DIAS DEPOIS

Vestígios da destruição deixada














Para Rosângela, os dias após a explosão foram terríveis. Eram dias acompanhados de tristeza por saber que pessoas morreram dormindo e outras que tinham sido vítimas porque passavam próximo ao local no momento errado, na hora errada - mas exata - do ocorrido. Como é o caso do rapaz, lembrado por Antônio, Edson e Rose; que percorria a avenida de bicicleta e não resistiu ao impacto da explosão.

Muitos dos telefones da cidade haviam sido atingidos. O da família de Rosângela, no entanto, era exceção, funcionava. Ela conta que receberam ligação do Rio de Janeiro procurando informações sobre o estado de cada um. “Foi uma explosão que repercutiu no Brasil, né? Hoje a gente vê explosões, mas na época a gente não via… muita gente ficou sabendo”, recorda.

 














"Total tristeza, total agonia..."

O fato foi considerado uma das “grandes tragédias registradas em Sergipe” até aquele período. Outras duas também foram lembradas em matéria publicada no Jornal da Cidade no dia 16 de abril daquele mesmo ano, todas elas com dimensões e implicações muito próprias: o acidente ferroviário de 1946 e o desabamento do telhado do Mercado das Verduras em 1977. 

A explosão tinha acontecido em um domingo, 13 de abril de 1980, e, logo na segunda-feira, as famílias precisaram lidar com os prejuízos causados pelo ocorrido: perdas de entes queridos, casas destruídas, tristezas sem fim. Por volta das 9h da manhã de segunda-feira, após explosão, Wallace recorda ter ido de bicicleta com o irmão mais velho até o local onde tinham visto a fumaça na noite anterior. 

“Eu me lembro de muita, muita destruição, muita destruição, né? Eu não tô lembrado se ainda havia corpos no outro dia, eu acredito que não, porque eu não tô lembrado... mas [havia] carros do Corpo de Bombeiros da época e aquele cheiro de pólvora queimada, né? Ainda muito cheiro de pólvora queimada e muita destruição na quadra e alguns metros, centenas de metros antes de chegar no local, me lembro de muitas portas caídas, muitas janelas quebradas. Me lembro de carros... quebrados… muita gente agoniada, gente chorando... Isso é o que eu tenho memória aí.” - Wallace Oliveira

O que se sabia era que um depósito clandestino de fogos de artifício, pertencente ao subtenente do Corpo de Bombeiros, José Pedro Lima, havia explodido na então Avenida Cotinguiba, próximo às ruas Aquidabã e Leonel Curvelo, no bairro Suíssa, na capital sergipana. Nos impressos, há registros de feridos e vítimas da tragédia fatal, assim como os impactos e a extensão da destruição deixada: centenas de casas completamente destruídas ou com algum dano apresentado em um raio de 10km. De acordo com os materiais e relatos coletados, alguns dos efeitos puderam ser sentidos em conjuntos como o Paulo Barreto e o Amintas Garcez, também no bairro São José, Santos Dumont, Japãozinho, Lamarão e Atalaia. Antônio ainda lembra da prima que morava no Bugio e chegou ao local do ocorrido quase uma hora depois dizendo que havia sentido a vibração. "Sentiu a vibração de lá? Rapaz...", ele conta ter se surpreendido. 

Algumas pessoas que haviam perdido suas casas foram acolhidas por familiares e amigos, outras receberam abrigos provisórios pelo Governo do Estado e Prefeitura - como constam nos materiais da época. Houve também quem precisou lidar sozinho com as destruições deixadas pela explosão. Campanhas para os desabrigados também foram feitas, assim como a distribuição de donativos para as vítimas.  

Os irmãos Edson, Ivone e Edna contam que reconstruíram suas casas por conta própria. "Teve pessoas que moravam lá na rua da explosão... pra mim foram as mais prejudicadas, porque a maioria vendeu os terrenos, as casas desabaram completamente. Acho que só uma ou duas pessoas que continuaram lá, que tinha uma vida financeira melhor. Os demais eram muito humildes, aí venderam os terrenos, muitas casas ainda eram aquelas casas antigas de sopapo...", recorda Ivone. 

Antônio diz que muitos foram embora e não retornaram: "Muita gente, eu falo assim... em torno de 50% ou mais, venderam. Não quiseram mais reconstruir aí, só eu... ali como tá Edson e algumas pessoas que foram afetadas, mas nem tanto. Mas muita gente caiu fora depois disso.". Ele lembra que algumas pessoas que moravam na vila e sobreviveram à tragédia foram abrigadas em outros lugares. "O Governo do Estado aí, de certa forma, graças a Deus, veio e acolheu esse pessoal", conta. Ele, porém, não teve possibilidade de reconstruir sua casa, somente alguns anos depois, também não recebeu nenhum retorno financeiro: "Nada, nada, nada. Um grão de areia sequer".

Rose Mary  ainda guarda na memória as pessoas que precisaram sair do local e não mais retornaram. "Só reencontrava essas pessoas em ano de eleição, porque a gente votava sempre no mesmo colégio, que era o Colégio Freitas Brandão. Algumas pessoas, também, que perderam algumas casas e tal, foram abrigadas no colégio até se resolver o que fazia.", conta.  

A casa de Rose havia sido reformada pouco tempo antes da explosão. Com o ocorrido, a família e os móveis ficaram divididos entre as casas de parentes e amigos até que pudessem retornar para a sua. Ela lembra que não teve festa de 15 anos, porque não havia condições para nada naquela época: "A gente tinha acabado de reformar a casa e de repente a casa vai ao chão.".

No trecho da antiga avenida Cotinguiba, dona Maria José, também conhecida por Dunum, lembra que permaneceram ela e mais uma outra família que morava numa casa da esquina em frente à sua. "Isso aqui virou um cemitério", diz. 

No caso de Dunum, sua residência não caiu por completo. Ela diz que as telhas quebraram e as paredes de madeira com barro  também foram danificadas, mas recebeu ajuda da prefeitura: "Eles fizeram o cadastro, depois eles mandavam o material. Quando começou a chegar, mandou as telhas todas, mandou telha, mandou tijolo pra fazer essas paredes aqui 'ói' [mostra]... e hoje eu tô aqui no meu palácio, graças a Deus!". 

"Uma repercussão de muitos dias..."

Adelaide, nos dias posteriores à tragédia, tentava acompanhar a cobertura feita pelos jornais para entender a extensão do acidente. Apesar de hoje as lembranças sobre a cobertura da imprensa serem um pouco vagas, ela não esquece de algo em específico: a advertência dada pelo Corpo de Bombeiros sobre os perigos do armazenamento inadequado de fogos de artifício e da produção desses fogos em meio residencial. “Foi notícia. Foi um caso que fez com que as pessoas tivessem mais cuidado, tanto em produzir, no armazenar… foi enfatizado pelo Corpo de Bombeiros para que não armazenassem, em quantidade, fogos de artifício em casa e quem fosse vender teria que ter um alvará, uma avaliação… uma licença, né?”, relata. 

Adelaide Silva tinha 18 anos quando a tragédia aconteceu. Natural do Mato Grosso do Sul, morava em Sergipe desde os seus 16 anos. Ela recorda que as notícias sobre a explosão foram repercutidas por muito tempo. Até hoje, o Jornal da Cidade, o Gazeta de Sergipe, a TV Atalaia, o Jornal de Sergipe e também a Rádio Cultura de Sergipe são alguns dos veículos jornalísticos citados como referência de estudo e documentação sobre o caso. 

[...] O Pronto Socorro [do Hospital das Clínicas] registrava em menos de quatro anos, a mesma movimentação do acidente causado pelo desabamento do teto do antigo Mercado Municipal que matou 16 pessoas além de outras 300 saírem feridas em 1977.

- Trecho de matéria divulgada pelo impresso Jornal da Cidade, no dia 15 de abril de 1980. 

Para Adelaide, o que ficou - de fato - marcado na memória foi o estágio na área de enfermagem que havia iniciado no Hospital Cirurgia, na mesma semana do ocorrido. Ela fazia parte de um grupo de estudantes que estavam sendo treinados para assumir uma unidade de saúde do Rosa Elze, bairro da cidade de São Cristóvão. No seu primeiro contato com a unidade hospitalar, Adelaide conta que viu pacientes com queimaduras, provenientes da explosão, que atingiam de 50% a 70% de seus corpos: “Eu, como já me queimei - tive uma queimadura parcial quando era garota -, eu sei muito bem como é sentir aquilo na pele, imagina numa explosão… a gente olhava e assim… nossa, 70% é muita coisa, muito grave.”

Assim como o Hospital Santa Isabel e o Hospital das Clínicas, o Hospital Cirurgia também tinha recebido vítimas da tragédia. Segundo Adelaide, ele era considerado um dos mais importantes na época por apresentar maior acessibilidade para a comunidade. “Era o hospital da elite”, afirma. Quando ela e os seus colegas foram realizar a visita técnica, “como a gente chamaria hoje”, chegaram a ver casos dos mais simples aos mais graves.

“Passamos pela parte de pediatria, a clínica médica, a parte da maternidade que tinha e foi quando a gente foi passar para essa ala que eles arrumaram pra os pacientes do acidente. A professora fez algumas observações, como: as pessoas estariam muito doloridas, algumas sedadas… que a gente procurasse falar mais baixo para não afetar o estado… os pacientes estavam sofrendo… Foi quando a gente entrou. O primeiro quarto foi quando a gente pegou o paciente mais grave e foi quando aconteceu esse incidente da minha colega não suportar, vir a desmaiar e desistir do curso… ‘professora, não quero mais não’...." - Adelaide Silva

Adelaide compara as deficiências do atendimento público daquele período com os dias atuais e diz que, se a explosão acontecesse hoje, "nós estaríamos mais bem preparados tecnicamente para atender uma demanda dessa conjuntura". Ela não recorda do dia exato do ocorrido, mas tem registrado na memória o impacto da explosão na sua vida profissional, o entendimento de que “a enfermagem é doação” e empatia. Foi nessa área que iniciou a sua formação, mas logo fez uma capacitação e tornou-se auxiliar de enfermagem. 

Diante de tudo que testemunhou disse a si mesma que faria o que fosse possível para amenizar o sofrimento de um paciente.  “Essa questão da explosão foi, pra quem tava começando, ou você abraçava ou você desistia. Ou abraçava a profissão ou desistia. Eu abracei até 1995", conta Adelaide que hoje atua na área de terapias integrativas. 

"No dia seguinte eu recebi um telefonema..."

Evaldo Campos afirma não ter conhecido o subtenente Pedro Lima, dono do depósito de fogos de artifício, antes da explosão, mas havia recebido um telefonema para que assumisse a causa e foi o que aconteceu. Na época, ele estava prestes a completar 39 anos e já tinha acumulado uma larga experiência como advogado e procurador da República em outros estados, além de Sergipe. 

A decisão em assumir a defesa de Pedro desagradou parte da população vítima dos danos e das perdas geradas por uma explosão que poderia ter sido evitada. Evaldo disse que examinou a situação: "Seja monstro, não seja monstro, ele tem que ser julgado e pra ser julgado ele tem que ter acusação e defesa.”. 

O rosto do advogado também aparecia em impressos jornalísticos com desdobramentos do ocorrido. Ivone Silva, uma das irmãs de Edson - que faz aniversário no mesmo dia da explosão - recorda ter visto Evaldo Campos na televisão concedendo entrevistas “para afastar a hipótese de crime, essas coisas…”. 

Em razão da possibilidade de enquadramento na Lei de Segurança Nacional, alguns veículos noticiaram que o advogado poderia desistir da defesa do subtenente Pedro Lima, o que não aconteceu: "Continuei até o fim do processo, até morrer o processo".

"Mexeu com a vida de todo mundo, né?"

Rivanda Santos recebeu a notícia da tragédia por intermédio da sogra. "Naquela época era muito difícil, eu não tinha telefone na minha casa lá no Rio [de Janeiro]... Ligaram pra ela, quando ela chegou em casa me passou e aí foi aquela correria de o que fazer.", conta. Comprou uma passagem de ônibus e chegou em Aracaju quase dois dias depois. Ela era enteada de Pedro e um dos seus irmãos não havia resistido à explosão. 

Depois eu soube que um dos filhos [enteado] dele [Pedro] tinha falecido nessa explosão e eu soube que era um ex-soldado do exército que serviu na mesma companhia que eu servi.

- Leontino Gomes, Capitão da Reserva do Corpo de Bombeiros

"Eu vim, dei aquele suporte que eu pude dar naquele momento ali de 15 dias e voltei. Como também naquela época não tinha telefone, né? O meu contato com eles era através de cartas e minha mãe não sabia ler. Meu irmão [outro] também envolvido na época com tudo que tinha acontecido, também não tinha muito o que tá escrevendo pra mim" - Rivanda Santos

Alguns dos detalhes sobre a tragédia e os dias seguintes foram perdidos por Rivanda, mas ela ainda tem na memória a cena da mãe com a cabeça enfaixada, da sobrinha com a perna quebrada e de Pedro com algumas escoriações. No entanto, o tempo, a distância e o silêncio pareciam ser alternativas para estancar as dores. Ela diz que a mãe nunca falou sobre o assunto: "Quando falava no meu irmão [falecido] ela só chorava e evitar era o melhor remédio". Sobre a relação que tinha com o padrasto Pedro Lima, ela guarda boas recordações, mas diz respeitar os julgamentos feitos sobre o ocorrido. "Foram pessoas que perderam bens, perderam famílias também, né... É um direito de cada um reagir de alguma forma", afirma. 

Do dia seguinte ao tempo de agora: algumas inconsistências numéricas

Os números divulgados tentam mensurar os impactos da tragédia para a capital sergipana. No Diário Oficial do Estado de Sergipe, publicado no dia 19 de abril de 1980, a tragédia teve o seu valor estimado em Cr$ 181.298.995,00 - aproximadamente 200 milhões de cruzeiros, como também foi divulgado pelo Jornal da Cidade três dias antes. De acordo com o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe e doutor em Desenvolvimento Econômico, Wagner Nóbrega, o valor estimado dos prejuízos financeiros do Estado naquele período equivale a R$ 43.192.211,00 a preços de fevereiro de 2022, atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).  

Em alguns materiais jornalísticos, textos publicados em redes sociais e até mesmo memórias compartilhadas nos últimos 10 anos, o balanço feito é de que a explosão teria deixado um total de 12 mortos, cerca de 200 feridos e 96 casas destruídas. Esses dados também podem ser encontrados em materiais da época. Há, no entanto, algumas inconsistências quando é feito um comparativo entre informações divulgadas logo após o ocorrido e documentos oficiais. 

“Incerteza cerca número de mortos”, é um dos títulos de matéria publicada pelo Jornal da Cidade no dia 17 de abril de 1980. Uma das razões apontadas é a de que os corpos de algumas das vítimas haviam sido “liberados sem o devido fichamento cadastral de saída, tendo em vista o grande número de acidentados que chegavam para serem atendidos e como o movimento era grande, estes corpos foram liberados aos familiares, porém com o Atestado de Óbito devidamente assinado pelo médico”. Entre os dias 15 e 29 de abril daquele ano, o número de mortos divulgados pelo jornal variavam de 9 a 12. Já no Diário Oficial do Estado de Sergipe, “7 mortos e 200 feridos” foi a manchete da capa impressa do dia 15. 

Algumas dessas informações contrastam com as divulgadas em documentos oficiais presentes no processo disponibilizado pela Divisão de Memórias do Arquivo Judiciário de Sergipe. No documento que também  trata do caso e da sentença publicada, o acontecimento teria causado "a morte de sete pessoas e ferimentos graves e leves em, aproximadamente, outras 100 (cem) pessoas, além de danos materiais em inúmeras residências.".