe adicção a alimentos, consumo/compras, assim como também sob a forma de uma busca compulsiva por relações sexuais com diferentes parceiros(as).
Nas pessoas que apresentam uma estrutura de personalidade tipicamente percebida nos adictos, geralmente existem fortes componentes narcisistas (o que pode refletir na habilidade de se envolver com inúmeras pessoas através de jogos de sedução, e que adquirem a forma de "paixão") e sadomasoquistas, baixa tolerância às frustrações, uma nítida preferência ao mundo das ilusões, um crônico sentimento de vazio, tédio e, algumas vezes, até de asco e falsidade, denotando algumas tendências antissociais.
1) Autodesprezo
Você se considera uma pessoa que merece ser respeitada?
Essa pergunta pode até parecer descabida, pois talvez você imagina que todo mundo responderia que sim. Mas, será mesmo que a imensa maioria das pessoas de fato percebem a si mesmas como dignas de serem respeitadas?
Com base na minha experiência, eu diria que não!
Vejo com muita frequência na minha prática clínica indivíduos que se envolvem em situações que, do ponto de vista de um observador externo, seriam inadmissíveis. Me refiro a relacionamentos amorosos doentios, amizades tóxicas, relações familiares destrutivas, dentre outras formas de vinculo bastante questionáveis. Trata-se de situações em que a pessoa se vê constantemente sendo desrespeitada, humilhada, agredida e ameaçada.
Embora a gente até saiba que a possibilidade de experimentar prazer na dor exista para todos os seres humanos, ou seja, que todos nós temos algo de sádicos e masoquistas, na maioria dos casos a que me refiro, não se trata realmente de masoquismo.
Em outras palavras, quem se mantém em relações nas quais é abusado e desrespeitado não faz isso necessariamente porque gosta da humilhação. Na verdade, o que acontece com essas pessoas é que falta a elas a crença de que são dignas de respeito.
Elas até são capazes de afirmar conscientemente que merecem ser respeitadas, mas, na prática, não é bem assim que a coisa funciona. Assim, se submetem a situações deploráveis e inadmissíveis porque veem a si mesmas como seres sem valor e que não merecem muita consideração. Elas aceitam tudo, toleram tudo, esquecem tudo, porque sempre percebem o outro como mais importante do que elas mesmas. Estão sempre relativizando o próprio desejo, pois nunca se consideram suficientemente importantes para fazer valer o que querem e desejam.
Dentre as tantas possíveis causas pra isso que a gente pode chamar de autodesprezo crônico, eu vou comentar duas.
A primeira possível gênese tem no medo o seu afeto fundamental. Nesses casos, o autodesprezo emerge como uma estratégia defensiva para evitar o abandono. Na história do sujeito há geralmente algumas perdas de vínculos importantes, sobretudo na infância, as quais foram interpretadas pela pessoa como abandonos. Assim, o indivíduo acabou construindo uma imagem de si mesmo como alguém desamparado e que está sempre sob a ameaça de ser novamente abandonado.
Essa configuração torna a pessoa extremamente vulnerável a ser explorada pelas pessoas com quem ela se relaciona. Com efeito, um sujeito que está sempre com medo de ser abandonado pelos outros estará disposto a sacrificar qualquer coisa para evitar que isso aconteça. É aí que o autodesprezo aparece. Para impedir que os outros a abandonem, a pessoa se torna totalmente submissa ao desejo deles, acreditando que, se fizer tudo bonitinho, conforme o que querem que ela faça, não será deixada. Ela sacrifica o seu respeito próprio e até sua dignidade para não perder o vínculo com o outro.
Outra gênese possível para o autodesprezo crônico é o complexo de autopunição. Nesse caso, o autodesprezo emerge como uma espécie de penitência à qual o sujeito se entrega inconscientemente. Na história de sujeitos que se encaixam nessa categoria, encontramos muitas culpas, muitas delas (a grande maioria, eu diria) exageradas e fantasiosas. São culpas geralmente derivadas de pequenas e inofensivas peripécias infantis em relação às quais o indivíduo não conseguiu se perdoar.
As memórias dessas situações (muitas das quais jamais ocorreram, mas foram apenas imaginadas) se encontram reprimidas no inconsciente. Por isso, a pessoa não consegue recordá-las conscientemente, experimentando apenas um crônico sentimento de culpa que, volta e meia, encontra outras situações concretas (e geralmente insignificantes) para se justificar.
Aqui a gente poderia também problematizar o peso e a importância dos discursos e atos, ou seja, os xingamentos, as falas ofensivas, os castigos simbólicos e reais demasiadamente violentos que, por ventura, tenham sido praticados pelos cuidadores primários e principais desta criança em relação a tais travessuras pois, como o ego ainda se encontrava em processo de estruturação, o peso de tais discursos e atos pode ter ocasionado a internalização daquilo que chamamos na psicanálise de “objetos maus e de identificação com o agressor”, geradores de fortes sentimentos de medo e culpa.
Não raro, sujeitos com essa configuração se envolvem em relacionamentos amorosos, de amizade ou de trabalho, nos quais são explorados e humilhados. Contudo, apesar de todo o sofrimento que experimentam, não rompem tais vínculos. Aqui não se trata do medo de perder o vínculo, mas do uso inconsciente da situação de abuso e humilhação como um castigo para as travessuras de infância.
É como se o indivíduo vivesse guiado pelo seguinte pensamento: “Por tudo o que já fiz, não mereço respeito e consideração. Portanto, preciso suportar toda essa humilhação”.
É claro que o sujeito não tem consciência disso, mas, com base na escuta do seu discurso durante a terapia, podemos perceber claramente que a pessoa se despreza e se coloca submissa aos caprichos do outro como uma forma de obter punição pelas culpas do passado.
Seja por medo de perder o amor do outro ou como uma forma de autopunição, o autodesprezo crônico precisa ser tratado. Não é justo, e muito menos saudável do ponto de vista emocional, que pessoas passem a vida inteira se deixando abusar e humilhar por medo da solidão ou por acreditarem na fantasia de que merecem uma punição eterna.
2) Autoestima
Autoestima é uma dessas palavras que surgiu no campo da Psicologia como um conceito e foi pouco a pouco fazendo parte do vocabulário popular. Por isso, é comum a gente ouvir hoje em dia pessoas dizendo que precisam “melhorar” a sua autoestima ou que tem ou estão com a autoestima baixa.
Para a maioria das pessoas, ter autoestima elevada significa basicamente gostar de si mesmo. Nesse sentido, uma pessoa que tem uma boa autoestima seria aquela que possui uma visão positiva de si.
De fato, autoestima é um conceito que se refere a um processo de valoração que, como tal, pode ter como resultado um parecer positivo ou negativo. Trata-se, portanto, do produto da avaliação interna que faço de mim mesmo.
A gente sabe que todo processo avaliativo é baseado em critérios, parâmetros, indicadores. E é justamente nesses padrões de referência que encontramos as razões pelas quais algumas pessoas possuem autoestima elevada e outras sofrem com autoestima baixa.
Diferente de outras espécies animais, só nós, humanos, podemos tomar o próprio eu como um objeto a ser examinado. E a gente faz isso o tempo todo, como se a gente estivesse frequentemente diante de um espelho interno verificando como tá se saindo, ou seja, se a gente tá bem ou mal na fita. O resultado dessa análise constante que fazemos de nós mesmos é o que chamamos de autoestima.
Mas de onde vêm os parâmetros que utilizamos para fazer essa análise?
Do Outro, isto é, da cultura na qual estamos inseridos, dos ambientes que frequentamos e, principalmente, das pessoas com as quais a gente se relaciona, sobretudo na primeira infância. Ou seja gente, não existe constituição da autoestima, inicialmente, sem o olhar do outro. Posto isso, vamos seguir com o raciocínio...
É por meio da interação com os nossos pais e também por meio de tantos outros seres humanos com os quais a gente conviveu ao longo da nossa infância e adolescência (irmãos, tios, avós, primos, colegas de escola...) que aprendemos a nos avaliar.
É na convivência com eles que vamos, pouco a pouco, internalizando os parâmetros e critérios com os quais medimos a nós mesmos. É por isso que, de alguma forma a gente pode até dizer que toda autoestima é, no fundo, uma hetero-estima, já que, na origem, os óculos psicológicos que a gente usa para enxergar a nós mesmos são aqueles que o Outro nos ofereceu.
Um exemplo bem simples e didático agora: há pessoas cuja baixa autoestima tem a ver com sua aparência física. Por não estarem “em forma”, ou seja, em conformidade com os padrões estéticos pré-estabelecidos pelo seu entorno (e que, infelizmente, na cultura narcisista na qual estamos inseridos costumam ser irreais e tirânicos) tais indivíduos se avaliam de modo pejorativo.
Sem perceber, e na maioria das vezes de modo inconsciente, essas pessoas internalizaram tais critérios e agora passam a se medir por eles, ao invés de adotarem outros parâmetros mais realistas e alinhados com os próprios gostos e ideais, ou até mesmo pertencentes a outras categorias, como por exemplo, os de conduta ética, moral, ou ainda relacionados a outras habilidades e competências em diferentes campos da vida.
Para algumas dessas pessoas, isso pode ter acontecido porque seus pais valorizavam muito a aparência física. Em outros casos, o indivíduo pode ter simplesmente se deixado levar pela cultura contemporânea que dá muita importância ao ideal fitness, e não só por ele simplesmente, mas a ideais delirantes e surreais de beleza que, na prática, são inalcançáveis à grande maioria das pessoas.
Alguns desses padrões de referência são conscientes, ou seja, a gente até consegue trazê-los à mente com facilidade e repensá-los, problematiza-los, questiona-los...
Porém, não são poucas as vezes que certos padrões hipertrofiados e ideais de perfeição - e eu não tô falando aqui apenas daqueles relacionados à beleza, mas também de tantos outros relacionados às nossas capacidades de uma forma geral - que tais padrões e ideais estejam localizados em níveis mais profundos da nossa psique, ou seja, em camadas inconscientes dela, e que, justamente por isso, meio que de forma automática e sem a gente se dar conta, a gente acabe se lançando de forma torturante em busca da realização destes padrões e ideais inalcançáveis, comendo o pão que o diabo amassou nessa busca.
É neste sentido então que a “melhoria” de nossa autoestima depende necessariamente de uma revisão dos parâmetros que a gente utiliza para se analisar, e que a psicanálise pode nos ajudar, e muito, a trazer essas nossas “réguas internas” à luz da consciência.
3) Culpa
A culpa, apesar de em certa medida necessária e inevitável, é um dos afetos mais desagradáveis que podemos experimentar.
Ela geralmente aparece quando fazemos (ou temos a intenção de fazer) algo que nós mesmos consideramos errado. Pressupõe, portanto, uma divisão do nosso eu em uma parte que faz algo (ou deseja fazer) e outra que condena a realização do nosso desejo. Essa divisão não se faz presente em nós desde o nascimento.
De fato, no início da vida não temos conhecimento acerca do que é certo e do que é errado. Dizemos, portanto, que originalmente a criança é amoral, ou seja, seu comportamento não é influenciado por nenhum parâmetro ético. As barreiras morais só começam a ser apresentadas à criança quando os pais consideram a necessidade de impedir que ela se comporte de determinadas maneiras e passam a estimulá-la a agir de outras formas, por meio de um processo de ensino-aprendizagem e educacional.
De uma forma bastante sintética, podemos dizer que o surgimento da culpa está relacionado com o nosso grau de consciência acerca da possível transgressão a uma ou a um conjunto de regras morais que aceitamos como legítimas.
Em linhas gerais, a manifestação da culpa depende de três condições: (1) a realização (ou intenção de realizar) uma ação que, do nosso próprio ponto de vista, é avaliada como errada; (2) a vinculação dessa ação a um contexto relacional; e (3) a produção ou possibilidade de dano a uma ou mais pessoas.
Ao refletirmos sobre essa terceira condição, nos damos conta de que a culpa só pode se manifestar em pessoas que são capazes de se imaginar padecendo dos efeitos de suas próprias ações.
A capacidade de se imaginar na pele da pessoa que sofre os efeitos de nossas ações pode se desenvolver de modo exacerbado em algumas pessoas. Trata-se de um fenômeno chamado “empatia patológica”. Nele, o sujeito se coloca imaginariamente de forma tão intensa e frequente “no lugar do outro” que acaba se tornando alheio aos seus próprios interesses.
À luz deste raciocínio não é surpreendente constatar que indivíduos que sofrem de empatia patológica costumam experimentar a culpa numa frequência excessiva. Com efeito, a facilidade que possuem para se imaginar na pele do outro leva estes sujeitos a colocarem sempre em primeiro plano a preocupação com os possíveis danos de suas ações e a negligenciarem o reconhecimento e até a relativizarem a realização de seus próprios desejos.
Bom gente, em resumo, penso que um bom ponto de partida pra gente entender nosso sentimento de culpa, é a gente se questionar no curso de um processo terapêutico sobre os códigos morais que introjetamos no nosso psiquismo desde criança até aqui, e sobre como fomos cobrados, tanto pelas figuras parentais como também pelos educadores de uma forma mais ampla, para que a execução de tais códigos acontecesse, pois, uma educação muito castradora, rígida e demasiadamente inflexível, pode ter ocasionado forças tirânicas internas que atuam contra nós mesmos e, com isso, fortes e contínuos sentimentos de autocobrança e autopunição, deixando marcas dolorosas em nosso psiquismo e impactando negativamente nossas relações intra e interpessoais.
4) Depressão
Ao lado dos transtornos de ansiedade, a depressão ocupa hoje lugar de destaque entre as formas de adoecimento emocional que mais aparecem na clínica.
Ao contrário do que muitas vezes imaginamos, a característica mais básica da depressão não é a tristeza constante e intensa, mas uma redução significativa da vontade de viver.
Na depressão ocorre um movimento regressivo da energia vital: ao invés de se voltar para o mundo e para as pessoas visando a ampliação das possibilidades de vida, a energia é redirecionada para o próprio indivíduo.
Não por acaso, pessoas deprimidas costumam ser egocêntricas, o que frequentemente gera impaciência e dificuldade de compreensão por parte de quem está à sua volta.
Com efeito, é muito comum que o deprimido fique pensando o tempo todo (e eventualmente falando) sobre seus defeitos, seus erros do passado, suas impotências e dificuldades. É tudo sobre si.
Dentre as tantas possíveis causas, o indivíduo entra na condição depressiva após vivenciar um episódio de opressão abrupto e muito intenso ou depois de passar por uma série de pequenas opressões que se mantiveram constantes durante muito tempo
Com o termo “opressão” me refiro a situações em que o indivíduo se sente tolhido, limitado, coagido pela realidade externa.
Pense na imagem de uma pessoa presa numa caixa, incapaz de se levantar, de abrir os braços, de andar. É assim que o deprimido se sente.
É como se dentro dele tivesse um comando de voz que diz o tempo todo que viver é perigoso, que a vida não vale a pena.
Portanto, a tristeza, os pensamentos de suicídio, a falta de desejo sexual, as crises de choro etc. são, na verdade, sintomas derivados desse fenômeno mais básico que é a redução significativa da vontade de viver.
É por isso que os medicamentos antidepressivos não são suficientes para o tratamento. A cura dessa modalidade de adoecimento só é possível mediante o resgate da capacidade do sujeito de olhar para o mundo com bom ânimo...
E com a disposição corajosa de se lançar na realidade num movimento de expansão e ampliação de possibilidades.
5) Dificuldade de Dizer Não
Uma das queixas mais frequentes que a gente presencia na clínica diz respeito à dificuldade que muitas pessoas têm para negar pedidos, demandas e convites.
Por razões que não são capazes de compreender com clareza, as pessoas que não conseguem dizer não se sentem extremamente constrangidas e desconfortáveis por, na realidade, não desejarem acatar as demandas alheias. Em decorrência disso, acabam abrindo mão do próprio desejo para satisfazerem as necessidades de outras pessoas.
A ocorrência frequente de situações dessa natureza faz com que os sujeitos que não conseguem dizer “não” se sintam prisioneiros de si mesmos. Incapazes de sustentarem o desejo de simplesmente não fazer aquilo que é solicitado pelo outro, passam a nutrir uma autoavaliação negativa, se considerando, muitas vezes, fracos e inseguros.
Confusas por não entenderem os motivos pelos quais não conseguem dizer “não”, tais pessoas vão, pouco a pouco, forjando estratégias de fuga para evitar o encontro com aqueles que, potencialmente, poderão demandar algo delas. Elas passam, então, a adotar um comportamento predominantemente evitativo, pois, agindo dessa forma, elas imaginam que conseguirão ao menos reduzir a frequência das situações em que se verão incapazes de dizer “não”.
Se você é um desses, ou, se convive com alguém assim, com certeza já deve ter parado pra se perguntar: De que inferno vem essa dificuldade? Por que, para algumas pessoas, é tão difícil simplesmente recusar um convite, uma proposta ou um pedido?
Se a gente procurar essa resposta apenas no plano da consciência, muito provavelmente nossa empreitada será infrutífera. Afinal, sujeitos que sofrem desse mal são, muitas vezes, capazes de elencar inúmeros motivos pelos quais deveriam recusar as demandas que são feitas a eles. Porém, por razões que desconhecem, simplesmente não conseguem expressar a recusa. É neste sentido então, que a solução que a gente procura para o problema deve ser buscada em outra região da mente, uma mais profunda, ou seja, no nosso inconsciente.
É neste território do nosso psiquismo que residem os impulsos, medos, desejos e fantasias que, ao longo da vida, nós fomos expulsando de nossa consciência. Exilados, por assim dizer, estes conteúdos continuam exercendo efeito sobre o nosso comportamento, meio que no modo automático e sem que a gente se dê conta disso. É justamente no inconsciente que a gente pode encontrar alguns dos motivos que levam certos indivíduos a se sentirem tão desconfortáveis quando desejam recusar alguma demanda do outro.
Poderemos verificar, por exemplo, a presença do desejo de querer ocupar a função do objeto mágico que sempre satisfaz o outro. Pode ser que o sujeito em questão tenha sido colocado na infância justamente nesse lugar por seus cuidadores primários, por exemplo. Não são raros os casos em que os pais, muitas vezes insatisfeitos um com o outro no âmbito da conjugalidade ou até mesmo por outros motivos, procurem compensar suas frustrações por meio dos filhos. Os pequenos, então, se veem forçados a exercer para estes pais o papel de objetos compensatórios.
Num primeiro momento, essa posição pode ser até bastante prazerosa para a criança, pois ela se perceberá como importante para estes pais. O problema é que se trata de um papel insustentável no longo prazo: a criança não pode permanecer para sempre no lugar de objeto de desejo do outro; ela precisa se emancipar subjetivamente e buscar os seus próprios objetos de satisfação.
No entanto, algumas pessoas, por razões que somente no “caso a caso” podem ser devidamente analisadas, permanecem fixadas àquela posição e acabam inconscientemente buscando na vida adulta situações nas quais possam continuar servindo como objetos de satisfação do desejo do outro. Assim, não conseguem recusar pedidos, pois o desejo inconsciente de satisfazer esse outro que ocupa hoje o lugar que no passado era ocupado pelos pais, acaba sendo mais forte do que o desejo do próprio sujeito.
Uma outra possibilidade que também pode explicar a extrema dificuldade que podemos ter pra dizer não, se refere àqueles casos em que o indivíduo não recebeu por parte dos seus cuidadores primários o acolhimento, o olhar e a sustentação psíquica necessária para que se percebesse como alguém que existe e que tem valor.
Nós não nascemos com essa consciência. São os nossos pais (ou outras pessoas que porventura tenham exercido a função parental) os responsáveis por “inocular” em nós o sentimento de segurança básica que nos habilita a reconhecer nosso valor pessoal.
Pessoas que não receberam nos primeiros anos essa espécie de “injeção” psíquica podem chegar à vida adulta carregando dentro de si um sentimento crônico de insegurança que as incapacita a perceberem os próprios interesses como legítimos e dignos de valor. Ou seja, sujeitos que não foram devidamente acolhidos, assegurados e validados na infância se veem, na grande maioria das vezes e de forma inconsciente, obrigados a considerar o mundo como um lugar ao qual eles devem se adaptar, e não como um ambiente no qual podem encontrar um lugar próprio e legítimo.
Assim, diante das demandas do outro, nutrindo a sensação de serem, em alguma medida, indesejados no mundo, ou ainda, “estranhos no ninho”, tais pessoas não se percebem como tendo o direito de dizer “não”. No fundo, mantêm a esperança infantil de que se fizerem tudo certinho, ou seja, se forem legais com todos e aceitarem tudo aquilo que o mundo impõe, finalmente serão validados e dignos de valor.
Perceba, portanto, que a dificuldade de dizer “não”, muitas vezes, não está restrita apenas a uma falta de “habilidade social”, mas a processos psíquicos muito profundos, de ordem inconsciente. Ou seja, há aqueles que não conseguem dizer “não” porque não querem abandonar a posição de objetos de satisfação para o outro, e há aqueles que não conseguem recusar demandas porque inconscientemente não se sentem autorizados a fazer isso.
Enfim gente... Essas são apenas duas possibilidades, dentre as várias que a psique humana em sua gigantesca complexidade, pode abrigar.
6) Direito de Ser Feliz
Não, você não tem o direito de ser feliz!
É bem provável que você tenha se sentido incomodado com essa frase porque ela vai na contramão de tudo o que você tem ouvido por aí nos últimos tempos.
No entanto, pretendo demonstrar que a ideia de que a felicidade é um direito pode ser, de certa forma, um caminho que te coloca na contramão desse estado afetivo.
Se você estudar o que disseram os filósofos e pensadores da Antiguidade sobre a vida feliz, facilmente chegará à conclusão de que, naquela época, a felicidade era pensada como uma conquista, ou seja, uma meta que precisaria ser alcançada mediante esforço e sacrifício. Tal conquista seria acessível a qualquer pessoa desde que ela se dispusesse a seguir o caminho nada confortável da virtude. Para os antigos, só alcançaria a felicidade quem estivesse disposto a pagar o preço por ela.
Quando a gente entra na Modernidade, as coisas mudam de figura. A ideia de que existiria um caminho virtuoso que conduz à vida feliz dá lugar à crença de que a felicidade será o resultado de um amplo processo de transformação da natureza e da sociedade.
É nesse contexto que surgem as utopias, com sociedades idealizadas nas quais todos seriam plenamente felizes. Os obstáculos para a concretização do ideal utópico seriam a natureza e a tradição. A primeira, a natureza, deveria ser transformada e a segunda, a tradição, teria que ser demolida. Quando isso acontecesse, teríamos uma sociedade perfeita, na qual a felicidade seria uma realidade para todas as pessoas.
Apesar desse sonho moderno ter saído de moda, alguns dos seus efeitos colaterais se desdobraram ao longo dos anos até chegarem aos nossos dias. A ideia moderna de que a felicidade seria o estado no qual todos viveríamos se o mundo fosse “corrigido” está na origem da famosa frase “Você merece ser feliz!”, repetida a torto e a direito nas últimas décadas.
O raciocínio que fundamenta esse enunciado é o seguinte: todos nós nasceríamos com o direito inalienável à felicidade e, se hoje não estamos exercendo esse direito, não é porque não fizemos por merecer, mas porque o “mundo imperfeito” nos impede de fazê-lo. Ou seja, se não sou feliz, é porque o mundo me deve.
Partindo desta premissa, acreditar que você tem o direito de ser feliz, te coloca numa posição bastante vulnerável, pois todo direito implica na existência de uma obrigação correlata de outra pessoa.
Quando digo que tenho certo direito, é como se estivesse dizendo, ao mesmo tempo, que alguém tem um dever para comigo. Nesse sentido, se a felicidade é um direito, naturalmente deverá existir alguém (ou alguma instituição) que terá a obrigação de me fazer feliz.
É por isso que algumas pessoas, quando acreditam de forma rígida, inflexível e infantil que têm o direito à felicidade, geralmente se tornam ressentidas.
Inconscientemente elas esperam que alguém proporcione a elas as condições necessárias para que sejam felizes. Ao invés de buscarem a felicidade se esforçando para conquistá-la, tais pessoas ficam passivamente esperando que alguém as faça felizes. Como essa expectativa inevitavelmente acaba sendo frustrada, esses indivíduos se tornam exímios praticantes da arte da reclamação.
Eles se acomodam na posição de vítimas e atribuem a culpa por sua infelicidade à sociedade, ao governo, ao sistema econômico, ao mercúrio retrógrado, etc etc etc...
E sim gente, as estruturas econômicas, culturais e sociopolíticas nos infringem boa dose de desconforto, frustrações, infelicidade dentre tantas outras mazelas, mas “boa dose” é diferente de totalidade né?
É neste sentido, então, que talvez a gente devesse voltar à sabedoria dos antigos que encaravam a vida feliz como o fruto de uma vida virtuosa.
E o que seria uma vida virtuosa?
Trata-se, primeiramente, de uma maneira de viver que não busca fugir da dor e do sofrimento, mas entende tais experiências como verdadeiros motores do crescimento. E que, a partir dessa compreensão e num segundo momento, procura travar “pequenas grandes lutas” em diferentes esferas da vida (pessoal, social, política) para transformar o que é passível de ser transformado.
Quem acredita que a felicidade é um direito fica à espera de que lhe concedam os meios necessários para exercer tal direito.
Mas quem encara a ideia de felicidade com outra perspectiva, mais como a de um dever de casa talvez, entende então a felicidade como diferentes pontos e momentos de um árduo percurso pessoal, que comporta certa dose de solidão, de solitude, mas também de companheirismo e parceria com um outro (e com vários outros), se levantando, calçando um par de sapatos (confortáveis, de preferência, porque o caminho é longo) e se colocando a caminhar.
7) Frustrações
Um fato inegável: Nem sempre as coisas acontecem do jeito que a gente gostaria. Aliás, não é um exagero dizer que, na maioria das vezes, as coisas realmente não acontecem como a gente deseja.
A nossa própria entrada na realidade é feita por meio de uma experiência de frustração de expectativas. E não sou eu que tô dizendo isso viu gente, mas é simplesmente o psicanalista Winnicott.
Winnicott descobriu que, no início da vida, a maioria de nós vivencia um estado mágico onde nossa necessidade de alimentação é satisfeita quase sempre de modo imediato, o que nos leva a acreditar que somos nós mesmos quem criamos, pela força do desejo, o objeto que nos alimenta (geralmente o seio materno).
Em outras palavras, como a maioria das mães não demora muito pra amamentar seus bebês logo quando percebem que eles precisam de alimento, os pequenos são levados a crer que eles próprios produzem magicamente a vinda do seio. A propósito, é justamente pra este estágio do desenvolvimento que regridem as pessoas que acreditam no poder do pensamento positivo de “atrair” coisas boas.
É ali, aproximadamente a partir do terceiro ou quarto mês de vida, que as mães começam a não atender mais a necessidade de alimentação dos bebês de modo tão imediato, o que os leva a vivenciar com mais frequência a experiência da frustração. É nessa fase que os pequenos se dão conta de que existe uma realidade para-além deles e de que essa realidade possui uma dinâmica própria e que nem sempre está alinhada com seus desejos. Ao ser frustrado pela demora da mãe, o bebê finalmente descobre a realidade externa. É nesse sentido então que a porta de entrada pro mundo real não é tão confortável assim.
Freud expressou essa mesma ideia ao longo de seu famoso livro “O mal-estar na civilização”, no qual defende a tese de que a existência humana é marcada pela experiência do desconforto, da frustração e do mal-estar.
Pra Freud, isso decorreria, dentre outras razões, do fato de que existe um descompasso estrutural entre a realidade e os nossos desejos – coisa que, como Winnicott mostrou, a gente descobre já nos primeiros meses de vida...
É gente, a frustração faz parte da vida e não tem como existir sem experimentá-la com alguma frequência.
Nem sempre a gente comprar tudo o que gostaria de comprar; nem sempre a gente consegue ir a todo lugar que tem vontade; tem tanta coisa que a gente fica imaginando que se tivesse (seja lá um objeto, uma viagem, o emprego dos sonhos, um grande amor...) a gente seria feliz e pleno...
Até que um dia a gente tem a coisa e nem preciso dizer o que acontece, né?
Nosso corpo vai se desgastando com tempo, perdendo jovialidade, vigor, saúde, dentre tantos outros atributos físicos também...
Isso sem falar das vulnerabilidades e infortúnios (violência, transito caótico, discursos de ódio e de segregação, chorumes disseminados em larga escala nas redes sociais...) aos quais a gente tá em grande medida exposto no nosso dia a dia...
Olha, se eu fosse listar aqui todas as fontes das nossas frustrações cotidianas, além da lista ficar gigantesca, eu com certeza começaria a chorar (e muito provavelmente você aí tbm faria isso), e realmente não é essa minha intenção...
E o que a gente faz então? Simplesmente pratica a resignação e aceita as frustrações de forma indiferente?
Mais ou menos né gente. Creio que existem duas formas de lidar com as frustrações: uma saudável e mais madura e uma “patológica” e imatura.
A forma imatura e, portanto, adoecida de vivenciar as frustrações é aquela que parte da premissa de que a existência delas seria uma espécie de “falha do sistema”.
Quem lida com as frustrações de maneira patológica, as encara como bugs da realidade, ou seja, problemas que não deveriam existir e que não há nada que se possa fazer pra que estes problemas sejam corrigidos.
Ao partir dessa premissa, tais pessoas apresentam uma dificuldade pra aceitar as frustrações dos seus desejos e expectativas, e acabam desenvolvendo atitudes de lamentação, autovitimização e culpabilização dos outros. Em outras palavras, quem lida com as frustrações dessa maneira imatura se comporta como uma "criança que faz pirraça" quando não tem seus desejos atendidos pelos pais.
Gente, e uma coisa importante aqui a ser dita: não é que o sistema sociopolítico no qual a gente tá inserido não tenha falhas, porque a gente sabe que tem né? E muitas inclusive. Não é que a gente não tenha motivos de sobra pra se lamentar, pra se reconhecer como vitima de inúmeras injustiças sociais e ate mesmo pra dar nome aos nossos algozes, ou seja, pra gente enxergar e apontar a perversidade de certas estruturas e de determinados agentes.
O que eu tô trazendo pra reflexão aqui são aquelas pessoas que diante de toda e qualquer situação de vida, se coloca neste lugar de “coitadismo”.
Por outro lado, os indivíduos que lidam com as frustrações de forma saudável, as percebem como elementos necessários e inerentes à realidade. Estas pessoas não encaram as frustrações necessariamente como “falhas do sistema”, mas como parte da programação normal, ou seja, como parte da vida mesmo.
Elas entendem que vivências de frustração são condições indispensáveis pro amadurecimento, e que grande parte do progresso humano, tanto do ponto de vista social, político, tecnológico, como também do pessoal, ou seja, daquele que se dá no campo das relações afetivas mais íntimas, se deve justamente à existência das frustrações.
E gente, só reforçando aqui mais uma vez e de uma outra forma pra não restar dúvida: frustração é diferente de privação de recursos de subsistência. Portanto, eu não to saindo em defesa das frustrações e privações de recursos básicos (tanto materiais como simbólicos) que todos nós deveríamos ter acesso pra ter uma vida digna e satisfatoriamente confortável.
Posto isso, ao se basear na premissa de que as frustrações (na justa medida) são experiências necessárias e mesmo desejáveis – visto que contribuem pro nosso crescimento – quem lida com a frustração de forma amadurecida não se desespera, não se vitimiza e nem sai afoito em busca de culpados quando se sente frustrado. Pelo contrário, além de aceitar com mais discernimento o que a realidade apresenta, ao invés de sentar e chorar (e não que a gente não possa fazer isso de vez em quando, porque pode sim, e se for na companhia de um terapeuta que ajude a gente a sair do fundo do poço psíquico, melhor ainda) este sujeito busca então enxergar nas frustrações algumas oportunidades e possibilidades de mudança.
8) Narcisismo e Amor-Próprio
O termo narcisismo faz referência a Narciso, um personagem da mitologia grega que foi condenado por uma deusa a se apaixonar por sua própria imagem. O poeta romano Ovídio conta que Narciso morreu justamente porque, ao ver seu rosto refletido nas águas de uma lagoa, se apaixonou por si mesmo e acabou definhando, enquanto se contemplava dia após dia.
Freud, o pai da Psicanálise, expandiu o conceito de narcisismo para englobar a relação de amor que todos os seres humanos possuem com a imagem idealizada que projetam de si.
É neste sentido que, de acordo com uma leitura psicanalítica e mais profunda acerca deste tema, quando falamos de narcisismo, não se trata apenas do que a gente costuma chamar no senso comum de amor-próprio. Em nossa dimensão narcísica, não amamos exatamente a nós mesmos, mas a imagem idealizada que queremos ter de nós mesmos.
Estou chamando a atenção aqui pra isso porque tenho como propósito demonstrar que muitas vezes é justamente a nossa fixação narcísica a grande responsável por abalar e deformar o nosso amor-próprio, pois, em nome do amor ao “eu ideal”, podemos nos envolver em relacionamentos, situações e tomar atitudes que podem ser profundamente deformadoras da nossa autoimagem.
Pra ilustrar, vou dar um exemplo...
Pedro sempre foi conhecido desde a infância por ser um sujeito calmo, pacífico, incapaz de fazer mal a uma mosca.
Quando criança, sua mãe sempre dizia para os familiares e conhecidos em geral que ele era um “menino de ouro”, pois sempre foi muito tranquilo e nunca deu trabalho.
Na escola, Pedro era sempre citado pelos professores como exemplo de conduta, tanto no que se referia ao comportamento social como também enquanto aluno estudioso e dedicado.
De fato, mesmo quando era humilhado e zombado pelos colegas pelo fato de ser nerd, o garoto jamais manifestava qualquer sinal de raiva ou agressividade.
Assim, gradualmente, foi sendo tecido em Pedro um eu ideal constituído essencialmente pelos traços valorizados pelas pessoas à sua volta, isto é, a calma, a passividade, a não-violência, dentre outras qualidades positivas.
Por outro lado, conforme crescia, Pedro se tornava cada vez mais inseguro e tímido. Apesar dos elogios recebidos de sua mãe e dos professores, ele não se sentia bem consigo mesmo. Vivia ansioso e tenso como se estivesse o tempo todo sob ameaça.
Mesmo estando entre os melhores alunos da escola, Pedro frequentemente se via como um fracassado e não conseguia desfrutar do status de aluno inteligente e promissor.
Esse padrão emocional disfuncional permaneceu na vida adulta, e a ele foram acrescentados outros problemas: atualmente Pedro sofre muito quando precisa recusar algum pedido ou convite, ou em tantas situações nas quais ele precisa dizer não, demonstrar algum tipo de contrariedade, ou seja, em afirmar suas reais vontades e desejos...
Ele percebe que está sempre tentando agradar as pessoas e evita situações de conflito assim como o diabo foge da cruz.
Analisando essa história fictícia, baseada em vários casos reais de diferentes sujeitos em sofrimento psíquico que passam pela clínica, fica claro que o nível de amor-próprio do Pedro é muito baixo.
Hoje adulto, Pedro está constantemente se prejudicando na relação com as outras pessoas e olhando para si mesmo de forma pejorativa, ou ainda como alguém que só será querido, aceito, amado (no amplo sentido do termo) se disser amém pra tudo e pra todos.
De acordo com essa perspectiva que estou trazendo, alguém que não sabe que narcisismo não se resume apenas a amor-próprio, tal como se fala no senso comum, poderia até pensar que o Pedro não tem qualquer dimensão narcísica. Contudo, trata-se, na verdade, do oposto: é justamente o fragilizado narcisismo dele que o impede de verdadeiramente gostar do seu eu real.
A imagem idealizada que Pedro inconscientemente construiu de si mesmo é marcada pela passividade, pela calma e pela não-violência. O apego excessivo a essa imagem fez com que ele tivesse que reprimir todos os elementos psíquicos e de personalidade (ou seja, do seu eu real) que não estavam alinhados com este eu ideal.
Dentre esses elementos, citando apenas alguns aqui, estão a raiva, a agressividade e a vaidade. Esses traços são potencialidades presentes em todas as pessoas e, quando expressos de forma espontânea, nos contextos apropriados e na justa medida, são bastante úteis na relação do sujeito consigo mesmo e com os outros.
Por exemplo, se Pedro não tivesse reprimido a vaidade, muito provavelmente conseguiria ter experimentado o prazer de estar entre os melhores alunos da escola. Do mesmo modo, se não tivesse reprimido a raiva e a agressividade, teria aprendido, por meio de um processo educacional responsável e amplo, a lidar naturalmente com situações de conflito ao invés de fugir delas.
Perceba, portanto, que foi justamente por conta de uma espécie de amor por sua imagem idealizada de “bom menino” que Pedro se viu tomado, em alguma medida, por um estado culposo, de inferioridade e autopunitivo.
Ao reprimir muitos aspectos do seu eu real, incompatíveis com essa imagem construída e projetada nele por seus pais e educadores, ou seja, essa imagem ideal, ele inconscientemente acaba se prejudicando, se maltratando, se diminuindo...
E tal como Narciso, é assim então que Pedro se mortifica em função da cega paixão, ou de um apego inconsciente, por seu eu ideal, experimentando uma sensação constante de angústia.
9) Perfeccionismo
Se perfeccionismo é defeito, trata-se de um defeito paradoxal, pois aqueles que o possuem se orgulham de serem "vítimas" dele.
Uma pessoa perfeccionista é aquela que, na maioria das vezes, ao realizar determinadas tarefas, imagina consciente ou inconscientemente um modo perfeito de realizá-las e se esforça exageradamente para alcançar esse objetivo ideal.
Apesar de parecer um "herói corajoso em busca da excelência", o indivíduo que sofre de perfeccionismo é, na verdade, apenas um escravo que está constantemente sendo chicoteado por um senhor chamado ideal.
O perfeccionista é aquele que não busca a excelência como uma escolha consciente e intencional, que o colocaria num movimento saudável em busca da concretização de projetos. Mas faz isso porque se vê compelido, obrigado, forçado a perseguir a perfeição.
Renunciar à tendência automática de buscar sempre e desnecessariamente a excelência significa, para o perfeccionista, abrir mão de uma parte muito valorizada de si mesmo.
O perfeccionista se envaidece ao contemplar-se em seu espelho interior como um escravo diligente e proativo. Ele olha para aqueles que não compartilham de sua ânsia doentia pela perfeição e os julga, ora consciente, ora inconscientemente, como preguiçosos e medíocres.
Ele se percebe como um ente superior aos “meros mortais” que não sentem tanto "tesão" pelo Senhor Ideal.
Numa perspectiva psicanalítica, tal arrogância é sempre uma defesa contra um sentimento consciente ou inconsciente de impotência e insegurança.
Por trás da soberba inerente ao perfeccionismo, existe muito medo. Sim, o perfeccionista é um medroso. Não é só o prazer narcísico de se perceber como um eterno “funcionário do mês” de seu mundinho particular o que sustenta a ânsia do sujeito pela perfeição. No fundo, ele morre de medo de não estar à altura dos seus ideais.
Geralmente, indivíduos que se tornam perfeccionistas foram levados a crer, na infância, que a perfeição é alcançável.
A fantasia de que a perfeição é possível faz com que a pessoa tome seus ideais como realidades que podem ser vivenciadas.
Inevitavelmente, o alcance dos ideais acaba se relevando uma tarefa impossível e o perfeccionista necessariamente é levado a perceber-se tal como é: uma pessoa com limitações, falhas e dificuldades.
Quando a fantasia infantil na perfeição persiste ao longo da vida adulta, tal sujeito troca a constatação real de sua falibilidade pela ideia de que se trata apenas de impotências passageiras e circunstanciais, das quais ele precisa estar o tempo todo fugindo rumo à perfeição.
É assim que nasce a corrida estafante do perfeccionista: no fim das contas, ele está o tempo todo, "masoquisticamente", fugindo do monstro da impotência sob os açoites do Senhor Ideal.
10) Ansiedade
Você se considera uma pessoa ansiosa? Sem medo de errar, eu diria que muito provavelmente sua resposta foi um enfático “Sim!”.
Os mal-estares relacionados à ansiedade se apresentam como a categoria mais representativa do nosso século. E de fato, vivemos numa realidade sociocultural que, em certo sentido, exige que sejamos ansiosos.
Por exemplo, praticamente todas as empresas do setor privado e até algumas instituições públicas têm adotado o sistema de metas como estratégia de estímulo à produtividade. Tal sistema faz com que o trabalho seja vivenciado como uma eterna corrida contra o tempo. Com efeito, a cada minuto perdido, a meta se torna mais distante. O indivíduo é levado, então, a ficar dividido: um olho no presente (na execução do trabalho) e outro no futuro (na meta a ser alcançada). O risco de não atingir o objetivo que lhe foi demandado leva o sujeito a experimentar a sensação de estar sob constante ameaça. Movida por tal condição afetiva, a pessoa passa a estar o tempo todo em estado de alerta.
O ansioso preocupa-se em excesso e está sempre se projetando num futuro bem, bem distante. Logo, faz planejamentos excessivamente detalhados e de longo prazo; ao mesmo tempo em que é impaciente, sofrendo com a espera.
O ansioso não consegue dormir, pois tem dificuldade de se desconectar dos problemas. Em sua mente, ele está o tempo todo fazendo “hora extra”, no amplo sentido do termo. Em resumo, ainda de acordo com nosso exemplo, um colaborador ansioso reúne tudo aquilo que o mercado de trabalho contemporâneo deseja. Assim, não é uma mera coincidência haver tanta gente sofrendo com ansiedade no mundo atual.
Tecnicamente, a ansiedade é uma reação psicofisiológica com a qual fomos equipados pela natureza e que nos ajuda a lidar com situações de perigo. Ao experimentarmos ansiedade, entramos no “modo defesa”: nosso corpo se prepara para que possamos lutar ou fugir, ficamos mais atentos a detalhes e exageramos o potencial destrutivo daquilo que nos ameaça ao mesmo tempo em que menosprezamos nosso potencial de enfrentamento.
Quando estamos diante de um perigo ou ameaça reais, todas essas reações são uma “mão na roda”, pois de fato nos ajudam a sobreviver e nos mantermos em segurança.
O problema é que a imensa maioria das pessoas não experimenta ansiedade diante de perigos reais, mas frente a ameaças imaginárias ou artificialmente construídas.
Vamos usar um outro exemplo agora, bem típico do nosso tempo, inclusive. Quando uma pessoa se sente ansiosa diante da possível percepção negativa que as pessoas terão em relação à foto que ela postou no Instagram, trata-se da reação a uma ameaça fictícia. O possível feedback negativo não comprometeria a sua segurança nem colocaria em risco sua sobrevivência. Todavia, inconscientemente é isso que ela acha que aconteceria se recebesse poucos likes na tal foto. Por essa razão, se sente ansiosa. Sem perceber, essa pessoa passou a lidar com a opinião dos outros como se fosse uma questão de vida ou morte. Se o feedback for positivo, ela sobrevive; se negativo, morre. É essa ideia absolutamente falaciosa que habita o inconsciente desse sujeito e que o leva a experimentar ansiedade.
A grande maioria das situações que nos provocam ansiedade são semelhantes a essa. Vivendo num contexto civilizado e relativamente seguro, criamos perigos artificiais e ameaças imaginárias e, assim, passamos a experimentar a vida como se estivéssemos sozinhos no interior da floresta amazônica, correndo o risco de sermos mortos por serpentes venenosas e onças famintas. Fala sério: não é assim que você eventualmente se sente em seu ambiente de trabalho, na faculdade ou mesmo num relacionamento amoroso?
O que fazer, então, para não viver dessa forma, reagindo por meio da ansiedade excessiva a perigos que não são tão ameaçadores quanto parecem? A resposta é: por meio da reconciliação com a realidade objetiva, objetivo que só pode ser alcançado por meio de uma cuidadosa investigação da realidade psíquica – é o que propõe a Psicanálise.
11) Crise de Ansiedade
Um dos maiores problemas que vivenciamos atualmente no campo da saúde mental é o fenômeno conhecido como “medicalização”.
Ao contrário do que muitas pessoas leigas pensam, esse termo não se refere apenas à prescrição indiscriminada e excessiva de medicamentos – problema que, aliás, também é bastante preocupante. Na verdade, este termo também pode ser compreendido como uma tendência contemporânea de tratar questões de ordem social, moral ou comportamental como problemas de saúde que precisam de tratamento especializado.
E é justamente neste “balaio de gatos” que podemos encontrar o que chamamos de “crise de ansiedade”.
A crise de ansiedade se refere a um estado psicológico já bastante conhecido, e que tradicionalmente recebe o nome de desespero. Uma crise de ansiedade, para ser digna de tal designação, deveria apresentar os sintomas típicos de um quadro de ansiedade em grau bastante elevado.
E que sintomas são esses? Apreensão, taquicardia, sudorese, falta de ar, boca seca, dentre outros. Seria, portanto, o que tecnicamente chamamos de “pânico”.
A maioria das pessoas que relata ter passado por uma crise de ansiedade descreve essa experiência como um momento de grande aflição e mal-estar que geralmente desemboca em choro. Ou seja, trata-se de um estado psicológico significativamente distinto do que tecnicamente chamamos de ansiedade.
Por que é importante fazer essa distinção? Porque desesperar-se não é uma patologia psíquica, mas uma reação desordenada que podemos experimentar diante de problemas importantes para os quais não conseguimos enxergar uma saída. Por exemplo, quando não conseguimos encontrar tempo suficiente para estudar para uma prova, quando alguém que amamos muito decide terminar o relacionamento conosco, quando estamos diante de uma demanda de trabalho que não conseguimos solucionar, etc., é natural que a gente se sinta - em alguma (boa) medida - impotente e desamparado frente a situações como essas.
Contudo, isso ainda não é o desespero. É a partir do momento em que não aceitamos as limitações impostas pela realidade que começamos a nos desesperar.
Dentre tantas possíveis causas, não por acaso, as pessoas que mais costumam se queixar das tais crises de ansiedade são indivíduos que padecem do que costumamos chamar no senso comum de “perfeccionismo”, ou seja, a busca pela excelência como único resultado possível.
As pessoas perfeccionistas são escravas das imagens idealizadas de si mesmas. Por isso, trabalham incansavelmente para satisfazer o seu eu ideal e, escravizadas por este, são punidas (por si próprias) quando não conseguem executar um “bom” trabalho. Oprimido pelo eu ideal, o perfeccionista não aceita suas falhas, tropeços e limitações. Nesse caso, a punição vem na forma da culpa e do desespero.
No fim das contas, a gente entra na tal crise de ansiedade, isto é, se desespera, quando perde o senso das proporções. Essa perda do senso das proporções é um dos principais danos causados pelo perfeccionismo.
Quando entendemos que não é necessário atingir a excelência em absolutamente tudo o que fazemos, quando aprendemos a discriminar o que vale a pena e o que não vale, o que merece sacrifício e o que pode ser negligenciado, o que precisa ser feito agora e o que pode ser adiado, o que “dá pé” pra gente e o que simplesmente não dá, ou seja, quando a gente definitivamente compreende e aceita que a castração tá aí e que, por mais que a gente possa fazer muita coisa, não podemos tudo - eis a realidade - a vida se torna menos pesada (e por que não dizer mais leve?!), mais interessante e muito, mas muito menos tirânica.
Nossa saúde psíquica agradece!
12) Epidemia de Ansiedade
Nas últimas décadas, o termo ansiedade passou a ser empregado no senso comum para designar certo tipo de sofrimento psicológico.
Embora estejamos acostumados a trabalhar com essa acepção hoje em dia, é preciso lembrar que até há alguns anos não usávamos a palavra ansiedade com tanta frequência nesse sentido psicopatológico.
Antigamente, quando se dizia que uma pessoa estava ansiosa, entendíamos apenas que ela estava intensamente à espera de algo. Em outras palavras, me parece que antigamente víamos a ansiedade como um estado emocional normal, passível de ser vivenciado por qualquer pessoa em determinadas circunstâncias da vida, e que não se caracterizava necessariamente como fonte de sofrimento. Visão bem diferente da que predomina na atualidade, quando não poucas pessoas afirmam que precisam de terapia porque “sofrem de ansiedade”.
O que mudou de lá para cá? Será que a ansiedade que a gente experimentava no passado era mais branda da qual vivenciamos hoje?
Acredito que, de fato, atualmente muitas pessoas experimentam níveis excessivos de ansiedade e isso está relacionado ao modo doentio com que boa parte dos indivíduos vive na contemporaneidade. Neste sentido, podemos pensar que o que mudou não foi propriamente a natureza da ansiedade, mas a frequência e intensidade com que esse afeto se manifesta na nossa vida hoje em dia.
Mas, antes de comentar sobre os fatores que me parecem estar associados a esse aumento de frequência e intensidade, é preciso primeiramente relembrar o que é a ansiedade...
Como todo ser vivo, o homem tende a se proteger ou se defender de situações que, direta ou indiretamente, representam ameaças à sua sobrevivência. Quando tais situações são externas, existem basicamente duas formas de se defender do perigo em questão: o enfrentamento ou a fuga.
Para que possamos adotar qualquer uma dessas opções, precisamos de certas condições fisiológicas como, por exemplo, uma maior circulação de sangue nos braços e nas pernas. Tais condições são automaticamente estabelecidas no nosso organismo quando interpretamos uma situação atual como perigosa. Essa “interpretação” se expressa por meio do sentimento de medo. O medo, portanto, é a reação emocional que indica que estamos interpretando uma situação presente como ameaçadora.
A ansiedade, por sua vez, é uma modalidade do medo. Ela emerge quando imaginamos uma eventual situação futura que pode vir a acontecer e a interpretamos como perigosa. Ou seja, sentimos medo quando estamos “cara a cara” com uma situação ameaçadora; sentimos ansiedade quando imaginamos uma situação futura dessa natureza.
O problema é que isso que eu estou chamando de “imaginação” pode não ser totalmente consciente. Por exemplo: uma pessoa pode começar a se sentir ansiosa antes de ir para o trabalho. Isso indica que algo que imagina estar presente no trabalho é interpretado por ela como perigoso. Todavia, quando questionada, essa pessoa não é capaz de descrever imediatamente o que imagina ser ameaçador no ambiente de trabalho. É por isso que muita gente não sabe explicar por que se sente tão ansiosa. E esse exemplo pode ser generalizado para muitas outras esferas da nossa vida.
Se tomarmos a ansiedade como uma espécie de medo do futuro, podemos verificar com alguma clareza os fatores socioculturais contemporâneos que colaboram para o aumento expressivo do número de indivíduos que “sofrem de ansiedade”.
Com efeito, o mundo atual eleva à enésima potência o foco moderno no futuro. Diferentemente dos medievais que conseguiam descansar no presente cientes de que “o futuro a Deus pertence”, nós, modernos, acreditamos que o futuro é tão-somente o resultado de nossas ações no presente.
Ao mesmo tempo, sabemos que isso não é totalmente verdade, visto que nossas ações concorrem com as ações de outras pessoas e não se pode negligenciar o peso de fatores absolutamente imponderáveis – como uma pandemia, por exemplo.
Espero que você tenha percebido que, no fim das contas, na modernidade temos uma concepção incerta de futuro, uma visão que nos leva a pensar constantemente que “tudo pode ir por água abaixo a qualquer momento”.
Sabe aquela expressão super clichê que a gente já cansou de ler/ouvir por aí: “No fim, tudo dá certo. Se não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim...”. Então, não há como sofrer com ansiedade pensando dessa forma!
Já no mundo moderno, funcionamos com base na ideia de que “No fim, as coisas podem dar certo ou podem não dar; depende...”. Como não viver ansioso tendo essa visão de futuro? A ênfase moderna num futuro a ser inventado coloca sobre os ombros do sujeito uma autocobrança constante (“Se eu não agir assim ou assado, nada acontecerá, ou pior, pode acontecer algo catastrófico!”) e uma ansiedade crônica.
Afinal, como não se trabalha com a ideia de uma "história com final feliz", mas com uma concepção infinita de história, o futuro só pode ser visto uma eterna meta a ser alcançada, meta inclusive perigosa, ameaçadora, aterrorizante, incerta, duvidosa...
Como a psicanálise nem sempre (na grande maioria das vezes, sendo bem sincera aqui) tem a intenção de trazer respostas prontas, mas sim de nos convocar a pensar e refletir sobre nós mesmos (primeiramente) e também sobre o caldeirão cultural no qual estamos a ser cozidos, como nos imunizar a esta pandemia de ansiedade? Qual a sua receita?
Compartilhemos nossos temperos...
13) Autoconfiança
O que caracteriza essa coisa que nós habitualmente chamamos de autoconfiança?
A autoconfiança é um fenômeno que se manifesta na presença de situações desafiadoras, ou seja, ocasiões em que o indivíduo está exposto a um obstáculo que pode ou não ser ultrapassado.
Autoconfiança também pode ser definida como fé (entendendo fé aqui não como um conceito religioso ou místico, de jeito algum, mas sim como uma forte crença de que algo desejado existe e/ou pode se concretizar mesmo que ainda não possamos vê-lo) na própria capacidade de superar desafios.
Quando estamos autoconfiantes, não sentimos medo do fracasso. Pelo contrário, conseguimos vislumbrar o sucesso com antecedência, pois temos uma espécie de certeza de que somos/estamos aptos para chegar até ele.
Mas, é importante a gente fazer uma diferenciação aqui entre autoconfiança e coragem. Esta última é uma virtude, ou seja, uma atitude que depende de uma decisão consciente e voluntária do sujeito. Há pessoas, por exemplo, que quase nunca conseguem experimentar a autoconfiança, mas são extremamente corajosas. Elas estão o tempo todo morrendo de medo de fracassar, mas, exercitando a coragem, nunca fogem dos desafios que se apresentam.
Pessoas que conseguem sentir autoconfiança com muita frequência são aquelas que puderam vivenciar consistentemente durante os primeiros anos de vida a experiência de se perceberem capazes de superar desafios.
Mas, vamos entender isso melhor...
Quando somos crianças não temos muitos recursos físicos e psíquicos para lidar com desafios pertinentes da fase em que a gente se encontra. Pelo contrário: somos extremamente frágeis e dependentes dos cuidados dos adultos. Nesse sentido, podemos nos perguntar: como é que a criança vai poder passar por experiências de se sentir capaz de vencer desafios se ela mal consegue ficar sozinha por muito tempo?
De fato, a criança deixada à própria sorte dificilmente conseguirá vivenciar situações que a farão acreditar na própria potência. Uma criança que tem entre 0 e 3 anos, sem o apoio de seus cuidadores primários, só conseguirá certificar-se de sua fragilidade e impotência. Todavia, quando a criança conta com o suporte ativo dos pais, ela se torna capaz de fazer uma série de coisas.
Quando uma mãe, por exemplo, levanta essa criança para que ela alcance um determinado brinquedo ao invés de simplesmente pegar o objeto e entregá-lo a ela, a criança vivencia e registra em seu ego a seguinte experiência: ela está conseguindo fazer algo que, a princípio, sua condição não permitiria.
A passagem frequente e consistente por experiências como esta vai levando o sujeito em formação a desenvolver uma convicção que, se fosse posta em palavras, poderia ser expressa da seguinte forma: “Eu posso, eu consigo, sou potente!”. E é justamente essa fé na própria capacidade que está no núcleo da autoconfiança.
Portanto, podemos concluir que uma pessoa se torna autoconfiante quando nas dimensões mais profundas de sua psique foram sendo depositadas consistentemente marcas de êxito. Em outras palavras, é a experiência constante de ter conseguido superar desafios com o suporte do outro que leva o sujeito a acreditar que é capaz de ultrapassar obstáculos sozinho.
Mas, e quando a criança não teve esse tipo de suporte "suficientemente bom" de seus cuidadores primários ao longo, principalmente, da primeira infância? É justamente com estes casos que nos deparamos na clínica, com adolescentes e adultos que sofrem de baixa autoconfiança. Vamos a uma boa notícia...
A autoconfiança pode ser “instalada”, digamos assim, numa pessoa por meio da única tecnologia existente que possibilita a transformação de aspectos psicológicos involuntários: a psicoterapia.
Isso é possível porque a terapia é uma tecnologia que, tal como uma cirurgia, possibilita a intervenção nas dimensões mais profundas da pessoa – justamente onde se encontram as raízes da autoconfiança, ou seja, nas camadas psíquicas mais recônditas, onde estão as marcas das nossas vivências infantis.
Dito de outro modo: uma pessoa que quase nunca se mostra autoconfiante pode mudar “da água para o vinho” se passar por um bom processo psicoterapêutico.
14) Gozar & Mudar
Você já reparou na enorme quantidade de livros de autoajuda que são publicados todos os anos?
Já observou também que essas obras geralmente figuram na lista dos mais vendidos? Então...
Era de se esperar que tamanha profusão de material que supostamente ensina as pessoas a viverem melhor levasse a um aumento nos índices de saúde mental no mundo, né?
#SóQueNão
E por que “#SóQueNão”? Simples: porque os autores de autoajuda, de modo geral, ignoram um elemento básico da psicologia humana que faz toda a diferença quando se trata de pensar o adoecimento emocional...
Nós, psicanalistas, chamamos esse elemento de “gozo”. Não, não se trata do orgasmo. Gozo, que na língua portuguesa é sinônimo de prazer, satisfação, fruição etc., foi o termo que um psicanalista francês chamado Jacques Lacan (1901-1981) utilizou para se referir um tipo de experiência de prazer, satisfação e fruição que nós experimentamos inconscientemente.
Por exemplo, quando encaramos uma atividade como prazerosa, a tendência é que a gente deseje repeti-la, certo? A repetição é um indicador muito preciso de que algo nos satisfaz. Portanto, estamos na dimensão do gozo quando constatamos as coisas que fazemos de forma reiterada, repetitiva, automática, ainda que nos causem sofrimento, ou seja, apesar de conscientemente não nos proporcionarem prazer, inconscientemente elas nos satisfazem.
Em alguns casos, o gozo pode estar associado mais à experiência do medo do que a do prazer. Nessas situações, o sujeito goza inconscientemente da experiência de alívio e proteção que certos aspectos de sua vida lhe proporcionam.
Vai ficar mais fácil entender isso por meio de um exemplo...
Uma pessoa deprimida pode se queixar de não ter forças para tomar banho. Apesar de se sentir mal com isso, o indivíduo de fato não consegue se levantar da cama e tomar seu banho. Conscientemente ele quer sair dessa situação, mas simplesmente não consegue. Ora, pode ser que o ato de tomar banho esteja associado em sua história de vida a sair de casa e se ver exposto às demandas e exigências da realidade – coisas que atualmente o apavoram. Assim, manter-se suja (por pior que seja e ela próprio saiba disso) protege essa pessoa de ter que lidar com um mal que ela considera ainda maior. Nesse sentido, inconscientemente o sujeito estaria gozando com o alívio e a proteção que a inércia lhe proporciona.
Toda essa complexidade afetiva que subjaz ao conceito de gozo é completamente ignorada pela imensa maioria (não seria exagero dizer a totalidade) dos autores da autoajuda. Para eles, a mudança psicológica é uma questão apenas de estratégias, passos, ferramentas etc.
Dizer, por exemplo, a uma pessoa que repetidamente escolhe parceiros amorosos violentos que ela precisa mudar o seu mindset é o mesmo que esperar que um veículo sem gasolina saia de São Paulo e vá até Belo Horizonte.
Essa, aliás, é uma boa analogia para descrever o que fazem os livros de autoajuda: eles fornecem a você o destino e o roteiro (às vezes traçado de forma até qualificada), mas ignoram o estado (a estrutura) do seu carro (se está ou não com combustível, se precisa de revisão ou reparos, etc etc etc...).
É neste sentido então que a grande maioria das mudanças que desejamos fazer em nossas atitudes e comportamentos não acontece apenas e meramente com uma mudança de mentalidade consciente.
As satisfações inconscientes que obtemos com nossos sofrimentos precisam ser exploradas a fim de que possamos compreender por que razões continuamos a fazer repetidamente o que nos prejudica e, aí sim, a partir disso, buscar mudanças conscientes na nossa forma de pensar e agir.
15) Procrastinação
Procrastinação é uma dessas palavras que durante muitas décadas só circulava nos meios acadêmicos, mas que atualmente, em meio à cultura do alto desempenho em que vivemos, está na "boca do povo".
Existem muitas definições de procrastinação. Uma que considero boa, curta e objetiva, é a seguinte: procrastinação é o adiamento não estratégico de ações. Sim, porque existem adiamentos que são feitos visando determinados objetivos ou por força de certas condições (e neste caso, são inteligentes e bem-vindos).
Procrastinar significa enrolar, sem justa causa, a execução de determinadas atividades. A pessoa que sofre com a procrastinação é aquela que simplesmente não consegue colocar a “mão na massa” apesar de saber que precisa fazer isso.
Ela vive repetindo para si mesma: “Daqui a pouco eu começo.”, “Amanhã eu faço” ou “Semana que vem eu resolvo...”. O problema é que as horas, os dias e as semanas passam e nada do indivíduo começar a fazer o que precisa.
Isso leva o procrastinador a experimentar níveis elevados de ansiedade, principalmente quando as tarefas que estão sendo procrastinadas têm prazo para serem concluídas. É a presença desse sofrimento o que diferencia a procrastinação propriamente dita da boa e velha preguiça.
Todo preguiçoso é procrastinador, mas nem todo procrastinador é preguiçoso.
De fato, a grande maioria das pessoas que costuma enrolar para fazer suas atividades está apenas “querendo evitar a fadiga”, como já dizia Jaiminho, o carteiro do seriado mexicano “Chaves” (sim, sou cringe ou vintage, se preferir).
Em outras palavras, a maioria de nós procrastina quando não quer fazer o esforço que determinadas atividades exigem. O nome disso é preguiça mesmo. No entanto, em certos casos, a pessoa até deseja conscientemente fazer a tarefa e está disposta a gastar tempo e energia com ela, mas, por alguma razão aparentemente desconhecida, fica adiando o início do trabalho – isso é procrastinar.
Existem diversas razões pelas quais a procrastinação pode acontecer. Algumas delas são mais superficiais e outras mais profundas.
As motivações que pertencem às causas mais profundas são aquelas relacionadas a fatores inconscientes que só poderão vir à luz ao longo de um tratamento psicanalítico (e não tem formula mágica, gente...vai levar um tempinho e requerer um certo esforço pra descobrir, compreender e superar mesmo).
Por exemplo, um sujeito pode sofrer frequentemente com a procrastinação em seu trabalho porque, em função de conexões simbólicas estabelecidas em seu inconsciente, a atividade na qual trabalha evoca certos conflitos infantis com os quais ele ainda se debate internamente. Nesse caso, a procrastinação tende a se manter enquanto tais conflitos são forem trabalhados no contexto psicoterapêutico.
Por outro lado, existem razões para a procrastinação que estão situadas em uma dimensão mais superficial da psique e que, portanto, podem ser acessadas e trabalhadas desde que o indivíduo faça um esforço de reflexão.
Por exemplo, um dos principais motivos pelos quais algumas pessoas procrastinam é o medo de não dar conta da complexidade da tarefa, apoiado na realidade concreta do sujeito mesmo (falta de recursos dos mais diferentes gêneros – tempo, intelectuais, materiais...).
Nesse caso, a procrastinação nada mais é que uma estratégia consciente de fuga e, para não se sentir ameaçado pela complexidade da tarefa, o sujeito adia indefinidamente sua execução.
O que fazer? É possível vencer a procrastinação quando o motivo para a enrolação é esse medo?
Sim, é possível. Se você está passando por isso, o primeiro passo é reconhecer que está com medo, ou seja, abandone todas as tentativas de racionalizar e/ou de negar o problema. Confesse para si mesmo que teme não estar à altura da atividade por tal, tal e tal motivos. A partir deste exercício pautado na realidade, ficará mais fácil (menos difícil, eu diria) pensar no que precisa fazer para criar as condições necessárias para a execução dos desafios que necessita enfrentar.
O segundo passo é reduzir esse medo se lembrando de situações do passado em que você esteve diante de tarefas com grau de complexidade semelhante e que conseguiu realizá-las (com ou sem procrastinação).
Esse exercício de rememoração te dará fôlego para o terceiro e último passo...
Transformar o grande desafio que está à sua frente em vários desafios menores: hoje você faz bem pouquinho, amanhã você faz pouquinho, depois de amanhã você faz um pouco, depois de depois de amanhã você faz um pouco mais, e acho que já deu bem pra pegar o estilão da coisa, né?
Dessa forma, você não mais verá seus desafios (sejam eles quais forem) como um Monte Everest impossível de alcançar o topo, mas como uma série de "pequenos morros" que não terá grandes dificuldades para escalar.
16) Esquecer um Amor
Nos meus atendimentos clínicos do dia-a-dia é bastante frequente que os analisantes me interpelem com a pergunta: “Como faço para esquecer um amor, uma paixão...Como faço para superar um fim de relacionamento?”.
Longe de esgotar as tantas possíveis e complexas causas que nos levam a apegos obsessivos e a agruras neste campo, pretendo aqui explicar o que produz essa dificuldade para renunciar a um amor do passado e apresentar algumas estratégias que podem facilitar esse processo.
Primeiramente, é necessário entender como a nossa mente funciona e como acontece o esquecimento para que possamos identificar os fatores que impedem algumas pessoas de esquecerem amores do passado.
Para que uma determinada ideia (referente a um objeto, uma pessoa, um conceito etc.) ocupe espaço em nossa consciência são necessárias duas condições: (1) que essa ideia seja relevante e (2) que ela seja admissível, ou seja, que não entre em choque com nossos parâmetros individuais e subjetivos.
Uma ideia que é relevante, mas não é admissível será reprimida no inconsciente, ou seja, não será esquecida, mas “expulsa à força” da consciência.
Já uma ideia que é admissível, mas não é relevante, será esquecida. Sim, ela estará preservada na memória, mas não terá força necessária para penetrar em nossa consciência. O esquecimento, portanto, acontece quando uma determinada ideia perde relevância em nossa mente.
Nesse sentido, se uma pessoa tem dificuldade para esquecer outra, isso significa que a ideia referente a esta continua tendo relevância para a primeira. Mas o que confere relevância a uma ideia?
Dois fatores são responsáveis por isso: o primeiro deles é a frequência de evocação.
Imagine que todas as ideias admissíveis em sua mente são como jogadores de futebol em um banco de reservas. A cada vez que uma ideia é lembrada, ou seja, penetra na consciência, é como se ela fosse chamada do banco para entrar em campo. Se uma ideia é chamada a jogar com muita frequência, isso significa que ela é importante.
O outro fator que confere relevância a uma ideia é a quantidade de conexões que ela possui com outras ideias. Quanto mais articulações essa ideia possui, mas fácil será evocá-la visto que ela se tornou associada a muitas representações.
Portanto, caro leitor e leitora, se você deseja esquecer alguém, seja lá um amor, uma paixonite, um flerte de longo prazo, aquele “conversante” do direct do Instagram com quem você trocou milhares e milhares de memes de gatinhos fofos, de humor e afins, dentre tantas outras conversas profundas – diariamente - e que por isso te nutriu uma certa fantasia de vínculo e conexão, talvez você tenha que recorrer ao clássico dito popular: “O que os olhos não veem, o coração não sente.”
Não fique acompanhando doidamente a pessoa nas redes sociais (conferindo stories em “tempo real”, entrando no feed e bisbilhotando cada post, quem curtiu, quem comentou, quem deixou emoji de coraçãozinho rs...), nem revisitando fotos antigas que por ventura vocês tenham tirado juntos.
Tente também não ficar pensando, imaginando, fantasiando situações com a pessoa em questão. E aqui, bem que eu queria, mas não tem fórmula mágica, gente...
Ocupe seus pensamentos com outros conteúdos, com coisas que sejam interessantes pra você, que gestem e nutram a novidade, que alimentem o aflorar de suas potencialidades e de outras possibilidades...
Isso não é fuga ou infantilidade. É apenas uma forma de contribuir para que a mente faça o seu trabalho de manter a lembrança do outro no seu devido lugar, no passado.
E siga em frente!
17) Relações Abusivas
Vou começar a abordar esse tema bastante espinhoso e, de certa forma, “queridinho” das discussões nas redes sociais, explicando de um jeito bastante simplificado um termo que conhecemos no campo da psicanálise como retificação subjetiva, termo este que, na terapia psicanalítica, designa o processo em que o analisante é levado a reconhecer sua implicação como sujeito no sofrimento do qual inicialmente se percebe apenas como objeto.
Sim, estou falando aqui daqueles problemas relacionais que nos fazem sofrer porque, de alguma forma (ora consciente, ora inconscientemente) a gente permite, consente e autoriza.
Quando se fala em relações abusivas, a tendência que se vê – sobretudo no reino encantado das redes sociais – é a de “monstrificar” a pessoa que estaria na posição de abusadora e encarar o indivíduo que estaria na condição de abusado como uma “vítima angelical” que não teria responsabilidade alguma pela situação em que se encontra.
Esse é um olhar infantil sobre as relações humanas. É a criança que não suporta as ambiguidades, ambivalências e complexidades inerentes à realidade e, por isso, precisa dividir o mundo entre “pessoas do bem” e “pessoas do mal”.
É por isso, inclusive, que a criança adora desenho animado, posto que, em geral, tais produções costumam trabalhar com essa dicotomia simplista entre o bem e o mal, e que só existe no mundo da fantasia. Na realidade concreta, não existem anjos nem demônios, mas apenas pessoas com suas contradições, incongruências e incoerências.
Quando adotamos um olhar maduro para os relacionamentos, somos forçados a reconhecer que uma relação de abuso nunca se sustenta sem o consentimento da pessoa que se coloca na posição de abusada.
Essa anuência geralmente é motivada por fatores de natureza inconsciente, mas isso não significa que o sujeito não seja responsável por eles. Não estou dizendo com isso, é óbvio, que a pessoa que está na posição de abusadora não tenha sua parcela de responsabilidade; é claro que tem!
Contudo, é inevitável reconhecer que um “abusador” só consegue manter uma relação afetiva com quem consciente ou inconscientemente aceita estar nesta relação.
Estou chamando sua atenção para isso porque atualmente estamos imersos num ambiente cultural que nos incita constantemente a se perceber como vítimas e/ou bebês (isso mesmo, você não leu errado) – o que constitui um verdadeiro crime contra a saúde mental, visto que nos impele a permanecer numa eterna situação de irresponsabilidade, imaturidade, de ilusão de dependência absoluta, de incapacidade de mudar as coisas, já que quem tem “o falo” (ou seja, o poder) é sempre o Grande Outro - ou seja, a adotar comportamentos típicos da fase infantil.
Todos nós podemos ser efetivamente vítimas de diversas situações que não estão sob o nosso controle, trata-se de uma possibilidade real. Contudo, o problema não está propriamente em ser vítima, mas em perceber-se como vítima.
Quando nos enxergamos assim, apenas como objetos do gozo alheio, não conseguimos reconhecer nossa capacidade de sair da situação de abuso. Afinal, para tomar a decisão de abandonar a relação abusiva, eu preciso me colocar numa posição ativa, de sujeito.
Quando me penso exclusivamente como vítima, estou me mantendo numa posição passiva. A tendência, nesse caso, é que eu não me veja capaz de romper com a dinâmica abusiva e fique esperando a vida inteira que o outro tome a iniciativa de “me libertar”.
Portanto, quem sofre com um padrão abusivo em suas relações de namoro, casamento, amizade, trabalho ou em qualquer outra esfera da vida, precisa, em primeiro lugar, reconhecer de que maneira contribui para a manutenção desse vínculo doentio.
Em casos mais leves, um simples exame de consciência é o suficiente para que o sujeito se dê conta das formas por meio das quais ele se deixa abusar. Já em situações mais graves, nas quais a dinâmica de abuso já está presente há muito tempo, o melhor é procurar ajuda psicoterapêutica qualificada.
Em todo caso, a saída de uma relação abusiva passa pela capacidade de assumir a responsabilidade pelo “deixar-se abusar”.
É só a partir do momento em que sou capaz de confessar para mim mesmo que me deixei durante muito tempo ser objeto de “uso e abuso” do outro, é que me torno apto a sair dessa posição.
Parafraseando Freud: Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?
18) Término de Relacionamento
Muitas pessoas permanecem em relacionamentos amorosos insatisfatórios durante anos. Algumas tentam compensar a frustração crônica que experimentam envolvendo-se em relações extraconjugais ou desenvolvendo vícios diversos: por bebida, jogos, pornografia, trabalho, estudo (sim, estes dois últimos, apesar do “bom estigma” que carregam, em excesso, também podem representar uma fuga), etc.
Quem olha de fora e, portanto, não tem condições de avaliar a situação a partir do ponto de vista das pessoas implicadas, costuma se perguntar: “Mas por que não terminam? Se a relação não está legal por que simplesmente não se separam e vão ser felizes?”.
Quem faz esse tipo de questionamento pertence àquela categoria de pessoas que ignoram (ou negam) a complexidade da mente e das relações humanas. Em suma, são aqueles que não conseguem aceitar o fato de que uma decisão frequentemente deriva da soma de muitos fatores contraditórios e ambivalentes, típicos da nossa espécie.
Dentre uma imensa variedade de possíveis motivos, vou comentar brevemente e a partir de uma perspectiva psicanalítica três deles.
O primeiro motivo que podemos elencar pode ser resumido no termo “inércia psíquica”. Assim como um corpo qualquer no espaço permanece no estado em que se encontra no momento a menos que seja submetido à ação de alguma força, assim também temos a tendência a manter os mesmos comportamentos e modos de pensar, a menos que sejamos “forçados” a fazer alguma alteração.
É por conta da inércia psíquica que, diante de um incômodo surgido no contexto de um vínculo amoroso de longo prazo, optamos inicialmente pela adaptação a ele ao invés da separação.
Mudar dá trabalho, ou seja, implica em maior gasto de energia, ao passo que a adaptação é menos custosa.
O que a gente mais ouve na clínica são pacientes que, apesar de se queixarem (e muito) de seus relacionamentos, preferem não terminar porque sentem certa “preguiça” só de imaginar que precisariam percorrer mais uma vez todas as etapas de um envolvimento amoroso, desde os primeiros flertes até a consolidação do namoro ou casamento.
Um segundo motivo mais difícil de ser enxergado, uma vez que está relacionado a fatores inconscientes, diz respeito ao que poderíamos chamar de “ganho primário”. A clínica psicanalítica tem demonstrado há mais de um século que nossas dificuldades e transtornos emocionais estão geralmente vinculados a experiências e fantasias vivenciadas na relação com nossa família na infância.
As contingências da vida familiar infantil produzem em nós determinadas crenças e expectativas sobre as relações com as pessoas de fora da família bem como certas atitudes padronizadas que tendemos a adotar em nossos vínculos amorosos, laborais, de amizade, etc.
Assim, dependendo de quais tenham sido as experiências e fantasias que tenhamos vivenciado nos primeiros anos de vida, podemos desenvolver crenças, expectativas e atitudes adoecidas, as quais nos levarão ao estabelecimento de relações “natimortas”, ou seja, que desde o início foram feitas para “dar errado”.
Nesse caso, a dificuldade de terminar não está meramente na inércia psíquica, mas no fato de que, inconscientemente, aquela relação insatisfatória é exatamente a que o sujeito busca para dar vazão às crenças, expectativas e atitudes patológicas estabelecidas na infância.
Pessoas que foram vítimas de violência física ou psicológica quando crianças, por exemplo, podem inconscientemente buscar parcerias com as quais poderão reencenar o cenário de abuso infantil, no qual atuarão novamente como vítimas ou tentarão encarnar o papel de algozes.
É como se, fantasística e inconscientemente, este sujeito estivesse tentando “consertar” o seu passado, dando novas chances para que seus “algozes” hajam de formas diferentes com ele (com amorosidade e respeito que outrora faltaram, por exemplo), ou ainda para que ele mesmo possa no “aqui e agora” adotar uma postura diferente frente às situações de abuso, como forma de resistência e/ou vingança.
O terceiro motivo que podemos listar para a dificuldade de terminar relacionamentos é o que chamamos na psicanálise de “ganho secundário”.
Diferentemente do ganho primário, o ganho secundário não está relacionado às frustrações e sofrimentos presentes na relação, mas justamente às vantagens mais ou menos sutis que ela oferece.
Assim como alguém pode desejar permanecer doente para poder faltar ao trabalho ou ainda para ter a atenção plena de certas pessoas que lhe são queridas, há pessoas que permanecem em relacionamentos tóxicos ou frustrantes em função de certos benefícios que paradoxalmente a relação proporciona.
É bastante comum na clínica atender casais que, apesar das brigas quase diárias, não rompem o relacionamento alegando que o “sexo reconciliatório” entre eles é incrivelmente bom. Ou que o parceiro/parceira possui atributos que confere algo de prestígio social, poder, segurança (beleza, fama, status, dinheiro...).
Como no caso desses pacientes, o ganho secundário pode ser bastante claro para o sujeito. Contudo, na maioria das vezes, a pessoa não percebe as vantagens que obtém no relacionamento e, por isso, não consegue entender porque ainda se mantém nele.
Em resumo, essas são apenas três das diversas razões que tornam difícil para alguém tomar a decisão de se separar. Neste sentido, é preciso lembrar que um vínculo amoroso de longo prazo nunca envolve apenas elementos eróticos, mas também aspectos de natureza social, cultural e muitos fatores ligados à história de vida de cada um dos parceiros.
Deixando a idolatria ao óbvio e às simplificações ingênuas de lado, diferentemente do que propõe o espírito de nosso tempo e a ladainha pregada pelo senso comum, terminar um relacionamento não é tão fácil e simples quanto trocar de roupa íntima.
Mas, apesar disso, é profundamente legítimo nos questionarmos sobre a qualidade dos vínculos afetivos que estabelecemos não só com nossos parceiros/parceiras conjugais, mas também com as outras pessoas de forma geral, afim de permanecermos (se fizer sentido) ou de seguirmos nossos caminhos em busca de relações que verdadeiramente atendam às nossas necessidades psicoafetivas e que, portanto, nos sejam mais satisfatórias e saudáveis.