A Nova Urbanização Dependente no Capitalismo Rentista-Neoextrativista
Projeto - INCT Observatório das Metrópoles
Projeto - INCT Observatório das Metrópoles
O presente projeto integra o programa de pesquisa "Plataforma de Conhecimento para uma Política Urbana de Reconstrução e Transformação das Metrópoles Brasileiras" do INCT Observatório das Metrópoles e conta com apoio do Edital Cientista do Nosso Estado - FAPERJ - Processo 200.544/2023
A relevância da proposta está em retomar mais um tema clássico, que é o da natureza e o do ciclo do capital que é produzido e realizado nos circuitos da valorização imobiliária. Considera-se, particularmente, o capital incorporador, em suas relações com a propriedade da terra e as rendas fundiárias.
Como se sabe, muitos autores que participaram da fundação da teoria urbana crítica se ocuparam da descrição e da análise do ciclo do capital que é investido nos circuitos da valorização imobiliária. É o caso, por exemplo, de Christian Topalov, em textos que se tornaram paradigmáticos, tais como “Les prometeurs immobiliers” (Os promotores imobiliários).
Isso permitiu identificar, na fase do capitalismo monopolista de Estado, não só a maneira como o capital era produzido e realizado nesses circuitos, mas também construir tipologias a respeito dos principais agentes da produção social do espaço urbano. Além de levantar complexas questões acerca da existência e das especificidades da renda fundiária urbana.
Esse debate foi trazido, ou realizado concomitante, para/na periferia do capitalismo. Um debate cujo pressuposto era mais ou menos o seguinte: se a urbanização em geral não segue, na periferia, os mesmos padrões que são típicos da urbanização dos países centrais, isso também seria verdadeiro no que tange à promoção imobiliária.
Foi assim que, por exemplo, o professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro se ocupou, em Dos cortiços aos condomínios fechados, da descrição e análise das relações entre capital, propriedade da terra, rendas fundiárias e a produção de moradia no Rio de Janeiro. Tanto quanto autores como Samuel Jaramillo e Emilio Pradilla fizeram mais ou menos a mesma coisa para os casos da Colômbia e do México.
E tudo isso foi, de alguma maneira, tributário do debate anterior a respeito da urbanização dependente, ao menos no sentido de que mantinha um viés totalizante de compreensão das relações entre o funcionamento do capitalismo periférico e as modalidades de produção social do espaço que lhe correspondem.
Isso posto, é possível levantar as seguintes questões, algumas das quais já foram objeto de debate/reflexão em momentos anteriores do projeto:
i) Em primeiro lugar, a proposta sugere, como hipótese, que há uma mudança estrutural na natureza do capital incorporador, tendo em vista processos como a financeirização e/ou a dominância da lógica de valorização do capital fictício. Assim, para que a proposta esteja em sintonia com a concepção geral do projeto, é preciso averiguar até que ponto é pode-se dizer que isso também expressa as características da nova forma histórica da dependência. Ou seja, e isso já foi debatido na oportunidade de outras apresentações, até que ponto a dominância financeira internacional, que incide decisivamente na nova configuração da dependência, altera, de fato, o que se passa nos circuitos da valorização imobiliária em países como o Brasil?
ii) Desse modo, é preciso saber. por exemplo, se a proposta pretende considerar algum caso em particular e/ou identificar a presença de agentes internacionais efetivamente “financeirizados” atuando nos mercados imobiliários do país. Quer dizer, há, de fato, aspectos da financeirização dos mercados imobiliários que indicam, por exemplo, a captura e o fluxo de rendas da periferia para o centro do sistema-mundo capitalista?
iii) Se tuddo isso é verdadeiro, como demonstrar? De que maneira, enfim, a financeirização urbana ou dos mercados imobiliários ocorre na periferia? Quais são suas particularidades diante, por exemplo, do ocorre em economias como as dos Estados Unidos, com seus sofisticados mecanismos de securitização?
iv) Em suma, quais são e/ou como construir as corretas mediações entre financeirização periférica e a nova urbanização dependente?
Essas foram algumas questões que surgiram com base na concepção geral do projeto e no acúmulo de apresentações anteriores, algumas das quais, como dito, também se ocuparam da financeirização dos circuitos da valorização/promoção imobiliária. Mas, ao longo do debate, outros temas e questões relevantes para o desenvolvimento do projeto foram assinalados. Cabendo destacar o seguinte:
i) Considerou-se a possibilidade de que a proposta leve em conta a hipótese da existência de um processo de transferência de capital (capital switching, conforme a expressão original de David Harvey) que estaria em curso no Brasil contemporâneo;
ii) Hipótese que foi recentemente levantada por nós (Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz) e que sugere que há um volume significativo de capitais sobreacumulados, advindos das atividades primário-exportadoras, que estaria sendo deslocado para os circuitos da valorização imobiliária;
iii) Recorrendo aos termos de Martín Arboleda, poder-se-ia dizer que está em curso algo como um "transbordamento" desses capitais em casos como o das cidades da mineração e do agronegócio, ou mesmo das cidades portuárias e/ou logísticas;
iv) Nesse caso em particular, sugeriu-se que essa transferência/transbordamento de capitais seja considerada nas dimensões:
Do financiamento de novos empreendimentos/produtos imobiliários;
Da demanda solvável, uma vez que as classes afluentes que participam das cadeias do agronegócio, por exemplo, estão aparentemente em busca de novos produtos compatíveis com suas rendas aumentadas e busca de status/distinção social (o caso de Goiânia seria paradigmático aqui);
Dos mecanismos de "liberação da terra", que remetem à acumulação primitiva/por despossessão.
Além disso, é possível que esses capitais também estejam sendo transferidos para espaços metropolitanos, tendo em vista uma série de "booms imobiliários" que está em curso nas principais cidades brasileiras, sobretudo nas capitais. E essa transferência, por sua vez, explicaria a recente pressão para alterar parâmetros da legislação urbanística em vários municípios brasileiros. Por fim, foram feitas observações a respeito da pertinência de se falar em uma "sagrada aliança 4.0". Ou seja, diante de uma financeirização urbana limitada (ou "truncada") no caso brasileiro, haveria, ainda hoje, algo como uma reserva da órbita "imobiliária" e ou dos "circuitos da acumulação urbana" para frações do capital nacional?
Considerando o objetivo é o objeto da proposta é interessante recordar, inicialmente, o que Castells defende ser a hipótese diretriz de sua investigação sobre a urbanização dependente latino-americana. Conforme essa hipótese, o espaço latino-americano expressa “a articulação de formas espaciais derivadas dos diferentes tipos de dominação que marcaram a história do continente” (p. 7-8).
Há um pequeno problema com essa formulação. À primeira vista, ela parece dar excessiva ênfase às "formas espaciais" e não aos "conteúdos" ou aos "processos sociais". Mas, considerando que Castells esteve bastante ciente de que não há forma sem conteúdo, não há formas espaciais sem correspondência nos processos sociais, então a formulação é suficiente e a hipótese parece, no essencial, estar correta.
Mas, enfim, não há nada mais representativo dessas formas espaciais/processos sociais, que resultam dos diferentes tipos de dominação/dependência na América Latina, do que nossos portos e a maneira como eles foram construídos para garantir a conexão subordinada da região com os centros do sistema-mundo capitalista. Propostas anteriores consideraram, inclusive, outros exemplos de cidades portuárias, como foi o caso de Rosário, na Argentina, e do Norte Fluminense.
E o Porto de Santos, que compõe o objeto da proposta, teve centralidade em vários momentos da longa história das relações de dependência e subordinação do país. Foi o caso, por exemplo, de sua centralidade no ciclo do café, tanto em termos de fluxos de exportação quanto de chegada de imigrantes. Até hoje, é o maior porto do Brasil e um dos maiores do mundo, em movimentação de contêineres e por tonelagem. Segundo o site do próprio porto, ele responde por, aproximadamente, ¼ da balança comercial brasileira e assim por diante.
E tudo isso coloca algumas questões fundamentais, tendo em vista os objetivos do projeto e o acúmulo até aqui, quais sejam:
i) Em primeiro lugar, já que a proposta, como tantas outras, refere-se à tendência de reprimarização da economia brasileira, não seria importante estabelecer um recorte temporal que, ainda que não seja exclusivo, dê ênfase ao período correspondente ao superciclo das commodities? É certo que, ao falarmos de reprimarização, é necessário retroceder, no mínimo, até os anos 1980, mas houve uma mudança de qualidade entre 2003-2014. E será que os processos que a proposta quer enquadrar não tiveram aí, também, uma mudança de qualidade?
ii) Em que medida, enfim, a relação porto-cidade, no recorte da proposta, isto é, na região metropolitana da Baixada Santista, e mais precisamente na cidade de Santos, foi alterada sobretudo nesse período? Foi nesse período, por exemplo, que aumentou a tendência à substituição de usos residenciais por usos retroportuários?
iii) Além disso, a proposta recorre ao rótulo/conceito de “cidade” e/ou “urbanização logística”. Seria necessário, entre nós, definir melhor esse conceito. E essa é uma pergunta para todos e todas que tem mobilizado esse rótulo/conceito: o que, afinal de contas, define a urbanização logística? Quais são, inclusive, as diferentes formas dessa urbanização logística? Ou da racionalidade logística etc. O que aproxima e, ao mesmo tempo, diferencia, por exemplo, as cidades portuárias e as cidades dos galpões? Ambas tratadas, atualmente, como “cidades logísticas”;
iv) Por fim, como construir as mediações que conectam as novas formas de manifestação da dependência com os problemas urbanos propriamente ditos, como o desemprego e o acesso precário à habitação e aos meios de consumo coletivo? Que variáveis escolher para analisar as transformações no mundo trabalho e sua repercussão na esfera da reprodução e na vida urbana em geral? Há, por exemplo, relação entre desemprego e deslocamento em virtude da expansão do Porto?
Cabe lembrar, ainda, dentre outros temas e questões, a importância que foi dada, ao longo do debate, para temas como o da produção imobiliária que é voltada para o atendimento das classes gerenciais.
Trata-se de uma proposta que enriquece o projeto em função dos seguintes fatores.
Primeiro, porque extrapola o caso exclusivamente brasileiro. Há, no projeto, uma pretensão e uma expectativa de lidar não só com o caso do Brasil, mas de alcançar, de alguma maneira, as formas de manifestação da dependência e da nova urbanização dependente na América Latina em geral. Mas não se pode dizer que essa expectativa foi completamente atendida. Há propostas que consideram, por exemplo, a natureza dos novos movimentos sociais na Colômbia e na Argentina, comparando-os com a experiência de São Paulo. Mas, em geral, o foco está no caso brasileiro. Então, trazer para o projeto o recorte regional da Bacia do Prata, da Hidrovia Paraguai-Paraná, do Mercosul etc. é, de algum modo, correspondente com essa expectativa;
Em segundo lugar, a proposta contribui, justamente, por ampliar a escala de análise. Nós falamos, com frequência, no projeto, de uma “ordem urbana” correspondente à nova forma histórica da dependência. Mas o mais correto seria dizer que se trata de uma nova ordem urbano-regional. Daí a importância de recortes como o das “regiões produtivas do agronegócio”, proposto pela professora Denise Elias, ou das “aglomerações urbano-regionais” vinculadas a diversas formas de extrativismo e/ou neoextrativismo, como sugerido pela professora Érica Tavares e seus companheiros, Ana Xavier e Guilherme Vasconcelos. Enfim, nesse caso, estamos diante de um recorte regional supranacional (ou transnacional) que, sem dúvida, também deve iluminar e pôr em evidência questões da maior importância para compreender a urbanização dependente na América Latina do século XXI.
Considerados esses fatores, há que sublinhar algumas questões mais objetivas, que a proposta permite levantar, quais sejam:
i) A que diz respeito ao que é/foi possível fazer, na América Latina, diante do que se convencionou chamar de “Consenso das Commodities”. Ou seja, afinal de contas, até que ponto a nova especialização em atividades primário-exportadoras, alavancada sobretudo após o “superciclo das commodities”, aprofundou a dependência latino-americana? Ou há/houve, de fato, algum espaço para utilizar essa especialização em nome do “desenvolvimento nacional”, como costuma ser defendido por algumas correntes progressistas do pensamento social e político latino-americano?
ii) E, em outros termos, não teria sido o “neoextrativismo progressista”, por assim dizer, diretamente responsável por fortalecer os agentes econômicos e políticos, as classes e frações de classes, identificadas, digamos, com o “neoextrativismo ultraliberal”?
iii) E isso faz surgir outra questão fundamental, amplamente debatida na região: a vinculação mais recente com a China, em oposição ao clássico alinhamento com os Estados Unidos, reforça ou enfraquece a dependência latino-americana?
iv) É mais ou menos evidente que se trata de vínculos que não se dão exatamente da mesma forma. Mas o motor do aprofundamento da dependência está na adesão, maior ou menor, a um ou outro polo da disputa hegemônica entre EUA e China, ou no próprio recrudescimento dessa disputa?
v) Ainda a respeito da ação geopolítica global, até que ponto esse movimento mais recente dos EUA, atuando na Bacia do Prata pretensamente para combater o narcotráfico, dentre outros objetivos, não lembra a lógica do Plano Colômbia?
vi) Por fim, pela experiência e circulação do autor da proposta em outros países da região, caberia perguntar sobre como é possível diferenciar e aproximar as experiências recentes de aprofundamento da dependência em países como, por exemplo, a Argentina e o Brasil? O que nos afasta e o que nos aproxima?
Há que considerar, ainda, que no curso do debate sobre a proposta chegou-se à conclusão de que é extremamente importante considerar a hipótese de que o que está em curso, em caso como o enquadrado na proposta, é uma "produção imperialista do espaço urbano-regional" ou a afirmação de "ordem urbano-regional imperialista".
O sentido da proposta, que está presente no resumo ampliado, mas também em artigos anteriores, com um texto publicado no Le monde diplomatique, em outubro de 2022, é chamar a atenção para o importante legado brasileiro em termos de construção de instituições participativas (IPs). Legado estabelecido sobretudo a partir da conjuntura da redemocratização, que resultou na promulgação da Constituição de 1988 e abriu um ciclo favorável a esse tipo de experiência.
Ressalta-se, por exemplo, a relevância dos Conselhos e Conferências de políticas públicas, tanto quanto a organização dos Orçamentos Participativos. Observando-se, ainda, que instituições e experiências como essas pluralizaram a representação social e alargaram a democracia brasileira.
Mas, em seguida, teria crescido a percepção crítica e certa decepção quanto à eficácia da participação institucionalizada. Até que, especialmente no governo Bolsonaro, mas desde o golpe parlamentar de 2016, o país teria ingressado em um franco processo de desdemocratização.
Trata-se, portanto, de uma proposta que permite resgatar e atualizar temas clássicos do pensamento crítico latino-americano, inclusive do pensamento dependentista, tais como o da participação social e política, o das relações entre Estado e sociedade civil e o da constituição da democracia em sociedades periféricas.
Surge, assim, uma série de questões, que merecem destaque:
i) Em primeiro lugar, parece pertinente indagar a respeito dos limites e possibilidades da participação cidadã nas políticas públicas brasileiras diante do fato de que, entre nós, como propunha Florestan Fernandes, há sempre o risco de uma “contrarrevolução preventiva”. Ou seja, sem cair em dicotomias do tipo “ruas versus instituições” ou no perigo de desqualificar a “participação institucionalizada”, o que seria um erro, é necessário levantar a seguinte questão: até que ponto o esforço de promoção da participação popular e cidadã é, de fato, sustentável no Brasil, isto é, numa formação social dependente, caracterizada por ampla resistência das elites frente às mínimas iniciativas de mudança social?
ii) Em segundo lugar, e isso está muito relacionado com a questão da dependência em suas formas mais contemporâneas, até que ponto as sucessivas ondas de neoliberalização e, depois disso, a fusão entre neoliberalismo e autoritarismo, diminuíram, ainda mais, a margem para a participação nos diferentes domínios de política pública? Tendo em vista, antes de mais nada, os constrangimentos estruturais à condução das políticas macroeconômicas e, mais recentemente, a captura do orçamento público;
iii) Por fim, as conjunturas políticas recentes, no Brasil e no mundo, fizeram crescer o uso de conceitos e categorias tais como “desdemocratização”, que remontam a formulações de autores e autoras como Charles Tilly, Wendy Brown. Houve, inclusive, uma repercussão desse tipo de debate e de formulação no campo dos “best-sellers”, a exemplo de “Como as democracias morrem”. Mas a questão é a seguinte, tanto quanto recorrer a esse conceito e a essas referências, não seria útil articulá-las com referências clássicas do pensamento crítico latino-americano? Não seria interessante, para repetir a alusão a Florestan Fernandes, retornar ao debate sobre o “regime autocrático burguês” ou, ainda, às reflexões de Ruy Mauro Marini acerca do “Estado de contrainsurgência” ou, no nosso campo, às elaborações de Lúcio Kowarick a respeito do “mito da sociedade civil amorfa”; e um longo etc.
Em resumo, a sugestão, aqui, é a de que é possível, também no caso do debate sobre a erosão das democracias, das formas de participação cidadã, da participação institucionalizada, e sobre os impasses na construção de formas de participação ampliada etc., recorrer a referências clássicas que, de resto, estão na base das demais questões e temas que animam nosso projeto.
Trata-se de uma proposta que busca traçar o perfil sociodemográfico de aglomerações urbano-regionais cuja dinâmica seria, dentre outros fatores, expressão da atual forma de inserção periférica e subordinada do Brasil na economia internacional, que tem sido marcada por tendências de reprimarização, desindustrialização e financeirização.
Interessam sobretudo as aglomerações vinculadas às atividades do agronegócio e extrativistas em geral, o que é tanto mais importante quando se sabe que a atual pauta de exportação brasileira se concentra ao redor de, aproximadamente, pouco mais de uma dezena de produtos primários e manufaturados de baixa complexidade. Considerando-se, ainda, que 8 das 27 UF respondem por aproximadamente 80% do total das exportações, segundo dados reunidos por Marcio Porchmann e Luciana Caetano da Silva, em sua obra mais recente, intitulada “O Brasil no capitalismo do século XXI”.
Há, de fato, uma profunda reconfiguração espacial da economia brasileira, que, dentre outros fatores, parece estar diretamente ligada à condição dependente de tipo novo, que é eminentemente rentista e neoextrativista. E a proposta coloca em questão justamente isso: até ponto a expansão das atividades extrativistas (agronegócio, mineração, atividades petrolíferas e portuárias), eventualmente associadas à transição demográfica, contribuem para essa reorganização espacial?
O pode ser desdobrado nas seguintes questões:
i) Em primeiro lugar, como identificar o que há de comum nessas aglomerações urbano-regionais. Que critérios adotar? Quais são, além dos dados do censo e da pesquisa sobre a região de influência das cidades, do IBGE, os indicadores e as tendências que contribuem para a identificação do que há de comum, por exemplo, entre uma cidade petrolífera e uma cidade do agronegócio?
ii) Elas seriam “aglomerações urbano-regionais neoextrativistas”? Justamente porque são o lócus, por excelência, das atividades extrativistas clássicas e neoextrativistas, que se converteram no centro do modelo econômico primário-exportador em vigor no Brasil. Seriam os “espaços da especialização produtiva”? Ou seja, não seria interessante encontrar, inclusive, uma designação, com seu respectivo conteúdo conceitual, que assinale a semelhança fundamental entre essas aglomerações?
iii) Mas, como o próprio resumo da proposta sugere, há diferenças entre elas. Não seria interessante, portanto, escolher alguns tipos em particular, digamos, cidades da mineração (ou municípios mineração), cidades do agronegócio, cidades petrolíferas para construir essa diferenciação?
Além disso, argumentos como o de Pochmann e Silva levam em conta não só as relações de dependência externa, mas o modo como elas se expressam em padrões de adesão, ação e mobilização das classes dominantes internas, que são decisivos para a consolidação do novo modelo econômico primário-exportador. Os autores consideram sobretudo o caso do agronegócio, com destaque para a formação da Frente Parlamentar da Agropecuária. Nesse sentido:
i) Não seria igualmente importante identificar quais são as demais frações de classe que operam em cada caso possível de aglomeração neoextrativista?
ii) E não seria adequado considerar, inclusive, o modo como essas frações atuam não só na escala nacional, mas também nas demais escalas?
Além disso, é importante considerar outras questões, tais como:
i) Como fica o debate sobre a desmetropolização? Há alguma mudança recente, tendo em vista o surgimento desses novos polos de centralização da riqueza e do poder?
ii) Até que ponto é útil considerar, no desenvolvimento da proposta, a concepção da "urbanização extensiva"?
iii) Que fluxos migratórios acompanham a ascensão dessas novas aglomerações urbano regionais?
No curso do debate reforçou-se, ainda, a necessidade de estabelecer uma periodização bem definida, de relativa longa duração, que remonte, por exemplo, aos anos 1980, tanto quanto uma tipologia de aglomerações neoextrativistas, que poderia levar em conta, por exemplo, o aspecto da economia urbana, a dimensão do consumo produtivo e do mercado de trabalho.
A proposta parte da constatação de que há uma etapa nova da dependência, fala-se, por exemplo, “da reformulação e do aprofundamento da dependência”, em sua fase neoliberal, o que se expressaria na forma de tendências como a reprimarização, as privatizações e a financeirização. E aqui surge, logo de início, uma primeira questão fundamental:
i) Afinal de contas, como definir e, inclusive, designar a atual forma histórica da dependência? Que diferenças, mas também continuidades, essa nova forma apresenta quando comparadas com as formas ou fases anteriores da dependência?
ii) Em suma, quais são os traços distintivos mais importantes dessa nova forma histórica?
iii) Há, ainda a título de ilustração, uma referência explícita ao tipo de gestão macroeconômica que foi imposto aos países periféricos a partir dos anos 1990, além de uma análise do balanço de pagamentos que busca evidenciar os principais mecanismos contemporâneos de transferência de valor. Esses são os caminhos analíticos principais para identificar os traços distintivos acima mencionados?
iv) Por fim, como conectar esses níveis de análise com o nível e a escala da urbanização dependente e das políticas urbanas que a expressariam? Uma vez que se trata de uma proposta que toma como objeto um projeto específico, o Reviver Centro, mais recente expressão das sucessivas iniciativas de “revitalização” do centro do Rio de Janeiro.
A proposta sugere, ainda, que é possível observar o aprofundamento da dependência na forma da presença e participação, cada vez maior, do capital financeiro no mercado imobiliário. O que daria lugar a algo como “a colonização do setor imobiliário local pelo capital internacional”. Mas como construir as mediações que permitem observar e identificar, de fato, os agentes que atuam nesse sentido, isto é, no sentido da inserção e captura de valor dos mercados imobiliários brasileiros? Há, no entanto, uma questão ainda mais decisiva:
i) Quais seriam, por outro lado, os principais obstáculos a tudo isso que poderia ser resumido em torno do rótulo “financeirização urbana”? Financeirização urbana que, no caso, brasileiro estaria ocorrendo, no mínimo, de modo “truncado”.
Como dito, a proposta toma como objeto empírico o Reviver Centro. E sobre esse projeto em particular cabe questionar o seguinte:
i) Já é possível identificar, nesse caso específico, quem são os principais agentes envolvidos? São agentes “financeirizados” ou apenas os agentes “convencionais” que atuam nos mercados imobiliários da cidade?
ii) Além disso, ao longo do tempo, inúmeras iniciativas de revitalização do centro e da região portuária do Rio foram lançadas sem sucesso. Enfim, já é possível dizer que iniciativas como o Reviver Centro ocorrem em circunstâncias que realizam o que as propostas anteriores não conseguiram realizar?
iii) Esse projeto, ainda no início, já oferece sinais nesse sentido? Não só de uma “colonização”, de fato, dos mercados imobiliários brasileiros por capitais internacionais “financeirizados” e de conquista do centro por setores sociais “afluentes”?
Por fim, sugeriu-se que a proposta elabore melhor a ideia de um “financeirização truncada”, relacionando-a com a concepção da “financeirização subordinada e periférica” e considerando, inclusive, as preferências de investimento de acordo com o movimento das taxas de juros. Aconselhou-se do mesmo modo que, se possível, a proposta recorra aos conceitos de padrão de reprodução do capital (TMD) e/ou padrão desenvolvimento capitalista (Luis Filgueiras), como forma de especificar, ainda mais, o que ocorre no contexto dependente brasileiro.
Mais uma vez, tanto a proposta de capítulo quanto as pesquisas recentes do autor se enquadram no horizonte temático e teórico que fundamenta o projeto. Basta mencionar, além da proposta, por exemplo, um artigo recente publicado pelo professor Gilberto Franca no Boletim Paulista de Geografia, intitulado Espaço, Reprodução Social e Produção do Comum (2019).
Nesse artigo, tanto quanto na proposta, o autor toma como objeto os diferentes mecanismos por intermédio dos quais jovens, mulheres e populações marginalizadas têm desafiado as políticas neoliberais de privatização e fechamento de espaços públicos e comuns, sobretudo por meio da ocupação e gestão coletiva desses espaços. E aqui surge uma primeira questão que merece aprofundamento:
i) Afinal de contas, como demarcar as diferenças entre conceitos como espaço público, esfera pública e espaço comum? Como o recurso a essa última categoria, difundida mais recentemente, inaugura novas questões em termos anáilise crítica e de resistência social?
Essa questão é importante especialmente porque, como se pode ler no resumo expandido, trata-se de uma proposta que problematiza, de diferentes maneiras, as atuais tendências de mudança do capitalismo, que promoveram não só a “diluição das fronteiras entre os espaços da produção e da reprodução social”, mas que também assinalam os modos de apropriação capitalista dos espaços comuns. No resumo, assim como no artigo anterior, também há indicações sobre a criação de espaços coletivos de vida que confrontam essas formas de apropriação, promovendo modalidades alternativas de articulação entre saberes e práticas populares e o meio informacional, como é o caso de plataformas cooperativas.
Isso posto, algumas questões fundamentais pode ser destacadas:
i) Em primeiro lugar, até onde é interessante incorporar não só as referências europeias/anglo-saxãs do debate sobre o comum, mas também todo o debate que remete ao bem viver e ao comum a partir das matrizes críticas latino-americanas?
ii) Em segundo lugar, não seria possível construir algum tipo de relação entre o conceito de espaços comuns (ou a cidade como comum) e a ideia da cidade como um “valor de uso complexo”? Porque é justamente esse caráter de valor de uso complexo que instaura uma contradição fundamental, descrita, por exemplo, por Ribeiro, da seguinte maneira: “A essência da contradição da urbanização está no fato de a cidade representar um valor de uso complexo, importante para a produção e circulação de mercadorias e, no entanto, ela em si mesma não ser uma mercadoria” (p. 47, Dos cortiços aos condomínios fechados). Ou seja, tanto quanto a sede do mercado e do valor de troca, a cidade é, ao mesmo tempo, a reunião de um conjunto de valores de uso e de formas de sociabilidade que permitem a reprodução da vida. Não haveria, portanto, uma afinidade entre o debate sobre os espaços comuns e as reflexões sobre as contradições que emanam do fato de que a cidade não pode ser, por definição, uma mercadoria em sentido pleno?
iii) Até que ponto, na condição periférica, essa conversão da cidade em um “chão de fábrica” expressa uma novidade? Uma vez que nossas cidades sempre foram espaço do trabalho e da viração, a começar pela escravidão de ganho, isso não permitiria comparar a condição dependente atual com a condição dependente original? Cumprindo mencionar que, aí, o papel das mulheres era central, na forma da atuação das “ganhadeiras”.
iv) Além disso, esse movimento de deslocamento do centro do conflito social da fábrica para cidade, dos espaços da produção para os espaços da reprodução, já não estava dado, ainda que de outra forma, na conjuntura político intelectual de surgimento da teoria urbana crítica? Sendo assim, a novidade estaria na presença das plataformas e na resistência via afirmação/criação de espaços comuns?
Caberia destacar, ainda, as referências feitas, no curso do debate:
i) À perspectiva da unificação das lutas sociais que se abrem no horizonte político e de reflexão que se abre com o conceito ampliado de extrativismo (neoextrativismo). A questão, aqui, é a da articulação, possível ou não, por exemplo, das resistências à extração/expropriação no campo e na cidade;
ii) Às possíveis conexões com a ideia da “fabricalização da cidade”, de Terezinha Ferrari.
Novamente, a expectativa é a de que essas questões e referências contribuam com o desenvolvimento subsequente da proposta de capítulo.
Partindo de uma perspectiva de/descolonial, a proposta sugere a possibilidade de fazer a crítica da colonialidade do saber urbano por meio da narrativa de lutas travadas nas periferias urbanas brasileiras. Trata-se, mais precisamente, de recuperar a categoria “Amefricanidade”, de Lélia Gonzalez, para analisar essas mesmas lutas urbanas, sobretudo as lutas protagonizadas por mulheres.
Mais uma vez, portanto, estamos diante de uma proposta que gira ao redor de, no mínimo, duas questões que já foram objeto de reflexão e debate no âmbito do projeto, quais sejam:
i) A questão das relações de afinidade, possíveis ou não, entre o pensamento decolonial e a tradição crítica dependentista; e
ii) A questão da constituição dos sujeitos e movimentos sociais capazes, por um lado, de resistir às forças que reafirmam a subordinação do Brasil e da América Latina no âmbito do sistema internacional de acumulação de poder e riqueza e, por outro, de enfrentar as injustiças que emanam mais diretamente do nível interno de relações de forças entre classes sociais.
Cumprindo destacar que, evidentemente, esses dois níveis de conflitos, interno e externo, estão fortemente articulados e que tudo isso se tornou ainda mais importante diante do ressurgimento do fascismo e da extrema-direita no mundo. Ao menos isso é o que nos tem demonstrado textos recentes de autores como, por exemplo, Carlos Eduardo Martins, para quem Estados Unidos e o Brasil tornaram-se epicentros do fascismo mundial.
Isso posto, é preciso dizer a pesquisa mais ampla à qual a proposta está vinculada também resgata, assim como o grupo Metrópole, Estado e Capital, o debate clássico sobre a urbanização dependente e a marginalidade – debate que, em parte, está nas coletâneas clássicas organizadas por Manuell Castells e Marta Schteingart. E, ao fazê-lo, recorre sobretudo aos textos de Aníbal Quijano.
Em boa medida, partimos do entendimento de que este debate clássico sobre a inserção subordinada da América Latina no sistema-mundo e a respeito da emergência, nos anos 1960-70, de um estrato social marginalizado na região é necessário, mas não é suficiente para compreendermos o momento histórico atual e o que estamos chamando de nova urbanização dependente. O que justifica e exige, como temos defendido, um esforço de atualização.
Pois bem, esse debate clássico faz parte de uma longa tradição do pensamento de autores e autoras latino-americanos fundamentados no materialismo dialético. A própria Lélia González participou desse debate partindo, originalmente, de uma perspectiva eminentemente marxista. E, ao fazê-lo, ofereceu importantes contribuições sobre a marginalidade e o modo como ela deveria ser problematizada relacionando os mecanismos de formação das classes sociais com os marcadores de raça e de gênero. Mesmo Quijano, ao transitar de uma abordagem mais atenta à dimensão político-econômica para uma reflexão histórico-cultural, não deixou de demonstrar que a colonialidade do poder, isto é, a hierarquização social com base na racialização dos povos, está diretamente atrelada à expansão do capital e à subordinação de povos e territórios no âmbito da divisão internacional do trabalho. Quijano, inclusive, também se ocupou, ao refletir sobre a marginalidade, do papel e da questão da mulher periférica.
Observações como essas nos conduzem a algumas questões fundamentais, tais como:
i) Por que a escolha pela chamada perspectiva de/descolonial que, muitas vezes, através de alguns autores(as) que adotam essa perspectiva, acaba por abandonar a relação direta entre formação de culturas/subjetividades e as relações materiais impostas num dado tempo e espaço pelo modo de produção capitalista? É possível contornar essa limitação? E, ao contorná-la, que contribuições esta perspectiva teria para a atualização sobre o debate acerca da urbanização dependente?
ii) Além da recuperação de categorias como Amefricanidade, não seria interessante recordar que Lélia Gonzalez participou, ativamente, do debate sobre a dependência, particularmente, como dito acima, do debate sobre a questão da marginalidade, ao levantar problemas relacionados à estratificação interna da força de trabalho com base nos marcadores articulados de raça, gênero e classe social? Ou seja, não seria igualmente importante e interessante, de algum modo, resgatar sua leitura, por exemplo, da situação da juventude e das mulheres negras com base nos conceitos que circularam no campo ampliado da dependência?
Cumpre mencionar que essa leitura está presente, por exemplo, em textos como “Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” e a “Juventude negra brasileira e a questão do desemprego”, nos quais a autora parte do conceito de desenvolvimento capitalista desigual e dependente, da combinação entre formas capitalistas e pré-capitalistas de acumulação, assim como do debate sobre a superpopulação relativa, o exército industrial de reserva e a massa marginal, tudo isso inspirada nas elaborações de José Nun.
Enfim, mais uma vez, essas são indicações e questões que podem contribuir para o desenvolvimento desta e das demais propostas de capítulo que compõe o projeto. Nesse caso em particular, parece-nos fundamental explorar os dois grandes momentos da obra de Lelia González, tal como foram apresentados, um momento de aproximação com o marxismo e outro de maior envolvimento com questões no âmbito da cultura, da linguagem e da subjetividade.
A proposta é, sem dúvida, totalmente compatível com os objetivos e a concepção geral do projeto, sobretudo quando se considera sua tese central, que lhe serve como ponto de partida: a ideia de que para compreender as principais tendências e características da urbanização brasileira, nas últimas cinco décadas, é necessário levar em conta, entre outras chaves explicativas, a expansão e a territorialização do agronegócio no Brasil. Isso está em sintonia, por exemplo, com a defesa de que, atualmente, há um padrão de reprodução do capital, no país, que está fundado em dois eixos fundamentais:
i) o eixo da conversão do país em uma plataforma de valorização financeira;
ii) e o eixo que se expressa na forma da constituição de uma plataforma de exportação de commodities minerais e agrícolas, o que conduziu autores como Jaime Osorio a sustentarem a existência de um “novo padrão de exportação com especialização produtiva”.
Além disso, enfatizar o papel da territorialização do agronegócio como chave de explicação da urbanização contemporânea renova o que há de mais importante na tradição do pensamento crítico brasileiro: a definição do latifúndio como matriz espacial da sociedade brasileira. O que fazer a respeito do latifúndio e da agricultura de subsistência estava, por exemplo, no centro da conjuntura político-intelectual que deu lugar à teoria da dependência.
É evidente que, hoje, se trata de algo como o latifúndio renovado, após sucessivas ondas de “modernização conservadora”, quando se remete ao uso muito comum, no âmbito desse debate, da expressão original de Barrington Moore Junior.
Quando se leva em conta, por exemplo, a categoria de “latifúndio por exploração”, compreende-se que, ao menos desde a ditadura militar, o projeto era justamente esse: converter o latifúndio em “empresa rural”, antes mesmo que o conceito de agronegócio tenha sido importado e ganhado o sentido que possui no Brasil contemporâneo. Sentido que se destacou sobretudo a partir do século XXI e da expansão do setor nos governos Lula e Dilma, que coincidiram, em parte, com o chamado boom (ou superciclo) das commodities, entre, aproximadamente, 2000-2014.
É preciso recordar, ainda, que, diante dos impactos da crise fiscal brasileira dos anos 1980 no crédito rural, a agropecuária empresarial/patronal foi um dos primeiros setores da economia do país a passar pela chamada financeirização, o que foi o caso especialmente a partir dos anos 1990, quando surgiram os primeiros títulos e mecanismos de financiamento desse tipo de atividade nos mercados de capitais. E, hoje, como se sabe, até o MST financia sua produção com base em Certificados de Recebíveis do Agronegócio.
Em suma, se no passado era impossível pensar o Brasil, em todas as suas dimensões, inclusive a urbana e a das relações campo-cidade, sem considerar a centralidade do latifúndio clássico, atualmente, não se pode explicar o Brasil sem levar em conta a influência e o poder não só econômico, mas também político e ideológico do agronegócio. A respeito desse último aspecto, caberia mencionar, de passagem:
i) A Formação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA);
ii) A campanha publicitária “Riqueza do Brasil – Agro é Pop, é Tech, é Tudo”, veiculada na Rede Globo de televisão e financiada pelo Banco Bradesco;
iii) A sucessão de telenovelas com foco no agro, veiculadas nessa mesma emissora; e
iv) A formação de associações como “De olho no material escolar” e “Mães do Agro”, com o intuito de fiscalizar o modo como o agronegócio é representado no âmbito da educação.
Se o poder e a centralidade do agronegócio são refletidos em tantas dimensões da vida brasileira, não seria diferente com a urbanização. Como defendido na proposta, estão em curso complexos padrões de mudanças na rede urbana brasileira e nas relações campo-cidade em virtude da expansão do agro. Cabendo mencionar que, no debate clássico da urbanização dependente, atribuiu-se muita importância à dinâmica de transformações na rede urbana e nas relações campo-cidade.
Mas, enfim, tudo isso ressaltado, surgem algumas questões mais objetivas:
i) Em primeiro lugar, como definir, afinal de contas, o que são as cidades do agronegócio? Algo tanto mais necessário para que não se trate de apenas mais um rótulo intuitivo sobre as mudanças recentes na urbanização brasileira.
Em seus textos e pesquisas, amplamente inspiradas nas elaborações de Milton Santos, a professora Denise Elias tem buscado justamente isso, uma definição rigorosa desse tipo de aglomeração urbana, sugerindo, ao mesmo tempo, diferentes modo de operacionalizar os estudos sobre as cidades do agronegócio. É o caso, por exemplo, de suas observações acerca da existência de regiões produtivas do agronegócio (RPAs) e, dentro delas, de cidades do agronegócio definido como espaços urbanos não metropolitanos nos quais se dão a gestão local e regional do agronegócio. Mas a questão a considerar, aqui, é a seguinte: como a formação dessas regiões e a consolidação da centralidade das cidades do agronegócio afetam o conjunto da rede urbana brasileira e seus pontos mais importantes, isto é, as metrópoles? Elas contribuem para o relativo esvaziamento econômico, e mesmo demográfico, das grandes cidades? Como demonstrar isso? Além disso, na sua inserção nas cadeias globais de valor, até que ponto elas são capazes ou não de dispensar, ao menos relativamente, a mediação das metrópoles? Isso daria lugar à formação de economias de enclave? Em resumo, até que ponto essas formas do urbano, associadas ao agronegócio, desarticulam e/ou rearticulam a rede urbana brasileira?
Por fim, quando o enfoque está voltado para a escala intraurbana, há um debate se abrindo a respeito dos “problemas urbanos” típicos das cidades do agronegócio. Sendo assim:
i) Quais seriam os principais problemas desse tipo? Favelização, violência, emprego precário etc.?
ii) E de que maneira eles guardam semelhanças e diferenças com os problemas das grandes cidades?
Mais uma vez, cumpre dizer que esses apontamentos e questionamentos para os quais não há respostas simples, mas que nós temos nos esforçado para elaborar, deixando-os registrados com o intuito de estimular o permanente debate no âmbito do projeto.
Sem dúvida, a proposta se articula com a concepção geral do projeto e, do mesmo modo, dialoga com os capítulos apresentados até aqui de várias maneiras. Esse é o caso, por exemplo, quando se afirma que a interrupção e reversão do processo de industrialização do Brasil, combinados com a expansão das atividades extrativas, minerais e agrícolas alavancaram a chamada reprimarização da economia do país. Ou seja, mais uma vez, estamos diante de uma proposta que mobiliza os fenômenos da desindustrialização e da reprimarização como chaves de compreensão e caracterização do capitalismo brasileiro no período contemporâneo. Período aberto com as transformações dos anos 1980-1990.
E aqui, logo de início, surgem questões da maior importância para o desenvolvimento do projeto:
i) Até que ponto esse dois fenômenos, que tem circulado bastante no âmbito do projeto, são a expressão da nova forma histórica da dependência brasileira?
ii) Como definir esses mesmos fenômenos?
iii) Eles ocorrem do mesmo modo e/ou tem os mesmos impactos em todo o território? Aparentemente, não, como foi o caso do que sugeriu a apresentação do professor Marcelo Ribeiro, ao propor o conceito de “interiorização manufatureira” e o diagnóstico de que a desindustrialização é sobretudo metropolitana;
iv) Sendo assim, seria necessário pensar a reprimarização também nos termos de um “desenvolvimento geográfico desigual”?
v) Se assim for, também seriam as metrópoles as mais impactadas por esse fenômeno, eventualmente por um relativo deslocamento do poder e da riqueza para o interior, para as cidades médias, para as cidades da extração, da mineração e do agronegócio? A presente proposta indica, por exemplo, em termos regionais, a centralidade do Centro Oeste, por sua relevância na economia nacional, na implantação de grandes projetos logísticos e de energia, na dinâmica demográfica e na expansão das fronteiras do setor primário exportador.
Há, do mesmo modo, um recurso aos conceitos/fenômenos de financeirização e neoextrativismo, na busca por articulações entre extrativismo, finanças e logística. E aqui há ampla coincidência com propostas já apresentadas e que ainda serão expostas, que tratam, por exemplo, dos municípios minerados, das cidades logísticas, das cidades do agronegócio etc. Mais importante, ainda, é a busca por uma definição do conceito de neoextrativismo. Considerando o debate aberto com o “boom das commodities”, a proposta destaca os seguintes sentidos:
i) A reestruturação produtiva (capital-intensiva) dos setores primário-exportadores;
ii) O projeto político de governos ditos progressistas, que buscaram capturar e redistribuir parte dos excedentes advindos da expansão dos setores primário-exportadores;
iii) O advento de um padrão de acumulação fundado na expulsão/espoliação de povos originários e comunidades tradicionais;
iv) A noção expandida de extrativismo, que assinala uma multiplicidade de operações do capital financeiro para extrair valor de distintos espaços e setores econômicos.
Conforme a proposta, os diferentes sentidos ou dimensões do neoextrativismo encontram na dominância financeira o elemento comum, o impulso transversal. Será esse, de fato, o modo de articular todos esses sentidos/dimensões do neoextrativismo? Aqui, aparentemente, há uma coincidência com o argumento do capital-imperialismo, de Virgínia Fontes, que aponta para a centralização sem precedentes de capitais portadores de juros e a busca por todo tipo de frentes de expansão capazes de absorvê-los. Argumento que indica a centralidade não só dos circuitos da valorização financeira, mas a pressão por recursos naturais e a intensificação da expropriação e exploração do trabalho.
Por fim, surge o problema da definição da logística como forma de poder político e econômico, que contribuem para levantar as seguintes questões:
i) A logística surge como um campo privilegiado, um conjunto de práticas e saberes, que permite fazer a gestão/conexão dos capitais portadores de juros sobreacumulados com os circuitos da valorização produtiva e da vida material em geral?
ii) Seu próprio desenvolvimento como campo organizacional e tecnológico, transferido da esfera militar para o uso estritamente econômico, sua manifestação como ajuste logístico, enfim, tudo isso não encontraria fundamento na necessidade de dar vazão aos capitais crescentemente sobreacumulados?
Novamente, cumpre destacar que essas são questões levantadas no curso do projeto e que precisam ser respondidas coletivamente, articulando, cada vez mais, os capítulos da coletânea.
A proposta está, sem dúvida, em total sintonia com o projeto, a começar por sua inclinação/vocação totalizante de compreensão do urbano (ou da produção do espaço) e, acima de tudo, da condição dependente/periférica latino-americana.
Essa busca pela totalidade, no âmbito do projeto, é um dos eixos mais importantes do esforço de retomada dos debates clássicos sobre a dependência em geral e a urbanização dependente em particular. Não se trata, evidentemente, de minimizar a importância de trabalhos que se ocupam de objetos empíricos e de recortes espaciais bem delimitados, muito ao contrário, mas de articular esses e outros esforços em nome de uma agenda de pesquisa que valorize processos, tendências e dinâmicas sistêmicas.
Isto é, parte-se do pressuposto de que, em geral, os estudos no campo do planejamento urbano e regional têm apresentado uma ênfase muito grande na escala local, no tempo presente e na fenomenologia “dos problemas urbanos”. O que faz perder de vista o poder explicativo de uma tradição que, sem desconsiderar esses aspectos, buscava um enquadramento totalizante, ao considerar, por exemplo, a inserção subordinada da América Latina, e de suas principais cidades, no sistema global de relações de dependência, ou de interdependência, para usar os temos de Quijano.
Mas, enfim, cumpre mencionar que, para além da proposta de capítulo, alguns dos textos mais recentes de seu autor têm realizado, no mínimo, três movimentos afinados com este projeto, quais sejam:
i) Resgatar a riqueza do debate clássico latino-americano, da Cepal em diante;
ii) Refletir sobre a crise brasileira e mundial; e
iii) Analisar o impacto das mudanças produtivas e econômicas contemporâneas na reconfiguração territorial do Brasil do século XXI.
E aí surgem as questões propriamente ditas, que podem contribuir com o debate coletivo que está na base da construção desse projeto:
i) Em primeiro lugar, há que considerar, mais uma vez, o que caracteriza, afinal de contas, a condição dependente/periférica contemporânea da América Latina. No grupo Metrópole, Estado e Capital, falamos de uma dependência rentista-neoextrativista. Autoras como Paulani sugerem uma depdendencia 4.0. E há, aqui, um relativamente longo etc. Mas como designar a nova forma histórica da dependência? Quais são seus traços fundamentais? Que processos centrais a definem?
ii) Além disso, como o resgate do debate clássico latino-americano pode, de fato, contribuir para a compreensão dessa nova forma histórica? Quais seriam os autores cujas abordagens contribuiriam mais para a compreensão do presente e do futuro da América Latina?
Por fim, cabe sublinhar que há, na proposta, uma tentativa de articular exploração, expropriação e extração. Talvez, desses três conceitos, o de extração seja o que produz mais dificuldade em adequar-se ao arsenal crítico já consolidado, como a teoria marxista do valor, que é um dos pilares do dependentismo. Em suma, isso posto levanta-se a seguinte questão:
i) Como, afinal de contas, as novas e velhas formas de extrativismo podem ser articuladas aos mecanismos clássicos de criação e distribuição do mais-valor?
Como sempre, essas são apenas questões com vistas à construção do permanente debate entre os integrantes do projeto.
Pelos temas e conceitos que mobiliza, a proposta está em total sintonia/afinidade com a concepção geral do projeto. Sem dúvida, esse é o caso quando se considera, a começar pela leitura do título, o conceito de neoextrativismo, uma vez que estamos sustentando que a nova forma histórica da dependência é eminentemente “rentista-neoextrativista”.
Como visto, partindo desse conceito, trata-se de abordar a unidade contraditória que se manifesta em cidades (ou municípios minerados) que se especializaram, ao longo do tempo, no extrativismo mineral. E como se expressa essa contradição? De um lado, há a promessa do desenvolvimento, com seus retornos em termos fiscais e de arrecadação. De outro, os riscos socioambientais, cada vez maiores. Riscos que, dentre outros aspectos, repercutem a fragilização da governança desses territórios e que, no limite, resultam em recorrentes crimes/desastres. Além de remeter, igualmente, ao esvaziamento das forças políticas e organizações da sociedade civil capazes de resistir a esse tipo de apropriação dos territórios.
E aqui são abertas as conexões possíveis com o projeto. Conexões que nos permitem levantar questões não só com base na apresentação da proposta, mas também tendo em vista o que foi acumulado ao longo das apresentações anteriores. Há muitas questões pertinentes, mas é necessário destacar, no mínimo, as seguintes:
i) Antes de tudo, é preciso responder, com o maior rigor possível, o que é, afinal de contas, o neoextrativismo. Isso porque, como é possível observar a partir da revisão do debate, existem diferentes definições desse conceito, nem sempre compatíveis umas com as outras;
ii) Ou seja, de que neoextrativismo estamos falando? Da importância renovada da especialização em atividades primário-exportadoras, que acentua a dependência e que deu ensejo ao debate sobre o “Consenso das Commodities”? Ou de uma concepção mais abrangente do extrativismo, que assinala que a lógica da extração (de valor, de recursos, de informação etc.) tem se manifestado nas mais diversas “operações do capital” (a exemplo da abordagem de Sandro Mezzadra)?
iii) Além disso, há muita afinidade entre a proposta e a abordagem da crise estrutural do capital, que foi mobilizada, por exemplo, na proposta de capítulo sobre metropolização, capitalismo de plataforma e trabalho (Paulo Roberto Monsores da Motta Jr.). Tudo isso permitindo explorar, a partir dos casos em questão, problemas mais amplos;
iv) Quer dizer, de que maneira os riscos socioambientais crescentes das operações de extrativismo mineral expressam o que se poderia chamar, com base nas elaborações de István Meszáros, de um metabolismo antissocial do capital?
v) As devastadas cidades mineradas são uma expressão desse metabolismo? Metabolismo marcado pela destrutibilidade generalizada?
Mas, enfim, essas são, mais uma vez, apenas algumas questões e indicações que podem servir de referência para um desenvolvimento subsequente. Desenvolvimento que conecte, cada vez mais, as propostas de capítulos com a concepção geral da coletânea.
A proposta apresentada é, antes de tudo, uma análise comparativa das experiências recentes de movimentos sociais nas periferias de São Paulo (movimentos da cultura hip-hop), Buenos Aires (movimentos de bairro em La Boca) e Bogotá (movimentos de afirmação de identidades e territórios afro-colombianos).
A análise pressupõe que o conceito clássico de movimento social, elaborado por autores e autoras tais como Alain Touraine, Maria Gloria Gohn e Charles Tilly, apesar de sua relevância, não é suficiente para compreender o que há de novo na dinâmica desses movimentos. Daí o recurso às elaborações alternativas de autores como Raul Zibechi e Oscar Jara, com sua proposta metodológica de “sistematização das experiências”.
Sem dúvida, tudo isso repercute, de maneira atualizada, evidentemente, parte muito importante da agenda clássica a respeito da urbanização dependente.
Considere-se, por exemplo, o sumário de uma das principais obras clássicas que nos servem de referência: a coletânea Urbanización y imperialismo en América Latina, organizada por Manuel Castells e publicada em 1973. A última seção dessa obra, intitulada Políticas urbanas, estava voltada, em grande medida, para a análise dos movimentos sociais urbanos que surgiam, naquele momento, na América Latina – sobretudo no Chile, onde, até então, esse não era um tema perigoso.
E muito se poderia dizer sobre o que foi feito, no âmbito da sociologia urbana crítica brasileira e latino-americana, dos anos 1960 aos 1980, em termos de investigação da dinâmica de organização e ação dos movimentos sociais urbanos. Poder-se-ia mencionar, por exemplo, os artigos reunidos em Contradições urbanas e movimentos sociais, de José Álvaro Moisés, publicado em 1977, de onde temos resgatado, nesse projeto, a referência ao “urbano antinação”, de Francisco de Oliveira. É possível mencionar, ainda, a tese de doutorado, de Moisés, intitulada Classes populares e protesto urbano, os trabalhos de Lúcio Kowarick (incluindo seu capítulo na coletânea de Castells, escrito com Fernando Henrique Cardoso, sobre São Paulo), dentre tantas outras referências. Como é o caso, ainda a título de ilustração, de A teoria dos movimentos sociais, de Maria da Gloria Gohn, publicada já nos anos 1990. Obra que dedica um capítulo à especificidade do “paradigma teórico latino-americano sobre os movimentos sociais”. Paradigma que, na opinião da autora, repercute a influência precursora da teoria da dependência.
Trata-se, enfim, de uma rica produção, que interagia, criativamente, com a agenda de investigação no campo dos estudos urbanos dos países centrais. Nesse caso, pode-se mencionar não só o espaço dedicado ao tema por Castells em A questão urbana, mas também a obra Movimentos sociales urbanos, de um de seus parceiros intelectuais, Jordi Borja (Castells, diga-se de passagem, também escreveu um livro com o mesmo título).
Em suma, estudar e compreender as experiências dos movimentos sociais urbanos é um esforço da maior importância, totalmente afinado com a concepção geral da coletânea.
Isso posto, com base na apresentação e na leitura do texto provisório, é possível sugerir as seguintes questões:
i) Em primeiro lugar, como, a partir da comparação dos casos apresentados, pode-se encontrar o que há de comum nessas novas experiências dos movimentos sociais urbanos latino-americanos?
ii) De que maneira essas experiências repercutem as novas condições da dependência?
iii) Há uma explícita referência, no texto e na apresentação, à ideia da colonialidade do poder, de Anibal Quijano. Essa ideia não é, de algum modo, tributária das reflexões anteriores do autor sobre a dependência? Como construir as conexões entre elas?
iv) Cabe questionar, igualmente, até que ponto as novas experiências dos movimentos sociais urbanos latino-americanos são capazes de reunir forças suficientes para desestabilizar o compromisso das classes dominantes internas, sobretudo da burguesia rentista, com os interesses e classes dominantes do conjunto do sistema de dependência?
v) Por fim, como essas novas experiências podem contribuir para a retomada de uma agenda mais abrangente e totalizante sobre a reforma urbana na América Latina? Ou esse é um objetivo que não faz mais sentido, tendo em vista a nova natureza e dinâmica de organização dos movimentos sociais urbanos?
Ao longo do debate, surgiram, do mesmo modo, questionamentos semelhantes, tais como:
i) De que maneira a absorção de práticas e racionalidades do capital pelos movimentos sociais urbanos – expressas, por exemplo, na forma do “empreendedorismo periférico” e do “empresariamento da pobreza” – constituem um limite para a ação transformadora desses movimentos?
ii) Quais são as escalas mais adequadas para investigar e articular as formas de ação e de organização dos movimentos sociais urbanos de tipo novo? Que decisões metodológicas tomar a esse respeito: cabe uma perspectiva transescalar?
Enfim, essas são apenas algumas indicações e questões que nos parecem pertinentes para um desenvolvimento subsequente, tendo em vista a concepção geral da coletânea, que sustenta a existência de uma correspondência entre a nova forma histórica da dependência e a experiência urbana contemporânea na América Latina.
A presente contribuição ao projeto de Coletânea sobre “A nova urbanização dependente”, intitulada “Desindustrialização nas metrópoles brasileiras”, está estruturada em torno dos seguintes objetivos:
i) Apresentar a análise da estrutura produtiva da indústria de transformação das principais regiões metropolitanas do país vis-à-vis a sua inserção nacional, de modo a termos melhor compreensão das características territoriais em que se manifesta esse fenômeno;
ii) Identificar quais são os ramos de atividade industrial mais determinantes para que ocorra o processo de desindustrialização metropolitano do país. Assim, procuramos pôr em tela, a partir da análise da desindustrialização, os processos de “interiorização” que caracterizam alguns ramos manufatureiros;
iii) Caracterizar as metrópoles em que mais se apresentam esse processo de desindustrialização e em quais ramos de atividade econômica.
Além da busca por uma definição precisa do conceito de desindustrialização (Redução da participação do Valor Adicionado na Indústria de Transformação no PIB; Redução da participação do emprego da indústria de transformação no emprego total) e do cuidadoso tratamento metodológico dos dados e indicadores que lhe serviram de referência, a proposta retoma e amplia algumas das principais questões que fazem parte de sua agenda recente de pesquisa e reflexão de seu autor.
A apresentação esteve em sintonia, por exemplo, com o texto Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras: mudanças e permanências em 40 anos, publicado na revista Cadernos Metrópole, no qual são explicitados os resultados da análise da estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles brasileiras, com ênfase na composição dessa estrutura e no comportamento das desigualdades renda.
Além da interessante questão a respeito da diferença entre desindustrialização, que seria tipicamente metropolitana no caso brasileiro, e “interiorização manufatureira”, o que mais chama a atenção, seja na proposta de capítulo apresentada, seja em textos anteriores do autor, é a maneira como ele caracteriza a estrutura social brasileira nas últimas décadas, tendo em vista o esgotamento do projeto de industrialização por substituição de importações, no contexto de mudanças significativas do capitalismo mundial a partir dos anos 1970. E é justamente aí que está o contato mais explícito com o projeto, tendo em vista os seguintes aspectos:
i) As políticas de abertura econômica e financeira;
ii) As políticas de estabilização monetária;
iii) A perda de competitividade da indústria nacional e os consequentes processos de reestruturação produtiva;
iv) A redução dos postos de trabalho, diante desses processos;
v) Chegando ao processo, mais recente, de desindustrialização;
Tudo isso à luz das características sistêmicas do capitalismo contemporâneo, tais como:
i) Os processos combinados de globalização, neoliberalização e financeirização;
ii) Os avanços nas tecnologias da informação e da comunicação;
iii) A constituição da centralidade das chamadas cidades globais;
iv) E, mais importante para o presente projeto:
a) O estabelecimento de uma burguesia eminentemente rentista; e
b) O processo de plataformização da economia e do trabalho.
Aqui está a oportunidade mais promissora de contato com a concepção geral do projeto, isto é, entender como processos e tendências como esses expressam as novas configurações das relações de dependência. Nesse sentido, a apresentação deixou pistas de como construir as conexões entre as transformações estruturais do capitalismo brasileiro e as mudanças qualitativas recentes dos espaços urbanos e metropolitanos. Esse foi o caso quando, no curso do debate, levantou-se, por hipótese, que a desindustrialização, tanto quanto a reprimarização, estariam diretamente conectadas com essas novas configurações da dependência e que essa mesma desindustrialização tem o potencial de impactar, decisivamente, as características socioeconômicas das principais metrópoles brasileiras.
Foi ainda nesse sentido que se levantou o questionamento, por exemplo, sobre a possibilidade de inserir a referência à reprimarização, articulada à desindustrialização, como uma forma de encontrar a contraparte das tendências identificadas na pesquisa empírica. Isto é, um questionamento sobre a maneira como a desindustrialização metropolitana e a “interiorização manufatureira” encontram correspondência no deslocamento espacial do poder e da riqueza para as cidades do extrativismo e do agronegócio e sobre quais seriam as consequências desse deslocamento para a organização da rede urbana brasileira.
Sem dúvida, essas e outras questões, que estão em sintonia com a concepção geral da publicação, são da maior importância para o desenvolvimento subsequente da proposta.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
A articulação destas duas questões pode ser elaborada a partir da consideração das necessidades de consumo coletivo imprescindíveis para a reprodução social em grandes cidades. Isso remete a questões a respeito dos custos de acesso a bens e serviços que não estão contemplados no preço da força de trabalho e tampouco atendidas plenamente pela provisão de bens públicos. Remete também ao que ocorreu com a inclusão na cesta de consumo dos trabalhadores, por mudanças históricas e morais, de parte dos bens de consumo duráveis que, durante muito tempo, eram considerados como bens suntuários, a exemplo dos eletrodomésticos e até mesmo dos automóveis. Mantendo-se constante o preço da força de trabalho, o consumo destes bens e serviços pelos trabalhadores equivale à apropriação pelo capital do fundo de consumo e do fundo de vida, via o aumento da jornada de trabalho para gerar mais renda, seja pela contração do consumo de outros bens mais necessários, seja ainda pelo endividamento das famílias. Vale a pena considerar a formulação do James Osório a este propósito:
"não há nada de estranho no fato de que, nas periferias urbanas pobres, multipliquem-se as antenas de televisão apesar de seus habitantes não contarem com alimentos básicos. O que deve surpreender não são as antenas, mas que, nesse grau de desenvolvimento social, existam pessoas que não possam contar com os bens materiais básicos, próprios da época em que vivem, e satisfazer ao mesmo tempo e de maneira suficiente o resto de suas necessidades (Osorio, 2009, p. 179)"
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Reportagem do site G1 (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/09/09/feridos-acidente-tombamento-onibus.ghtml) relata acidente grave envolvendo motoboy no Rio de Janeiro.
A notícia trata das consequências da superexploração da força de trabalho pelo capital que organiza a prestação de serviços via a algorimização das relações capital x trabalho. Mas que modalidades de superexploração da força de trabalho, tal como identificadas por Ruy Mauro Marini e James Osório como traço estrutural e estruturante do capitalismo dependente, estão em questão? As passagens abaixo ajudam a compreender do que se trata:
"A superexploração se pode dar mediante quatro formas ou modalidades: i) a remuneração da força de trabalho por baixo do seu valor – conversão do fundo de consumo do trabalhador em fundo de acumulação do capital; ii) o prolongamento da jornada implicando o desgaste prematuro da corporeidade físico-psíquica do trabalhador; iii) o aumento da intensidade do trabalho provocando as mesmas consequências, com a apropriação de anos futuros de vida e trabalho do trabalhador; e iv) o aumento do valor da força de trabalho sem ser acompanhado pelo aumento da remuneração. (p, 146)
"Na primeira e na última forma, o capital atenta contra o fundo de consumo do trabalhador. Nas duas outras, contra o fundo de vida. Isto remete à questão do valor da força de trabalho e às especificidades do capitalismo dependente, que levaram Marini a pensar na necessidade de uma nova categoria para dar conta de explicá-lo. A grande descoberta de Marx, escreveu Engels no prefácio ao Livro II de O capital, foi demonstrar que não é o trabalho que é vendido como mercadoria, mas a força de trabalho, e como e por que o trabalho constitui valor. Superando a teoria ricardiana, Marx deu a conhecer que, mesmo sendo a força de trabalho paga pelo seu valor, havia exploração (Engels, 1983). Por conseguinte, Marx não desconhecia a possibilidade do capital remunerar a força de trabalho abaixo do seu valor ou de consumi-la além das condições normais: “a utilização de minha força de trabalho e a espoliação dela são duas coisas totalmente diferentes” (Marx, 1983, p.189).
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
O filme Maquilópolis é impactante. Documenta o que são as fábricas conhecidas como Maquilas, instaladas no norte do México, bem na fronteira com os Estados Unidos. O filme conta a história de mulheres que vivem em Tijuana e como é a vida delas trabalhando na fábrica próxima. Carmen Duran, uma mãe solteira de três filhos, teve negado um pagamento de indenização que é legalmente exigido. O filme também foca em outra protagonista que discute os danos ambientais que as fábricas causaram à sua cidade e como as coisas mudaram desde que ela era criança, a exemplo de um rio, que não é mais seguro para brincar.
As más condições incluem cheirar plástico queimado quando saem das fábricas, ser assediadas pelos empregadores, não poder beber ou usar o banheiro (levando a problemas renais), não receber indenização quando a empresa decidiu sair e o despejo de produtos químicos, poluindo seus bairros (levando a complicações de saúde como dificuldade para respirar, erupções cutâneas e urticária), entre outros problemas. Ilustra de forma impactante a superexploração das trabalhadoras e trabalhadores que integram as cadeias globais de valor-trabalho. Tudo isso expressando concretamente O Novo Imperialismo do Século XXI, analisado por John Smith (2024) e Intan Swandi (2024). Ao mesmo tempo, documenta a dimensão urbana da superexploração como traço estrutural da integração da periferia ao capitalismo.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
1. O neoextrativismo é amplamente reconhecido como um padrão contemporâneo de acumulação de capital predominante na América Latina. Este modelo econômico se baseia na exploração intensiva dos recursos naturais, como petróleo, minérios e agricultura em larga escala, visando à exportação e à obtenção de lucros.
2. Surge como uma evolução do extrativismo clássico, que estava presente na região desde o período colonial. Tem como característica predominante a exploração de recursos em grande escala e pela integração dessas atividades aos mercados globais, além de maior ênfase na fragmentação das cadeias produtivas.
3. Tem como fundo histórico e intelectual a crítica aos projetos neodesenvolvimentistas e neoliberais que vêm comandando alternadamente a política econômica dos países latino-americanos desde a década de 1990.
4. O neoextrativismo, apoiado na exploração e exportação de hidrocarbonetos e seus derivados, minérios, biodiversidade e commodities agrícolas (soja, milho, dendê, cana-de-açúcar etc.) reforça uma postura de subordinação da economia dos países latino-americanos, além de atrofiar seu mercado interno (perda de diversidade e reprimarização da economia), escassear seus postos de trabalho e suas possibilidades reais de avanço enquanto nações independentes. E, o mais gritante atualmente, causar grande destruição socioambiental. Esse modelo é a maior prova da falência do moderno projeto de progresso e desenvolvimento.
Principais Autores e Obras:
1. Entre os principais autores que contribuíram para a análise e disseminação do conceito de neoextrativismo, destacam-se Eduardo Gudynas, Maristella Svampa, Raúl Zibechi e Enzo Faletto.
2. Eduardo Gudynas, pesquisador uruguaio, é um dos principais defensores da crítica ao neoextrativismo na América Latina. Em suas obras "Extrativismo? Economia, meio ambiente e sociedade" e "Diez tesis urgentes sobre el neoextractivismo", Gudynas aborda a relação desigual entre empresas multinacionais e Estado, os impactos socioambientais negativos decorrentes do modelo e a necessidade de repensar as políticas de desenvolvimento em busca de alternativas mais sustentáveis.
3. Maristella Svampa, socióloga argentina, também contribuiu para a compreensão do neoextrativismo na América Latina. Em seu livro "Extrativismo Neoliberal: Expansión y resistencias", Svampa investiga os efeitos socioambientais e as resistências surgidas diante do modelo extrativista, destacando a relação do neoextrativismo com a concentração de poder e riqueza, bem como com a deterioração do meio ambiente. Ver também o livro da autora publicado no Brasil As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução de Lígia Azevedo. São Paulo: Elefante, 2019.
4. Raúl Zibechi, jornalista e escritor uruguaio, traz uma perspectiva territorial para a análise do neoextrativismo em suas obras. Em "Territorios en Resistencia: Cartografía Política de las Periferias Urbanas Latinoamericanas", Zibechi analisa os movimentos de resistência e as lutas territoriais que surgem como resposta ao modelo de exploração dos recursos naturais.
5. Oliver T. Coomes e Anthony Hall geógrafos canadenses que também contribuíram para a análise do neoextrativismo na América Latina. Sua obra "Extractive Industries and Society" explora as implicações sociais, econômicas e ambientais da extração de recursos na região.
As Fases do Neoextrativismo
1. Svampa propõe a interessante divisão do neoextrativismo em três fases: a de positividade (2003-2008/2010), em que a aposta no extrativismo foi compensada por extensos gastos sociais e diminuição da pobreza; a de multiplicação dos megaprojetos (2008/2010-2013), de grandes planos de crescimento, construção de hidrelétricas e expansão da exploração, que também ampliou os conflitos; e a da exacerbação do neoextrativismo (2013-2015), em que os preços das commodities caíram e forçaram os países a intensificar a exploração.
2. Na terceira fase se agudizam as contradições sociopolíticas dos modelos de desenvolvimento fundados no neo-extrativismo. “Posteriormente, essa terceira fase dá sequência à queda dos governos progressistas, que não conseguem se manter no poder sem o devido cumprimento de suas propostas insustentáveis de desenvolvimento. Para o (quase) fim do progressismo na América Latina, merecem destaques elementos como o aumento da desigualdade (mesmo com a redução relativa da pobreza) e o pacto com o grande capital na forma do neoextrativismo. Ao mesmo tempo que os lucros gerados pelo Consenso das Commodities catapultaram as possibilidades de investimento social dos governos, essa lógica foi um obstáculo intransponível para qualquer transformação real que satisfizesse as demandas das classes mais pobres. “
3. “Em especial, para o caso brasileiro, é imprescindível uma análise sobre o acirramento recente dos conflitos socioambientais, com grave violência e mortes de integrantes dos povos Guilherme Pereira Cocato 9 indígenas, camponeses, movimentos sociais e ambientais. A partir dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, a repressão estatal tem se intensificado contra estes grupos, além de terem sido empurrados e expulsos de suas terras, a uma velocidade impressionante, pelo avanço das fronteiras extrativistas (agrícolas e minerais, principalmente) que não mais necessitam respeitar legislações ambientais de uma maneira óbvia. Ocorre o enfraquecimento da democracia, enquanto o projeto neoextrativista primário exportador anda de mãos dadas com uma política neoliberal de privatizações e subordinação econômica a empresas e instituições transnacionais.”
Os Consensos
A problemática da neoextrativismo é construída fundamentalmente a partir da perspectiva conceitual da agência, ou seja na existência de coalizões internas dos países da América Latina que escolhem estratégias de desenvolvimento – progressistas ou neoliberais – em articulação com as forças globais. Estas escolhas estariam fundadas em consensos que no plano interno e externo legitimam os modelos de desenvolvimento.
1. Consenso de Washington:
- Definição: É um conjunto de políticas econômicas prescritas por instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, nos anos 80 e 90.
- Características: Essas políticas incluíam a abertura comercial, a liberalização financeira, a redução do papel do Estado na economia e a disciplina fiscal. O objetivo era promover o crescimento econômico e a estabilidade, mas acabou sendo criticado por agravar desigualdades e exacerbar problemas estruturais em alguns países.
2. Consenso das Commodities:
- Definição: É um modelo econômico baseado na exploração e exportação de commodities (recursos naturais primários, como minerais, petróleo, grãos, etc.).
- Características: Esse modelo busca impulsionar a economia de um país exportando seus recursos primários para o mercado internacional. É comumente praticado por países em desenvolvimento com abundância de recursos naturais e geralmente leva a dependência dos mercados de commodities, volatilidade econômica e desigualdades sociais.
3. Consenso da Descarbonização:
- Definição: Seria o consenso em emergência. Trata-se de uma estratégia de desenvolvimento sustentável que visa a redução das emissões de carbono e a transição para uma economia de baixo carbono.
- Características: Esse modelo reconhece a necessidade de enfrentar as mudanças climáticas e busca promover a adoção de energias renováveis, eficiência energética, transporte sustentável e outras medidas para reduzir a dependência de combustíveis fósseis. O objetivo é conciliar desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental.
No entanto, há diferenças significativas entre os conceitos. O Consenso das Commodities enfatiza a exploração de recursos naturais, o Consenso de Washington foca em políticas econômicas em geral, enquanto o Consenso da Descarbonização se concentra na transição para uma economia sustentável e de baixo carbono. Cada um está inserido em diferentes contextos históricos e busca atender a diferentes necessidades e desafios socioeconômicos.
Neoextrativismo e Giro Ecoterritorial
1. “Em uma passagem de intensa articulação com o pensamento geográfico, aparece na obra o papel dos territórios e da territorialidade nas lutas de resistência ao neoextrativismo e na criação de laços ambientais e sociais que firmem as bases de uma nova noção de humanidade. Em diálogo com Milton Santos, Bernardo Mançano Fernandes, Carlos Walter Porto-Gonçalves e Rogério Haesbaert, a autora resgata significados diversos de território, para além do discurso político que o considera somente como palco de extração de recursos ou “vazio demográfico”. “
2. “Os territórios são locais de construção material e simbólica, de relações de poder e de íntima conexão com a vida para os mais diferentes povos e espécies que os habitam.
3. A valorização de diferentes formas de territorialidade passa pelo chamado giro ecoterritorial, que pode englobar distintas correntes teórico-ideológicas de defesa da terra e posicionamento nas lutas socioambientais. Desde a matriz indigenista e camponesa, até movimentos autonomistas, classistas, ambientalistas e (eco)feministas. Essa união de lutas, que, resumidamente se posicionam pela justiça ambiental, demonstra uma alternativa crescente para a resistência ativa ao neoextrativismo na América Latina, além de se tornar uma fonte de inspiração no enfrentamento ao avanço do autoritarismo capitalista e da degradação socioambiental que se intensifica.”
Neoextrativismo e o Conceito de Bem-Viver
1. O conceito de "bem viver" está enraizado nas tradições indígenas da América Latina e enfatiza uma abordagem holística para o desenvolvimento humano em harmonia com a natureza. O bem viver coloca o ser humano como parte de um ecossistema mais amplo e promove a ideia de que todas as formas de vida têm direito ao respeito e a viver em equilíbrio.
2. Na sociologia e geografia latino-americana, os estudiosos argumentam que o neoextrativismo está em conflito com os princípios do bem viver. Eles apontam que o neoextrativismo promove uma mentalidade de exploração desenfreada dos recursos naturais, ignorando os conhecimentos e práticas sustentáveis das comunidades indígenas.
3. Essas críticas levaram a um crescente reconhecimento da importância de incorporar os princípios do bem viver em alternativas de desenvolvimento na América Latina. Isso implica em abordagens mais sustentáveis, onde as comunidades locais são protagonistas e as necessidades das gerações futuras são levadas em consideração, integrando uma perspectiva mais participativa e cuidadosa com o meio ambiente. Essa abordagem busca conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação dos recursos naturais e a promoção do bem-estar das comunidades locais.
4. Existem vários autores que abordam o conceito de "bem viver" como crítica ao capitalismo. Entre eles são mencionados:
5. Eduardo Gudynas: Economista e pesquisador uruguaio, Gudynas escreveu extensivamente sobre o conceito de "bem viver" ou "buen vivir" como alternativa ao desenvolvimento baseado no crescimento econômico. Ele argumenta que o bem viver valoriza o equilíbrio entre as dimensões econômicas, sociais, culturais e ambientais.
6. Raúl Zibechi: Sociólogo e escritor uruguaio, Zibechi defende o conceito de "autonomia" como uma maneira de resistir ao capitalismo. Em suas obras, ele explora as experiências e as lutas dos povos indígenas e das comunidades rurais na América Latina, que procuram construir alternativas ao sistema dominante.
7. Silvia Rivera Cusicanqui: Socióloga e ativista boliviana, Cusicanqui escreve sobre a luta dos povos indígenas na Bolívia pelo "suma qamaña" (viver bem) em contraposição ao modelo de desenvolvimento capitalista. Ela analisa a relação entre colonialismo, opressão e a busca de uma vida digna.
8. Arturo Escobar: Antropólogo colombiano, Escobar é conhecido por suas contribuições para a ecologia política e os estudos pós-desenvolvimento. Em seu livro "Bienestar: transformando o desenvolvimento em nosso vocabulário" (2017), ele explora as perspectivas de alternativas ao desenvolvimento dominante.
Extração e Extrativismo
Creio haver diferenças na problematização teórica entre os conceitos de operation extractive (ou simplesmente extração) com o qual trabalha Mezadra, Nielson e Verônica Gago e o de neoextrativismo formulado sobretudo por Eduardo Gudynas e Maristella Svampa, entre outros autores de um longa lista,
1. A problemática teórica proposta Sandro Mezzadra e Verônica Gago está relacionada à compreensão das mutações socioprodutivas surgidas com o processos de neoliberalização e financiarização do capitalismo.
2. Enquanto que o conceito de neoextrativismo está fundado na busca de formular uma crítica às estratégias de políticas econômicas progressistas ( e, claro, também neoliberais) fundadas no uso da exploração massiva de recursos naturais adotadas por governos latino-americanos atendendo à demanda mundial (especialmente da China) como instrumento de desenvolvimento em um momento de dominação financeira das grandes potências veda aos países da periferia do acesso aos recursos do desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento do debate crítico em torno da extração massiva de recursos naturais e de suas consequências em termos degradação ambiental, deslocamento de populações no campo e as lutas de contestação e resistência tornaram a problemática do neoextrativismo um quadro teórico pelo qual vem sendo problematizada a emergência de novos sujeitos (povos da florestas, povos originários, novos temas (indianismo) , novos objetivos (territórios e culturas) novos horizontes ideológicos de lutas anti capital de contestação do capitalismo (difuso horizonte emancipatório) , nova modalidades de ação (lutas desse baixo).
3. Há afinidades e diferenças com o conceito de operação de extração. Pois, no texto é enunciado o objetivo deste conceito como: “to expand the notions of extraction and extractivism connects to a long history of struggles and theoretical elaborations that have expanded the notion of exploitation itself to include topics such as the hegemony of rent, the persistence of primitive accumulation, and accumulation by dispossession, all against the background of contemporary developments of capitalism, social struggles, and “progressive” governments in Latin America. » A Critique of the Extractive Operations of Capital: Toward an Expanded Concept of Extractivism. « p. 2017
4. Entretanto há diferenças importantes de enfoque teórico.
5. « While the critique of neo-extractivism is very effective at highlighting continuities in the development model, and therefore at compelling us to open up a space for searching for alternatives, its immediate political perspective is problematic. On one hand, because it tends to leave out the complex political economies of the peripheral suburban territories, focusing on the literal sites of extractive activities, it therefore ends up disconnecting both spaces and both economies. On the other hand, by focusing on state subsidies as the only connector between the two, the critique of neo-extractivism contributes to assigning a merely passive position to the poor urban populations, and this functions in parallel with a tendency to victimize
the affected rural populations. In this mode of analysis, where concepts such as dispossession become central, the category of exploitation itself is obscured, and the production of value by those populations, which finance itself already calculates as nonmarginal, is ignored. In this regard, we must add that our project of expanding the concept of extraction is methodologically and politically connected with a long history of struggles and theoretical elaborations that have broadened the concept of exploitation itself. (p. 577)
6. A motivação central dos autores é pensar as transformações do capitalismo ocorridas com a emergência, difusão e dominação do neoliberalismo em associação com a globalização, como fica claro nesta passagem do texto.
7. “It is based on these premises, which both methodologically and politically porganize and orient us, that we address key issues at the center of the critical discussion about the—still ongoing—transition of capitalism: in particular, unraveling the matter of a radical transformation in the logic of the regime of accumulation beyond the industrial paradigm and positing the question of the global organization of this new phase. « p. 575
8. Com base nesta preocupação e algumas considerações históricas, os autores propõem a ampliação do conceito de extrativismo.
9. We are convinced that expanding the concept of extractivism can help us more systematically define the fundamental features of the logic of contemporary capitalism’s functioning, beyond the recurrent negative definition (what it is no longer), as well as its unfinished transition (an infinite post).
10. As razões desta proposição são as seguintes;
11. First, extraction cannot be reduced to operations linked to raw materials turned commodities at the global level. On one hand, the dynamics of the digital and the financial play a fundamental role even in the extraction of raw materials, organizing the logistics of their circulation and determining price fluctuations on international stock exchanges. This complicates the image of Latin America and its position in the international division of labor. On the other hand, extraction cannot be confined to inert materials. Extraction also targets the labor and life of populations, aiming at extracting value from them in such a way that it expands and complements the notion of exploitation itself once it is defined—to quote David Ruccio (2011, 337)—“in terms of how the surplus is performed and appropriated.” If extraction is a constitutive feature of the current operations of capital, it is necessary to pose the question of how capital itself relates with what in traditional terms could be called labor but that—as seen in the examples of the digital and the financial—increasingly takes the form of a complex and highly heterogeneous social cooperation.
12. From this point of view, the concept of extraction supposes a certain exteriority of capital to living labor, to social cooperation. The extractive relation presents itself rather differently from the relationship of exploitation formed in a factory based on the stipulation of a contract of wage labor. While the contract introduces the worker into a space that is directly organized by capital, in cases ranging from popular finance (through credit for consumption) to Facebook (through a company that extracts value from the interaction of data), we are faced with capitalist actors who do not directly organize the social cooperation that they exploit. In this respect, we are talking about a certain exteriority that could be effectively described through the Marxian notion of “formal subsumption of labor under capital,” with all the temporal complexities characterizing it (see Harootunian 2015). Yet it is necessary to immediately complicate and question the idea of exteriority in at least two ways. First, although the capitalist actors of which we speak do not directly organize subjects’ cooperation, this cooperation is far from free: in the case of Facebook, it is permeated by algorithmic operations; in the case of popular finance, it develops under the sign of debt. Second, other
capitalist actors, including the most classical industrialists, operate within this cooperation. However, it is precisely this complex coordination between outside and inside that opens up a battlefield in the sense of a dispute over appropriations, encodings, and possibilities for liberation.
13. Third, the extractive cannot be unilaterally associated with the rural or nonurban landscape. Following the previous points—since the extractive is not only tied to raw materials and since we are not faced with complete exteriority—it is necessary to highlight the circuits in which extractive operations take shape and speed, undoing the city-country binary. Until now, that link has been made by critiquing populism as a political moment attached to an economic model of an extractive type. This division depoliticizes other extractive forms in which the extraction of value from an increasingly indebted but never completely subdued popular vitality is activated in precise ways. This city, which appears formatted by the urban
dynamism of the peripheries, is also different from the gentrified city that at other times is linked to extractive rent when speaking of “urban extractivism” (Massuh 2014, 55–60). In this regard, extractive logics intersect with the government of the poor, producing violence and creating hybrid forms with the same logics and rhetoric of inclusion as proposed by the discourse of citizenship. This perspective leads to a reading of new social conflicts that allows for mapping the intertwining of agribusiness, finance, illegal economies (from drugs to contraband), and state subsidies, according to logics that are both complementary and in competition. These logics also allow us to escape from the victimizing imagery that tends to be emphasized by the narrative of dispossession.
A Extração como um Protótipo de Operação do Capital: finanças + logística
1- Esta expansão não propõe reduzir o capitalismo contemporâneo ao extrativismo ou o financeiro (reinterpretado através da categoria de extração), mas sim visa destacar a importância de um conjunto de operações extrativas dentro do capitalismo entendido como um campo heterogêneo de articulações. Esse campo heterogêneo implica compreender a expansão que propusemos não de forma puramente abstrata termos, mas sim enraizando a dinâmica do capitalismo global em contextos cada vez mais diferenciados de coordenadas espaciais e temporais. As operações que chamamos de extrativas articulam-se, por um lado, com outras operações de capital, que são desenvolvido sob uma lógica diferente da lógica extrativista; entretanto, no por outro lado, devem ser articulados com um complexo entrelaçamento de atividades e trabalho, de formas de vida e de cooperação.
2- “É importante ressaltar que a combinação destas operações extrativas configurar um padrão de valorização muito diferente daquele que era hegemônico sob condições de capitalismo industrial. Este novo padrão de valorização reproduz uma espécie de protótipo que se multiplica em escalas distintas e sob diversas modalidades e que, como tal, desempenha um papel proeminente na organização do mundo quadro do desenvolvimento capitalista atual. A importância estratégica do momento de articulação exige a versatilidade dos aparatos de financeirização, que funcionam como formas de tradução de realidades cada vez mais heterogêneas em uma tentativa de sincronizá-los com a valorização, ao mesmo tempo que propõe uma relação nova e peculiar com o social em geral sob distintos modos de exploração do vital. A novidade é que o protótipo financeiro permite um relacionamento direto entre o capital e a extração de valor, produzindo a imagem de um fim da mediação e até mesmo da produção de dinheiro através de dinheiro que não necessidade de passar por uma relação social com o outro do capital: isto é, usar um dos As categorias de Marx, com “trabalho vivo”.”
Operação de Extração: a renda é o extraído?
1. Our insistence on the importance of capital’s extractive operations is in dialogue with other critical perspectives—for example, the framework of theories of socalled cognitive capitalism—proposing that rent (one of the elements of what Marx defined as the “trinity formula” of capital) becomes the central element in the apparatuses of both valorization and accumulation, redefining the very meaning of “profit” (cf., Míguez 2013; Vercellone 2013). It must be remembered that Marx (1993, 456) himself, discussing ground rent, argued that capital in this case develops a power to “appropriate” and take advantage of “values created without its assistance.” This definition of rent as an apparatus of capture allows us to raise the question in another way about the nature of what is exploited by capital’s extractive operations. “Living labor,” in the case of popular finance, appears as an irreducible set of heterogeneous practices of cooperation (where informality appears to be particularly conducive for social vitality when the traditional waged form is no longer hegemonic), while literally extractive operations mobilize a set of knowledges and technologies that redefine the narrowly “natural” aspect of what are called natural resources.
Extrativismo Urbano
Síntese do Conceito de Extrativismo Urbano:
O extrativismo urbano é um conceito em constante debate e evolução que, em sua essência, caracteriza a lógica de apropriação privada dos recursos e valores presentes na cidade, sem a devida contrapartida social ou ambiental. Essa apropriação pode se manifestar de diversas formas, como:
a) Financeirização da terra e do solo urbano: Especulação imobiliária, gentrificação, expulsão de comunidades tradicionais, etc.
b) Exploração da força de trabalho: Precarização do trabalho, uberização, longas jornadas de trabalho, etc.
c) Apropriação do patrimônio cultural e histórico: Transformação de espaços públicos em commodities, privatização de bens culturais, etc.
d) Exploração dos recursos naturais urbanos: Mineração urbana, privatização da água, etc.
Características principais:
a) Priorização do lucro privado sobre o bem-estar social: A lógica do mercado se sobrepõe às necessidades da população.
b) Desigualdade espacial e social: Aumento da concentração de renda e da segregação urbana.
c) Degradação ambiental: Exploração predatória dos recursos naturais urbanos.
d) Enfraquecimento da democracia e da participação social: Diminuição do poder de decisão da população sobre os rumos da cidade.
Principais Autores e obras: (?)
a) Neil Smith: Autor do livro "A Nova Fronteira Urbana: gentrificação e a revanchismo da classe média global", Smith é um dos principais teóricos do extrativismo urbano. Ele argumenta que a globalização e a financeirização da economia levaram a uma nova fase de exploração urbana, caracterizada pela apropriação privada dos recursos das cidades.
b) Saskia Sassen: Em seu livro "A Cidade Global", Sassen analisa como as cidades se tornaram centros de comando da economia global, o que gera novos processos de exclusão e desigualdade.
c) Henri Lefebvre: Lefebvre, em "A Produção do Espaço", argumenta que o espaço urbano é um produto social e político, e que a luta pelo controle do espaço é central para a luta por uma sociedade mais justa.
d) Raquel Rolnik: Autora de "A Guerra dos Lugares: a colonização da terra e a reprodução da desigualdade", Rolnik analisa os processos de gentrificação e expulsão de comunidades tradicionais em cidades brasileiras.
Outros autores importantes:
a) Eduardo Marques: "A Questão Urbana no Brasil". (?)
b) Ana Fani Alessandri Carlos: "Cidades Rebeldes: movimentos sociais e o direito à cidade"
c) Teresa Caldeira: "Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo"
Considerações:
O conceito de extrativismo urbano é uma ferramenta útil para compreender as contradições e desafios das cidades contemporâneas. Ao analisar as diferentes formas de apropriação privada da cidade, podemos identificar os mecanismos que geram desigualdade, exclusão e degradação ambiental. A partir dessa análise, é possível formular alternativas para a construção de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas.
Extrativismo Urbano na Literatura Latinoamericana
Síntese:
O extrativismo urbano emerge na literatura sobre a crise urbana latino-americana como um conceito crucial para entender as dinâmicas que aprofundam as desigualdades e a precarização nas cidades da região. O conceito se baseia na ideia de que a cidade se torna um terreno fértil para a extração de valor por meio de diferentes mecanismos, como:
a) Financeirização da terra e do solo urbano: Especulação imobiliária, gentrificação e expulsão de comunidades tradicionais.
b) Exploração da força de trabalho: Precarização do trabalho, informalidade e longas jornadas de trabalho.
c) Apropriação do patrimônio cultural e histórico: Transformação de espaços públicos em commodities e privatização de bens culturais.
d) Exploração dos recursos naturais urbanos: Mineração urbana, privatização da água e outros recursos.
Características do Extrativismo Urbano na América Latina:
a) Histórico de colonialismo e dependência: A herança colonial e a inserção dependente na economia global configuram um contexto histórico que facilita a exploração dos recursos urbanos na América Latina.
b) Neoliberalismo e políticas públicas: As políticas neoliberais implementadas na região desde a década de 1980 fortaleceram a lógica do mercado na gestão urbana, priorizando a acumulação de capital privado em detrimento do bem-estar social.
c) Fragilidade institucional e corrupção: A fragilidade das instituições e a presença da corrupção fragilizam os mecanismos de controle e fiscalização, facilitando a apropriação privada dos recursos urbanos.
d) Segregação espacial e desigualdade social: O extrativismo urbano contribui para a intensificação da segregação espacial e da desigualdade social nas cidades, concentrando renda e poder nas mãos de uma minoria e marginalizando grande parte da população.
e) Degradação ambiental: A exploração predatória dos recursos naturais urbanos gera impactos socioambientais negativos, como a poluição, a perda de biodiversidade e a intensificação dos riscos climáticos.
Autores e Obras Relevantes: (?)
a) Neil Smith: "A Nova Fronteira Urbana" e "A Revanche da Classe Média Global".
b) Saskia Sassen: "A Cidade Global".
c) Henri Lefebvre: "A Produção do Espaço".
d) Raquel Rolnik: "A Guerra dos Lugares" e "A Cidade e a Lei".
e) Eduardo Marques: "A Questão Urbana no Brasil".
f) Ana Fani Alessandri Carlos: "Cidades Rebeldes".
g) Teresa Caldeira: "Cidade de Muros".
h) Alejandro Toledo: "El Perú en la senda del desarrollo".
a) Jord Borja: "La transformación de América Latina".
b) Fernando Calderón: "Ciudades latinoamericanas: ¿hacia un nuevo modelo de desarrollo?".
Conclusão
O debate sobre o extrativismo urbano na América Latina é rico e complexo, com diferentes perspectivas e nuances. É importante reconhecer que o conceito não oferece uma explicação única e totalizante para a crise urbana na região, mas sim uma ferramenta analítica útil para compreender as diversas formas de exploração e apropriação privada da cidade. A partir dessa análise, é possível formular alternativas para a construção de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas na América Latina.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
A forma histórica da dependência na América Latina e no Brasil recoloca o traço estruturante dos vínculos do continente no capitalismo global, ponto de partida da Teoria Marxista da Dependência. Com efeito, já na obra seminal Dialética da Dependência, Ruy Mauro Marini chamava a atenção para a necessidade de entender que os nossos vínculos se estabeleciam com a fase da circulação do valor, seja como fornecedores de matéria-prima ou como consumidores de mercadorias. A industrialização por substituição de importação foi um período em que foi internalizado parte da produção do valor, mas atualmente estamos inseridos novamente na fase da circulação do capital-dinheiro (plataforma financeira) e do capital-mercadoria (plataforma agrária-mineral).
Por esta razão, ganha enorme importância a problemática da logística, entendo esta questão para além da compreensão do seu papel econômico (custos) e técnico (infraestrutura). As plataformas digitais e logísticas expressam, com efeito, uma nova racionalidade do capitalismo contemporâneo, caracterizada pela busca do controle e aceleração da circulação do valor pelo encurtamento espaço-temporal da acumulação. Os países e as regiões inseridos no capitalismo na fase da circulação experimentam, portanto, pressões de reestruturação territorial para adaptarem suas infraestruturas e paisagens a esta demanda do capital e suas cadeias logísticas.
Esta questão tem sido denominada como “giro logístico” do capitalismo, para dar conta da erosão das clássicas fronteiras espaço-temporais entre a produção do valor e a sua realização. O “giro logístico” do capitalismo tem pressionado os territórios em várias escalas para que se ajustem como nós das cadeias de valor. A lógica do capital e da intervenção do Estado atuam nesta reestruturação.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Classicamente, o ciclo do capital na economia dependente tem particularidades que se expressam na primeira fase da circulação, quando a origem do capital para iniciar o ciclo depende de três fontes. A primeira é o capital privado interno, a partir do investimento privado resultante de parte da mais-valia gerada internamente e redirecionada para o processo de produção. A segunda fonte é o investimento público, por meio do Estado, o qual se apropria de parte da mais-valia gerada via tributação sobre parcela do capital, bem como de parte dos salários por meio da tributação sobre os trabalhadores, além do lucro das estatais que também disponibiliza recursos para o investimento público. A terceira fonte da origem do dinheiro mencionada por Marini remete ao capital estrangeiro, tanto por meio do investimento direto como indireto sob a forma de empréstimos e financiamentos. Nas fases anteriores a da industrialização por substituição de importação, esta última fonte era predominante. Esta situação retorna na fase contemporânea pela presença das grandes empresas multinacionais e dos fundos financeiros globais na formação do capital de circulação que financia o atual padrão de reprodução do capital. O capital tende a recuperar o valor exportado para o exterior na produção de mercadorias através da extração de mais-valor, isto é, pela exploração da força de trabalho.
O ciclo do capital na economia dependente também tem duas fontes privilegiadas de riqueza: a exploração da força de trabalho, através retirada da mais-valia e a exploração dos recursos naturais. Essas duas fontes contribuem fundamentalmente para o acúmulo do capital, a primeira gerando valor, pois só o trabalho tem essa capacidade.
Atualizando esta formulação, poderíamos dizer que uma quarta fonte do capital na economia dependente advém das várias formas do investimento do capital fictício, correspondendo aos eixos da "plataforma financeira" e "plataforma urbana" que compõem o atual padrão de reprodução do capital. Por outro lado, talvez possamos acrescentar uma quinta fonte de lucro, decorrente da extração de rendas na forma de juros, royalties, patentes e renda da terra.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
*Observações com base no texto: "Audácia, mais audácia", do economista egípcio Samir Amin.
O conceito de "renda imperialista", formulado por Samir Amin, refere-se à transferência de recursos e riquezas dos países dependentes ou periféricos para os países centrais, como parte do sistema econômico global dominado pelo imperialismo. Segundo Amin, essa renda é uma forma de exploração econômica que beneficia as potências imperialistas às custas dos países menos desenvolvidos.
Amin argumenta que a renda imperialista é gerada através de mecanismos como o controle dos preços das commodities, a imposição de relações desiguais de troca, a drenagem de recursos naturais e o endividamento dos países periféricos. Esses mecanismos permitem a extração de excedentes econômicos das economias dependentes em benefício das economias dominantes.
Essa abordagem destaca a relação de exploração e desigualdade inerente ao sistema econômico global, onde os países imperiais acumulam riqueza e recursos à custa do subdesenvolvimento e empobrecimento dos países periféricos.
A obra de Samir Amin articula os conceitos de "renda imperialista" e "monopólio generalizado e globalizado" ao analisar a dinâmica das relações econômicas internacionais. Segundo o autor, o monopólio generalizado e globalizado se manifesta como a concentração de poder econômico, político e tecnológico nas mãos de poucas corporações e países centrais, que controlam os fluxos de comércio, finanças e tecnologia em escala mundial.
Nesse contexto, Amin argumenta que a renda imperialista é uma das manifestações desse monopólio, resultante da exploração e apropriação de recursos e riquezas dos países periféricos e dependentes pelos países e corporações dominantes. A concentração de poder econômico e o controle sobre os mecanismos de trocas comerciais e financeiras permitem a transferência de excedentes econômicos dos países periféricos para os países centrais, alimentando a acumulação de riqueza e o fortalecimento do monopólio global.
Essa articulação entre os conceitos de renda imperialista e monopólio generalizado e globalizado evidencia a natureza desigual e exploratória das relações econômicas internacionais, destacando o papel dominante das potências imperialistas na manutenção e reprodução do sistema global de desigualdades.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Segundo Pochman e Silva (2023, p. 132), 4/5 das famílias no Brasil estão endividadas e ao menos 1/5 de sua renda mensal é absorvida em transferências aos bancos e instituições financeiras. Isto é, a "financeirização da reprodução social" tem sido a alternativa ao desassalariamento e à precariedade do trabalho, o que indica um processo descrito da seguinte maneira:
“Esse processo perverso revela o quanto se encontra avançada e disseminada a financeirização. Porque, ao incorporar as massas empobrecidas, permite reproduzir a centralidade sistêmica da dinâmica capitalista no Brasil. Em vez do passado de expansão produtiva com o alargamento do mercado interno sustentado pelo projeto de industrialização nacional e pela expansão do assalariamento formal, a financeirização tem sido alargada em meio ao empobrecimento social e às ocupações precárias e informais, compatíveis com o modelo econômico primário-exportador (Pochmann; Silva, 2024: 132-133).
Ou seja estamos diante de outra faceta do movimento de financeirização: a "financeirização da reprodução social", que se expressa em outros exemplos, tais como a legislação recente que permite a penhora do imóvel quando usado como garantia de empréstimos.
Referências
POCHMANN, Marcio; SILVA, Luciana Caetano da. O Brasil no século XXI: desmodernização e desencadeamento intersetorial. Campinas: Editora da Unicamp, 2023.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Conforme reportagem do Brazil Journal (https://braziljournal.com/na-alocacao-da-sabesp-um-presente-para-poucos/), foi concluída, em 17/07/2024, a oferta de ações da Sabesp, que, na prática, privatiza a empresa.
Trata-se de mais um capítulo da espoliação dos bens públicos promovida pelos financistas. Tão fraudulento que escandalizou até a Faria Lima. Em um dia, 1,9 bilhão de reais mudou de mãos e foi parar nas bolsos do seleto grupo de financistas que puderam entra na pré-venda das ações da Sabesp a R$ 67 (ações que atingiram o valor de R$ 82 assim que a venda da empresa foi concretizada).
Os novos capítulos envolveram, certamente, anúncios de um plano de reengenharia, que valorizará as ações no Bolsa e promoverá uma nova rodada de espoliação e assim por diante. Tudo isso seguindo a lógica do padrão rentista de acumulação que caracteriza o capitalismo brasileiro atual, sob a dominância do capital fictício. Certamente, teremos também uma nova rodada de apagão, como aconteceu com a energia, atingindo, agora, sobretudo as classes populares, porque a rede e o serviço de saneamento já contêm desigualdades intrínsecas.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Assumimos neste projeto que atual fase da dependência financeira-tecnológica-neoliberal decorre das relações de poder estabelecidas pelos países que constituem o núcleo do sistema mundo-capitalista – notadamente os Estados Unidos - sobre os países periféricos, das quais decorrem práticas de extração e de transferência de valor na forma de várias modalidades de renda. A plena compreensão da dimensão tecnológica destas relações implica em entender como no capitalismo contemporâneo o uso da ciência tornou-se crucial na produção e apropriação da mais-valia.
Na economia política brasileira encontramos duas teses convergentes sobre o papel do conhecimento na acumulação de riqueza na atuas fase do capitalismo, mas ao mesmo tempo conceitualmente opostas quanto a natureza do rendimento obtido por aqueles de exercem o poder de propriedade sobre este importante recurso. De um lado, Eleuterio Prado (2005a; 2005b; 2016; 2017) argumenta que ocorreram mudanças qualitativas na base material do capital como desdobramento da crise do fordismo que transformaram o conhecimento como mercadoria que não tem valor na própria fonte de criação do valor, fato materializado na importância produtiva crescente e central do trabalho intelectual coagulador do um capital fixo imaterial. No que diz respeito ao tipo de renda, o autor propõe uma analogia entre a propriedade do conhecimento e o capital de empréstimo, concluindo que a renda do conhecimento é análoga ao juro. Por outro lado, Teixeira e Rotta (2012) propõem a tese de que a propriedade do conhecimento possui semelhanças com a propriedade fundiária, argumentando a renda gerada pelo não é resultado exclusivo da propriedade privada, mas sim da capacidade intrínseca do conhecimento em gerar riqueza. Assim como a renda da terra é obtida sem que o proprietário tenha feito um esforço direto para produzi-la, a renda do conhecimento ocorre sem que os detentores necessariamente se envolvam ativamente em sua produção. Essa abordagem enfatiza a importância do conhecimento como uma fonte de valor inerente, que pode gerar riqueza independentemente da propriedade privada.
Assumindo esta última hipótese, Oliveira e Filgueiras (2020) propõem interessante reflexão sobre como sobre a reconfiguração do imperialismo e da dependência decorrente do poder dos grandes capitais e dos Estados do núcleo central do sistema interestatal em impulsionar o monopólio da produção do conhecimento e o seu uso como novo eixo de dominação e extração de mais valia da periferia. “Em suma, a análise da natureza da mercadoria-conhecimento é uma condição absolutamente crucial para a compreensão do processo de mercantilização do conhecimento no capitalismo contemporâneo, entretanto este é apenas o primeiro passo.
Com base nas substanciais contribuições de Prado e de Teixeira e Rotta e, particularmente, adotando como ponto de partida a tese da ausência de valor das mercadorias-conhecimento defendida por estes últimos, a crítica da economia política contemporânea requer que se faça um desdobramento teórico no qual ganhe maior destaque as categorias do imperialismo e da dependência, incorporando-as à análise de processos históricos relacionados, por exemplo, ao surgimento, consolidação e evolução do regime internacional de propriedade intelectual, bem como à atuação do Estado e das frações burguesas do bloco do poder dos países ricos que monopolizam o conhecimento estratégico. Isso tudo evidencia uma ampla e promissora agenda de pesquisa no campo da Economia Política do Conhecimento e da Informação a partir do arcabouço marxista.” (Oliveira e Filgueiras. 2020: 380)
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Oliveira, Elizabeth & Filgueiras, Luiz. (2020). A economia política do conhecimento. Economia e Sociedade. 29. 359-383. 10.1590/1982-3533.2020v29n2art01. disponível em https://www.scielo.br/j/ecos/a/jKkhcPSzSPTHyPpLBzHvCbd/abstract/?lang=pt
PRADO, Eleutério. Desmedida do valor. São Paulo: Xamã. 2005.
PRADO, Eleutério. Uma nova fase do capitalismo ou um novo modo de produção capitalista? Revista Outubro, n. 13, p. 47-57, 2005b.
PRADO, Eleutério. Do que destrói o nosso futuro humano possível. Disponível em: https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2016/06/do-que-destroi-o-nosso-futurohumano-possc3advel.pdf.
PRADO, Eleutério. Subsunção financeira do trabalho ao capital. Disponível em: https://eleuterioprado.blog/2018/04/17/.
TEIXEIRA, Rodrigo A.; ROTTA, Tomas N. Valueless knowledge-commodities and financialization: productive and financial dimensions of capital autonomization. Review of Radical Political Economics, v. 44, n. 1, p. 448-467, 2012.
Luiz César de Queiroz Ribeiro
O sociólogo Alain Touraine argumentava que as sociedades dependentes perderam sua historicidade, ou seja, a capacidade de dar forma e direção ao seu próprio desenvolvimento. Ele argumentava que, em sociedades dependentes, a dinâmica histórica é frequentemente moldada por forças externas, como poderes coloniais ou países dominantes economicamente.
Touraine afirmava ainda que a perda da historicidade nessas sociedades ocorre devido à influência e imposição de modelos de desenvolvimento estrangeiros, que muitas vezes não levam em consideração as especificidades culturais e históricas locais. Esses modelos são impostos por meio de instituições internacionais, como organizações financeiras ou empresas multinacionais, que exercem um controle significativo sobre as economias e políticas das sociedades dependentes.
Consequentemente, a história dessas sociedades se torna subordinada aos interesses externos, limitando sua capacidade de determinar seu próprio caminho de desenvolvimento. Touraine argumentava também que a perda da historicidade resulta em uma alienação cultural e social, na qual as sociedades dependentes são impedidas de definir seus próprios valores, identidades e projetos coletivos.
Touraine enfatizava a importância de retomar a historicidade nessas sociedades para possibilitar a autodeterminação, a participação ativa das pessoas na construção de seu futuro e a preservação de seus próprios valores culturais. Ele enfatiza a necessidade de reconstruir projetos sociais e políticos que sejam autênticos e respondam às necessidades e aspirações das sociedades dependentes, promovendo assim a autonomia e a dignidade coletiva.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
ALGUNS ASPECTOS COMUNS
1. Desigualdade de acesso: O colonialismo digital destaca a disparidade no acesso à tecnologia e à infraestrutura digital entre nações e comunidades. Países e regiões mais desenvolvidos têm maior acesso às últimas tecnologias, enquanto outros ficam para trás.
2. Dependência tecnológica: O colonialismo digital também se refere à dependência de nações e comunidades em relação às tecnologias e produtos desenvolvidos e controlados por países ou empresas dominantes. Isso pode levar a uma falta de autonomia e capacidade de inovação interna.
3. Extração de dados e recursos: Empresas e plataformas digitais muitas vezes coletam enormes quantidades de dados dos usuários e das comunidades. O colonialismo digital aborda a exploração desses dados e recursos, muitas vezes sem o consentimento ou benefício equitativo das partes envolvidas.
4. Concentração de poder: O colonialismo digital também se relaciona à concentração de poder nas mãos de poucas empresas de tecnologia globalmente dominantes. Essas empresas exercem influência significativa sobre a economia, a política e a cultura, muitas vezes sem responsabilidades proporcionais.
5. Padronização cultural: Com o colonialismo digital, existe a preocupação de que a cultura e a diversidade sejam homogeneizadas em termos de conteúdo e plataformas online. A dominância de determinadas línguas, conteúdos e perspectivas pode marginalizar e silenciar culturas locais, diminuindo a diversidade cultural e o pluralismo.
Essas são apenas algumas das características associadas ao conceito de colonialismo digital. Essa noção é frequentemente usada para examinar e questionar as implicações da desigualdade e assimetria na era digital, buscando formas de tornar a tecnologia e a internet mais inclusivas e equitativas.
ALGUNS AUTORES INTERNACIONAIS
1. Shoshana Zuboff: A autora do livro "The Age of Surveillance Capitalism" (A Era do Capitalismo de Vigilância) argumenta sobre como as plataformas digitais e o modelo de negócios baseado na extração e monetização dados contribuem para a criação de um sistema de colonialismo digital.
2. Tim Wu: O livro "The Master Switch: The Rise and Fall of Information Empires" (O Interruptor Mestre: A Ascensão e Queda dos Impérios da Informação) de Tim Wu explora o poder e controle exercidos pelas grandes empresas de tecnologia e a influência que isso tem na liberdade de informação e inovação.
3. Saskia Sassen: A socióloga Saskia Sassen argumenta que o colonialismo digital cria uma nova forma de desigualdade global e destaca como as empresas de tecnologia e plataformas digitais estão moldando a geopolítica e as relações de poder.
4. Nick Couldry e Ulises A. Mejias: Em seu livro "The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism" (Os Custos da Conexão: Como os Dados estão Colonizando a Vida Humana e Apropriando-a para o Capitalismo), os autores exploram como a coleta de dados e o capitalismo de vigilância contribuem para o colonialismo digital.
5. Tariq Krim: Fundador do site Netvibes, Krim discute o impacto do colonialismo digital na África e como as plataformas globais moldam a infraestrutura de internet e a inclusão digital no continente.
Esses são apenas alguns exemplos dos autores que abordam o tema do colonialismo digital. Vale ressaltar que o debate sobre o assunto é constante e novos autores continuam a contribuir com novas perspectivas e análises críticas.
AUTORES NACIONAIS
No contexto brasileiro, há alguns pesquisadores e autores que discutem o tema do colonialismo digital. Aqui estão alguns dos principais autores brasileiros sobre o assunto:
1. Ronaldo Lemos: Advogado e pesquisador brasileiro, Ronaldo Lemos aborda questões relacionadas ao colonialismo digital, tecnologia e suas consequências sociais. Ele é reconhecido por seu trabalho sobre propriedade intelectual, direitos autorais e liberdade na internet.
2. Sérgio Amadeu: Professor, sociólogo e ativista brasileiro, Sérgio Amadeu tem se dedicado a estudar e debater questões relacionadas à tecnologia, privacidade, vigilância e colonialismo digital no contexto brasileiro.
3. Luli Radfahrer: Professor da USP, Luli Radfahrer é autor de diversos livros sobre tecnologia e sociedade. Ele discute o impacto do colonialismo e do capitalismo de vigilância no contexto brasileiro, refletindo sobre as desigualdades e o papel das grandes empresas de tecnologia.
4. Bia Barbosa: Jornalista e ativista pela democratização da comunicação e da internet, Bia Barbosa é uma das fundadoras do coletivo Intervozes. Ela tem abordado questões relacionadas à concentração de poder e ao colonialismo digital na mídia e nas comunicações.
5. Pablo Ortellado: Professor da USP, Pablo Ortellado é especialista em comunicação e política digital. Ele contribui para a discussão sobre a desigualdade digital e o impacto do colonialismo digital no contexto brasileiro.
Esses são apenas alguns exemplos de autores brasileiros que abordam o tema do colonialismo digital. Vale lembrar que o debate sobre o assunto está em constante evolução, e contribuições estão sendo feitas por pesquisadores e especialistas nacionais.
ALGUMAS OBRAS NACIONAIS
Embora o tema do colonialismo digital seja relativamente recente, existem algumas obras de autores brasileiros que abordam questões relacionadas. Aqui estão algumas das principais obras brasileiras sobre o tema:
1. "Maré das redes: Rastros e riscos na era da informação" - Cristiano Max Pereira Pinheiro: Neste livro, o autor discute como a expansão tecnológica e a disseminação das redes digitais resultaram em formas de colonialismo e novos tipos de poder capturados por países e empresas dominantes.
2. "RedCode - Guerra nas redes" - Gilson Schwartz: O autor aborda o impacto do colonialismo digital na economia do conhecimento, especialmente no contexto do Brasil. Ele explora como a dinâmica digital cria desequilíbrios de poder e exploração.
3. "Tecnopolítica: Democracia e tecnologia no século XXI" - Sergio Amadeu da Silveira: Este livro investiga as relações entre democracia, tecnologia e colonialismo digital. Examina questões como privacidade, vigilância e concentração de poder no contexto brasileiro.
4. "Crítica à economia política da comunicação digital" - Fábio Fernandes: O autor investiga como a propriedade das plataformas digitais e a economia política da comunicação estão relacionadas ao colonialismo digital. Analisa como a concentração de poder nessas plataformas afeta a cultura e a sociedade brasileira.
5. “Colonialismo de Dados: Como Opera a Trincheira Algorítmica na Guerra Neoliberal”. Coletânea editada por Sergio Amadeu da Silveir , Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira e publicada pela Fundação Perseu Abramo. Neste livro, pesquisadores, professores e militantes destrincham o conceito de colonialismo de dados e discutem a forma como ele estaria se engendrando nas estruturas sociais, econômicas e políticas de uma forma que ainda não é consensual. Há tensões importantes a serem percorridas e a busca de uma definição e de uma análise operacional desse conceito e outros conceitos como colonialismo digital e imperialismo de dados tecem o panorama das reflexões aqui apresentadas.
6. "Mídia e colonização digital" - Rosane Rosa e Elaine Soares Santo: Este livro aborda como a mídia, especialmente a digital, influencia e molda a sociedade brasileira. Examina as relações de poder e as disfunções resultantes do colonialismo digital na era da informação.
Essas obras representam alguns exemplos de como o tema do colonialismo digital vem sendo abordado por autores brasileiros. É importante destacar que o campo está em constante evolução e novas obras e pesquisas estão continuamente sendo desenvolvidas sobre o assunto.
Luiz César de Queiroz Ribeiro
CONCEITOS E FUNDAMENTOS
O termo "rentismo-digital" refere-se a uma forma específica de rentismo (renda obtida através da propriedade ou controle de bens, em vez de diretamente da exploração do trabalho, na era digital. É usado para descrever a acumulação de riqueza e poder por meio do controle de plataformas digitais e dados. No contexto do rentismo-digital, algumas empresas e indivíduos obtêm lucros significativos explorando a posse e o controle de plataformas digitais, dados pessoais e tecnologias. Essas empresas podem incluir gigantes da tecnologia, como Amazon, Google, Facebook e Apple, cujos modelos de negócios se baseiam na coleta e monetização de dados dos usuários. Essas empresas podem obter rendas consideráveis pela venda de anúncios direcionados, acesso a plataformas e serviços, ou pela exploração dos dados coletados. O rentismo-digital também pode ser observado em setores como o do compartilhamento de economia, onde empresas como Uber e Airbnb lucram através do controle de plataformas de compartilhamento de serviços. No entanto, o rentismo-digital também gerou debates sobre questões como a concentração de poder, a proteção de dados, privacidade, as desigualdades e distribuição de benefícios econômicos. As críticas apontam para a necessidade de uma regulamentação mais efetiva e uma maior preocupação com o equilíbrio de poder e benefícios na economia digital.
PROCESSO EETAPAS
Os principais autores que identificam a revolução tecnológica baseada no paradigma da microeletrônica descrevem várias etapas desse processo. Abaixo estão algumas das etapas frequentemente mencionadas:
1. Emergência dos circuitos integrados: A primeira etapa é a transição dos componentes eletrônicos discretos para os circuitos integrados, que permitiram a miniaturização dos dispositivos e o início da revolução da microeletrônica. Isso ocorreu principalmente nas décadas de 1950 e 1960.
2. Desenvolvimento e difusão dos computadores: A partir dos anos 1970, com a popularização dos computadores pessoais, ocorreu uma proliferação das tecnologias de processamento de dados e armazenamento. Essa etapa foi marcada pelo desenvolvimento de software, redes de computadores e pela digitalização da informação.
3. Conectividade e a internet: Na década de 1990, com o advento da internet, houve uma nova fase de transformação tecnológica. A conectividade em larga escala permitiu a troca instantânea de informações e possibilitou o surgimento de novos modelos de negócios, como o comércio eletrônico, redes sociais e serviços online.
4. Emergência de tecnologias disruptivas: Autores também mencionam o surgimento de tecnologias disruptivas, como inteligência artificial, aprendizado de máquina, Big Data, Internet das Coisas (IoT), robótica avançada e realidade virtual/aumentada. Essas tecnologias estão mudando a forma como vivemos e interagimos, afetando setores como saúde, transporte, indústria e entretenimento.
5. Integração e convergência: Uma etapa mais recente é a integração e convergência de diversas tecnologias, combinando computadores, smartphones, dispositivos vestíveis, sensores e outros dispositivos inteligentes em um ecossistema conectado.
CARACTERÍSTICAS E TENDÊNCIAS
A revolução tecnológica baseada na microeletrônica é caracterizada por uma série de mudanças e avanços tecnológicos relacionados à miniaturização e ao uso de componentes eletrônicos em escalas microscópicas. Aqui estão algumas das principais características dessa revolução:
1. Miniaturização: A principal característica da revolução tecnológica baseada na microeletrônica é a capacidade de miniaturizar componentes eletrônicos, como circuitos integrados, transistores e chips. Isso permitiu o desenvolvimento de dispositivos eletrônicos cada vez menores e mais poderosos, como smartphones, tablets e wearables.
2. Aumento da capacidade de processamento: Com a miniaturização dos componentes eletrônicos, houve um aumento significativo na capacidade de processamento de dados. Os chips de microeletrônica são capazes de realizar cálculos e operações complexas em velocidades extremamente altas, impulsionando a computação e o processamento de informações.
3. Comunicação instantânea e global: A revolução tecnológica da microeletrônica também impulsionou a revolução das comunicações. Através de dispositivos eletrônicos conectados, como smartphones e computadores, as pessoas podem se comunicar instantaneamente, independentemente da distância. Isso levou ao desenvolvimento das redes sociais, videochamadas, mensagens instantâneas e uma infraestrutura global de comunicação.
4. Internet das Coisas (IoT): A microeletrônica também desempenhou um papel fundamental no surgimento da Internet das Coisas. Com a capacidade de incorporar tecnologia em objetos do dia a dia, como eletrodomésticos, veículos e sensores, é possível coletar, transmitir e analisar dados em tempo real. Isso abriu possibilidades para a automação residencial, cidades inteligentes, saúde conectada e muito mais.
5. Avanços em áreas de atuação diversas: A revolução tecnológica da microeletrônica teve um impacto profundo em diversas áreas de atuação, como medicina, indústria, transporte, entretenimento e pesquisa científica. Ela impulsionou o desenvolvimento de avanços como a cirurgia robótica, a automação industrial, os veículos autônomos, os jogos eletrônicos de realidade virtual e a descoberta de novos materiais e fármacos.
Essas características da revolução tecnológica baseada na microeletrônica são apenas algumas das muitas transformações que essa inovação tecnológica trouxe para a sociedade, alterando significativamente a forma como vivemos, nos comunicamos e realizamos as tarefas cotidianas.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
A proposta teórica de análise de capitalismo contemporâneo formulada em torno do conceito de capital-imperialismo proposto por Vírginia Fontes é uma perspectiva teoricamente afinada com o TMD, mas tem algumas particularidades e diferenças bem interessantes. Em especial a atualização da análise do imperialismo de Lênin e Hilferding a partir do que chamamos de financeirização do capitalismo.
Contribuição possível desta formulação para o nosso empreendimento intelectual, centrado agora no projeto do livro, está na centralidade do conceito de expropriação como necessidade permanente da expansão do capitalismo, exacerbada na fase atual de concentração e centralização do capital portador de juros. Seguindo a formulação da Virgínia Fontes:
"Nas condições atuais de predomínio do capital portador de juros, as expropriações se multiplicam. O capital portador de juros é o ápice da concentração de trabalho morto em poucas mãos e da irracionalidade da lógica capitalista: punhados de grandes proprietários de recursos precisam valorizá-los e, para tanto, convertem o próprio capital em mercadoria. O valor de uso do capital convertido em mercadoria, ou do capital portador de juros, é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através da multiplicação de agentes voltados para a função de extrair mais-valor. Marx emprega o termo capitalista funcionante para designar a personificação do capital que produz o maisvalor, ao realizar o percurso d-m-d': fungierenden Kapitalisten. O proprietário dos recursos sociais de produção sob a forma do capital monetário (ou portador de juros) exige do capitalista funcionante crescente eficácia nessa extração, de maneira a remunerar tanto o próprio capital funcionante como o capital monetário, ou, ainda, o capital tornado mercadoria. Nessas condições, B [o capital funcionante, o mutuário] tem de entregar a A [o capital portador de juros, o prestamista] parte do lucro obtido com essa soma de capital sob o nome de juro, pois A só lhe deu o dinheiro como capital, isto é, como valor que não apenas se conserva no movimento, mas cria mais-valor para seu proprietário. Permanece nas mãos de B apenas enquanto é capital funcionante. (MARX, 1985, L.III:257)
Esse movimento de separação entre a propriedade e o processo de extração de maisvalor é também processo de imposição, pela magnitude da concentração do capital monetário, da extrema intensificação e diversificação dessa mesma extração. O capital monetário converte seus mutuários em agentes funcionantes para a extração de maisvalor:
mesmo quando se concede crédito a um homem sem fortuna – industrial ou comerciante – isso ocorre confiando que ele agirá como capitalista: com o capital emprestado, se apropriará de trabalho não pago. Ele recebe crédito na condição de capitalista em potencial. (ROSDOLSKY, 2001: 324)
"Ao longo da segunda metade do século XX, a propriedade do capital deslocou-se tendencialmente do controle direto dos meios de produção para a propriedade das condições sociais de produção, isto é, das massas de recursos que podem permitir o funcionamento efetivo dos meios de produção. Como já apontava Marx, nessa escala de concentração a propriedade torna-se crescentemente social e abstrata. Em frenética e intensiva busca de valorização, massas faraônicas de capital monetário tendem a agir disseminando capital-enquanto-mercadoria, mas impondo ritmos de retorno ao capital funcionante sempre mais curtos, o que se traduz por taxas de exploração sempre mais elevadas. A lógica do capital-monetário se dissemina como a forma natural da existência social; é-lhe indiferente a concentração ou a dispersão das atividades funcionantes, posto que a concentração fundamental segue aprofundando-se: a da propriedade do puro capital enquanto trabalho morto, sob a forma capital-enquanto-mercadoria, a ser alocado como extrator de mais-valor sob as mais variadas condições." (p.
O ponto de articulação está no fato de que o processo de expropriação tem que se realizar agora em um mundo muito mais urbanizado do que na fase anterior, salvo em algumas partes do sistema-mundo como a Índia, China e alguns países da África. Em países tão urbanizados como o Brasil resultante do movimento anterior de expropriação do mundo rural, este processo tem que criar outras esferas e mecanismos. O endividamento público e privado, as privatizações certamente seriam algumas delas, mas a mercantilização das cidades também poderia ser entendida como outra esfera. Nesta perspectiva, o que vem ocorrendo nas cidades seria menos o resultado da hegemonia neoliberal do que de forças estruturais agindo em um país dependente e submetido à “servidão financeira” como propõe Leda Paulani ou à “financeirização subordinada” proposta por Juan Painceira.
Para pensarmos como a cidade está sendo inserida na atual etapa de expropriação do capitalismo pilotado pelo capital portador de juros, é certamente rico incorporarmos a proposição de Virginia Fontes sobre "as bases sociais da acumulação".
Não se trata apenas de extração
Para tanto, é necessário em primeiro lugar entender que esta acumulação não pode se resumir à lógica imediata da extração, como fazia o capital usurário, na medida em que o a concentração e centralização do capital exige a expansão ampliada do valor.
" O capital monetário não se limita a puncionar: precisa expandir relações sociais capitalistas. Nesse patamar, o capital assume uma configuração diretamente social, por várias razões: não é mais um proprietário controlando a “sua” produção, mas proprietários unificados apenas pela própria propriedade, e que precisam converter seu capital-enquanto-mercadoria, através de quaisquer mãos, em mais-valor.
Centralização e Difusão do Capital
"Essa reunião difusa de proprietários, que não precisam sequer estar próximos, realizada sob auspícios de capitalistas-profissionais de intermediação, condensa volumes monstruosos de recursos com o fito de valorizá-los e, portanto, dissemina trabalho morto sob a forma dinheiro a quem o valorize, o converta em capital, em função de diferenciais de taxas de retorno e de sua velocidade de valorização. O capital, a massa de trabalho morto acumulado sob a forma dinheiro que precisa voltar a ser capital, controla seus controladores. A propriedade hiperconcentrada do capital produz tanto a concentração da produção (em grandes conglomerados) quanto sua difusão e dispersão em miríades de empreendimentos"
Propriedade dos meios de produção e controle das bases sociais de extração
O poder do capital em acumular desloca-se da propriedade dos meios imediatos de produção para a posse/controle das condições sociais ou das bases sociais da extração da mais-valia.
"Aprofundam-se as formas sociais aberrantes, como o capital fictício. Esse processo torna a exploração da força de trabalho totalmente social ou, para ser mais precisa, torna a integralidade da sociedade totalmente dependente da ”irrigação” de capitais para que ela toda – e cada um – possa subsistir.
Vale insistir que o capital monetário não pode ser apresentado como realizando uma mera punção, tal como ocorre com a função usurária, que ele também, aliás, exerce paralelamente. O capital monetário expressa e resulta da expansão do capital industrial ou funcionante (extrator de mais-valor) e a impulsiona numa escala muito superior. Se pode afastar-se da propriedade direta dos meios de produção e das atividades que envolvem a extração da mais-valor, é exatamente porque concentra a pura propriedade das condições e recursos sociais da produção."
''A determinação social antagônica da riqueza material – seu antagonismo ao trabalho enquanto trabalho assalariado – já está, independentemente do processo de produção, expressa na propriedade de capital enquanto tal. (MARX, 1985, L.III: 267. Grifos da autora.)
"No momento em que o capital monetário se autonomiza perante o trabalho e se distancia dos trabalhadores concretos — aos quais segue impondo a exploração e se beneficiando da valorização que acrescentam ao trabalho morto — no momento, portanto, em que apura propriedade do capital se evidencia, a determinação social antagônica, do comando sobre trabalho alheio, está colocada de forma generalizada. A propriedade doravante incide não apenas sobre os “meios específicos de produção”, de maneira imediata, mas converte-se em potência social acumulada (capital), em possibilidade de transferir de uma a outra massa de meios de produção a capacidade social de fazê-los existir enquanto tais, isto é, de fazê-los atuar para a extração de mais-valor. Desloca-se, portanto, enquanto capital, como relação social capaz de extrair mais-valor em qualquer local, e não apenas como coisas a serem movidas."
Controle das bases sociais de extração e a expropriação
Para se realizar plenamente como "potência social acumulada" o capital monetário tem que colocar toda a sociedade a seu dispor para empreender a extração de mais valor.
"Para tanto, a existência de trabalhadores expropriados em qualquer local imaginável é uma condição essencial. Longe de se reduzir, a contradição central entre trabalho e capital torna-se mais aguda, generalizando massas indistintas de trabalhadores crescentemente muiltifuncionais, meros produtores de valor e de mais-valor em qualquer atividade, contrapostos ao capital em sua forma genérica, embora este se converta sempre em uma forma específica de exploração. O aparente descolamento entre os dois momentos do capital – funcionante e monetário - expressa entretanto sua mais estreita e íntima imbricação. A aparente dissociação existente entre eles é, de fato, uma interpenetração crescente resultante da concentração da propriedade de recursos sociais de produção e exige expandir formas brutais de extração de mais-valor."
"O capital portador de juros e sua derivação, o capital fictício, impõem uma aceleração alucinada das exigências tirânicas da extração de sobretrabalho, a toda velocidade e sob quaisquer meios, sem pejo de comprometer para tanto não apenas a vida (e a morte) de milhares de trabalhadores, mas o conjunto das gerações futuras. "
Expropriação e Subordinação da Vida Social ao Capital
Para Virginia Fontes a dinâmica da dominação do capital portador de juros desemboca no aumento da massa de capital fictício - forma de capital existente desde sempre no capitalismo -, do que resulta em enormes enormes pressões expropriadoras que buscam conectar capital acumulado com o mais-valor , não obstante a sua movimento de busca de autonomização. Como consequência, surge a tendência à subordinação da totalidade da visa social à acumulação capitalista.
"A existência de enormes massas de capital fictício, de maneira similar à do capital monetário ao qual está acoplado, impõe um resultado social dramático: não apenas aprofunda as expropriações e intensifica as maneiras de subalternização dos trabalhadores, como também impele a comprometer o futuro da integralidade da vida social, transformando-a em mera condição para a reprodução do capital. Se é importante ressaltar as especificidades do capital fictício, supor tanto uma imbricação quanto uma separação absoluta entre ele e os demais capitais segue problemática, uma vez que, resultante da extrema concentração e derivado do capital portador de juros, juntamente com ele acelera a totalidade do processo, e impulsiona a produção da base social necessária para a exploração do mais-valor, de maneira a abrir espaços para a valorização de volumes de capitais muito além das condições das quais partiram. Vale dizer que o conjunto do processo segue tendo como solo a expansão da extração de valor, ou, melhor dizendo, de sobretrabalho sob a forma do mais-valor, mesmo se uma parte da remuneração do capital fictício está descolada de maneira imediata dessa produção".
Expropriações e a base social do Capital
"Por que da insistência sobre as expropriações e em que consiste a expansão da base social do capital? O fato de a lógica capitalista lançar a humanidade em crises sucessivas e cada vez mais profundas, como o desemprego crescente nos países europeus e nos EUA, não significa que o capitalismo esteja em processo de recuo ou de estreitamento de suas bases sociais; tampouco a recorrências de crises propriamente capitalistas indica algum recuo do capital. Se o predomínio mundial do capital conduz a crises sociais cada vez mais incontroláveis e arrastam a humanidade para a catástrofe (MÉSZÁROS, 2001), tal predomínio se mantém expandindo exatamente sua contradição central, com a própria humanidade crescentemente convertida em mera força de trabalho. O crescimento da concentração do capital corresponde a um incremento desigual e difuso, porém avassalador, das massas de trabalhadores que constituem sua base social contraditória e tensa."
Acumulação Primitiva de Expropriações Primárias e Secundárias
"Ora, se a proposição de Marx estava correta, precisamos observar de que maneira a relação capital “não apenas conserva aquela separação [entre o trabalhador e os recursos sociais de produção], mas a reproduz em escala sempre crescente”. (MARX, 1985, L. I: 262). O contexto de expropriações primárias – da terra – massivas e de concentração internacionalizada do capital em gigantescas proporções, sofre uma duplicação, ou uma alteração de qualidade, correlata à nova escala de concentração de capitais, característica do capital-imperialismo: passaram a incidir também sobre trabalhadores já de longa data urbanizados, revelando-se incontroláveis e perigosamente ameaçadoras da humanidade tal como a conhecemos.
Estas expropriações, que estou denominando disponibilizações ou expropriações secundárias, não são, no sentido próprio, uma perda de propriedade de meios de produção (ou recursos sociais de produção), pois a grande maioria dos trabalhadores urbanos dela já não mais dispunha. Porém, a plena compreensão do processo contemporâneo mostra terem se convertido em nova – e fundamental – forma de exasperação da disponibilidade dos trabalhadores para o mercado, impondo novas condições e abrindo novos setores para a extração de mais-valor. Este último é o ponto dramático do processo."
"Nas últimas décadas do século XX, o extenso desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas contou com declarado apoio parlamentar. De maneira surpreendente, uma verdadeira expropriação de direitos (que historicamente se configuravam como obstáculos politicamente implantados contra a total subserviência dos trabalhadores ao capital), se realizou mantidas as instituições 'democráticas', conservados os processos eleitorais e com a sustentação de uma intensa atuação midiática e parlamentar, "
Expropriações Secundárias: coerção e persuasão
"Um extenso e duplo movimento de coerção e persuasão se pôs em marcha. A coerção foi realizada seja através de ameaças (de demissões, de deslocamentos de empresas, de eliminação de postos de trabalho em geral) seja de sua concretização (pela efetivação parcelar de tais ameaças ou pelo enfrentamento de resistências sindicais); a persuasão mobilizou intensa atuação da mídia proprietária, dos governos e de bem remuneradas camadas de intelectuais recém-convertidos à nova função de uma 'esquerda para o capital', produtores de maquiagens variadas para a monotonia do “não há alternativas” ou do “fim do trabalho”. Direitos foram (e continuam sendo) extintos, resultando numa redisponibilização de massas enormes da população – inclusive dos países centrais – com vistas à sua conversão dócil em força de trabalho para qualquer tipo de atuação."
Expropriação contratual
"Já assinalei algumas características dessas novas expropriações em outros trabalhos, enfatizando como a própria generalização do comando do capital sobre o conjunto da vida social (a subsunção real do trabalho sob o capital) o impelia a destruir toda e qualquer barreira interposta à sua urgência de reprodução ampliada. Assinalei, então, a importância da expropriação contratual, ou a tendência à exploração da força de trabalho desprovida de vínculos geradores de direitos, como o trabalho por venda de projetos, a constituição de empregadores de si mesmo, como as “pessoas jurídicas” singulares; a quebra da resistência tradicional dos trabalhadores ligada historicamente à sua unificação em grandes espaços pelas operações de desterritorialização; as flexibilizações de contrato, precarizações e assemelhados, todas elas agindo no sentido da expropriação da nova capacidade cooperativa dos trabalhadores através de segmentações implementadas por novas tecnologias de controle hierárquico distanciado, etc. (FONTES, 2005, p. 96-106)."
Expropriação sobre matérias-primas estratégicas
"No Iraque, expropriou-se uma nação inteira de suas fontes de petróleo; na Palestina, está em curso gigantesca operação de expropriação das águas, da terra e das próprias camadas férteis do solo.
As expropriações contemporâneas tornaram-se extremamente agressivas e, revelam-se potencialmente ilimitadas, ainda que colocando em risco a existência humana. Evidenciam que a dinâmica capital-imperialista impõe converter características humanas, sociais ou elementos diversos da natureza em formas externalizadas à existência humana, erigindo-as em barreira ao capital de maneira a elaborar um discurso da urgência, moldar argumentos de persuasão e, finalmente, consolidar apetrechos coercitivos para destruir/expropriar tais características, apropriando-se de tais elementos, seja para monopolizá-los, seja para produzir novas atividades capazes de produzir valor, resultando numa mercantilização inimaginável de todas as formas da vida social e humana. Os créditos-carbono são um dos dramáticos exemplos. O fenômeno é mais amplo e vem ocorrendo com as águas, doces ou salgadas, e com a biodiversidade. O fato, porém, de cindir, de externalizar tais características, não significa de forma alguma que tais elementos expropriados não sejam plenamente integrantes das condições sóciohumanas da existência (internos, pois). Agudizam apenas a evidência de que sua expropriação resulta de uma necessidade interna da dinâmica expansiva e destrutiva capital-imperialista."
Expropriação sobre Conhecimentos Socializados
"As expropriações secundárias se abatem sobre conhecimentos socializados (como já ocorreu no século XIX, na introdução das grandes indústrias e no século XX, com o fordismo), sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas, desde formas de cultivo até formas de tratamento de saúde utilizadas por povos tradicionais. Somente de maneira muito cautelosa poderíamos supor que tais populações mantêm-se externas ao capitalismo, quando boa parte delas já depende – parcialmente, ao menos – de relações mercantis plenamente dominadas pelo grande capital-imperialismo. Não obstante, populações organizadas em escala internacional, por exemplo, na Via Campesina, lutam para conservar as condições sociais rurais de sobrevida (ainda que parciais), e opõem barreiras à plena relação social do capital, à produção massiva de seres sociais disponibilizados. "
Expropriação sobre Direitos
"As expropriações secundárias se abatem sobre conhecimentos socializados (como já ocorreu no século XIX, na introdução das grandes indústrias e no século XX, com o fordismo), sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas, desde formas de cultivo até formas de tratamento de saúde utilizadas por povos tradicionais. Somente de maneira muito cautelosa poderíamos supor que tais populações mantêm-se externas ao capitalismo, quando boa parte delas já depende – parcialmente, ao menos – de relações mercantis plenamente dominadas pelo grande capital-imperialismo. Não obstante, populações organizadas em escala internacional, por exemplo, na Via Campesina, lutam para conservar as condições sociais rurais de sobrevida (ainda que parciais), e opõem barreiras à plena relação social do capital, à produção massiva de seres sociais disponibilizados."
Expropriação de Bens Coletivos
"Boa parte dos procedimentos de privatização de empresas públicas experimentados nas últimas décadas assemelha-se às expropriações primárias, pois incidiram sobre bens coletivos, similares às terras comunais; porém, ocorriam também em âmbitos internos, em sociedades nas quais já vigoravam plenamente relações capitalistas, diferindo das primeiras que até então avançavam sobre populações e sociedades não integralmente capitalistas. As expropriações sobre bens coletivos ocorreram como violência e como extinção de direitos, até então consolidados através de privatizações de instituições públicas, industriais ou destinadas a prover educação, saúde, previdência social, transporte, etc. Além de disponibilizarem ('libertarem' trabalhadores), permitem a conversão de tais atividades – até então improdutivas para o capital – em trabalho sob o comando do capital, portanto em produção de valor e de mais-valor. As expropriações contemporâneas não pararam por aí e devoraram também bens naturais sobre os quais até então não incidia propriedade exclusiva de tipo capitalista, como as águas doces e salgadas, o patrimônio histórico e cultural (convertido em mercadoria através do turismo), o patenteamento de códigos genéticos, a qualidade do ar."
Para quem tiver interesse deixo link deste vídeo no qual a Virgínia apresenta um bom resumo da sua tese sobre o capital-imperialismo. https://youtu.be/Sko0GR4x888 . Também;
Fontes, Virgínia - O capital-imperialismo: algumas características. https://www.google.com/search?q=O+capital-imperialismo%3A+algumas+caracter%C3%ADsticas.+Virg%C3%ADnia+Fontes&oq=O+capital-imperialismo%3A+algumas+caracter%C3%ADsticas.+Virg%C3%ADnia+Fontes&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyBggAEEUYOTIGCAEQRRhA0gEIOTcxajBqMTWoAgCwAgA&sourceid=chrome&ie=UTF-8
Para desdobrar a reflexão:
Klaus Dörre. Teorema da expropriação capitalista. Tradução: Cesar Mortari Barreira & Iasmin Goes. São Paulo, Boitempo, 2022, 248 págs.
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Temos assistido recentemente vários momentos do exercício deste poder hegemônico. Os mais recentes foram relacionados à discussão sobre reforma tributária e sobre a meta de déficit fiscal zero para 2024. O exercido deste poder hegemônico está em bloquear a emergência de alternativas de políticas macroeconômicas que desfaçam os nós que atrelam as políticas fiscal, monetária e cambial da dominância financeira e seus interesses.
Tal poder de hegemonia está sendo viabilizado pelo crescente controle da mídia pelas instituições financeiras, como mostrado no artigo “ESTÁ TUDO DOMINADO” de autoria Denyse Godoy e publicado no número 205 da Revista Piauí. A autora constata que:
“79% das consultas feitas nos mais populares veículos dedicados exclusivamente à economia e aos negócios acabaram nas páginas de portais controlados por instituições financeiras, com destaque para duas organizações: a xp Investimentos, dona do líder InfoMoney, e o btg, que detém 36% das visitas em razão do seu controle sobre a Exame, o Money Times e o Seu Dinhei- ro. O domínio do mercado sobre o noticiário econômico ( pelas instituições financeiras) é uma peculiaridade brasileira. “.
A autora complementa: “Uma situação em que uma instituição financeira é dona e administra um site de jornalismo econômico é altamente incomum nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo”, disse à piauí o americano Chris Roush, professor de jornalismo econômico e autor de dez livros sobre o assunto, entre eles The future of business journalism: why it matters for Wall Street and Main Street (O futuro do jornalismo de negócios: por que isso importa para o mercado financeiro e para as pequenas empresas)”.
Por: Into the black box (A collective research on logistics, spaces, labour).
Disponível em: http://www.intotheblackbox.com/manifesto/manifiesto-de-critica-logistica/
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“La naturaleza del capital supone que éste recorra las diversas fases de circulación y, precisamente, no en el terreno de las ideas, donde un concepto puede transformarse en otro con la rapidez del pensamiento, sin demora, sino como situaciones que están separadas en el tiempo. Tiene que pasar un periodo como crisálida antes de poder volar como mariposa. Las condiciones de la producción del capital, pues, derivadas de la naturaleza misma, se contradicen entre sí.”
Marx, Grundrisse (vol. 1), siglo xxi editores, Ciudad de México, 446-447.
Antes de poder volar libre como una mariposa, el capital financiero contemporáneo necesita todavía de pasar a través del ser crisálida. Esta fase peculiar es hoy el dominio de la logística, cuyo amplio océano de operaciones se mueve con velocidades inéditas y con una extensión planetaria.
La logística es la forma de inteligencia estratégica que coordina la armonización de producción, circulación y consumo en el capitalismo global, vigila su reproducción, y se pone como motor para la aceleración creciente que caracteriza los procesos de circulación – cada vez más hegemónicos sobre el entero proceso.
La fantasía geográfica de la logística concibe e mundo como un sistema en continuo desplazamiento, una cartografía de flujos sostenida por complejas redes infraestructurales.
El encuentro y choque entre corrientes de dinero y de trabajo produce en esta dirección una geografía variada e irregular de circulación de mercancías que navegan sobre la entera superficie de la Tierra.
Estas corrientes son dirigidas por impulsos logísticos, que las canalizan en canales y corredores manejando sus frecuencias.
La logística transforma lo que es sólido en materia liquida, manejando mercancías y datos como fueran gas al interior de un gasoducto que deben fluir a una presión mantenida constantemente bajo control.
La logística expresa entonces un poder específico de coordinación de flujos, coreografiando el juego de las mercancías.
Este imaginario logístico es sin embargo continuamente interrumpido por fricciones, luchas, conflictos, mostrando perspectivas radicalmente diferentes que descomponen las metáforas de un mundo plano y liquido.
Si bien la logística dicte el ritmo del capitalismo contemporáneo, sus movimientos son puntualmente contingentes y contestados. Además, más la orquesta logística acelera sus flujos de mercancías, más aumenta el poder de interrupción de los mismos.
La logística por lo tanto es una realidad con múltiples facetas, un prisma que contiene muchos mundos.
Entremos dentro de esta caja obscura…
Logística es… crisis
Cada periodo histórico del capitalismo es caracterizado por la emergencia de formas de producción y de poder que tienden a integrarse de forma hegemónica a aquellas que las preceden – al interior de secuelas imprevisibles, a través de caminos no lineales y marcados por continuos regresos. En el momento en que estas formas hegemónicas entran en crisis, se compensa la crisis productiva con la intervención sobre las geografías (es decir sobre las formas de poder) de la circulación de mercancías y capitales.
Hoy asistimos a una aceleración de estos procesos. Creemos entonces que no sea un caso que con el crack financiero de 2007-2008 la logística haya progresivamente emergido tanto en el debate gerencial como en el ámbito de los conflictos a nivel global como vector crucial. La logística, de hecho, es la búsqueda desesperada de vender mercancías imponiendo una estructura de la circulación, configurándose como tentativa de solución de la crisis de los ciclos capitalistas.
2. Logística es… una ideología
Una crítica de la logística debe necesariamente pasar por un análisis de sus tramas discursivas y analíticas. Nacida en el mundo colonial, de esclavitud, y militar para la organización, el control y la regulación del movimiento y de sus paradas, la logística del siglo XIX se conforma como una específica matriz de racionalidad, una lógica logística que mezcla estas mencionadas experiencias históricas en un único paradigma de eficiencia, velocidad, y confiabilidad. Es en este contexto que salen a la luz los efectivos entrelazamientos entre logística, finanza, y formas de gobierno, tan evidentes en el presente global.
Con el siglo XX se puede hablar de una verdadera ideología logística, que tematiza el mundo como un espacio liso y sin fricciones. O más bien: la ideología es un instrumento para suavizar y eludir las interrupciones, sean esas ligadas a conflictos de trabajo, a obstáculos naturales o a eventos bélicos. Pasando a través del afirmarse del toyotismo, el “just in time and to the point” se vuelve definitivamente una lógica exhaustiva que respalda una visión del mundo sin conflicto. Una ideología que se arma para ser creída.
3. Logística es… producción de espacio
La logística nace con la revolución espacial de la “modernidad”, como un conjunto de técnicas, saberes, y prácticas para adaptarse a la dimensión inédita que se abre sobre espacios continentales y oceánicos. Está indisolublemente ligada a la imposición y disolución de lógicas elementales de producción del espacio acuático y terrestre, o más bien es el nodo sobre el cual se desarrolla una lógica terráquea que desde necesidad adaptativa se hace lógica de producción del espacio. La logística es simbiótica a la construcción histórica de lo global, con sus umbrales históricos y su continuo e inacabado devenir.
La logística se presenta como “constitución material” de los procesos de globalización: saldándose con las nuevas dimensiones del aire y de la Red; afinándose como productora de espacialidades entrelazadas y parcialmente independientes de las estatales y urbanas; definiendo nuevos órdenes jurídicos y nuevos intereses. Este movimiento da vida a una compleja re-escritura de la superficie terrestre cubriéndola con nuevas venas y pasos para la gestión de los flujos, que son efectos y no causas, y que deben ser siempre leídos a partir de un conjunto de confines en multiplicación para la canalización, la regulación, o la contención de los movimientos logísticos en sentido amplio.
Logística es… ritmo
El capital es tiempo que logra presentarse como espacio, un continuo re-determinar las estructuras del tiempo moviéndose en el espacio. Es mando sobre el tiempo social que apunta a anular los intersticios que existen entre la producción y el consumo, realizando inmediatamente el valor en la ganancia. En este sentido las infraestructuras logísticas son de facto un sostén temporal para la reducción de la secuencia mencionada.
La logística además apunta a la sincronización de un tiempo global, al dictar las rítmicas del trabajo en un concierto diligentemente dirigido, y choca continuamente con la diversidad de condiciones sociales, subjetivas, políticas que encuentra a lo largo del mundo.
Logística es… historia del nuestro presente
La logística es hoy en día el lugar sobre el cual se estratifican múltiples proveniencias históricas. Una genealogía logística encuentra sus huellas en las transformaciones comerciales y de los sistemas de producción, en las modificaciones de las formas militares y de poder, en las contra-conductas del capital a los procesos de insubordinación. La logística es hecha por diferentes tipologías y estrategias, pero no es un novum de las últimas décadas, ya que se fue articulando desde los albores de la modernidad.
La llamada Logistics revolution ocurrida en las décadas de 1950 y 1960 del siglo XX fue un importante momento de re-organización de los procesos productivos, definiendo un “umbral histórico” que determina una re-ordenamiento general no sólo del modo capitalista de producción sino también de los diversos vectores temporales que componen la genealogía de la logística. Una sincronización de los tiempos históricos que liga la historia de la logística a su operatividad actual.
Creemos sin embargo que salir den presentismo y dotarnos de un análisis de longue durée permita superar un enfoque centrado sobre la contemporaneidad, que conlleva el riesgo de trivializar el concepto y hacernos seducir por la ideología logística, ya que ella misma presenta el estado de cosas actuales como un largo presente sin alternativas. La fuerza de una “mirada logística” está en vez también en el hecho de que desde ella se puede extraer una idea de la “historia global” como proceso – escapando entonces a la que podríamos definir una “amnesia” histórico-política tan útil al proyecto neoliberal.
Logística es… lucha de clases
Una de las huellas de nacimiento de la logística moderna hay que detectarla en el control de las resistencias al transporte de la mercancía-humana en las tratas de esclavos, donde se de-subjetivan y re-subjetivan los esclavos extirpados desde África y re-introducidos en las plantaciones. Además por siglos los puertos han sido los principales lugares de conflicto y revuelta. Por otro lado, el movimiento de mercancías ha sido el sector donde se han creado impensables mezclas de composiciones de clase entre Asia y América del Sur. Los operadores de carga norteamericanos han sido el primer terreno de organización del trabajo black a inicios del siglo XX. A partir de estos episodios interpretamos entonces la Logistics revolution del segundo Posguerra más bien como una “contra-revolución”: llevada adelante para desmantelar el poder obrero en la grande fábrica fordista, desarticula la potencia del trabajo vivo sobre el territorio y e escala transnacional, además de las múltiples formas del poder “popular” acumulado en diferentes partes del mundo en las luchas anti-coloniales y anti-imperialistas.
Por lo tanto, la “(contra)revolución logística” no es una simple innovación técnica sino una respuesta política a la insubordinación, que anticipa y construye materialmente la época neoliberal. No es un caso que hoy la industria logística sea un mundo donde están emergiendo un sin fin de conflictos de clases al interior de un más general paradigma emergente de luchas en el terreno de la circulación.
7. Logística es… política
La logística entendida como plano de infraestructuras físicas e inmateriales para la circulación precede, o por lo menos es la condición, para la constitución de soberanía territorial. Lo repetimos: la construcción de un espacio logístico, lejos de ser un ámbito meramente técnico, implica una racionalidad y un diseño políticos. Lo que ha ocurrido por la formación de Estados e Imperios, así como por las formas políticas más recientes como por ejemplo la Unión Europea.
Sin embargo hoy, en la general transformación de las formas de soberanía, la logística se está redefiniendo en escala planetaria como verdadera forma política en sí misma, mientras el poder se encuentra cada vez más en los canales de interconexión, en los corredores de circulación, en los espacios logísticos globales. Un poder que, a través de la logística, debe de ser repensado a nivel global como en continua oscilación entre procesos de institucionalización y de movimiento, dentro de una relación nuca plenamente fijada entre poder político y poder social. La logística es una forma de poder extra-estatal y dinámico, en el sentido que no responde a una soberanía preestablecida sino que puede insinuarse o soslayar según las exigencias sobre diferentes territorialidades. La logística entonces es una política, hace política, habla de lo político.
8. Logística es… trabajo
Si bien las narrativas dominantes sobre el imaginario logístico hablen de cadenas automatizadas, la logística es un sector laboral que emplea a millones de personas a nivel global. Al interior de las actuales cadenas de producción la logística expresa la capacidad de entrelazar y multiplicar figuras y regímenes de trabajo lejanos y diferentes gracias a tecnologías y sistemas de transporte en continua evolución. A su interior se encuentran formas de semi-esclavitud y futuristas, trabajo dirigido a través del más clásico mando de la línea de montaje y trabajo organizado vía app y algoritmos.
La logística es por lo tanto un laboratorio para viejas y nuevas técnicas gerenciales, pero también terreno de experimentación para la organización del conflicto social con la proliferación de caminos de sindicalización, de sabotaje, de participación comunitaria, de formas inéditas de composición y de subjetivación autónoma de los trabajadores y las trabajadoras. Entonces al mismo tiempo divide y crea posibilidades inéditas de conjunción entre trabajadores en escala global, desconectándolos pero aumentando su poder a partir de la posición estratégica que ellos ocupan al interior de las cadenas de abastecimiento.
Logística es… producción
La logística históricamente se presenta como ámbito intermedio en el proceso productivo, es el momento marxiano de la circulación, conector entre producción y consumo. Transporte, mantenimiento, y almacenamiento son actividades donde el capital invertido abarata los costos para el desplazamiento. Separación, externalización, intensificación de los intercambios, su rápida aceleración gracias a las nuevas tecnologías, han al mismo tiempo destrozado los precedentes procesos productivos en óptica de la minimización de los costos del trabajo – además de su intensificación, el almacenamiento, y la distribución.
Sin embargo, la logística hoy tiende a escapar de su carácter de simple “sector” para hacerse más bien infraestructura y lógica organizadora de todo el ciclo. De hecho, con la “contra-revolución logística” la circulación viene definitivamente organizada en escala capitalista, ya no más mercantil. Hay entonces una inversión de capital que matiza los confines entre producción, circulación, y consumo. O más bien: vivimos al interior de un modo de producción a tracción logística donde la distribución (retail revolution) tiende a conducir la producción (en el sentido de dictar los estándares productivos y de definir los ritmos).
Logística es… reproducción
La logística «agrega valor» y «realiza ganancia». El problema del valor es legible en términos de minimización de costos, es decir de cómo la logística en general sea – en relación al trabajo social, que se despliega en escala global – una herramienta de reducción del trabajo socialmente necesario a la reproducción de la fuerza de trabajo (que de otro lado significa aumento de la plusvalía extracta).
Esta transformación logística hace salir la producción de aquellos que eran sus propios sitios originarios, para invadir las esferas de la circulación y reproducción. Si entonces “el exceso” de demandas sociales (para políticas públicas, derechos, y salarios) hace saltar el modelo-fábrica (y por ende, sea dicho de pasaje, una específica forma-Estado), allí donde lo social invade la producción se produce un tipo de contragolpe. La producción o, más bien, su forma industrializada, empieza a invadir formar lo social. Como consecuencia, las distinciones entre ámbitos productivo y reproductivo, distributivo y de consumo, tienden a hacerse cada vez más porosas. Pero, como ya dijimos, dicho cambio es problemático.
Logística es… tecnología
El papel central que el consumo ha adquirido en la sociedad contemporánea es, entre otras cosas, el producto de una re-estructuración tecnológica: el paradigma reticular substituye a la lógica de la concentración l de la distribución; al poder de la técnica “caliente” aquello frio de la tecnología informacional; a la física nuclear la “metafísica” cibernética; al horizonte histórico del mundo fabril aquello de la información. El “modo de producción a tracción logística” encuentra en la llamada “Cuarta revolución industrial” un pasaje fundamental. No sólo debido a la híper-conexión informatica de Internet, sino también por los procesos y formas que toman el nombre de digitalización, automatización, e-commerce, gig economy, platform capitalism ecc… no son otra cosa que la actual condensación de la serie de trazas genealógicas que hemos mencionado, representan las últimas fronteras de expansión intensiva y extensiva del capital hacia un modo de producción a tracción logística.
Estas formas “deslumbrantes” se basan sin embargo en la coexistencia de high-tech y arcaísmos en la explotación del trabajo, mostrando una vez más la no-linealidad del desarrollo, su cáracter no progresivo. La tecnología encarna la relación social sin ser meramente técnica – y la técnica no es meramente instrumento, es condensación del comando sobre el trabajo. La logística además implica y produce incorporación del saber técnico.
Las máquinas trabajan dentro de una relación social. Como capital fijo producto de saberes expropiados al trabajo vivo, son expresión del comando d¿sobre el propio trabajo. Pero al mismo tiempo justamente en las posibilidades de “re-apropiación” de tal capital fijo se define un campo de liberación posible.
12. Logística es… una lente
La logística no es simplemente un paradigma particular sino también una lente para visibilizar flujos, canales, nodos, puntos de ruptura, articulaciones, que a menudo resultan inaccesibles, escondidos, obscuros, como datos de una black box. Adoptar una mirada logística entonces significa construir la ontología del presente a partir de los movimientos y resistencias de los sujetos que se constituyen al interior de estos flujos. En un mundo en el cual la movilidad se hace paradigma general de articulación, la logística se vuelve objeto entre tensiones diferentes: entre gobierno de la movilidad y líneas de fuga, entre movimientos de capital y autonomía del trabajo.
Queremos sin embargo tener cuidado. No queremos hacer de la logística una nueva metáfora para describir el capitalismo, ni una lógica unitaria o única. La consideramos una lente importante que permite de observar algunas dinámicas cruciales. Pero al mismo tiempo es necesaria una atención particular también a lo que está afuera de la logística. Asumir la centralidad de los momentos de “encuentro” y de las fricciones entre racionalidad logística y una multiplicidad de mundos productivos y de la vida que funcionan según otras lógicas es fundamental no sólo políticamente (debido a los conflictos y luchas que se determinan alrededor de estos encuentros y fricciones), sino también teóricamente – para evitar de fortalecer aquella imagen de autosuficiencia y de auto-referencia que la logística tiende a producir a través de la continuidad de sus operaciones.
Logística es… un método
El carácter múltiple de la logística impone que para entenderla se adopte un método colectivo y transdisciplinar que entre otras cosas no la reduzca al presente sino que considere las estratificaciones históricas y ponga en relievo las posibles líneas de ruptura. Proponemos “una mirada política”, porque el punto de discontinuidad respecto a los actuales estudios es pasar del preguntarse “¿Cómo?” al preguntarse “¿Porqué?, de una fenomenología a una hermenéutica de la logística, de una “descripción” de como esta funciones a una discusión sobre su carácter político – en el comando sobre el trabajo, en la construcción de espacios urbanos ecc…
Si la logística es la “constitución material de la globalización”, se trata de mostrar los conflictos y campos de tensión en los cuales esta se produce. Ya que en nuestro enfoque la logística representa un campo que permite enfrentar contemporáneamente “estructura” y “subjetividad”, es necesario unir etnografía – como saber situado, en profundidad, de campo – y capacidad de abstracción teórica para investigar “lo global”. Al pluralismo metodológico hay que integrar una capacidad de detectar al mismo tiempo múltiples escalas que apunte no sólo a distinguirlas sino a conectarlas y comprender la continuidad, por ejemplo entre el movimiento de una caja al interior de un almacén, el almacén en el contexto urbano, el contexto urbano en las redes continentales, hasta las cadenas globales de abastecimiento – y viceversa.
Breve apresentação do livro Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado por plataforma digital
Por: Ricardo Festi, Professor de Sociologia da UnB.
Disponível em: https://lutasanticapital.com.br/products/um-horizonte-de-lutas-para-a-autogestao-o-trabalho-organizado-por-plataforma-digital
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Toda luta das trabalhadoras e dos trabalhadores que transborda os objetivos imediatos e estritamente corporativos coloca em evidência os problemas das formas de organização dessas lutas, ou seja, apresenta os germes da contestação do poder capitalista. Em última instância, o que está em jogo na acumulação do capital é quem e como se controla o tempo e a expropriação da riqueza produzida pelo mundo do trabalho. Quando este se insurge, ainda que numa minúscula escala, e questiona as lógicas de reprodutividade do capital, todo o sistema é questionado. Esta perspectiva de análise e horizonte político poderá parecer utópica diante da miséria do possível vista nas esquerdas institucionais e reformistas e, principalmente, da total desagregação do mundo do trabalho nas últimas décadas, com consequências significativas sobre os aspectos objetivos e subjetivos deste. Assim, pergunta-se onde estão os sujeitos e sujeitas da transformação no século XXI. Aliás, recorrentemente se questiona, nos círculos mais radiais e ousados, se ainda existe possibilidade de emancipação social. Outros desconfiam da centralidade do trabalho e de seus agentes para a revolução. Uma resposta para essas questões já vendo sendo dada pela intelectualidade radical e comprometida com a luta social em todo mundo. No entanto, nenhuma resposta pode ser definitiva, pois ela deve se defrontar com a práxis e, principalmente, com a experiência das lutas. Este livro, organizado por Ricardo Toledo Neder e Flávio Chedid Henriques, apresenta uma parte destas lutas e vivências com potencial emancipatório. São treze artigos de pesquisadores, militantes sociais e trabalhadores de plataformas digitais que refletem sobre a atualidade da economia solidária.
Por: Roberto Moraes Pessanha
Disponível em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/teoria-e-se-estivermos-a-beira-do-plataformismo/
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A ordem do capital segue vigente. O que mudou foi sua forma. Assim como abandonou o fordismo, sistema cria hoje um novo regime de exploração, ainda mais brutal, pervasivo e apoiado na tecnologia. Só a luta política permitirá superá-lo
O título deste texto é, evidentemente, uma provocação e, simultaneamente, um estímulo para reflexões e análises sobre o fenômeno da digitalização na perspectiva de sua totalidade no andar superior da superestrutura. Aqui se tem um artigo-síntese de um ensaio mais extenso – e com o mesmo título – que está sendo publicado como capítulo do livro Capitalismo X Cooperativismo de plataforma: Diagnóstico e propostas para a organização da classe trabalhadora*.
Em cinco séculos, o mundo saiu do feudalismo e da era agrária para um período industrial, já sob a égide do fordismo. O advento da reestruturação produtiva faz surgir o toyotismo e a ampliação dos serviços, já na perspectiva da acumulação flexível, hegemonia financeira e do neoliberalismo. Inovação tecnológica e a digitalização de quase tudo ampliaram-se, imbricadas à financeirização. Expandiu-se a ideia difusa de progresso e do fetiche da tecnologia, quase desconsiderando o fato do seu desenvolvimento ser fruto do trabalho humano, ao qual sempre esteve umbilicalmente vinculado. Capitalização e valorização se misturam entre fundos financeiros e plataformas digitais como instrumentos e infraestruturas de intermediação da comunicação e da produção, de onde emerge o plataformismo, como nova etapa do Modo de Produção Capitalista (MPC). Combinando e integrando princípios do fordismo e do toyotismo, o plataformismo tem acelerado as desigualdades, a precarização do trabalho e a dominação tecno-digital, ampliando a hegemonia financeira em todos os setores, espaços e dimensões da vida na sociedade contemporânea.
A dimensão do desenvolvimento e da inovação tecnológica com a ampliação da digitalização da vida social, junto com a ideia difusa de progresso e da explosão de startups (processo de startupização), acompanhada ainda do fetiche da tecnologia, ganhou corpo no campo das pesquisas em tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Um campo que também investiga o assunto das redes, as questões culturais, sóciocomunitárias e ainda as relações de poder e política que remetem à geoeconomia e à geopolítica numa outra forte interação com o campo de estudos da geografia e do espaço.
A dimensão econômica é mais clara e está presente na denominação do conceito (ou ideia) da economia de plataformas ou do capitalismo de plataformas e que tem ampla interface com as pesquisas sobre geoeconomia e espaço, mas também com a organização do trabalho, as etapas do MPC e com a crescente precarização do trabalho. A dimensão econômica também analisa a hiperconcentração das Plataformas Digitais (PDs), a oligopolização das Big Techs (Plataformas-raiz), o circuito de extração de valor e a intensa relação com a financeirização que juntos remetem a um novo ciclo ainda mais perverso de acumulação.
Porém, é na dimensão do trabalho e do MPC que emerge de forma mais evidente a lógica da racionalidade neoliberal de administração da vida e do cotidiano, incluindo a hiperindividualização da fábrica do sujeito-empresário, aquele que julga que se faz por si próprio (DARDOT e LAVAL, 2017). [1] Essa lógica presente no ambiente digital tem favorecido o surgimento desse “tripé do capitalismo contemporâneo”. Em síntese, a gênese do plataformismo trata da maciça digitalização, em nova etapa da reestruturação produtiva que vem dando suporte à ampliação da hegemonia financeira, sob a égide do neoliberalismo com o mercado ampliando o seu espaço na direção da vida em sociedade.
A abordagem não trata do tema – ao contrário – como superação do fordismo e nem do toyotismo, mas do convívio, ampliação e uso mais intensivo de ambos, aprofundando alguns princípios, em especial, do taylorismo: a supervisão, controle e a exploração, com o apoio das ferramentas cibernéticas e de infraestruturas tecnológicas. Através da intermediação do ambiente das plataformas digitais surgem enormes ganhos de produtividade, em especial na etapa de circulação, o que acaba ensejando não apenas as transformações no MPC, mas nas entranhas e na intensidade deste novo ciclo de acumulação.
A reestruturação produtiva na atual fase de colossal digitalização – ou transformação digital – vem sendo acompanhada de processos e usos intensivos das plataformas que se desenrolam a partir do incremento de tecnologias da informação e comunicação (TIC) com uso da internet, inicialmente fixa e depois móvel e em velocidades crescentes (5G, 6G).
Segundo o dicionário o Aurélio “plataforma” é uma superfície plana e horizontal, mais alta que a área do redor. Pode ser ainda, um programa político, ideológico e ou administrativo de um candidato a cargo eletivo (em escolha). Ambas definições se aproximam e ajudam a iniciar a compreensão sobre o fenômeno da plataformização com a substantivação do processo de intermediação exercida pelas plataformas digitais que servem de instrumento para essa superfície interligar a produção ao consumo. Trata-se, portanto, de um meio, um instrumento de intermediação.
Em síntese, as plataformas digitais (PDs) podem ser vistas, de forma simultânea, como meio de produção e/ou como meio de comunicação. Ambos interligam a produção ao consumo e se configuram como circulação dentro da tríade marxiana (produção, circulação e consumo). Como meio de comunicação vemos as PDs usando as redes digitais e as mídias sociais (Facebook, Google, Twitter, TikTok, Youtube, Facebook, Instagram, WeChat, etc.) trocando informações e extraindo dados, através de imensas infraestruturas digitais (PESSANHA, 2023), gerando relações de poder (política) e negócios que aparecem sob a forma de PDs que interligam a produção (Amazon, Alibaba, Shopee, Mercado Livre, Americanas, Via Varejo, Magalu, etc.) ao consumo final. [2]
As PDs como meio de produção movimentam-se entre o intangível (virtualidade) do digital e a materialidade da infraestrutura logística de entregas, lembrando que o abstrato do digital também prescinde de enorme e colossal infraestrutura material de comunicação entre aparelhos, redes, torres, cabos submarinos, datacenters, etc. (PESSANHA, 2023). [3]
As PDs fazem a intermediação usando o mecanismo de captura e também de envio, bidirecional, extraindo valor tanto na ida quanto na volta, na lógica do serrote que corta dos dois lados. Além da conectividade e intermediação, as PDs permitem o rastreamento da informação que junto da captura de dados permite a extração de renda que também se efetua na etapa de circulação entre a produção e o consumo.
As PDs como meio de comunicação melhor identificam potenciais consumidores de coisas e serviços demandados. Todos na condição de “usuários” das mídias sociais que articulam de forma intensa a vida na sociedade contemporânea.
Em 2023, mais de 2/3 da população do planeta se utilizavam das principais mídias sociais. Na condição de usuários eles disponibilizam seus dados que, ao serem extraídos, se transformam em commodities (metadados) e são armazenados em Big Datas e a seguir processados, a partir da orientação dos algoritmos. O uso ampliado da digitalização para além das mídias sociais, dentro do que hoje se chama de Economia de Dados, permite estimar que o volume de dados produzidos no mundo deve passar dos 33 zetabytes que estava em 2018, para 175 zetabytes em 2025, ampliando para 291 zetabytes em 2027 [4]. Algo inimaginável que demonstra o domínio da tecnologia digital como um setor transversal que como as finanças atravessa todos os demais.
As Big Techs com esse potencial e esses recursos vendem publicidade direcionada a partir da promessa de interligar os consumidores aos grupos de produtores de quase tudo no mundo contemporâneo (assunto que será tratado adiante com os três principais tipos de rendas extraídas com as PDs). Assim fica exposta a lógica da intermediação que com o uso da infraestrutura das plataformas cria as condições de reger o processo plataformização.
As PDs atuam com eficiência extraordinária para capturar os excedentes econômicos regionais/nacionais em diferentes setores econômicos (vistos também como frações do capital – PESSANHA, 2019, p. 62-69), para levá-los, no seu movimento de valorização, em direção ao andar superior das altas finanças – movimento vertical (figura 1 abaixo) – a partir da ampliação dos rendimentos (mercado de capitais e fundos), onde realizam maiores lucros e acumulação, em processos que misturam a valorização (produção real) com a capitalização (capital fictício da financeirização) no movimento que chamei de capital helicoidal [PESSANHA, 2019, p.177-192].[5]
As PDs não acrescentam valor em movimento, mas evitam a desvalorização na etapa de circulação da qual faz parte, quando efetiva a apropriação pela função que realiza. Daí se depreende com maior potência e clareza, a lógica da plataformização, a condição das “plataformas-raiz”, das quais dependem os aplicativos e produzem o gigantismo das Big Techs.
Não é possível compreender a lógica da plataformização sem observar a articulação entre o circuito do valor, a financeirização (fundos de investimentos e circuito financeiro global), a inovação tecnológica, o uso ampliado das PDs e a “startupização” (PESSANHA, 2020, p.438) vistas nos dias atuais, em que a tecnologia se torna também propriedade (marcas, patentes e copyright). A tecnologia e o capital, como propriedades e como frações de classe, ampliam a captura de renda do trabalho na base da pirâmide.
Srnicek (2021) aprofundou a interpretação do capitalismo de plataformas definindo os três tipos de renda principais extraídos via plataformas-raiz. A conexão digital (transformação digital) extrai e organiza os dados na etapa de “dataficação” que é parte da etapa mais recente das mudanças decorrentes da reestruturação produtiva global e que vai resultar na mudança do MPC com a ascensão do plataformismo.
Afinal, estamos ou não diante de uma nova etapa do modo de produção capitalista (MPC)? Há ou não elementos para essa hipótese de uma nova etapa do MPC? Entendemos que sim e que essa seria, em grande parte, decorrente das alterações, inicialmente graduais, do desenvolvimento da microeletrônica e de forma acelerada nas últimas décadas, produzidas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. Uma sociedade industrial tradicional que vai passando por mudanças na produção material, organização das cidades e em paulatina transição para uma sociedade, majoritariamente de serviços, mais conectada e interligada a novos tipos de trabalho e vida em sociedade. Em síntese, uma reorganização do trabalho que contribui para o surgimento de uma espécie de “sociedade das plataformas”.
As transformações produzidas por essa nova etapa da reestruturação produtiva, centradas na chamada transformação digital, ensejam análises mais arrojadas, em que pese ganhar ainda mais importância e ressignificação com a teoria marxista da renda e do valor. As noções de capital constante (fixo), ligadas aos meios de produção (e comunicação), à propriedade, ao capital variável e, especialmente, ao trabalho e ao processo de produção seguem compondo a tríade de classes identificada por Marx: terra (propriedade) – trabalho – capital. Ganha também relevância a noção do capital dividido em frações para se compreender as alterações produzidas pela digitalização e pelas plataformas digitais no modo de produção capitalista.
A partir do contexto apresentado sobre as PDs como meio de produção e meio de comunicação, numa lógica de controle que as plataformas-raiz (Big Techs) realizam enormes extração de renda e valor tendo levado ao gigantismo das empresas de tecnologia em processos que Srnicek chamou de capitalismo de plataformas é, então, possível reposicionar a pergunta: seria o plataformismo uma nova etapa do Modo de Produção Capitalista? Em que o plataformismo se diferencia das duas etapas anteriores: fordismo e o toyotismo? Nem uma e nem outra etapa, foram totais em termos de utilização como modo de produção nos seus períodos de picos de implantação conforme se pode ver na figura-2 abaixo.
A passagem do fordismo para o toyotismo representou alterações na organização do trabalho, na hierarquia, disciplina e supervisão para uma produção sob demanda do Just-in-Time. As mudanças foram também fruto das reações da classe trabalhadora às pressões da supervisão e do controle por produtividade que ganhou corpo, em especial, após a IIª GM. Daí surge a ideia não apenas do JIT, mas o Kanban, a melhoria contínua (Kaizen), a terceirização, etc. O toyotismo não envolvia maquinaria, era muito mais a “persuasão” e novas formas de organizar o trabalho, a planta da empresa (processos e fluxos). Assim, se avançou ainda para flexibilizações, a participação, o enriquecimento de cargos, o modelo sueco da sociotécnica (Volvo), os CCQs (times), sindicalismo de empresas, a financeirização, o capitalismo flexível, mas tudo isso visou maior produtividade e admitia um convívio, mais ou menos intenso, com o taylorismo.
O fordismo se expandiu muito na utilização do tempo e do espaço e está ainda muito presente com maior ou menor grau de automação. O toyotismo desde o seu surgimento, a partir das décadas de 70/80, não chegou sequer a ser dominante, nem mesmo na indústria automobilística japonesa. O fordismo se reorganizou embaralhado à acumulação flexível e às técnicas de organização do trabalho vindas no bojo do sucesso do toyotismo, assim como ganha novos desenhos e impulsos com o aprofundamento da chamada Transformação Digital nessa nova fase da reestruturação produtiva e com o advento das plataformas.
As plataformas digitais aceleraram a flexibilidade e tornaram os processos de acumulação decorrentes de tudo isso, muito mais denso e fluido. As mudanças não se dão apenas na planta das empresas (processos e fluxos), mas na articulação do sistema como um todo. A velocidade de circulação e a fluidez das mercadorias e do capital se ampliaram de forma colossal. Vive-se numa hipermobilidade com uma “quase revolução” da etapa de circulação e da logística, reduzindo os custos de transportes e a desvalorização das mercadorias, em função do menor tempo entre a produção e o consumo. Nessa trajetória se adentrou num período com condições objetivas e materiais que Taylor e/ou Ford jamais imaginaram – ou sequer sonharam –, em termos de controle de todo o processo, desde a produção, a circulação indo até a etapa do consumo, hoje exercidos a partir da intermediação das TIC digitais.
É fato que se trata de mudanças muito aceleradas produzidas pela digitalização de quase tudo (Transformação Digital) que induzem a um deslocamento mais amplo do capitalismo, em que a hegemonia financeira também se expandiu, junto com a acumulação ainda mais flexível e ampla do dinheiro, já sob a condição de informação e registros digitais. Portanto, não se trata da superação do fordismo e nem do toyotismo, mas de um plataformismo que amplia o convívio desta nova etapa do MPC, integrando de forma ainda mais intensiva, os princípios e as características das etapas anteriores do sistema capitalista de produção.
O plataformismo faz surgir novos tipos de empresas e negócios: empresas-plataformas, empresas-aplicativos (APPs), e-commerce, marketplace (shoppings virtuais), etc. Assim vão incorporando também novos linguajares: nuvem (armazenagem de dados), aprendizado de máquinas (machine learning-ML), robôs, etc. A característica fundamental é a infraestrutura das plataformas, similar ao que foi a linha de montagem no fordismo, fazendo a mediação (simbiose) entre a virtualidade do digital e a materialidade do real. A infraestrutura das PDs também faz a mediação das relações entre diferentes grupos de usuários, com efeitos de rede e com arquitetura central que controla as possibilidades de interação (Srnicek, 2018). [7] [8] [9]
O plataformismo por todas essas características já descritas da economia de plataformas, aprofunda o taylorismo, a supervisão, o controle e a exploração com o apoio das ferramentas cibernéticas de intermediação do ambiente das plataformas digitais. Com a digitalização, os colossais ganhos passam o discurso de que produtividade seria também fruto da superação das imperfeições humanas, embora, elas ocorram de forma especial na etapa de circulação. Tudo isso enseja uma interpretação de que elas estariam permitindo não apenas transformações no MPC, mas no surgimento de um novo ciclo de acumulação ainda mais intenso e denso na direção do andar superior da pirâmide do capital (ARRIGHI, 2005). [10]. Rever figura 1: lógica da plataformização e o circuito do valor (valorização).
Com a intermediação realizada pelo plataformismo, o taylorismo e o fordismo reaparecem num ambiente de plataformas digitais nos controles e registros feitos pela maquinaria cibernética, fazendo com que a etapa de circulação da tríade marxiana se reduza enormemente (numa tendência em direção a zero). Articula-se o uso da comunicação virtual-digital das redes interligando-as às infraestruturas materiais de logística portuária, ferroviária, aeroportuária e rodoviária. Transporte (rastreado online) levam as mercadorias dos produtores até os consumidores finais, produzindo resultados econômicos que explicam o gigantismo das corporações de tecnologia, como nenhum outro tipo de companhia registrou antes. Assim, a chave para compreender plataformismo se situa na interface entre a “virtualidade do digital e a materialidade do real”, exatamente a etapa de circulação no interior da tríade do MPC.
Assim, o plataformismo parece ter absorvido a parte mais danosa ao trabalhador oriunda do taylorismo/fordismo que é a hierarquia, com o controle e uma supervisão quase total que passam a ser ampliados a partir do aperfeiçoamento do ambiente online, gerado pelas plataformas digitais como meio de comunicação e tudo isso se dá num patamar superior, àquilo que já se fazia o toyotismo, em termos organização e reorganização permanentes da produção. Portanto, o que surge da entrada da infraestrutura digital é algo distinto das etapas anteriores do MPC. Há uma mescla (integração) de princípios e características do fordismo e do toyotismo viabilizadas pelas PDs (como condições gerais de produção), em especial nas plataformas-raiz, agregadas e/ou interligadas às demais (plataformas, softwares ou aplicativos-APPs) nessa nova etapa do MPC, germinado pelo sistema informacional que gera o plataformismo. Por tudo isso, o plataformismo merece ser visto e analisado na perspectiva da totalidade do MPC, para além das leituras parciais, por dimensão e/ou escala, de forma fragmentada e algumas vezes superficial.
Este ensaio deixa evidente a profunda relação entre tecnologia e trabalho que historicamente são imbricados como afirma Grohmann (2020) [11], que também lembra que as tecnologias são fruto do trabalho humano e que o desenvolvimento tecnológico se refere às forças produtivas e às relações de produção. Grohmann também recorda Marx que disse que “as tecnologias são recheadas de trabalho humano” ajudando explicar o contexto do fenômeno aqui investigado.
Os processos, agentes, as classes e seus movimentos aqui analisados, a partir do expressivo e acelerado avanço da digitalização e da maior utilização das plataformas no mundo contemporâneo, partem exatamente da leitura que o trabalho humano nunca deixou de estar no centro do modo de produção capitalista. A interrogação no título sobre a existência ou não de uma nova etapa do MPC, visou estimular o desejo de debates sobre essa hipótese, embora o texto exponha uma leitura que reforça e tenta sustentar a dimensão e direção destas mudanças. Isso não foi feito por acaso, mas de forma proposital, para dialogar com os leitores, demais pesquisadores e com os trabalhadores a partir de sua visão de classe, no âmbito da discussão que se insere na temática mais geral entre tecnologia e sociedade.
Na articulação entre o rentismo financeiro e a economia real observa-se que também avança a profunda relação entre tecnologia e finanças. A tecnologia foi deixando de ser fator de produção e subiu para a superestrutura com inovação tecnológica digital e de processos (tipo plataformas, startupização, etc.) que contribui para ainda maior extração de renda e valor de várias atividades e tem levado ao gigantismo e à dominação digital das Big Techs e à hegemonia do capital financeiro lubrificado pelos fundos entre ativos reais e financeiros. Uma substituição em que os capitalistas produtivos vão deixando de investir e sendo substituídos pelos donos de ativos (fundos) que passaram a controlar ativos reais e financeiros nas várias frações do capital.
O plataformismo misturado às finanças tem gerado uma indução ainda mais forte ao consumismo em função da propaganda dirigida e focada. A inovação tecnológica e a startupização apoiadas pela hegemonia financeira dos capitais de risco ampliam e potencializam ainda mais o avanço desse processo. Os fundos de investimentos junto com as PDs financeiras foram conferindo maior potência e uma hipermobilidade ao capital. A startupização reduziu os riscos dos negócios que, em tese, explicariam as margens de lucro das empresas no capitalismo.
Há muito ainda a ser analisado entre a digitalização/plataformização e a mobilidade do capital. As PDs são instrumentos que garantem a hipermobilidade do capitalentre suas frações. A aliança entre a dominação digital e a hegemonia financeiratambém expande a extração de renda em direção ao andar superior. A fluidez e hipermobilidade espacial obtidas pelo capital financeiro (fundos) através da digitalização, explica a característica intersetorial de ambos, que juntos se expandem de forma ainda mais intensa e imbricada nos tempos atuais.
As Big Techs (PDs planetárias) extraem mais valor e assim exacerbam as desigualdades de classe entre proprietários e trabalhadores e também a assimetria entre as nações, quando épossível enxergar o “deslocamento do capitalismo”. Assistimos ainda disputas intercapitalistas por maior capacidade de extrair renda, ampliar lucros e dominar num processo em que as infraestruturas das plataformas digitais e o plataformismo, como nova etapa do MPC, contribuem para ampliar e adensar a relação entre a dominação técnico-digital e a hegemonia financeira, sob a égide e a racionalidade neoliberal dos mercados, desenhando o que, junto com outros pesquisadores, tenho chamado de “tripé do capitalismo contemporâneo”.
Só a política pode conter esse processo que amplia as desigualdades, muda comportamentos e esgarça o processo civilizacional. Esforços contra-hegemônicos têm sido desenvolvidos e tentados, mas ainda com limitações para enfrentar o gigantismo do monopólio ampliado pelo capitalismo de plataformas. Espera-se que o uso coletivo do conhecimento, como bem intangível e riqueza multiplicável, possa ser adiante compartilhado e utilizado na direção do pós-capitalismo.
[1] DARDOT, P. LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boi Tempo. São Paulo, 2017.
[2] PESSANHA, R.M. Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística. In: Marcas da Inovação no Território, Vol. II (P.45-71). Org.: EGLER, T., Costa, A. KRAUS, L. Editora Letra Capital. Rio de Janeiro. 2020.
[3] PESSANHA, R.M. Infraestrutura digital, extrativismo Hi-Tech (ExHT) e capitalismo de plataformas: artérias digitais escancaradas da AL – Uma homenagem a Galeano. No prelo, In: As geografias da economia política da América Latina. Rio de Janeiro. 2023.
[4] GÖRGEN, James. Um Nobel contra as Big Techs. Jota em 27 fevereiro 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-nobel-contra-as-big-techs-27032024#:~:text=Nada%20como%20um%20Nobel%20falando,um%20artigo%20recente%5B1%5D
[5] PESSANHA, R. M. A ‘indústria’ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
[6] PESSANHA, R.M. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In: Geografia da Inovação: Território, Redes e Finanças. (P.433-468). Editora Consequência. Rio de Janeiro. 2020.
[7] SRNICEK, Nick. Capitalismo de Plataformas. Caja Negra: Buenos Aires, 2018.
[8] SRNICEK, N. Value, rent and platform capitalism. In:Work and Labour Relations in Global Plataform Capitalism. HAIDAE, J. e KEUNE, M. Ilera/E.Elgar. 2021.
[9] SRNICEK, N. Valor, renda e capitalismo de plataforma. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. Vol. 24 Nº 1. Janeiro-abril 2022. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/24920
[10] ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.
[11] GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo, 2020.
Por: Fernando Nogueira da Costa
Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/urbanizacao-em-lugar-de-industrializacao/
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Para entender a estratégia de sobrevivência da maioria da população, temos de pesquisar e estudar mais a dinâmica urbana
A tradição do nacional-desenvolvimentismo foi a defesa da industrialização no Brasil para tirar o atraso histórico. Uma parte da esquerda, nos anos 1950s, defensora do “socialismo em um só país”, isto é, na URSS, chegou a defender ardorosamente a aliança da classe operária com a burguesia nacional com esse propósito, dispondo a aceitar os baixos salários reais sem reposição!
Outra parte, nos anos 1970s, fundadora da Escola de Campinas, antecedente do social-desenvolvimentismo (“a socialdemocracia nos trópicos”), colocou o foco no problema da especificidade do capitalismo periférico, destacando as peculiaridades da industrialização aqui. Nossa história econômica deveria ser reinterpretada como a de um “capitalismo tardio”.
A industrialização, nessa etapa tardia, era contemporânea do capitalismo monopolista nos países mais avançados. As diferentes características dela se deviam às forças produtivas de cada fase do capitalismo serem distintas.
Havia então diferentes bases técnicas das quais deveria partir a industrialização de cada país. A historicidade das forças produtivas capitalistas levava à necessidade de o país adotar um planejamento estratégico direcionado para a etapa da industrialização pesada dar um salto tecnológico.
Envolvia problema de escala, relacionado à ainda diminuta dimensão do mercado interno, dada a concentração de renda. Exigia mobilização e concentração de capital suficiente para o investimento na infraestrutura e indústria pesada, mas a acumulação de riqueza financeira ainda não era disponível no sistema bancário comercial brasileiro. Concedia apenas empréstimos para capital de giro.
Em seu quarto ensaio sobre economia brasileira, no livro de 1972, Maria da Conceição Tavares mostrou a estrutura dos haveres financeiros entre 1964 e 1970. no ano da reforma bancária, pós-golpe militar, os ativos monetários representavam 88,4% deles, e no ano do louvado “milagre econômico” baixaram para 61,1%. Papel-moeda foram de 18,8% para 10,9%, depósitos à vista de 69,6% para 50,2%.
Os ativos não-monetários passaram de 11,6% para 38,9% nesses seis anos, surgindo aceites cambiais (13,6%), ORTN (10,9%), depósitos a prazo (7,3%) e depósitos de poupança (3,2%). A correção monetária permitiu o sistema financeiro manter o valor real dos seus ativos e dos clientes em períodos de inflação alta.
Aplicações bancárias, como cadernetas de poupança e títulos públicos, passaram a ser indexadas à inflação, garantindo os depósitos e os investimentos preservarem seu poder de compra. Isso atraiu mais poupança para o sistema bancário e ajudou a evitar a desintermediação bancária, ou seja, a fuga de recursos para ativos não financeiros (como imóveis ou dólar), típicos de ambientes inflacionários. Essa “desfinanceirização” acontece até hoje na vizinha Argentina.
Ao garantir rendimentos reais positivos, em período de inflação elevada, as aplicações financeiras corrigidas monetariamente incentivaram a formação de funding (fonte de financiamentos) interno. As pessoas e empresas passaram a manter seus recursos dentro da rede bancária urbana, contribuindo para a acumulação de capital e o crescimento das reservas financeiras nacionais.
Já é hora de a esquerda rever seus conceitos – a direita nunca foi de estudar – quanto à particularidade nacional. Terá sido a indústria “o carro-chefe” da economia brasileira ou, de fato, o desenvolvimento foi mais urbano em lugar de industrial? Os serviços urbanos – e não os poucos empregos na indústria regionalmente centralizada – não foram o fator de atração para emigração campo-cidade, além do grande fator de repulsão pelas péssimas condições sociais rurais?
José Eustáquio Diniz Alves publicou, digitalmente, o imperdível livro Demografia e economia, em comemoração dos 200 anos da Independência do Brasil. Propicia dados e fatos necessários para essa revisão histórica. Uso-os em seguida.
No século XX, a população brasileira cresceu quase 10 vezes (de 17 milhões em 1900 para quase 170 milhões em 2000), representando uma taxa média de crescimento geométrico de 2,3% ao ano. Multiplicou-se 46 vezes nos 200 anos da Independência. As maiores taxas de crescimento demográfico no Brasil aconteceram nas décadas de 1950 e 1960, ainda sem pílula anticoncepcional.
Os determinantes da queda da mortalidade foram o enriquecimento do padrão nutricional, a melhoria nas condições de higiene e saneamento básico, especialmente água tratada, e o avanço da medicina e do acesso ao sistema de saúde. Os determinantes da queda da natalidade foram o aumento da renda, a elevação do nível educacional, o acesso ao trabalho assalariado principalmente com a urbanização em vez da industrialização, a entrada da mulher no mercado de trabalho, a maior autonomia feminina e a redução das desigualdades de gênero, o aumento e a diversificação do padrão de consumo, a ampliação do sistema previdenciário, a universalização do acesso aos métodos contraceptivos e a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos. Todos foram fenômenos urbanos!
Durante a maior parte da história brasileira, as taxas de natalidade eram altas para se contrapor às elevadas taxas de mortalidade e porque as famílias desejavam muitos filhos para ampliar a força de trabalho no campo. Porém, com a “reversão do fluxo intergeracional de riqueza”, os custos dos filhos subiram e os benefícios diminuíram. Os filhos deixaram de ser um “seguro” para os pais, já contando com o sistema público de proteção social e previdência, isso sem falar nos produtos financeiros criados, inclusive no setor privado, como reservas de segurança.
O Brasil foi um dos países do mundo com maior crescimento em termos populacionais e econômicos no século XX. Esse crescimento, em sua maior parcela, ocorreu no meio urbano, dada a criação da infraestrutura em transportes. As melhores décadas foram as de 1950 e 1970, época na qual a população ainda apresentava crescimento elevado e uma estrutura etária jovem.
O pior desempenho econômico ocorreu nas décadas de 1980, com o fim do Estado desenvolvimentista e o advento do neoliberalismo, e de 2010. A primeira década do século XXI marcou o melhor desempenho econômico pós-democratização. Mas a segunda década do século foi também a segunda década perdida com a explosão da bolha de commodities, em setembro de 2011, seguidas secas e inflação de alimentos, entre 2013 e 2016, e o erro técnico do Banco Central elevar a taxa de juro contra a quebra de oferta, provocando a desalavancagem financeira das empresas não-financeiras, endividadas devido ao Plano de Aceleração do Crescimento.
O choque de juros se somou ao choque do custo unitário do trabalho, choque cambial e tarifário em 2015, golpe semiparlamentarista em 2016. Provocou fuga de capital ou repatriamento de capital estrangeiro aplicado em ações brasileiras.
Diante tudo isso, a população brasileira sobrevive, principalmente, devido aos serviços urbanos. A agroexportação, bem como os minerais e o petróleo, propiciam superávit comercial para importação dos bens industriais necessários à montagem de bens de consumo duráveis vendidos no mercado interno.
Não é suficiente para cobrir o déficit no balanço de transações correntes com remessa de lucros, pagamentos de juros e patentes. O Investimento Direto no País por acionistas estrangeiros o cobre – e desnacionaliza ainda mais a economia.
Para entender a estratégia de sobrevivência da maioria da população, temos de pesquisar e estudar mais a dinâmica urbana. Em termos de grandes conglomerados urbanos, as três maiores regiões metropolitanas brasileiras, segundo as estimativas populacionais do IBGE de 2021, são as de São Paulo, com cerca de 22 milhões de habitantes, a do Rio de Janeiro com cerca de 13 milhões e a de Belo Horizonte com cerca de 6 milhões de habitantes.
Em 2021, o Brasil registrou 17 municípios com mais de 1 milhão de habitantes, com uma população de 46,7 milhões de habitantes, representando 21,9% da população nacional de 213,3 milhões de habitantes, segundo as estimativas do IBGE. Eram 326 municípios com mais de 100 mil habitantes, agrupando 123 milhões de habitantes, representando 57,7% da população total do país.
A população brasileira era de 51,9 milhões de habitantes em 1950, sendo 18,8 milhões (36,2%) no meio urbano e 33,2 milhões (63,8%) no meio rural. A população rural continuou crescendo em termos absolutos até 1970, quando chegou a 41 milhões de habitantes, mas em termos percentuais caiu para 44,1% da população total. A partir de 1970, a população rural iniciou uma trajetória de queda absoluta e relativa, caindo para 29,9 milhões de pessoas ou 15,7% da população total.
A população urbana cresceu continuamente durante todo o período e chegou a 160,9 milhões de habitantes, segundo o Censo Demográfico de 2010, representando 84,3% da população total. Portanto, conclui José Eustáquio Diniz Alves em seu informativo livro, cuja leitura recomendo a todos dispostos a rever a narrativa histórica tradicional, “o Brasil é um país predominantemente urbano e com um peso enorme das grandes cidades e regiões metropolitanas”.
Principalmente através de serviços urbanos, o PIB do Brasil cresceu 704 vezes entre 1822 e 2022, enquanto a população cresceu 46,3 vezes no mesmo período. Em consequência, a renda per capita cresceu 15,2 vezes no período. Um brasileiro médio recebe atualmente, em um mês, uma renda equivalente àquela recebida por um indivíduo médio de 1822 com cerca de 1 ano e 3 meses de trabalho. Melhorou, né? Também pudera, era um país escravocrata e rural…
por Ladislau Dowbor Publicado 18/07/2024 às 19:30 - Atualizado 18/07/2024 às 19:42
OUTRASPALAVRAS Disponível em: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/dowborquem-comandara-a-economia-do-conhecimento/
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Produção material já não reina absoluta. Conectados, rentismo e Big Techs voltam-se à captura de riqueza imaterial. Como isso alarga as desigualdades globais? Quais as táticas da captura digital? Como freá-la antes de que engula democracias?
Os Big Brothers estão observando você. A mudança sistêmica que estamos atravessando é extremamente lucrativa para os gigantes da gestão de ativos, mas também para a indústria das comunicações que captura e vende os nossos dados privados e nos conduz pelo nariz. O acesso deles a todas as nossas telas e ao nosso comportamento online nos aproxima de 1984. – Ladislau Dowbor
Estamos em meio a uma reorganização da nossa economia, na qual os proprietários de plataformas estão aparentemente desenvolvendo um poder que pode ser ainda mais formidável do que o dos proprietários de fábricas no início da Revolução Industrial. – Julieta Schor, 2020
Imagine um mundo em que cada pessoa do planeta tenha livre acesso à soma de todo o conhecimento humano. – Jimmy Wales , Wikipédia, 7 de março de 2024
O conhecimento é imaterial e, como tal, obedece a regras diferentes, em comparação com bens e serviços materiais. A presença dominante do conhecimento na economia moderna muda as regras.
André Gorz resume: “Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’ significa perturbações importantes no sistema econômico. Indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva e que, consequentemente, os produtos da atividade social já não são principalmente produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam elas materiais ou não, já não é determinado, em última análise, pela quantidade de trabalho social geral que contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimento geral, informação e inteligência. É este último, e não mais o trabalho social abstrato mensurável de acordo com um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É isto que se torna a principal fonte de valor e lucro e, portanto, segundo vários autores, a principal forma de trabalho e capital.”
O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento têm hoje em comum é que ambos são, precisamente, imateriais, ou “intangíveis”, como encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na velocidade da luz, na forma de sinais magnéticos, e no espaço planetário, alterando a antiga “territorialidade”, local de produção, fábrica ou fazenda, residência dos trabalhadores, espaços de socialização. O fenômeno se manifesta de forma ampla nas áreas que atualmente estão interligadas com comunicação e informação, como vemos nos gráficos abaixo.
O gigantismo está ligado à característica técnica básica dos sinais magnéticos, que circulam no planeta quase que instantaneamente, e o domínio dos mais fortes rapidamente se torna planetário. O grau de oligopolização das atividades é evidente, e aqui se trata também dos sinais imateriais, magnéticos, da comunicação e da informação, em que os volumes, na era dos computadores modernos, já não são problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se dominante, gerando a tão estudada batalha pela capacidade de atenção das pessoas, com o caos crescente de informação real, notícias falsas, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseados na invasão de comunicações pessoais.
Ainda mais impressionante é a osmose gradual dos subsistemas da economia imaterial, dos sinais magnéticos, quer representem dinheiro, conhecimento, informação ou comunicação, todos tendo em comum, nesse eixo principal para o qual se orientam a economia e a apropriação de valor, o fato de banharem o planeta, chegarem a qualquer pessoa e serem controlados por um número limitado de megacorporações. É interessante, nesse sentido, que a Amazon trabalhe com acesso a informações para terceiros, além da intermediação comercial, enquanto, por sua vez, a própria Amazon – mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft – é parcialmente controlada pelos três maiores gigantes financeiros, BlackRock, Vanguard e State Street. Isso cria um universo de controle multissetorial, com impacto planetário.
E não é secundário que também sejam predominantemente norte-americanos e estejam ligados à NSA e a outros sistemas de informação política, gerando a guerra contra a Huawei, Tiktok e outras corporações chinesas: os “mercados” se tornaram mais políticos, a política se tornou mais uma ferramenta para as corporações. Em outras palavras, ao rentismo que drena os recursos dos acionistas no topo da pirâmide financeira global, devemos acrescentar o controle algorítmico das pessoas e a submissão do universo produtivo à lógica do acionista vinculada à maximização de dividendos, e cada vez menos da parte interessada. O rentismo se torna um modo de produção. Ele não substitui as empresas tradicionais, sejam elas industriais, agrícolas ou de vários tipos de serviços, ou mesmo corporações privadas de saúde, ou universidades, mas as submete à sua lógica. Não se trata apenas de um dreno de recursos e da formação de uma poderosa elite rentista global: ele muda profundamente a forma como nos organizamos como sociedade.
O Facebook ganha 98,1% do seu dinheiro por meio de publicidade. Pode nos parecer gratuito, mas as empresas pagam a Zuckerberg e esse dinheiro é incorporado nos custos de tudo o que produzem. E pagamos tudo na compra dos produtos dos serviços. Em 2022, a Alphabet teve lucro líquido de 21,1%; a Meta, 19,9%; a Apple, 25,3%, e a Microsoft, 34,1%. 5 Esses lucros estão embutidos nos preços que pagamos. Um novo relatório que examina as causas da inflação demonstra que a ganância corporativa e o aumento dos salários dos CEO levaram a custos superiores ao necessário para os consumidores americanos nos últimos meses.
O relatório, da organização progressista Groundwork Collaborative, constatou que, somente nos dois últimos trimestres econômicos, 53 centavos de cada dólar de aumento de preços inflacionários foram devidos a lucros corporativos.” Na comunicação e em atividades semelhantes que envolvem intercâmbio, você precisa usar o veículo que os outros usam, ou ficará isolado. Isso se torna um “monopólio de demanda”, e eles cobram o que querem. A propriedade privada, na ausência de regulamentação ou concorrência, leva a um sistema em que eles o conduzem pelo nariz.
Há uma enorme contradição entre o fato de que o conhecimento em sua forma digital pode ser transformado em um universo mundial de acesso aberto, enriquecendo a todos, e a guerra das principais corporações GAFAM para chamar sua atenção e manipular seu comportamento. Isso resulta na deformação de nossas prioridades, conforme os interesses corporativos. Um exemplo é a explosão do câncer: “A previsão é de mais de 35 milhões de novos casos de câncer em 2050, um aumento de 77% em relação aos 20 milhões de casos estimados em 2022. O rápido crescimento da carga global de câncer reflete o envelhecimento e o crescimento da população, bem como as mudanças na exposição das pessoas a fatores de risco, vários dos quais estão associados ao desenvolvimento socioeconômico. O tabaco, o álcool e a obesidade são os principais fatores por trás do aumento da incidência de câncer, sendo que a poluição do ar ainda é um dos principais fatores de risco ambiental.” Bem, o tabaco, o álcool e a obesidade estão prosperando, com um marketing poderoso, mensagens individualizadas e muito sofrimento.
O controle da comunicação também está nas mãos dos principais fundos de gestão de ativos. “O setor é dominado por apenas três gigantes gestores de ativos americanos – BlackRock, Vanguard e State Street, as ‘Três Grandes’ – sendo a BlackRock o claro líder global. Em 2017, as Três Grandes juntas tornaram-se as maiores acionistas de quase 90% das empresas do S&P 500, incluindo Apple, Microsoft, ExxonMobil, General Electric e Coca-Cola. A BlackRock também possui grandes participações em quase todos os megabancos e grandes meios de comunicação.” Eles também são os principais acionistas das corporações GAFAM. Para que conste, Larry Fink, da BlackRock, administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento de Biden é de 6 trilhões de dólares.
Estamos, portanto, diante de um acesso permanente à nossa atenção consciente (a indústria da atenção), em um oligopólio de escala mundial, com marketing comportamental adaptado às nossas características individuais, atingindo bilhões, centrado na maximização dos retornos financeiros (independentemente do impacto sobre nossa qualidade de vida ou sobre os desastres ambientais) e canalizando enormes retornos para o 1% mais rico, com um amortecedor político de classe média alta nos 10% mais ricos. Comunicação, informações privadas, marketing e finanças se misturaram ao controle social, cultural e político geral. E isso ocorre em escala global, enquanto as tentativas de regular o sistema são fragmentadas em muitos países. Não temos nenhuma regulamentação significativa em escala global, mesmo que a UE tenha conseguido criar algumas regras.
A figura acima mostra a escala da deformação sistêmica que estamos enfrentando. O 1% mais rico detém mais da metade das ações e dos fundos mútuos, o que significa que eles concentram os fluxos de excedentes financeiros drenados de toda a economia. Os 9% seguintes, uma reserva política de “investidores” de classe média alta, também lucram e tornam o sistema politicamente mais forte. Os 90% inferiores não “investem”, dificilmente chegam ao fim do mês e se endividam com mais frequência, contribuindo para o sistema por meio das taxas de juros.
Os dados detalhados do World Inequality Database (WID), a análise de concentração de riqueza dos relatórios do UBS, os estudos de impacto geral da Oxfam, bem como os estudos de países específicos, em particular o endividamento no Sul Global, mostram como estamos longe do que chamamos de acumulação de capital produtivo. Isso não é capitalismo, é rentismo improdutivo. Não é a Indústria 4.0, como tantas vezes mencionado, mas o resultado da revolução digital. O fato de chamá-lo de “indústria” permite que ele tome emprestada alguma legitimidade de uma época em que a produção de bens e serviços úteis era a espinha dorsal do capitalismo. Mas é um dreno improdutivo, que nos empurra para uma catástrofe social e ambiental. E só podemos acenar com a cabeça para um certo número de mensagens personalizadas que recebemos, quer as solicitemos ou não.
Tudo isso é absurdo, considerando, como comenta Jimmy Wales, da Wikipedia, que essas tecnologias poderiam nos permitir ter acesso inteligente ao que efetivamente queremos. Quanto aos gigantes financeiros, bem, o dinheiro é nosso, mas está fora de nossas mãos, e muitas comunidades estão recuperando o controle.
Reportagem da BBC News Brasil, de 10 de julho de 2024, sobre as cidades que decidiram banir ou restringir a atuação de plataformas de aluguel de curto prazo, como o Airbnb.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw8y78j41z4o
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No último dia 21 de junho, o prefeito de Barcelona, na Espanha, Jaume Collboni, anunciou seus planos de proibir aluguéis de imóveis de curto prazo na cidade, a partir de novembro de 2028.
A decisão pretende solucionar o que Collboni descreve como "o maior problema de Barcelona" — a crise de moradia que retirou moradores e trabalhadores do mercado habitacional, devido aos altos preços dos imóveis. A medida irá devolver ao mercado de moradia os 10 mil apartamentos destinados atualmente a aluguel de curto prazo no Airbnb e em outras plataformas similares.
Barcelona não é a única cidade a criar regulamentações rigorosas — ou até proibir — os aluguéis de curto prazo. Desde setembro de 2023, é ilegal alugar apartamentos por curto prazo em Nova York, nos Estados Unidos, a menos que o proprietário tenha domicílio na cidade e esteja presente no imóvel quando ele for alugado. Esta medida também foi tomada para reduzir a crise habitacional da cidade.
A capital alemã, Berlim, proibiu os Airbnbs e aluguéis de curto prazo já em 2014. Eles retornaram em 2018, com sérias restrições. E muitas cidades litorâneas da Califórnia, nos Estados Unidos, incluindo Santa Mônica, proíbem ou impõem fortes restrições aos aluguéis de curto prazo.
Todo este movimento faz parte de uma questão mais ampla.
O Airbnb domina o mercado de aluguel de curto prazo, com mais de 50% de todas as reservas online. Ele e outras plataformas, como VRBO, Booking.com e Expedia.com, estão sendo questionados, com o surgimento de questões paralelas como quem se beneficia com o turismo — e onde fica o equilíbrio entre os benefícios para os turistas e para os moradores locais.
Desde que foi lançado, em 2007, o Airbnb desregulou enormemente o setor do turismo. Ele oferece acomodações flexíveis em cidades de todo o mundo, com a promessa de "morar como um habitante local", que os hotéis não conseguem atender.
Os últimos anos presenciaram retaliações contra a marca. Ela é acusada de fazer aumentar os custos de moradia e prejudicar os moradores locais, que se sentem forçados a morar ao lado de hotéis sem regulamentação.
Mas o que ganhamos e o que perdemos sem o mercado de aluguel de curto prazo para turistas?
"Os aluguéis de curto prazo oferecem a possibilidade de ficar em um local um pouco mais autêntico", afirma a editora responsável de viagens e especialista em hotéis do jornal britânico The Times, Lucy Perrin.
"É uma experiência menos impessoal, mais local e, obviamente, os preços podem ser melhores", explica ela. "Eles tendem a funcionar bem com famílias, grupos e viajantes mais aventureiros. Pessoas que procuram um cobertor de segurança, onde eles sabem exatamente o que irão receber, costumam ficar em hotéis."
Parece claro que retirar os aluguéis de curto prazo do mercado de viagens irá resultar em preços de acomodação mais altos para os turistas."Eu ficaria surpresa se os hotéis não se aproveitassem desta situação", afirma Perrin.
Para Caitlin Ramsdale, da plataforma de viagens em família Kid & Coe, quem obviamente irá perder são as famílias. "Existem muitos grupos para os quais ter os hotéis como única opção simplesmente não funciona", segundo ela.
"Embora o setor de hotéis tenha concentrado muitos esforços para acomodar famílias, a configuração e os preços dos quartos não funcionam para a maioria das famílias que procuram viagens curtas, especialmente as que têm dois ou mais filhos. É preciso ter uma forma de conciliar os objetivos da cidade com o atendimento a este segmento de viajantes – é uma imensa perda para os pais que querem apresentar o mundo aos seus filhos."
A questão é: proibir ou restringir os aluguéis de curto prazo realmente reduz o custo da moradia ou influencia a quantidade de imóveis disponíveis?
Um estudo da revista Harvard Business Review sobre o impacto da proibição em Nova York, publicado no início deste ano, concluiu que, neste caso, os aluguéis de curto prazo não são o fator mais importante para a alta dos aluguéis. O estudo também indicou que a criação de regulamentações, em vez de proibições, ofereceria melhores benefícios para a cidade e para os moradores locais.
Um resultado claro da proibição foi o aumento das tarifas dos quartos de hotéis em Nova York, que atingiram a média recorde de US$ 300 (cerca de R$ 1.650) por noite.
Mas por que os responsáveis pelo turismo e os conselhos municipais recorrem a proibições? O real motivo talvez não seja apenas questão de números, mas a forma como os moradores locais se sentem em relação ao turismo.
A Espanha, por exemplo, é o epicentro da crise do turismo em massa na Europa. Os moradores locais expressam forte oposição ao turismo, que eles percebem como uma indústria que não os beneficia. Este movimento vem ocorrendo em destinos tradicionais como Málaga, Maiorca e nas ilhas Canárias, além da própria cidade de Barcelona.
De muitas formas, este parece ser a progressão do debate sobre a "segunda casa", que vem enfurecendo certos lugares há décadas, como a Cornualha, no Reino Unido.
Em cidades lotadas de turistas, os moradores locais são rotineiramente excluídos do mercado habitacional, devido aos altos preços. Eles são forçados a morar em carros ou enfrentar horas de transporte para trabalhar todos os dias.
Nesta situação, parece imensamente injusto encontrar cidades tomadas por imóveis para aluguel de temporada, que permanecem fechados na maior parte do ano e poderiam beneficiar os moradores locais.
Esta não é única causa da crise habitacional. A estagnação dos salários, especialmente dos funcionários públicos, e programas habitacionais limitados também têm influência. Mas, certamente, este é o motivo mais visível.
Na Colúmbia Britânica, no Canadá, o primeiro-ministro local David Eby definiu a questão de forma sucinta, ao expor as novas normas de aluguel de curto prazo da província:
"Se você estiver alternando casas, se estiver comprando locais para aluguel de curto prazo, se estiver comprando uma casa para deixá-la vazia, nós enviamos esta mensagem de forma consistente, pública e repetida: não deixe que famílias e indivíduos que estão procurando um lugar para morar concorram com os seus dólares de investimento."
Bem sucedidas ou não, as proibições enviam um sinal para os moradores locais: que os políticos estão ouvindo suas preocupações e irão priorizá-los em relação aos turistas. Mas existe uma alternativa à proibição total.
Muitos destinos, como Berlim, restringem os ocupantes proprietários a um período máximo de aluguel de 90 dias por ano. Esta limitação permite que os anfitriões temporários continuem a ganhar uma renda extra, mas evita que profissionais comprem imóveis para transformá-los em locais de aluguel de curto prazo em tempo integral.
A discussão em todos os países que estão seguindo este caminho – incluindo o Reino Unido, que apresentou uma proposta similar – é a regulamentação. Como e quanto custa regulamentar esta situação?
Para os turistas, as notícias parecem ser predominantemente negativas. Quando o assunto é a limitação dos aluguéis de curto prazo, os hotéis e Airbnbs parecem ser provavelmente os principais ganhadores. A demanda supera a oferta e eles podem cobrar o quanto quiserem, sem grande concorrência.
Mas Perrin observa os benefícios em relação à experiência dos turistas.
"Acho que a proibição dos aluguéis de curto prazo irá fazer com que as viagens para cidades como Barcelona sejam mais autênticas", segundo ela. "Quando os moradores são retirados do centro da cidade, pode faltar vibração e cultura. Isso irá trazer melhor experiência."
"Acho que os turistas precisarão ser mais criativos sobre os lugares onde irão ficar e talvez sejam conduzidos para cidades onde podem alternar locais diferentes."
"No longo prazo, acho que a proibição irá oferecer uma experiência mais rica para os turistas e menos animosidade com os moradores locais, o que, em última análise, é algo bom", conclui Lucy Perrin.
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/03/20/mudancas-radicais-nas-leis-urbanisticas-as-cidades-incorporadas-ao-rentismo
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz
Atualmente, estão em debate diversas propostas de mudanças drásticas na legislação urbanística de vários municípios brasileiros. Mudanças que alteram, radicalmente, os parâmetros construtivos, como é o caso do estímulo à elevação dos gabaritos.
O exemplo mais recente e polêmico é, sem dúvida, o do município de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. No último dia 5 de março, foi aprovado em primeiro turno e sob protestos, o projeto de lei nº 221/2023, que modifica a Lei Urbanística da Cidade, isto é, as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo.
A caracterização do projeto disponível em uma publicação nas redes sociais do vereador Paulo Eduardo Gomes ajuda a compreender o que está em questão. Na postagem, o vereador menciona que "em 2023, a Prefeitura enviou à Câmara de Vereadores o projeto de Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei Urbanística de Niterói). Este projeto deveria ter sido muito divulgado para que todos tivessem conhecimento do que poderá acontecer. [...] A proposta de lei tem como único objetivo o aumento de gabarito (número de andares nos prédios) em todas as regiões da cidade. Porém, a cidade não tem Plano de Mobilidade (organização do trânsito e transportes), não tem previsão de expansão da infraestrutura de água e esgoto e de energia, nem de ampliação da rede pública de educação e de saúde. Esta lei irá impactar também, enormemente, nosso patrimônio ambiental e cultural (por exemplo, as lagoas e áreas de preservação). Afinal, queremos mais engarrafamentos? Mais bueiros explodindo? Mais alagamentos, quando chove? Mais falta de água e de energia? Menos área verde e mais poluição?".
Na mesma publicação, o vereador ainda ressalta que se trata de um projeto que "não considera as emergências climáticas, nem que a população de Niterói não está crescendo (IBGE, Censo 2022), ou seja, a proposta do governo vai atrair pessoas e aumentar o caos cotidiano com mais congestionamentos e problemas".
Para nós, esse é mais um exemplo da dinâmica de transformações urbanas que acompanha um ciclo recente de expansão da especulação imobiliária nas principais cidades do país. E esse ciclo foi denunciado, por exemplo, pelo jornalista Bob Fernandes, em vídeo publicado em seu canal no YouTube Carnaval & política: Especulação imobiliária, escravização, indígenas, polícia e “prende Bolsonaro.
Poderíamos levantar a hipótese de que esse ciclo resulta, estruturalmente, do "efeito renda" decorrente do atual padrão de acumulação financeiro-extrativista-agroexportador dominante no Brasil e, conjunturalmente, da trajetória de queda da taxa básica de juros (selic). Quer dizer, esse padrão, que numa só palavra pode ser dito "rentista", estimula o "rent seeking" (ou seja, as práticas de ganhos de agentes privados sem contrapartida para a sociedade). A queda das taxas de juros, por sua vez, diminui a rentabilidade de investimentos mais seguros, como os títulos da dívida pública e os de renda fixa em geral, reforçando a busca por alternativas de inversão.
Assim, as cidades brasileiras estariam experimentando os efeitos de um processo chamado pelo geógrafo britânico David Harvey, de "capital switching" (ou transferência de capital). Esse processo expressa a transferência de grandes volumes de capital sobreacumulado, isto é, que não encontra alternativas de investimento, para os mercados imobiliários. Em resumo, torna-se cada vez mais interessante para os inúmeros agentes econômicos orientados pelo padrão rentista, transferir parte de seu capital para segmentos novos e/ou já consolidados desses mercados. E isso, por sua vez, reforçaria as pressões por alterações na legislação urbanística, como as que promovem a maior densificação, verticalização e/ou mudanças dos usos permitidos do solo, abrindo caminho para distintas operações de captura de rendas.
Dentre as evidências da existência de capitais em busca de alternativas de investimento pode-se considerar, em primeiro lugar, o expressivo e constante crescimento do agronegócio. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, a atividade agropecuária cresceu 15,1% em 2023, muito além das variações de outros setores e componentes do PIB, como se pode observar na tabela abaixo, extraída do portal de divulgação de notícias do IBGE.
Como se vê, o crescimento da agropecuária, relacionado sobretudo à expansão de lavouras como a da soja (+27,1%) e do milho (+19,0%), é tanto mais expressivo e significativo quando comparado com o baixo desempenho da indústria (+1,6%) e com o recuo de 3,0% na Formação Bruta de Capital Fixo (-9,4% em máquinas e equipamentos). No caso da indústria, o índice mais destacado foi o da extrativa, que apresentou expansão de 8,7%, impulsionada por setores como minério de ferro e petróleo.
É possível observar que a expansão conjugada da agropecuária e da indústria extrativa contribuiu para o superávit na balança comercial do país. Conforme o gráfico abaixo, elaborado pelo Banco Central do Brasil (BCB), foi registrado saldo positivo de US$ 7,3 bilhões em dezembro de 2023. Tudo isso tornando ainda mais urgente o debate sobre as tendências de desindustrialização e reprimarização da economia brasileira.
Por fim, no que diz respeito ao setor de serviços, cabe mencionar o crescimento de 6,6% das atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados, tanto quanto das atividades imobiliárias (+3,0%).
Indicadores como esses parecem sinalizar, de fato, a existência de grandes volumes de capital que podem estar sendo canalizados para os circuitos da especulação imobiliária. Em especial, diante de uma rentabilidade relativamente menor em outras frentes, como a das operações com os títulos da dívida pública. E, mais uma vez, se esse é mesmo o caso, aumentará cada vez mais a pressão para que a legislação urbanística, assim como a legislação ambiental, dos municípios brasileiros seja adequada aos imperativos dessa possível transferência de capitais, o que exige, sobretudo em um ano eleitoral como o de 2024, um amplo debate público a respeito.
No texto abaixo, Mazzucato utiliza o conceito de “renda algorítmica de atenção” para descrever as estratégias das Bigs Techs para aumentar os lucros de seus acionistas, através da captura, manipulação e monetização da atenção de segmentos específicos da população. Este conceito foi proposto inicialmente no artigo "Algorithmic attention rents: A theory of digital platform market power", publicado pela autora em parceria com Tim O’Reilly e Ilan Strauss. Sem dúvida, é possível compreender a renda algorítmica de atenção como uma variante da renda conhecimento, restando em aberto a identificação se absoluta ou de monopólio. Este é um debate interessante para melhor compreendermos a lógica de acumulação na capitalismo de monopólio. Segue o texto:
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Avançam, em todo o mundo, ações judiciais contra Big Techs. Sociedades reagem à dependência que induzem, em prol do lucro máximo. Base de um plano para transformá-las é redesenhar os algoritmos, para que priorizem a invenção humana
Outras Palavras por Mariana Mazzucato e Ilan Strauss Publicado 13/03/2024 às 19:35 - Atualizado 14/03/2024 às 12:55
A implantação de algoritmos para maximizar o engajamento do usuário é a forma como as grandes empresas de tecnologia maximizam o valor para os acionistas, e os lucros de curto prazo geralmente têm precedência sobre os objetivos de negócios de longo prazo. Agora que a inteligência artificial está preparada para impulsionar a economia das plataformas, são urgentemente necessárias novas regras e estruturas de governança para salvaguardar o público.
Num novo processo judicial nos Estados Unidos contra a Meta, 41 estados e o Distrito de Colúmbia sustentam que duas das redes sociais da empresa (Instagram e Facebook) não são apenas viciantes, mas também prejudiciais ao bem-estar dos menores. A Meta é acusada de implementar um “esquema para explorar jovens usuários com fins lucrativos”, o que inclui mostrar-lhes conteúdo prejudicial que os mantém grudados em suas telas. De acordo com uma pesquisa recente, os jovens estadunidenses de 17 anos passam 5,8 horas por dia nas redes sociais. Como tudo isso veio à tona? A resposta, em uma palavra, é “engajamento”.
A utilização de algoritmos concebidos para maximizar o “engajamento” dos usuários é a forma das Big Tech maximizarem o valor para os acionistas, cujo resultado são lucros a curto prazo muitas vezes superiores aos objetivos empresariais de longo prazo (isso sem falar da saúde coletiva). Como explica o cientista de dados Greg Linden, algoritmos baseados em “más métricas” promovem “maus incentivos” e abrem caminho aos “maus atores”.
O Facebook começou como um serviço básico para conectar amigos e conhecidos na internet, mas com o tempo seu design evoluiu da satisfação das necessidades e preferências dos usuários para mantê-los dentro da plataforma e longe de outras pessoas. Para atingir esse objetivo, a empresa desconsiderou repetidamente as preferências explícitas dos consumidores em relação ao tipo de conteúdo que desejam visualizar, à privacidade e ao compartilhamento de seus dados.
A primazia dos lucros imediatos passa por induzir os usuários a clicar, mesmo que o resultado global desta estratégia seja dar prioridade a materiais sensacionais e de baixa qualidade, em vez de dar a devida recompensa a um universo mais vasto de criadores de conteúdos, usuários e anunciantes. Chamamos estes lucros de “rendas algorítmicas de atenção”, porque são gerados através da posse passiva (como a dos proprietários de terras) em vez de atividade produtiva destinada a satisfazer as necessidades dos consumidores.
Identificar o comportamento rentista na economia atual requer a compreensão de como as plataformas dominantes exploram o controle algorítmico que têm sobre os usuários. Um algoritmo que degrada a qualidade dos conteúdos que promove está abusando da confiança dos usuários e da posição dominante reforçada pelo efeito de rede. É assim que o Facebook, o Twitter e o Instagram podem seguir seu caminho e continuar enchendo suas páginas com anúncios e viciantes conteúdos “sugeridos”. Como explica o especialista em tecnologia Cory Doctorow de forma um tanto colorida, “a merdificação (enshittificação) das plataformas vem do canhão de um algoritmo” (que por sua vez pode depender de práticas ilegais de coleta e compartilhamento de dados).
O processo contra o Meta tem a ver, em última análise, com suas práticas algorítmicas, cuidadosamente projetadas para maximizar o “engajamento” dos usuários: mantê-los na plataforma por mais tempo e suscitar mais comentários, “curtidas” e republicações. Muitas vezes acontece que uma boa maneira de conseguir isso é exibir conteúdo prejudicial e que beira o ilegal, e transformar o tempo gasto na plataforma em uma atividade compulsiva, por meio de recursos como “rolagem infinita” e o envio incessante de notificações e alertas (técnicas que em muitos casos também são utilizadas com grande eficácia na indústria dos jogos de azar).
À medida que os avanços na inteligência artificial (IA) começam a potencializar as recomendações algorítmicas e a torná-las ainda mais viciantes, são urgentemente necessárias novas estruturas de governança orientadas para o “bem comum” (em vez de uma ideia estreita de “valor para os acionistas”) e alianças simbióticas entre empresas, governos e sociedade civil. Felizmente, está ao alcance das autoridades reformar estes mercados para os colocar ao serviço do bem comum.
Em primeiro lugar, em vez de se basearem exclusivamente na legislação antitruste e de defesa da concorrência, as autoridades devem adotar ferramentas tecnológicas que evitem que as plataformas encarcerem usuários e desenvolvedores. Uma forma de evitar a criação espaços fechados anticoncorrenciais é exigir a portabilidade e a interoperabilidade dos dados entre os serviços digitais, para que os usuários possam facilmente passar de uma plataforma para outra se aquela em que se encontram não corresponder às suas necessidades e preferências.
Em segundo lugar, é essencial uma reforma da governança corporativa, uma vez que o que levou as plataformas à exploração algorítmica dos usuários foi o princípio da maximização do valor para o acionista. Dados os custos sociais bem conhecidos deste modelo de negócio (a busca do maior número possível de cliques conduz muitas vezes à multiplicação de fraudes, desinformação e materiais que incentivam a polarização política), a reforma da governança exige uma reforma dos algoritmos.
Um primeiro passo para a criação de um modelo de base mais saudável é exigir que as plataformas divulguem (no seu relatório anual 10K [que fornece aos investidores uma análise abrangente da empresa] que devem apresentar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) as métricas que os seus algoritmos visam otimizar, bem como o modo que isso monetiza os usuários. Num mundo onde os executivos da tecnologia vão a Davos todos os anos para falar sobre o “propósito” social das suas empresas, uma divulgação oficial de dados irá pressioná-los a cumprir o que dizem e ajudar os decisores políticos, reguladores e investidores a distinguir entre lucros merecidos e rendas indevidas.
Terceiro, os usuários precisam ter mais influência sobre como os algoritmos priorizam as informações que lhes são mostradas. Caso contrário, o desrespeito pelas preferências dos usuários continuará a causar danos, pois os algoritmos criam ciclos de retroalimentação nos quais induzem os usuários a clicar em determinados conteúdos e depois inferem erroneamente que essas são as suas preferências.
Em quarto lugar, a metodologia padrão da indústria de “teste A/B” deve dar lugar a avaliações de impacto mais abrangentes a longo prazo. O mau uso da ciência de dados leva ao imediatismo algorítmico. Por exemplo, uma teste A/B pode mostrar que o aumento do número de anúncios em exibição terá um efeito positivo a curto prazo sobre os lucros, sem causar uma deterioração óbvia na retenção de usuários; mas isto ignora o impacto na aquisição de novos usuários, para não mencionar quase todos os outros efeitos potencialmente prejudiciais a longo prazo.
A ciência de dados bem utilizada mostra que otimizar os sistemas de recomendação para não buscar recompensas imediatas (por exemplo, visando, em vez disso, a satisfação do cliente e a aquisição e retenção de usuários futuros) é a melhor maneira que as empresas têm para reforçar o crescimento e a lucratividade no longo prazo (supondo que eles possam parar de concentrar toda a sua atenção no próximo relatório de lucros trimestrais). Em 2020, uma equipe da Meta determinou que, em um horizonte de tempo mais longo (um ano), a redução do número de notificações intrusivas melhoraria a utilização do aplicativo e a satisfação dos usuários. Uma grande diferença foi encontrada entre os efeitos de longo prazo e os efeitos de curto prazo.
Em quinto lugar, a IA pública deve ser posta em ação para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos, particularmente na área da publicidade. Face aos danos consideráveis causados pela flexibilização dos critérios de aceitação de anúncios por parte das plataformas, a autoridade britânica responsável pelo controle publicitário começará a utilizar ferramentas de IA para analisar anúncios e identificar aqueles que fazem “afirmações duvidosas”. Outros países deveriam seguir o exemplo. Igualmente importante, a avaliação da IA deve ser um componente regular da disposição das plataformas para permitir auditoria externa dos resultados dos algoritmos.
Criar um ambiente digital que recompense a criação de valor a partir da inovação e puna a extração de valor rentista (particularmente nos maiores mercados digitais) é o desafio econômico fundamental dos nossos tempos. Para preservar a saúde dos usuários das corporações de tecnologia e da totalidade de seu ecossistema, é necessário evitar que os algoritmos fiquem subordinados ao desejo dos acionistas de lucros imediatos. Se os diretores empresariais realmente acreditam no princípio do valor para as partes interessadas, devem aceitar que é necessária uma mudança radical na forma como o valor é criado, com base nos cinco princípios detalhados acima.
O julgamento iminente contra a Meta não pode desfazer os erros do passado. Mas à medida que nos preparamos para a próxima geração de produtos de IA, temos que instituir mecanismos para uma supervisão adequada dos algoritmos. A utilização de algoritmos baseados em IA influenciará não só o que consumimos, mas também a forma como produzimos e criamos; não apenas o que escolhemos, mas também o que pensamos. Não há espaço para erros aqui.
Tricontinental
Junio 22, 2020
En plena crisis global por la pandemia, todas las dinámicas de cambio están en disputa. Es claro que está en marcha una reconfiguración de las relaciones sociales en múltiples planos, pero su orientación es lo que no es evidente: está en pugna ahora mismo. Podemos observarlo de modo directo con algunas preguntas: ¿cuáles son los sectores que hoy están “parados” y cuáles los que no dejan de crecer? ¿Cuáles son los trabajos superexplotados y peor remunerados frente a las exigencias del momento? ¿Sobre qué territorios se concentran hoy los efectos del despojo de infraestructura y servicios públicos? Creemos que la deuda, dispositivo privilegiado del capitalismo bajo hegemonía financiera, es un terreno de batalla clave en esa reconfiguración. Más concretamente: ¿qué papel está jugando el endeudamiento a nivel global y a nivel doméstico en este momento de crisis?
En nuestra investigación Una lectura feminista de la deuda (Rosa Luxemburgo, 2019) hemos desarrollado cómo el endeudamiento público, acelerado exponencialmente en los últimos cuatro años en Argentina, se tradujo en políticas de ajuste que se derramaron en los hogares como deuda doméstica. Así, junto a la inflación y la consecuente pérdida de poder adquisitivo de subsidios y salarios, se produjo una realidad en la cual se volvió necesario el endeudamiento para acceder a los bienes más básicos como alimentos y medicamentos.
La deuda deviene así obligatoria para la reproducción social. Esta es la hipótesis en la que venimos trabajando: comprender la deuda llamada privada como un dispositivo de colonización financiera del territorio doméstico. En esta clave también hemos conceptualizado cómo las finanzas deben comprenderse en términos de la lógica extractiva del capital, para caracterizar la situación contemporánea en términos de “extractivismo financiero”.
Esta situación, claro está, no se genera de un día para el otro. Hay una genealogía que muy rápidamente podemos sintetizar para nuestra región. Si en los años ´80 el endeudamiento disciplinó las transiciones democráticas en América Latina como vía de salida de las dictaduras; luego en los años ´90 la forma “Consenso de Washington” de las reformas neoliberales impusieron nuevos umbrales de deuda; estos últimos años asistimos a un fuerte relanzamiento de la colonización financiera sobre nuestros países, combinada con situaciones de pobreza y despojo de recursos cada vez más intensivas.
Esta colonización financiera derramada en términos de deuda doméstica tomó como territorio de conquista a las poblaciones más empobrecidas y precarizadas. Esto se vincula a su vez, en términos retroactivos, con el modo en que se han conectado los subsidios sociales con la bancarización masiva, en un proceso que lleva más de una década en la región. En Argentina este fenómeno tomó una forma particular en los últimos años: según un estudio de 2019 del Centro de Economía Política Argentina (CEPA)[2] sobre el endeudamiento de los hogares pobres, la cantidad de créditos pedidos por (y otorgados a) las beneficiarias de AUH (Asignación Universal por Hijo) llegó al 92 por ciento de las asignaciones existentes.
Vemos así cómo, cuando la relación de deuda se derrama hacia abajo, se difunden los efectos de la deuda tomada por los estados a modo de cascada. Es decir, los despojos y privatizaciones a los que obliga el endeudamiento estatal se traducen como endeudamiento compulsivo hacia los sectores subalternos, que pasan a acceder a bienes y servicios a través de la mediación de la deuda. Esto tiene el efecto tanto de modificar la relación entre ingreso y deuda, como también entre deuda y acceso a derechos.
En esta clave, subrayamos la importancia de conectar la deuda externa y la deuda doméstica para dar cuenta del circuito completo de la deuda. Y aún más: es esta cartografía específica la que nos permite ver sobre qué cuerpos, economías y territorios esa deuda se produce. Esta es la metodología feminista que venimos desplegando, que va de las finanzas a los cuerpos. ¿A quiénes se endeuda? ¿Cómo? ¿Con qué tasas de interés? ¿Qué tipo de trabajo, remunerado y no remunerado, caracteriza a la población más endeudada? Estas fueron algunas preguntas que en los últimos años hemos desarrollado, tanto en términos de acción política como de producción de conocimiento e información.
En los meses que llevamos de aislamiento social obligatorio se constata el aumento acelerado de pobreza y situaciones de precariedad generalizada y, en consecuencia, el incremento de deudas en los hogares, aún si el gobierno otorgó un ingreso de emergencia (IFE) que alcanzó alrededor de nueve millones de personas. La disminución de ingresos para la gran parte de la población que no tiene empleo asalariado fijo, el recorte de sueldos incluso para quienes sí lo tienen, y los despidos (aún si están prohibidos por ley) forman parte del paisaje de pauperización en velocidad.
En simultáneo, se produce una superexplotación de ciertos trabajos: los trabajos domésticos, barriales, campesinos, que hoy son los más precarizados y a la vez visibilizados en su rol “esencial” para enfrentar la crisis. Son estos trabajos también los que aseguran la logística popular que debe responder a las urgencias cotidianas: de la emergencia alimentaria a la sanitaria, pasando por las violencias de género. Mientras, los delivery por plataformas aseguran logísticas baratas y precarias de reparto para que un sector de la población pueda cumplir con el aislamiento.
Entendemos que estamos en un momento en que la disputa sobre los modos de trabajo es fundamental: se pretende forzar la constitución de una nueva clase servil [3] que provea servicios para cierta otra clase de trabajadorxs híperproductivxs (quienes son hoy foco de la reconfiguración vía teletrabajo), disciplinando a sectores subalternos que vienen luchando por el reconocimiento y remuneración justamente de esas tareas históricamente devaluadas y mal pagas. Aquí la clave feminista para leer este conflicto es fundamental.
A su vez, a mayor precarización del trabajo, sobre todo en ciertos sectores, vemos un engranaje concomitante de aumento y diversificación del endeudamiento. En esta línea, es fundamental subrayar el carácter feminizado de las economías precarizadas que son hoy objeto predilecto de endeudamiento. Lo feminizado tiene una doble acepción. Por un lado, cuantitativa: por la mayoritaria presencia de mujeres, lesbianas, travestis y trans en el rol de “jefas de hogar”, es decir, principal sostén familiar (en familias que son familias ampliadas, ensambladas y también implosionadas). Por el otro, cualitativa: en relación al tipo de tareas que se realizan y que tienen que ver también en términos mayoritarios con labores de cuidados comunitarios, de provisión de alimentos, de seguridad y de limpieza barrial, y de modo extenso de producción de infraestructura de servicios básicos para la reproducción de la vida.
Una lectura feminista del problema financiero, tal como lo venimos desarrollando[4] confronta la dinámica abstracta de las finanzas en su relación con la vida cotidiana, con las formas de la violencia en los hogares y en los diversos territorios y con las modalidades actuales de explotación del trabajo. Queremos puntualizar aquí las nuevas formas de endeudamiento que se están produciendo en la crisis, a partir de un trabajo de encuestas y entrevistas que realizamos más otras fuentes que estamos revisando.
Uno de los centros del conflicto actual es la vivienda. A partir del imperativo #QuedateEnCasa se ha revelado la dificultad de lo que esto significa en el contexto actual y, en particular, con el aumento de violencia de género que se registra en condiciones de confinamiento. Hacinamiento, barrios enteros sin agua, y alquileres que se vuelven impagables. Esto, por supuesto, intensifica los efectos de lo que Raquel Rolnik[5] llama “colonización financiera del suelo y la vivienda” para nombrar el proceso de financiarización del acceso a la vivienda.
En relación a la situación de lxs inquilinxs, según una encuesta realizada por la Federación de Inquilinos[6], más del 60% de quienes alquilan se endeudaron de alguna manera (entre quienes lo harán con préstamos bancarios y no bancarios y quienes lo harán con familiares o amigues) frente a la imposibilidad de pagar el alquiler del mes mayo.
Hoy, entonces, la deuda por razón de la vivienda expresa lo que denominamos violencia propietaria. Esto se concreta en el abuso directo de dueños e inmobiliarias que aprovechan la situación crítica para amenazar, amedrentar, no renovar contratos o directamente desalojar a inquilinxs. Esta es una situación que se agrava aún más cuando se trata de mujeres con hijxs, lesbianas, travestis y trans, traduciéndose en formas directas de violencia de género. Sabemos que para muchxs, la deuda es la antesala del desalojo y, a la vez, la manera de aplazarlo, de postergarlo.
Pero esa violencia propietaria también se recrudece en el mercado inmobiliario informal, cuando las casas son habitaciones de hotel o cuartos alquilados en una villa o casas compartidas en asentamientos, donde en general no hay contrato ni recibo de pago de por medio, pero los costos y el ajuste inflacionario de los montos son iguales o mayores a los que implica el alquiler de un departamento pequeño.
Estas deudas, además, pretenden confiscar desde ahora ingresos a futuro: sean sueldos prometidos para el fin de la pandemia, subsidios o, más directamente, obligan a la toma de nuevas deudas con circuitos familiares e informales. Esto también se convierte en un botín para las financieras que están comprando deuda para más adelante ejecutar las propiedades. Lo cual, a su vez, plantea una analogía con un circuito global de fondos de inversión que en varios países del mundo hoy están haciendo grandes negocios con los desahucios y desalojos.
No es casual que los barrios que hoy son noticia por el aumento exponencial de los contagios sean las villas de la ciudad de Buenos Aires, donde la crisis habitacional es una prioridad de la agenda política de sus habitantes.
Otra de las fuentes de nuevas deudas que relevamos es con los teléfonos celulares. Esto se debe a la intensificación del uso de los teléfonos para acceder a internet y, por tanto, canal de conexión obligatorio con la escolaridad de lxs hijxs. Hacer las tareas escolares hoy requiere para muchxs un uso enorme de datos que se compran casi a diario. De esta manera, la cuenta del celular alcanza cifras récord en un momento que, como señalábamos, se caracteriza por la pérdida de ingresos.
Así, la situación es directamente de despojo. Por un lado, constatamos que muchas beneficiarias de subsidios de emergencia (IFE, por sus siglas) lanzados por el gobierno se ven obligadas a destinar buena parte de ese ingreso a pagar las tarifas de las empresas telefónicas. Por otro, vemos una realidad que se caracteriza por una mediación privada para el acceso a la educación pública.
A su vez, cada una de estas situaciones “nuevas” de endeudamiento ratifica y amplifica en la situación de crisis actual que cada deuda se paga con más deuda. De este modo, se conforman verdaderas “canastas” de deuda, que se van refinanciando entre sí, combinando diversas tasas de interés, formas de amenaza por incumplimiento y distintos cronogramas de vencimiento. Si Michael Denning[7] habla del trabajador actual como un “recolector de ingresos” que ya no puede garantizar su reproducción a través de un salario único y estable, podemos hablar de unx “recolectora de deudas” como una profundización del despojo y la precarización de la fuerza de trabajo contemporánea.
Este diagnóstico que empieza relevando la multiplicación de las deudas privadas en la crisis y los trabajos y territorios que explota, nos permite trazar, a la vez, los dilemas políticos del momento. Por un lado, constatamos cómo gran parte del ingreso de emergencia otorgado por el gobierno nacional (IFE) y los ingresos por subsidios y salarios, son absorbidos por los bancos, supermercados, empresas de telecomunicación, empresas de plataformas y por pago de deudas. Y, por otro, que las formas de la precarización laboral que vemos acelerarse expresan las disputas al interior de la crisis. En este sentido, otra de nuestras hipótesis de trabajo en curso se vuelve relevante: el espacio doméstico se vuelve laboratorio político del capital (Cavallero y Gago 2020). De modo más directo, nos preguntarnos cómo el capital aprovechará la situación de crisis para reconfigurar las formas de trabajo, los modos de consumo, los parámetros de ingreso y las relaciones sexo-genéricas. Más concretamente: ¿estamos ante una reestructuración de las relaciones de clase que toma como escena principal el ámbito de la reproducción?
Sin dudas, hay sectores para los cuales el momento actual no sólo no significa una detención de sus actividades debido a “la cuarentena”, sino que representa más bien una oportunidad para acelerar su propia lógica de ganancias, en un contrapunto evidente con el no reconocimiento salarial a las mujeres, lesbianas, travestis y trans que están sosteniendo la emergencia en los barrios. Es urgente entonces avanzar en iniciativas que confrontan concretamente con la capacidad de extracción de rentas de esos sectores: desde una regulación de los contratos de alquiler a la provisión de la conectividad de forma gratuita en los barrios; pasando por reformas tributarias capaces de gravar las grandes fortunas o de incrementar los impuestos a los bancos así como el cuestionamiento de las concentraciones empresariales en la producción de alimentos[8] y medicamentos. Aquí se juega una concepción sobre el trabajo, sobre quiénes producen valor y sobre qué modos de vida merecen ser asistidos, cuidados y rentados y también de dónde saldrán esos recursos si apuntamos a una reorganización global del trabajo.
OUTRASPALAVRAS CRISE CIVILIZATÓRIA
por Ladislau Dowbor Publicado 22/01/2024 às 18:27 - Atualizado 23/01/2024 às 18:31
O caos social, climático e econômico que vivemos não se traduz em estatísticas: são dramas terríveis que podiam ser evitados. Sabemos o que precisa ser feito e há recursos suficientes… mas seguimos como expectadores, submetidos a estúpidos bilionários
Uma visão geral dos nossos problemas, como humanidade, não é um exercício surrealista. Tanto progresso tecnológico, mas tanta violência e destruição, tanto sofrimento. E tantas narrativas sobre quem são os bons e quem são os maus. De que lado você está? A única certeza é que sou corintiano. O resto virou um caos.
(Ladislau Dowbor)
Trocamos a mão invisível do mercado que funciona bem, de Adam Smith, pelo punho invisível do poder monopolista.
(Nicholas Shaxson – The Finance Curse [A Maldição das Finanças])
Yet let’s be content, and the times lament, You see the world turn’d upside down.
[No entanto, vamos nos contentar, e os tempos lamentam, Você vê o mundo virado de cabeça para baixo.]
(Balada do século XVII)
Eu sou economista. Minha principal área de interesse é linguística, falo vários idiomas, leio a Bíblia em hebraico, Dostoiévski em russo, Dante em italiano, Jorge Amado em português brasileiro e assim por diante. Sim, e Keynes em inglês, claro. Entrei na economia porque senti a necessidade de entender nossa bagunça. Isso foi em 1963, no dramaticamente desigual Nordeste do Brasil. Com tanto sofrimento e miséria diante dos opulentos magnatas da cana-de-açúcar, não pude deixar de sentir o absurdo. Quão profunda é a nossa capacidade de fingir que não vemos? Não foi porque estudei economia que fiquei indignado: a indignação me levou a esses estudos. Encontrei as respostas? O que descobri foi uma mistura de justificativas, em nome dos mercados livres – pode-se justificar qualquer coisa com um tanto de matemática e modelos – e construções idealistas. Eu ainda estou procurando. Não estamos todos?
Fiz o dever de casa, estudei com bons banqueiros na Suíça, com especialistas em planejamento na Polônia, ajudei países em diversos continentes, até trabalhei como consultor do Secretário Geral da ONU. Assisti à descolonização, à ascensão dos direitos das mulheres, à erosão do apartheid na África do Sul, a tantas esperanças. E atualmente me aferro às dramáticas estatísticas, a desigualdade, a fome, o desastre climático, a perda de biodiversidade e toda esta violência. Mas essas coisas não são estatísticas para mim, tenho 82 anos e ainda não suporto ver uma mãe com filhos dormindo na calçada de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina, enquanto as pessoas atarefadas e os carros circulam de um lado para o outro. Que tipo de animal nós somos? Homo sapiens?
Assisto às horríveis notícias sobre a calamidade que ocorre na Palestina/Israel. Será essa uma questão de lados? Bem, cada um dos lados tenta fazer veicular na mídia as coisas mais horríveis que o “outro lado” fez, e temos a possibilidade de escolher bebês, crianças, mulheres, numa demonstração de barbárie de ambos os lados, um campeonato de notícias. Dependendo de quem é o dono da notícia, teremos mais barbárie de um lado ou de outro. E depois temos os comerciais, com rapazes sorridentes, moças lindas e as oportunidades que não devemos perder. Não olhe para cima. O que é isso tudo? Cada um de nós viveu a sua própria história e ela pesa.
Nasci em 1941, na fronteira espanhola, de nascimento seria catalão. Durante a guerra, na Europa, ninguém podia escolher o local de nascimento, cada um nascia onde quer que os seus pais tenham sido empurrados. Os meus pais, poloneses, um engenheiro e uma médica, escaparam à invasão alemã em 1939 através da fronteira sul e chegaram a França. Não eram judeus, mas se tivessem permanecido na Polônia o meu pai teria terminado, como engenheiro mecânico, em trabalhos forçados em fábricas alemãs. Depois os alemães invadiram França, por isso os meus pais fugiram para sul, para a fronteira espanhola, mas esta foi fechada por causa de outra guerra, a tragédia espanhola a que o mundo assistiu com curiosidade, discutindo que lados tomar, no final dos anos 1930. Assim, nasci na fronteira espanhola, na França, de pais poloneses.
Como família, estávamos presos nos Pireneus, meus pais e quatro filhos. Eu me lembro, provavelmente tinha quatro anos, quando íamos para o campo com minha mãe colhendo pissenlit, um tipo de erva que se podia usar para comer ou fazer chá. Muitas gangues buscaram a sobrevivência na confusão geral, meu pai foi pego por milícias armadas, torturado, mas sobreviveu. É impressionante como produzimos milhares de filmes glorificando guerras, soldados heroicos, belos tanques, bombas. Vende bem. Temos que fazer uma pesquisa profunda para encontrar um filme sobre o que significa para as famílias viverem numa guerra. A miséria, o frio, a fome, a insegurança e a angústia permanentes. Angústia, em francês, é uma palavra mais forte. Não me fale sobre guerras. Mudamo-nos para o Brasil porque os meus pais, tendo vivido as duas Guerras Mundiais, perderam a confiança na Europa e na sua barbárie cultural. Sou, portanto, atualmente um economista brasileiro.
Somos bons em pensamento mágico. Os dramas simplesmente desaparecerão? Na história, sempre deixamos as coisas apodrecerem a tal ponto que a insegurança, as frustrações e a ganância evoluíram para formas ideais de libertação de pressão, através do ódio, da violência e da guerra. Acabei de ler um livro lindo, As Cruzadas Vistas pelos Árabes [The Crusades Seen by the Arabs], de Amin Maalouf. Não anticristão, apenas pesquisa sólida nos documentos do Oriente Médio daquela época, por volta do século XIII. As batalhas, as destruições, os massacres, os estupros, as humilhações. Por cristãos tementes a Deus, por xiitas, por sunitas ou entre si. Os dois séculos de guerras bárbaras foram seguidos pelas invasões mongóis. Mais massacres. Queimar livros não foi uma invenção nazista, na época já era um esporte para todos os lados.
Chegamos em 2024. Acabamos de sair da guerra do Afeganistão, com resultados trágicos para todos. E a guerra do Iraque, com a confusão que vemos atualmente. E o drama da Líbia. No momento em que escrevo, temos a Ucrânia, claro – Zelensky queixa-se de que o conflito na Palestina nos distrai –, mas a trágica guerra do Iêmen está fora dos noticiários, não são europeus brancos que estão a morrer. E temos os massacres no Sudão, claro, a África é muito instável. Que curiosos os golpes de Estado no Mali, no Níger e em Burkina Faso! Por que eles simplesmente não respeitam a democracia? Bom, eu trabalhei nessas regiões sete anos. Já vi milhares de pessoas morrerem de cólera. Não temos as tecnologias para garantir água potável? Bem, Bezos precisa fazer uma viagem ao espaço. Seria ele um estúpido? Zuckerberg é idiota? Larry Fink? Prefiro considerá-los high tech assholes Sim, sei bem que esta não é uma categoria econômica. Mas eles não veem o que acontece com o mundo?
Os humanos adoram narrativas. Pode-se justificar praticamente qualquer coisa, e a humanidade é impressionantemente propensa a acreditar em praticamente qualquer coisa. Se há uma narrativa da qual temos que nos livrar é a de que você pode egoisticamente buscar a sua própria prosperidade, sem dar a mínima para o que acontece com os outros, e o resultado será uma contribuição para o bem comum. É como se a ganância individual resultasse em prosperidade geral. Bem, isso não acontece. A dura realidade é que estamos destruindo o nosso mundo pelo poder e para a riqueza de uns poucos felizes. Você tem que ser um estúpido em Wall Street ou na ‘City’ para acreditar que “a ganância é boa”. Não é apenas um desastre para o ambiente que nos sustenta, é um desastre para a humanidade e, portanto, para a democracia. Bilhões de pessoas frustradas em todo o mundo acreditarão em quem quer que se aproveite da sua frustração e do seu ódio. O mundo não carece de demagogos.
Como podemos acreditar na narrativa da “externalidade”? É coisa que se ouve e lê em cada esquina. Sim, produzimos armas, mas é só para a segurança das pessoas – e não somos nós que puxamos o gatilho. Só produzimos as armas e respondemos a exigências legítimas. O mundo está se afogando em dívidas abusivas? Bem, aqueles que contraem dívidas deveriam ser mais responsáveis. Shaxson vai direto ao ponto: “Precisamos de financiamento, mas a medida da contribuição desse financiamento para a nossa economia não é se ele vai gerar bilionários e grandes lucros, mas se será capaz de nos fornecer serviços úteis a um custo razoável” (p.12).1 Mas estamos perante gigantes financeiros, e eles financiam tudo o que lhes trará mais dinheiro, sejam lá quais forem os dramas sociais ou ambientais que essas atividades produzam. Eles são seguros, grandes demais para falir. Assegurados pelos nossos impostos, quando necessário. Em poucos anos as externalidades serão internas para todos e já estamos sentindo isso.
Marjorie Kelly, como tantos economistas hoje em dia, separa o setor financeiro (PIB do setor financeiro) e o crescimento do resto da economia (PIB do setor real), “que é a economia real de empregos e gastos em bens e serviços. Quando separamos estes dois, vemos que cerca de um terço do PIB está sendo extraído pelas finanças. E essa extração é muito maior do que já foi no passado” (p.147).2 Calculei os números correspondentes para o Brasil e cheguei aproximadamente ao mesmo número: mais de 30% do PIB drenado pelo rentismo financeiro improdutivo.3 Este mundo era para ser um em que os capitalistas lutam para ganhar o seu dinheiro, servindo-nos cada vez melhor. Em contraste, a Oxfam apresenta o quadro real: “Nos termos atuais, os países de rendimento baixo e médio-baixo serão forçados a pagar quase meio bilhão de dólares todos os dias em juros e reembolsos de dívidas entre hoje e 2029. Países inteiros estão à beira da falência, com os mais pobres os países gastam hoje quatro vezes mais no pagamento de dívidas a credores ricos do que em cuidados de saúde”.4 Isto representa mais da metade dos países mais pobres do mundo, 2,4 mil milhões de pessoas.
Se demorarmos muito para engolir as narrativas, quem pode nos ajudar são os think tanks, atualmente uma enorme rede de formação de opinião. Shaxson nos traz “a organização ideológica mais influente”, a Atlas Economic Research Foundation, bem como “a Templeton Foundation, financiada por Wall Street, as redes do magnata dos fundos de hedge Robert Mercer (um apoiador de Steve Bannon e Breibart News), e o que alguns chamam de “Kochtopus” – o nexo tentacular de ligações políticas e financeiras financiadas pelos irmãos bilionários Charles e David Koch. Os membros da Atlas incluem o American Enterprise Institute, o igualmente influente American Legislative Exchange Council (ALEC), o Cato Institute, a Freedom Foundation, a Heritage Foundation e, no momento em que este artigo foi escrito, mais de 180 outras instituições. E essas são apenas as redes de financiamento nos Estados Unidos: a Atlas encheu o mundo com 475 instituições parceiras – e a aumentar” (p.127). Seriam todos cegos?
O sistema tornou-se disfuncional. Os interesses dominantes são atualmente globais, sejam eles financeiros, de comunicação, de informação, de comércio de mercadorias ou de comércio de informação privada. Mas não temos capacidade de regulação global, exceto pelas enfraquecidas instituições internacionais herdadas do pós-Segunda Guerra Mundial, há 80 anos. Ainda temos autoridades que verificam as nossas bagagens nos aeroportos internacionais, enquanto os fluxos econômicos reais são apenas entradas virtuais em computadores. E tantas finanças desonestas e paraísos fiscais, tantas vendas ilegais de armas, tantos oligarcas navegando na confusão institucional e jurídica global.
Sim, sabemos o que deve ser feito, temos isso nos ODSs, no ESG, no Global Green New Deal, no Pacto Global, entre outros. Mas estamos desamparados, apenas observando o mundo descendo pelas corredeiras e se aproximando das cachoeiras. Apenas para lembrar que as tecnologias que dominamos e os recursos financeiros que desperdiçamos são mais do que suficientes para garantir que temos o suficiente para todos, sem destruir o nosso futuro. A ganância é para estúpidos. E constatar como estamos à deriva em meio a essa catástrofe em câmera lenta é repugnante.
1 Nicholas Shaxson – A Maldição das Finanças: como as finanças globais estão a tornar-nos mais pobres – Grove Press, Nova Iorque, 2019.
2 Marjorie Kelly – Supremacia da Riqueza: como a economia extrativa e as regras tendenciosas do capitalismo impulsionam as crises de hoje – Berrett-Koehler Publishers, Oakland, 2023.
3 L. Dowbor – A fuga financeira no Brasil, 2023 – Para uma reversão desta tendência desastrosa, veja L. Dowbor – Resgatando a Função Social da Economia, Cambridge Scholars, Reino Unido, 2023.
4 Oxfam – Os países mais pobres do mundo vão reduzir a despesa pública em mais de 220 bilhões – Oxfam, 9 de outubro de 2023.
OUTRASPALAVRAS CRISE CIVILIZATÓRIA
por Ladislau DowborPublicado 20/10/2023 às 16:11 - Atualizado 21/12/2023 às 14:53
Livro analisa como a indústria das finanças passou a dominar a sociedade, afastando o sistema do mundo real. A propriedade torna-se líquida; e a dívida, a manufatura. Reaproximar a economia das necessidades humanas é tarefa árdua, mas urgente
Marjorie Kelly – Wealth Supremacy – How the Extractive Economy and the Biased Rules of Capitalism Drive Today’s Crises – Berrett-Koehler Publishers, Oakland, 2023 (Supremacia da riqueza: como a economia extrativa e as regras enviesadas do capitalismo levam às crises atuais).
Marjorie Kelly vai direto ao ponto: “Um modo de vida no nosso planeta está acabando. Se conseguiremos encontrar um caminho para sair do caos para uma mudança positiva de sistema, ainda está para ser visto.” (página 189) Kelly se refere aos impactos da nossa perda de governança, com os dramas ambientais, da desigualdade, dos conflitos, mas coloca a financeirização no centro: “Essas batalhas separadas poderiam se tornar uma só, se compartilhássemos a compreensão do sistema profundo que as alimenta todas – o agigantado e financeirizado sistema econômico, com os seus processos insidiosos de extração de riqueza, que constituem as forças frequentemente invisíveis que geram muitas crises.” (191)
Não se trata de um defeito no sistema, e sim do próprio sistema: ”Temos de expor o fato que um terço do PIB está sendo extraído pela indústria da finança, e tornar visível o fato que ativos financeiros são cinco ou mais vezes o tamanho do PIB, e ainda determinados a crescer eternamente e sem limites. Temos de reforçar que essa riqueza com demasiada frequência é o resultado de se tirar (taking) do resto da sociedade.”(192) Essa realidade desenha a tarefa que temos pela frente, “a tarefa de transferir riqueza e poder das mãos dos poucos para o controle dos muitos, a tarefa de criar um sistema desenhado não para maximizar a riqueza financeira mas para manter uma vida florescente.”(193)
O objetivo não é complexo, trata-se de reaproximar a economia e as necessidades humanas. Uma economia democrática “é uma economia que, no seu desenho fundamental, visa responder às necessidades essenciais de todos nós, equilibrar o consumo humano com a capacidade regenerativa da terra, responder às vozes e preocupações de pessoas correntes, e compartilhar a prosperidade sem diferenças de raça, gênero, origem nacional, ou riqueza. No núcleo de uma economia democrática está o bem comum, no quadro dos objetivos fundamentais da democracia política.”(154)
É colocar o desafio alto demais? Kelly lembra com força que todas as grandes transformações, a abolição da escravidão, os direitos das mulheres, a onda de decolonização e outras transformações estruturais, como o fim dos reis de direito divino, se deram em contextos em que se dizia que eram sonhos impossíveis. Mas a mudança das mentalidades é poderosa: “Os sonhos são importantes. As visões são importantes. Para o bem ou para o mal, a mente humana coletiva é uma força capaz de modelar o mundo.”(154)
Marjorie Kelly não é nova na área. Em 2001, o seu livro The Divine Right of Capital: Dethroning the Corporate Aristocracy teve um impacto internacional profundo, ao demonstrar que entre o fluxo de dinheiro de pessoas que compram ações, e que com isso se veem como investidores, financiadores de atividades produtivas, e o fluxo de dinheiro que sai das empresas, o sinal tinha se invertido: os gestores de aplicações financeiras drenam mais do que aportam, travando o desenvolvimento. Em termos claros, uma empresa que gera um superávit pode aumentar os salários dos trabalhadores, expandir investimentos na própria empresa, ou aumentar a remuneração dos acionistas. Esta última opção se tornou radicalmente dominante. É o poder dos proprietários ausentes (absentee owners, shareholders).
Com o gigantismo e poder das empresas gestoras de ativos (asset management), as empresas produtivas passaram a canalizar cada vez mais recursos sob forma de dividendos para acionistas, mesmo travando a remuneração dos trabalhadores e o reinvestimento nas empresas. Por sua vez, a remuneração dos executivos nas empresas passou a acompanhar o enriquecimento dos acionistas, gerando interesses comuns entre os dois grupos. Gerou-se uma classe de capitalistas extrativos. Thomas Piketty detalhou os mecanismos no Capitalismo no Século XXI, de 2013, demonstrando claramente que o capitalismo se deslocou: rende mais fazer aplicações financeiras do que criar uma empresa. Hoje temos um manancial de pesquisas detalhadas sobre este capitalismo, com pesquisas que entre outros sistematizei no livro A Era do Capital Improdutivo (2018), e em particular nos trabalhos de Brett Christophers, como o Rentier Capitalism. A análise econômica se deslocou.
Marjorie Kelly continua nesse eixo de pesquisa: “O mundo hoje está inundado pelo capital financeiro, a versão líquida contemporânea da propriedade. Nesse regime de propriedade, isso significa que o centro de gravidade do sistema se deslocou (shifted away) da economia real de habitações, pequenas empresas e empregos, e se moveu para a esfera da finança. O poder deste mundo, o mundo da riqueza e dos ricos, aumentou. A extração relativamente ao resto cresceu dramaticamente.” (82) Demasiada finança (Too Much Finance) é o título inclusive de uma análise do FMI. (Ver nota 4, p. 210).
Kelly detalha o mecanismo: “A financeirização consiste no desvio dos fluxos financeiros da produção e do consumo para os mercados de ativos (asset markets). Isso significa que o sistema agora consiste menos em manufaturas e mais em manufaturar dívidas. As finanças já estiveram a serviço das comunidades, com empregos, casas, empresas familiares – fazendo empréstimos para pequenas empresas, ajudando as pessoas a comprar casas, e assim por diante. Agora estão a serviço da finança. Em vez de termos uma economia desenhada para produzir mais valor no mundo real, para pessoas comuns, a máquina econômica foi reajustada para produzir valorizações financeiras mais elevadas.”(83)
O resultado é que as finanças passaram a dominar a sociedade: “As finanças desviam a função do sistema da sua utilidade no mundo real – da inovação, do aumento de produtividade e da renda compartilhada. Em vez disso, como Bezemer e seus colegas o colocam, os ativos financeiros tornam-se a base do sistema econômico. Os rendiments que resultam beneficiam os poucos. Essa minoria – os ricos e a indústria financeira que os serve – passou a dominar a sociedade. Nesse estado das coisas, a extração se expande. As relações no sistema se desequilibram, a maioria de nós ficam endividada, enquanto uns poucos se apropriam do resultado. Muito da riqueza do 1 por cento constitui dívida as famílias e os governos devem.”(83)
Kelly converge com as pesquisas de Thomas Piketty: “Se o crescimento econômico é, digamos, de 2 ou 3 por centos, enquanto o capital busca crescer no ritmo de 5 ou 7 por centos, os ricos aumentam a sua renda ao extrair dos outros, com métodos como redução da renda dos trabalhadores. Se a minha fatia do bolo está crescendo muito mais rápido do que o crescimento do bolo inteiro, então a sua fatia está ficando menor. Piketty mostrou isso ser verdadeiro no capitalismo num período de duzentos anos… As 10 pessoas mais ricas hoje possuem mais riqueza que os 40 por centos de toda a humanidade.”(84)
A autora traz com força a importância de entendermos esse mecanismo, mais obscuro para as pessoas. A exploração com baixos salários numa empresa é clara, os trabalhadores podem se organizar e buscar equilíbrios. Os novos mecanismos de apropriação do produto social, através de mecanismos financeiros cada vez mais obscuros, são pouco compreendidos. “As práticas do capitalismo financeirizado operam numa aparente narrativa de matemática tecnocrática, que confere à ganância autoridade e persistência. Tornando a sua brutalidade casual invisível.”(50)
Particularmente enganadora é a narrativa dos mecanismos de livre mercado: “Na essência, o conceito de livre mercado é uma folha de figa. É uma cobertura ideológica, destinada a proteger a ação real, que é mais profunda, no poder da riqueza, livre e segura no seu império invisível, onde continua infinitamente com sede de mais. O neoliberalismo é o engodo da máquina de extração. A extração de riqueza é o verdadeiro jogo.”(118)
O processo decisório das empresas é essencial. Decisões sobre o uso dos recursos das corporações, e em particular a nomeação dos executivos, dependem do voto dos acionistas. Os acionistas não estão na empresa, são grandes grupos de gestão de dinheiro, com os seus algoritmos. O resultado é que proprietários ausentes (absentee owners) tomam as decisões estratégicas, enquanto os trabalhadores que estão na empresa, que realizam as atividades, não têm nenhum voto, a não ser em situações excepcionais como na Alemanha, onde são representados no conselho de administração. Ou seja, rompe-se a convergência entre os interesses dos trabalhadores, e as políticas empresariais. Uma Samarco não investiu nem nas infraestruturas para proteger as barragens, nem nos trabalhadores, privilegiou o rendimento dos acionistas, gerando o desastre de Mariana.
A compreensão desta mudança no sistema é fundamental. Não se trata mais do capitalista que tem uma empresa no bairro, numa cidade concreta, conhecido dos vizinhos, respondendo a mudanças culturais, preocupado com a imagem. Trata-se de uma máquina supraterritorial, distante, que dita os termos, enquanto recomenda aos seus departamentos de relações públicas e de relações governamentais (política institucionalizada) que proclamem a sua fidelidade ao ESG (Environment, Sustainability, Governance).
A riqueza do aporte de Marjorie Kelly, neste livro de 2023, Wealth Supremacy, consiste numa sistematização magistral de como o sistema hoje funciona. Ela domina suficientemente a área, para não precisar entrar em complexidades: um livro pequeno, de leitura simples e sobretudo agradável, com linguagem direta, torna os mecanismos transparentes, não para economistas em particular, mas para toda pessoa de bom senso. Isso é indispensável, pois o capitalismo atual ainda navega na legitimidade da sua fase industrial e produtiva, hoje travada pela financeirização. Estamos falando de um terço da capacidade produtiva apropriada por intermediários financeiros improdutivos. Não à toa o mundo está discutindo um novo pacto global sustentável, um novo Bretton Woods, uma nova arquitetura financeira mundial.
Por Breno Bringel e Maristella Svampa
Publicado em Nueva Sociedad
Tradução por Rupturas
Introdução
Estamos vivendo um momento decisivo, marcado por um alto nível de fragilidade e incerteza diante da emergência climática e dos múltiplos riscos e destinos globais possíveis. A narrativa de estabilidade, governança nacional e governança global criada nas últimas décadas por atores hegemônicos desmoronou, primeiro com a crise de 2008 e depois com a pandemia de Covid-19. A imprevisibilidade e a instabilidade se converteram na norma diante de uma sequência de crises profundas (sociais, políticas, sanitárias, geopolíticas, econômicas e ecológicas) que não podem mais ser tratadas como antes, pois se justapõem e se reforçam mutuamente.
Estamos passando de múltiplas crises para uma policrise civilizacional, ou seja, crises inter-relacionadas que estão causalmente interligadas – isto é, produzem danos maiores do que a soma do que produziriam isoladamente – e questionam o modelo civilizacional baseado no crescimento ilimitado, progresso e desenvolvimento. Somam-se a esse cenário o fortalecimento da extrema direita e dos autoritarismos, a erosão da democracia, o controle digital e tecnológico da vida e o fortalecimento da cultura da guerra, conforme sugerido pelo Pacto Ecossocial e Intercultural do Sul em sua recente Declaração de Bogotá.
Diante destas tendências, a transição socioecológica deixou de ser uma questão restrita a grupos de ativistas e cientistas para se tornar o eixo central das agendas políticas e econômicas contemporâneas. Entretanto, duas questões importantes surgem aqui. Primeiro, diante da urgência da descarbonização, há uma tendência de reduzir a transição socioecológica – cujo entendimento integral deve abranger os níveis energético, produtivo, alimentar e urbano – à transição energética. A segunda questão está associada à forma como a transição energética é realizada e quem pagará os custos.
A transição energética, impulsionada principalmente por grandes corporações, fundações e governos do Norte global e dos países emergentes em direção à energia supostamente “limpa”, está exercendo uma pressão cada vez maior sobre o Sul global. Para que a China, os Estados Unidos e a Europa avancem em direção à desfossilização, novas zonas de sacrifício estão sendo criadas nas periferias globais. Há vários exemplos dessa dinâmica: a extração de cobalto e lítio para a produção de baterias de alta tecnologia para carros elétricos afeta brutalmente o chamado “triângulo do lítio” na América Latina e no norte da África; a crescente demanda por madeira de balsa – abundante na Amazônia equatoriana – para a construção de turbinas eólicas exigidas pela China e por países europeus destrói comunidades, territórios e biodiversidade; e a nova licitação para megaprojetos de painéis solares e infraestrutura de hidrogênio aumenta ainda mais a apropriação de terras.
Esse processo está se tornando conhecido no ativismo e nos estudos críticos como “extrativismo verde” ou “colonialismo energético”: uma nova dinâmica de extração capitalista e apropriação de matérias-primas, bens naturais e mão de obra, especialmente (embora não exclusivamente) no Sul global, com o objetivo de uma transição para a “energia verde”.
Argumentamos que o colonialismo energético é a peça central de um novo consenso capitalista, que definimos como o “Consenso da Descarbonização”. Trata-se de um acordo global que defende a mudança de uma matriz energética baseada em combustíveis fósseis para uma matriz sem emissões de carbono (ou com emissões reduzidas), baseada em energias “renováveis”. Seu leitmotiv é lutar contra o aquecimento global e a crise climática, estimulando uma transição energética promovida pela eletrificação do consumo e pela digitalização. No entanto, em vez de proteger o planeta, contribui para destruí-lo, aprofundando as desigualdades existentes, exacerbando a exploração dos recursos naturais e perpetuando o modelo de mercantilização da natureza. Este texto analisa como se produziu a mudança dos consensos capitalistas globais anteriores – o “Consenso de Washington” e o “Consenso das Commodities” – para o “Consenso da Descarbonização”. Ele também discute suas principais características, bem como as linhas de continuidade e ruptura em um mundo multipolar. Por fim, apresenta uma série de reflexões e propostas em relação à transição energética, tanto em termos geopolíticos quanto locais-territoriais.
Do “Consenso de Washington” ao “Consenso da Descarbonização” (via “Consenso das Commodities”)
O processo de liberalização comercial e econômica, desregulamentação, privatização, redução do Estado e expansão das forças de mercado nas economias nacionais, iniciado na década de 1980 e consolidado na década de 1990, recebeu o nome de “Consenso de Washington”. Conhecemos bem a receita trágica: um pacote de reformas que promoveu o fundamentalismo de mercado, estabelecendo o neoliberalismo como a única alternativa após a queda do Muro de Berlim. Foi um consenso entre diversos atores que promoveu a globalização neoliberal, com um peso especial das instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar das diferenças de nuance, uma série de políticas de ajuste estrutural foi imposta aos países do Sul, promovendo o livre mercado.
Essas políticas foram elaboradas tendo a América Latina como ponto de referência e acabaram sendo referendadas por boa parte dos governos da região. No entanto, os graves efeitos ambientais e sociais e as múltiplas crises econômicas que elas geraram em vários países latino-americanos serviram de base para sua crítica política e intelectual. Resistência, redes e movimentos sociais começaram a se articular contra os acordos de livre comércio, a globalização neoliberal e seus principais símbolos. Os protestos contra a OMC, o Banco Mundial, o FMI, as campanhas contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e o Fórum Social Mundial foram processos fundamentais que articularam a denúncia do “Consenso de Washington” com o objetivo de gerar alternativas e convergências para “outros mundos possíveis”.
Na virada do século, esse ciclo global e regional de protestos foi acompanhado por intensas mobilizações em países como Argentina (2001), Venezuela (2002) e Bolívia (2003), que impulsionaram o surgimento do chamado “ciclo progressista” latino-americano e de um imaginário pós-neoliberal. Os progressismos latino-americanos exigiram um papel mais proeminente do Estado, com políticas sociais direcionadas e, em alguns casos, redistributivas, mas o fizeram de forma intimamente ligada ao fortalecimento do capital privado multinacional. O que foi vendido em vários países como uma política win-win, em que os pobres melhoravam de vida enquanto os ricos continuavam a enriquecer, foi possível graças à entrada da América Latina em uma nova ordem econômica e político-ideológica sustentada pelo auge dos preços internacionais de matérias-primas e bens de consumo cada vez mais exigidos pelos países centrais e potências emergentes como a China.
Essa nova ordem, caracterizada pela hegemonia do desenvolvimento neoextrativista, marcou a transição para outro tipo de consenso capitalista: o “Consenso das Commodities “, visto por atores muito diversos e heterogêneos – dos mais conservadores aos mais progressistas – como uma autêntica “oportunidade econômica”. As economias latino-americanas foram reprimarizadas e a dinâmica de desapropriação se acentuou de forma muito violenta, com a destruição da biodiversidade e a expulsão e o deslocamento de populações de seus territórios.
Nesse contexto, aumentaram a conflituosidade social e a resistência das comunidades e dos movimentos sociais à expansão do agronegócio, aos megaprojetos de mineração a céu aberto, à construção de grandes barragens hidrelétricas e à expansão da fronteira de petróleo e energia para hidrocarbonetos não convencionais. Mas as lutas de resistência contra o desenvolvimentismo neoextrativista, nas quais os movimentos ecoterritoriais desempenharam um papel de liderança, não se limitaram a um repertório reativo. Do “não” emergiram muitos “sins” e alternativas ao desenvolvimento e novos horizontes propositivos começaram a ser cultivados, como o Bem Viver, os bens comuns, a plurinacionalidade, os direitos à natureza e o paradigma do cuidado.
O fim do boom das commodities em meados de 2010 coincidiu com o fim desse ciclo progressista e com o fortalecimento da direita em vários países, em meio a uma profunda deterioração dos sistemas políticos e ao questionamento dos atores sociais e políticos estabelecidos. Uma forte polarização se estabeleceu entre o progressismo, que passou a ser atacado e ficou na defensiva, e as forças conservadoras ou reacionárias que começaram a definir a agenda.
A pandemia de Covid-19 surgiu nesse contexto como um evento global crítico, que acelerou e consolidou mudanças geopolíticas que já estavam em andamento, como a militarização global, o fortalecimento da China, a disputa inter-imperialista e o aumento da distância entre o centro e a periferia. Ao mesmo tempo, abriu-se uma nova janela política de discussão sobre como seria o mundo pós-pandemia. Apesar da insistência dos setores dominantes em manter os negócios como de costume, apostando mais em um “retorno à normalidade” do que em uma “nova normalidade”, uma lógica adaptativa do capitalismo em direção a um modelo supostamente mais “limpo” e “ecológico” também começou a ganhar terreno.
Grandes corporações transnacionais, instituições supranacionais e governos, com o apoio de várias organizações internacionais e especialistas, começaram a colocar a necessidade de descarbonizar a matriz energética no centro da agenda econômica e política. O Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) tornaram-se as principais referências oficiais para gerar estruturas internacionais compartilhadas. No terreno nacional, vários países criaram seus Pactos Verdes ou Green New Deals e até mesmo ministérios de Transição Ecológica. Atores supranacionais, como a Comissão Europeia, também pressionaram por um Pacto Verde Europeu, formulado com o objetivo de se tornar o primeiro continente “neutro em relação ao clima”. Assim, o discurso “NetZero até 2050” começou a aparecer em grande parte dos discursos convencionais, inclusive em alguns que eram abertamente negacionistas até anos atrás e agora começaram a oferecer “soluções climáticas”. Foi assim que surgiu o mais recente consenso capitalista: o que chamamos de “Consenso da Descarbonização”.
O “Consenso da Descarbonização”: características, contradições e implicações
O “Consenso da Descarbonização” baseia-se em um objetivo comum amplamente aceito. Em um mundo ferido pelo colapso, quem poderia se opor à descarbonização e à neutralidade climática? A questão principal não é o quê, mas como. A descarbonização é bem-vinda, mas não dessa forma. Entre os objetivos dessa descarbonização hegemônica não estão a desconcentração do sistema energético, o cuidado com a natureza, muito menos a justiça climática global, mas outras motivações, como atrair novos incentivos financeiros, reduzir a dependência de alguns países na busca pela segurança energética, expandir nichos de mercado ou melhorar a imagem das empresas. Em outras palavras, se os atores dominantes adotam essa agenda, é porque a veem como uma nova janela de oportunidade para o reposicionamento geopolítico e a acumulação capitalista, mais especificamente, uma “acumulação por desfossilização” que aprofunda a contradição capital/natureza.
Nesse novo consenso, a descarbonização não é vista como parte de um processo mais amplo de mudança do perfil metabólico da sociedade (nos padrões de produção, consumo, circulação de bens e geração de resíduos), mas como um fim em si mesmo. Embora se reconheça a gravidade da emergência climática, estão sendo construídas políticas que não apenas são insuficientes, mas também têm impactos muito graves, uma vez que a exploração dos recursos naturais está se intensificando e a ideologia do crescimento econômico indefinido está sendo mantida. Com mais uma transformação na retórica da “sustentabilidade”, abre-se uma nova fase de pilhagem ambiental do Sul global, afetando a vida de milhões de seres humanos e de seres sencientes não humanos, comprometendo ainda mais a biodiversidade e destruindo ecossistemas estratégicos. O Sul global, mais uma vez, se torna um depósito de recursos supostamente inesgotáveis, de onde são extraídos minerais estratégicos para a transição energética do Norte global, bem como um destino para os resíduos e a poluição gerados por essa nova “revolução industrial”.
O “Consenso da Descarbonização” mobiliza continuamente o discurso do potencial tecnológico e da inovação. Ao mesmo tempo, defende explicitamente os “negócios verdes”, o “financiamento climático”, as “soluções baseadas na natureza”, a “mineração climaticamente inteligente”, os “mercados de carbono” e várias formas de investimento especulativo. Quase sem nenhuma solução de continuidade, as políticas de “responsabilidade social” das empresas extrativistas foram convertidas nas últimas décadas em políticas de “responsabilidade socioambiental”, em uma tentativa de construir uma imagem de responsabilidade ecológica que contrasta fortemente com a realidade. Em suma, propõe-se um tipo de transição baseada em uma lógica fundamentalmente mercantil e com uma interface hiperdigitalizada, que gera novas mercadorias e formas sofisticadas de controle social e territorial.
O “Consenso da Descarbonização” é, em consequência, marcado pelo imperialismo ecológico e pelo colonialismo verde. Ele mobiliza não apenas práticas, mas também um imaginário ecológico neocolonial. Por exemplo, a ideia de “espaço vazio”, típica da geopolítica imperial, é frequentemente usada por governos e empresas. Se no passado essa ideia, que complementa a noção ratzelliana de “espaço vital” (Lebensraum), gerou ecocídio e etnocídio indígena – e mais tarde serviu para promover políticas de “desenvolvimento” e “colonização” de territórios -, hoje ela é usada para justificar a expansão territorial para investimentos em energia “verde”. Dessa forma, grandes extensões de terra em áreas rurais pouco povoadas são vistas como espaços vazios adequados para a construção de turbinas eólicas ou fábricas de hidrogênio. Esses imaginários geopolíticos das transições corporativas reproduzem relações coloniais, que não apenas podem ser vistas como uma imposição de fora para dentro, do Norte para o Sul. Em muitos casos, o que está em jogo é também um tipo de colonialismo verde interno, que cria as condições para o avanço do extrativismo verde com base em alianças e relações coloniais entre as elites nacionais e as elites globais.
O “Consenso de Descarbonização” também gera, em nome da “transição verde”, pressões nos próprios territórios do Norte global, tanto nos EUA quanto na Europa , com um grande impacto nas áreas rurais menos populosas. Mas nada disso se compara aos impactos e à escala desses processos na periferia globalizada. Como bem aponta um estudo recente de Alfons Pérez sobre os Pactos Verdes:
A distribuição geográfica da extração e das reservas atuais dessas matérias-primas essenciais desenha um mapa que é certamente diferente daquele da extração de combustíveis fósseis. Embora o Oriente Médio tenha sido o epicentro geoestratégico para o fornecimento de hidrocarbonetos, o foco agora está mudando para outras áreas do planeta. As principais regiões para a exploração desses elementos estão concentradas no Sul global e em regiões como a África Subsaariana, o Sudeste Asiático, a América do Sul, a Oceania e a China.
Apesar da busca incessante por esses minerais críticos, a forma e a temporalidade da implementação do “Consenso da Descarbonização” provocam contradições até mesmo entre seus próprios promotores. A exacerbação de políticas esquizofrênicas – ou double bind, para usar os termos de Gregory Bateson – parece ser um sinal da policrise civilizacional. Há aqueles que, embora reconheçam sua importância, procuram adiar a descarbonização e extrair até a última gota de petróleo, como é o caso de muitas empresas de combustíveis fósseis e seu lobby junto aos governos. Um exemplo foi o presidente Joe Biden que, em março de 2023, desafiando sua promessa eleitoral, aprovou o Projeto Willow, que permite a expansão da fronteira petrolífera no Ártico do Alasca, colocando em risco um ecossistema extremamente frágil que já está sofrendo com o derretimento do gelo devido ao aquecimento global. Outro exemplo vem da União Europeia que, ao mesmo tempo em que busca expandir o Pacto Verde Europeu, optou por voltar ao carvão até meados de 2022, usando como justificativa a crise energética acelerada pela guerra na Ucrânia. Assim, o governo alemão ordenou, em janeiro de 2023, a demolição de um vilarejo para dar lugar à expansão de uma mina de carvão de lignito, o tipo de carvão mais poluente entre os combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, como parte do plano europeu de recuperação pós-crise, a Alemanha pressionou os estados-membros da UE a destinar parte desses fundos para o desenvolvimento do hidrogênio verde. Mais recentemente, o governo brasileiro também parece haver entrado no Consenso da Descarbonização, anunciando um plano de ‘transformação ecológica’ ancorado, contudo, na lógica do crescimento econômico e sem renunciar a novas frentes de exploração de petróleo.
O tipo de lógica pós-fóssil promovida pelo “Consenso da Descarbonização” leva, portanto, a uma transição corporativa, tecnocrática, neocolonial e insustentável. Diversas projeções alertam que, abordada dessa forma, a transição energética é metabolicamente insustentável. O próprio Banco Mundial alertou, em 2020, que a extração de minerais
como grafite, lítio e cobalto, poderia aumentar em quase 500% até 2050 para atender à crescente demanda por tecnologias de energia limpa. Estima-se que mais de 3 bilhões de toneladas de minerais e metais serão necessários para a implantação de energia eólica, solar e geotérmica, bem como para o armazenamento de energia, a fim de alcançar uma redução de temperatura abaixo de 2 °C no futuro.
Relatórios mais recentes são ainda mais assustadores com relação ao aumento do uso de “minerais de transição”. Como argumenta o jornalista francês Guillaume Pitron, “centenas de milhares de turbinas eólicas, algumas mais altas que a Torre Eiffel, serão construídas nos próximos anos e exigirão enormes quantidades de cobalto, zinco, molibdênio, alumínio, zinco, cromo… entre outros metais”.
O “Consenso da Descarbonização” restringe o horizonte da luta contra as mudanças climáticas ao que a pesquisadora brasileira Camila Moreno define como a “métrica do carbono”: uma forma limitada de quantificar o carbono apenas em termos de moléculas de CO2, que oferece uma espécie de moeda para a troca internacional, gerando a ilusão de que algo está sendo feito contra a degradação ambiental. Dessa forma, o problema subjacente é encoberto e não apenas a poluição continua, mas também novos negócios são feitos com a poluição (por meio, por exemplo, do comércio de compensação de emissões). Os limites naturais e ecológicos do planeta continuam sendo ignorados, pois é evidente que não há lítio ou minerais críticos suficientes se os modelos de mobilidade e os padrões de consumo não forem alterados. O próprio fato de as baterias de lítio, assim como os projetos eólicos e solares, também exigirem minerais (como cobre, zinco e muitos outros) deve nos alertar para a necessidade de uma reforma radical do sistema de transporte e do modelo de consumo existentes.
Portanto, a transição não pode ser reduzida apenas a uma mudança de matriz energética que garanta a continuidade de um modelo insustentável. Ao propor uma transição energética corporativa de curto prazo, o “Consenso da Descarbonização” mantém o padrão hegemônico de desenvolvimento e acelera a fratura metabólica, com o objetivo de preservar o estilo de vida e o consumo atuais, especialmente nos países do Norte e nos setores mais ricos em escala global.
Continuidades e rupturas entre os três consensos capitalistas
Se durante a Guerra Fria a imaginação geopolítica hegemônica falava de um mundo bipolar, dividido em dois blocos ideologicamente polarizados, com a queda do Muro de Berlim começou a ser forjada uma imaginação geopolítica hegemônica baseada em consensos capitalistas globais. Se analisarmos o “Consenso da Descarbonização” sob a perspectiva da processualidade sócio-histórica, veremos que há continuidades e rupturas entre os três consensos hegemônicos em vigor nas últimas décadas. Entre os pontos de continuidade, três elementos principais podem ser destacados. O primeiro é o discurso da inevitabilidade, que afirma que não há alternativa a esses consensos. Após o “There is no Alternative” do Consenso de Washington, a restrição do mundo do possível foi sendo aperfeiçoada com diferentes repertórios de legitimação social, seja o acesso ao consumo pelos setores populares, seja a retórica de respirar um ar mais saudável. O “Consenso das Commodities” foi construído com base na ideia de que havia um acordo sobre a natureza irrevogável ou irresistível da dinâmica extrativista resultante da crescente demanda global por matérias-primas, cujo objetivo era fechar a possibilidade de alternativas. De maneira semelhante, o “Consenso da Descarbonização” hoje busca instalar a ideia de que, dada a urgência climática, não há outra transição possível e que a única existente e “realista” é a transição corporativa.
Em segundo lugar, todos esses consensos implicam em uma maior concentração de poder em atores não democráticos (grandes corporações, agentes financeiros e organizações internacionais), minando qualquer possibilidade de governança democrática, ainda mais em um contexto de “transição”. Isso se manifesta de duas formas principais. Por um lado, é visto na captura corporativa dos espaços de governança. Espaços como a Conferência das Partes (COP), que, como órgão supremo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, deveriam ser fóruns multilaterais para avançar na luta contra as mudanças climáticas, são cada vez mais uma feira de negócios para o capitalismo verde que mantém as relações de poder energético entre o Norte e o Sul. Podemos dizer que as COPs servem ao “Consenso da Descarbonização”, assim como a OMC serviu ao “Consenso de Washington” e ao “Consenso das Commodities“.
Por outro lado, ela se manifesta na forte concentração de poder entre as grandes empresas, do início ao fim das cadeias globais. Se considerarmos o caso do lítio na Argentina e no Chile, por exemplo, no final da cadeia de valor global estão os gigantes automotivos (Toyota, BMW, Audi, Nissan, General Motors) e empresas elétricas como a Vestas e a Tesla. 50% da industrialização de baterias para fábricas automotivas está concentrada em empresas chinesas, e o controle da extração também é dominado por poucas empresas: a americana Albemarle, a chilena SQM, a americana Livent Corp, a australiana Orocobre e a chinesa Ganfeng. Por sua vez, o Chile e a Argentina exportam carbonato de lítio, uma commodity sem valor agregado e, apesar dos anúncios recorrentes sobre “industrialização”, os países do chamado “triângulo do lítio” estão longe de controlar a cadeia global do lítio, das salinas às baterias.
Em muitos casos, a extração de lítio está sendo realizada sem licença social, acordo ou consulta com as comunidades indígenas que habitam esses territórios há milênios e que denunciam o consumo excessivo de água e seus impactos no processo de extração. Nas Salinas Grandes, em Jujuy, Argentina, desde 2010, um grupo de comunidades indígenas (chamadas de “as 33 comunidades”) vem rejeitando a extração de lítio em seus territórios, exigindo consulta livre, prévia e informada e defendendo uma perspectiva holística e ancestral que integra território, autonomia, Bem Viver, plurinacionalidade, água e sustentabilidade da vida. O salar é considerado pelos povos indígenas como “um ser vivo, um doador de vida”, e eles têm como lema “A água e a vida valem mais do que o lítio”, como pode ser visto estampado no Aerocene Pacha, um balão de ar quente sem combustível que o artista argentino Tomás Saraceno ergueu em janeiro de 2020.
Em terceiro lugar, a constante busca pela expansão das fronteiras capitalistas envolve, em todos esses casos, a promoção de megaprojetos voltados para o controle, a extração e a exportação de bens naturais. E, para isso, há uma clara aposta em garantir “segurança jurídica” ao capital com bases regulatórias e legais que permitam a maior lucratividade empresarial. Não é inocente, por exemplo, que nos novos acordos comerciais bilaterais que a UE está negociando (com o Chile e o México, entre outros) ela tenha incorporado capítulos sobre energia e matérias-primas para garantir o acesso a minerais essenciais para a transição. A Comissão Europeia deixou bem claro na declaração do Pacto Verde Europeu que “o acesso aos recursos é uma questão de segurança estratégica para a implementação do Pacto Verde” e que é essencial “garantir o fornecimento de matérias-primas sustentáveis, em especial as necessárias para as tecnologias renováveis, digitais, espaciais e de defesa”. Nesse contexto, apresentou, em março de 2023, uma proposta para uma “Regulamentação de Matérias-Primas Críticas”, ostensivamente destinada a garantir um fornecimento seguro e sustentável dessas matérias-primas. No entanto, conforme explicado em um relatório do Centre for Research on Multinational Corporations (SOMO, para sua sigla em holandês), a estratégia proposta pela UE não levará a um fornecimento sustentável de minerais críticos para a Europa, pois exacerbará os riscos aos direitos humanos e ao meio ambiente, prejudicará a dinâmica econômica nos países parceiros e continuará a reforçar o consumo insustentável nos países ricos.
Além dessas linhas de continuidade, há também novidades. Uma característica importante do “Consenso de Descarbonização” está ligada à complexidade das relações neocoloniais em um mundo multipolar, marcado pela competição inter-imperial, onde a geopolítica se transforma em geoeconomia e em múltiplos colonialismos. Não é apenas a UE, que carece de minerais essenciais, que está buscando acesso direto a eles. A China, apesar de possuir esses minerais, está muito bem-posicionada no Sul global, onde há quase duas décadas vem fazendo investimentos muito agressivos em setores extrativistas estratégicos, mantendo um tipo de relacionamento diferente daqueles estabelecidos pelos EUA e pela Europa. Uma das peculiaridades da nova dependência gerada entre a China e os países latino-americanos, dos quais, em quase todos os casos, é o principal parceiro comercial, é que, embora seus investimentos sejam de longo prazo em diferentes setores (agronegócio, mineração, petróleo, infraestrutura ligada às atividades extrativistas), em termos de transferências de tecnologia – particularmente em relação à transição verde – ela tende a usar tecnologia chinesa de ponta, que também inclui, às vezes, mão de obra chinesa. A disputa inter-imperial é concluída com os EUA. Embora essas questões pareçam estar ausentes das declarações do Departamento de Estado, em várias ocasiões a chefe do Comando Sul, Laura Richardson, deixou claro o interesse estratégico da América do Sul para seu país (em termos de água, petróleo, lítio, entre outros). Por fim, acrescentamos que a Rússia, como um ator tendencialmente hegemônico em um mundo multipolar, está longe de ter o alcance das potências mencionadas no campo da disputa sobre a transição energética.
Outro elemento de distinção importante entre esses três consensos é o papel do Estado. Sabemos que o “Consenso de Washington” foi marcado por uma lógica de Estado mínimo e o “Consenso das Commodities” defendeu um Estado moderadamente regulador, mas em estreita aliança com o capital transnacional. Por sua vez, o “Consenso da Descarbonização” parece inaugurar o surgimento de um tipo de neoestatismo de planejamento – em alguns casos, mais próximo de um estado eco-corporativo – que busca combinar a transição verde com a promoção de fundos privados e a financeirização da natureza. Dessa forma, as transições verdes conduzidas por instituições governamentais e pelo Estado tendem a se aproximar, facilitar e se fundir com as transições corporativas, em uma dinâmica de subserviência do setor público aos interesses privados. Entretanto, em alguns casos em que há ciclos intensos de mobilização social, o Estado pode tentar recuperar alguma autonomia relativa promovendo transições ecossociais que incentivem a descentralização e a desconcentração do poder corporativo.
Além disso, embora tanto o “Consenso das Commodities” quanto o “Consenso da Descarbonização” impliquem em uma lógica extrativista, os produtos e os minerais necessários foram ampliados. No primeiro caso, são principalmente produtos alimentícios, hidrocarbonetos e minerais, como cobre, ouro, prata, estanho, bauxita e zinco, enquanto no segundo, além dos minerais mencionados, o foco de interesse são os chamados minerais críticos para a transição energética, como lítio, cobalto, grafite, índio, entre outros, e terras raras. Em ambos os casos, a extração e a exportação de matérias-primas têm consequências catastróficas em termos de destruição ecológica e geração de dependência. No entanto, como argumenta a socióloga alemã Kristina Dietz, um aspecto fundamental que diferencia o extrativismo verde do neoextrativismo é o discurso usado para legitimar o primeiro, uma vez que os atores que o promovem afirmam que ele é sustentável e que é a única maneira possível de enfrentar a emergência climática.
Descarbonização sim, mas com justiça geopolítica
Para que a descarbonização saia dessa lógica perversa, ela deve ser desmercantilizada e descolonizada a partir de um questionamento estrutural. Qualquer hipótese de uma transição ecossocial justa e integral deve enfrentar esse desafio e não pode estar ancorada apenas no nível local – como geralmente acontece – mas também deve considerar o nível geopolítico como uma prioridade. Isso implica incorporar o imperativo do decrescimento por parte do Norte global, bem como a dívida ecológica com os povos do Sul, buscando construir pontes entre os atores e diagnósticos críticos em busca de uma justiça ecológica global.
O Norte global precisa urgentemente começar a decrescer em várias áreas: em termos de consumo, redução da esfera de mercantilização, desmaterialização da produção, transporte e distribuição das horas de trabalho. Embora em muitas das propostas de decrescimento os fatores mencionados acima pareçam estar ligados a uma lógica de redistribuição social, a “desmaterialização” – ou seja, a redução da intensidade do uso de matérias-primas e energia – é inexorável. Embora seja uma responsabilidade prioritária do Norte global, isso não significa que seja “apenas uma coisa do Norte”, como é frequentemente argumentado no debate público, e que o Sul tenha que reivindicar seu “direito ao desenvolvimento”, porque é o chamado desenvolvimento e a lógica do crescimento insustentável que está nos levando ao colapso hoje.
O decrescimento é uma demanda por justiça global, no contexto de um planeta já danificado. Além disso, como advertiram vários defensores do decrescimento (como Giorgos Kallis, Federico Dimaria e Jason Hickel, entre muitos outros), a redução progressiva do metabolismo social se traduziria em menos pressão sobre os recursos naturais e os territórios do Sul, o que abriria um “espaço conceitual” no Sul global que seria necessário para avançar em direção ao pós-extrativismo. Ainda assim, como afirma Hickel, “o decrescimento é uma demanda por descolonização. Os países do Sul devem ser livres para organizar seus recursos e seu trabalho em torno da satisfação das necessidades humanas e não em torno de servir ao crescimento do Norte”.
O complemento do decrescimento só pode ser o pagamento da dívida ecológica com os povos e países do Sul. Em termos contábeis, a dívida climática é apenas uma linha no balanço de uma dívida ecológica mais ampla. Assim, a dívida ecológica poderia ser entendida como a obrigação e a responsabilidade que os países industrializados do Norte têm para com os países do Sul pela pilhagem e exploração de seus recursos naturais (petróleo, minerais, florestas, biodiversidade, recursos marinhos), à custa da energia humana de seus povos e da destruição, devastação e poluição de seu patrimônio natural e de suas próprias fontes de subsistência.
A dívida ecológica também está intimamente ligada à dívida externa. A superexploração dos recursos naturais se intensifica quando as relações comerciais pioram para as economias extrativistas, que precisam fazer pagamentos da dívida externa e financiar as importações necessárias. A pressão que os centros capitalistas exercem sobre a periferia para extrair recursos naturais é exacerbada no contexto da dívida externa. O imperativo de crescimento dos países ricos tem como contrapartida a “obrigação de exportar” do Sul, que nos países capitalistas periféricos parece estar associado à necessidade de pagar a dívida externa e seus juros, o que renova um círculo interminável de desigualdade. Isso está acontecendo hoje na Argentina, um país com uma dívida externa (contraída pelo governo neoliberal de Mauricio Macri entre 2015 e 2019) que o torna incapaz de pensar em qualquer alternativa de mudança que não seja expandir as fronteiras do neoextrativismo, a fim de obter dólares para aliviar os pagamentos de juros da dívida externa com o FMI.
Durante décadas, houve inúmeras e recorrentes iniciativas exigindo reparações abrangentes por responsabilidades históricas e que também articulam explicitamente a dívida ecológica com a dívida externa. Esse foi o caso da campanha Quem deve a quem? que, no auge do movimento altermundialista, na virada do século, exigiu o cancelamento da dívida externa e o pagamento da dívida ecológica. Além de denunciar a natureza ilegítima da dívida externa, o objetivo era conscientizar a população do Norte global sobre sua responsabilidade pela dívida ecológica. Mais recentemente, em 27 de fevereiro de 2023, o movimento Debt for Climate lançou um convite para se reunir com representantes dos países mais afetados pela interseção da crise climática e da dívida, a fim de discutir o cancelamento da dívida do Sul global e, assim, permitir uma transição justa. Esse dia marcou o 70º aniversário do Acordo de Londres, por meio do qual a Alemanha recebeu um alívio de 50% da dívida acumulada antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Alguns dos países que permitiram que a Alemanha vivesse seu chamado “milagre econômico”, graças a esse cancelamento, estão hoje altamente endividados. No entanto, a Alemanha impede qualquer medida progressiva para aliviar esses países de seu pesado fardo de dívida, enquanto, ao mesmo tempo, eles estão sofrendo as consequências devastadoras da crise climática.
De acordo com Alberto Acosta, se isso foi possível para a Alemanha em um contexto pós-guerra, por que não seria possível para os países do Sul em um cenário pós-pandemia e de emergência climática? O Acordo de Londres também nos oferece uma lista de questões a serem consideradas no enfrentamento da dívida externa: capacidade de pagamento, cancelamento substancial da dívida, redução significativa das taxas de juros, transparência nas negociações para determinar os benefícios das partes, cláusulas de contingência, esquemas de gerenciamento de disputas e a possibilidade de arbitragem justa e transparente, entre muitas outras. Para avançar na busca de soluções duradouras, é necessário, embora não seja suficiente, exigir o cancelamento da dívida, auditorias cidadãs e atenção às repetidas denúncias de violência e corrupção ligadas à dívida externa. Em suma, uma reconfiguração do sistema financeiro internacional que deixe claro que nenhum país pode se salvar sozinho, algo que não surgirá espontaneamente, mas que requer uma reativação das articulações internacionalistas que conectem o Norte e o Sul global neste cenário de policrise civilizacional.
Nesse marco, o decrescimento e o pós-extrativismo são duas perspectivas complementares e multidimensionais que permitem a construção de pontes internacionalistas e Norte-Sul em torno de uma transição ecossocial integral. Ambas formulam uma crítica aos limites ecológicos do planeta e enfatizam a insustentabilidade dos modelos de consumo imperial e do aprofundamento das desigualdades sociais. São também conceitos-horizonte que constituem um ponto de partida para a construção de ferramentas de mudança e alternativas civilizacionais, com base em outro regime socioecológico, diferente do regime economicista e pragmático de certos ambientalismos do momento. Podem avançar, com justiça climática, em direção a um horizonte de transformação ecossocial.
Construir transições ecossociais justas, populares e territorializadas
Em contraste com o que propõe o “Consenso da Descarbonização”, a energia deve ser vista como um direito e a democracia/soberania energética como um horizonte para sustentar o tecido da vida. A justiça ecossocial deve ter como objetivo eliminar a pobreza energética e desmantelar as relações de poder. No horizonte de uma transição energética justa, os combustíveis fósseis devem ser deixados no solo e os processos de exploração de hidrocarbonetos devem ser “desescalonados”, conforme sugerem as companheiras da organização Censat Agua Viva na Colômbia, o que implica uma ruptura de sentido para ressignificar a natureza.
Há cada vez mais vozes que, felizmente, buscam desmascarar o “Consenso da Descarbonização”, argumentando que a transição energética não pode ser feita às custas da água, dos ecossistemas e dos povos. Elas mostram, ao mesmo tempo, que as transições ecossociais justas não são e não podem ser uma projeção do futuro, mas estão acontecendo no presente, na experiência cotidiana de múltiplos territórios urbanos e rurais, no Norte e no Sul. Como resultado, o desafio não é tanto construir novas utopias e narrativas ecoutópicas para um mundo em que gostaríamos de viver, mas expandir, reconhecer e aprimorar essas práticas, conduzidas por diversas comunidades, organizações e movimentos sociais, que já existem e prefiguram alternativas sociais.
As transições ecossociais populares e territoriais estão, portanto, ancoradas em experiências concretas que, embora locais, podem ser ampliadas, conectadas e inspirar outras realidades. Elas têm vários eixos estratégicos que se alimentam mutuamente: energia (comunidade), alimentos (agroecologia e soberania alimentar), produção e consumo (estratégias de deslocalização e práticas pós-extrativistas de economia social e solidária, agricultura urbana), trabalho e cuidado (redes de cuidado e sociabilidades anticapitalistas), infraestruturas (moradia, mobilidade etc.), cultura e subjetividade (mudança cultural e de mentalidade), disputa política e normativa (geração de novos imaginários políticos relacionais vinculados a direitos territoriais e da natureza, eco-dependência, eco-feminismos, múltiplas dimensões da justiça e ética interespécies).
Essas propostas entendem que as transições ecossociais não podem se restringir apenas às questões climáticas e energéticas, como é comum no tipo dominante de transição, mas devem ser holísticas e integrais. Elas exigem uma transformação estrutural do sistema energético, mas também do modelo urbano e de produção, bem como dos vínculos com a natureza: desconcentrar, desprivatizar, desmercantilizar, descentralizar, despatriarcalizar, desierarquizar, reparar e curar. Além disso, ela busca um conceito de justiça integral que transcende a visão limitada das transições corporativas: o social não pode ser separado do ambiental; e a justiça social, ambiental, étnica, racial e de gênero também são indissociáveis.
Longe de romantizar as experiências de transições ecossociais justas, é essencial entender suas contradições, dificuldades e obstáculos internos e externos. Nesse registro, a multiescalaridade e as mediações políticas são elementos fundamentais. Por exemplo, uma alternativa ecossocial restrita a pequenas comunidades e lugares específicos que não se relacionam com outras experiências não é o mesmo que experiências localizadas, mas não localistas, que buscam construir articulações e sentidos para além de seu próprio território. Em um contexto de desglobalização gradual, a tentação de uma forte desconexão é grande. Mas para que as transições justas avancem, precisamos da criação de blocos regionais fortes, bem como do avanço na direção de um estado ecossocial.
A crise ecológica e climática está introduzindo novos riscos, a maioria com danos irreversíveis, que afetam a população de forma desigual. Como o economista Rubén Lo Vuolo aponta, precisamos ir além da lógica de um Estado que repara os danos para construir um Estado capaz de preveni-los. A distribuição deve ser pensada independentemente do crescimento. Um Estado ecossocial deve buscar um mecanismo de proteção social que seja o mais universal possível. Em vez de garantir uma aposentadoria (para aqueles que contribuem há anos), devemos buscar uma renda universal ou uma renda básica, a fim de passar de um Estado compensatório para um Estado preventivo, mais preocupado com as necessidades das pessoas do que com os interesses das corporações.
Sem uma mobilização social constante, coordenada e maciça, é improvável que isso aconteça. Não se trata apenas de reunir os movimentos climáticos ou repensar o ambientalismo, mas também de integrar uma multiplicidade de lutas que nem sempre estiveram conectadas entre si, mas que nos últimos anos tendem a aderir progressivamente ao paradigma das transições justas, contribuindo para que avancem em suas diferentes dimensões: movimentos feministas, antirracistas, camponeses, indígenas, animalistas, sindicais, de economia popular e solidária, entre outros. Longe das soluções individualistas que emergem do “Consenso da Descarbonização”, isso nos permite entender que a saída é coletiva; que não é apenas técnica, mas profundamente política. Essa é a chave para gerar processos de confluência e libertação cognitiva que permitam nos percebermos como sujeitos valiosos, embora não únicos, na construção urgente e necessária de uma história interespécies que merece ser vivida.
Notas
Michael Lawrence, Scott Janzwood y Thomas Homer-Dixon: «What is a Global Polycrisis? And How Is It Different from a Systemic Risk?», informe para discussão, Cascade Institute, 9/2022.
M. Svampa y Pablo Bertinat (eds.): La transición energética en la Argentina. Una hoja de ruta para entender los proyectos en pugna y las falsas soluciones, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2022.
M. Svampa: «‘Consenso de los Commodities’ y lenguajes de valoración en América Latina» en Nueva Sociedad No 244, 3-4/2013, disponível em nuso.org.
B. Bringel y Geoffrey Pleyers (eds.): Alerta global. Políticas, movimientos sociales y futuros en disputa en tiempos de pandemia, Clacso, Buenos Aires, 2020.
Este conceito foi formulado pelo Grupo de Estudios en Geopolítica y Bienes Comunes de la Universidad de Buenos Aires. Ver, entre otros, «El litio y la acumulación por desfosilización en Argentina» en M. Svampa y P. Bertinat (eds.): La transición energética en Argentina.
Thea Riofrancos: «Por qué relocalizar la extracción de minerales críticos en el Norte global no es justicia climática» en Viento Sur, 8/3/2022.
A. Pérez: Pactos verdes en tiempos de pandemias. El futuro se disputa ahora, Observatori del Deute en la Globalització / Libros en Acción / Icaria, Barcelona, 2021, p. 62.
G. Bateson: Steps to an Ecology of Mind, Chandler, San Francisco, 1972.
Etienne Beeker: «¿Hacia dónde va la transición energética alemana?» em Agenda Pública, 15/2/2023.
Banco Mundial: Minerals for Climate Action: The Mineral Intensity of the Clean Energy Transition, BM, Washington, DC, 2020.
G. Pitron: «El impacto de los metales raros. Profundizando en la transición energética» em Green European Journal, 5/2/2021.
C. Moreno, Daniel Speich Chassé y Lili Fuhr: A métrica do carbono: abstrações globais e epistemicídio ecológico, Fundação Heinrich Böll, Río de Janeiro, 2016.
Melisa Argento, Ariel Slipak y Florencia Puente: «Cambios en la normativa de explotación y creación de una empresa 100% estatal», Serie Políticas y Líneas de Acción, Clacso, 2021.
Para mais informações, ver https://pacha.aerocene.org
A. Pérez, op. cit., p. 58.
Disponivel em: single-market-economy.ec.europa.eu/publications/european-critical-raw-materials-act_en.
«SOMO Position Paper on Draft Critical Raw Materials Regulation», 17/5/2023, disponível em somo.nl/somo-position-paper-on-critical-raw-materials-regulation/.
M. Svampa y A. Slipak: «Amérique Latine, entre vieilles et nouvelles depéndances: le rôle de la Chine dans la dispute (inter)hégémonique» em Hérodote. Revue de Géographie et de Géopolitique vol. 2018/4, No 171, 2018.
M. Argento, A. Slipak y F. Puente, p. cit.
Camilo Solís: «Laura Richardson: la jefa del Comando Sur de EEUU que pretende el litio sudamericano y que cierren Russia Today y Sputnik» em Interferencia, 6/6/2023.
K. Dietz: «Transición energética y extractivismo verde», Serie Análisis y Debate No 39, Fundación Rosa Luxemburgo, Oficina Región Andina, Quito, 9/2022. Ver o artigo nesse número, p. 108.
F. Demaria: «Decrecimiento: una propuesta para fomentar una transformación socioecológica profundamente radical» em Oikonomics No 16, 11/2021. Vale destacar que enquanto na Europa o debate sobre o decrecimiento desbordou o campo militante, abandonando seu caráter «abstrato» para permear os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mundanças Climáticas (que questionam a lógica do crescimento econômico) e inserir-se cada vez mais na discussão política institucional de la União Europeia, nos EUA, pelo contrário, esse continua sendo um tema tabu, inclusive dentro dos círculos ecossocialistas, pouco propensos a retomá-lo nos debates sobre a transição ecossocial.
J. Hickel: «The Anti-Colonial Politics of Degrowth» em Resilience, 4/5/2021.
«Alerta verde No 78: ¡No más saqueo, nos deben la deuda ecológica!» em Ecología Política No 18, 1999.
M. Svampa y E. Viale: «De la ceguera ecológica a la indignación colectiva», ElDiarioAR, 14/5/2023.
Francisco Cantamutto y Martín Schoor: «América Latina y el mandato exportador» en Nueva Sociedad edición digital, 6/2021, disponível em nuso.org.
Joan Martínez Alier y Arcadi Oliveres: ¿Quién debe a quién? Deuda ecológica y deuda externa, Icaria, Barcelona, 2010.
A. Acosta: «Un aniversario histórico, 70 años del Acuerdo de Londres. ¿Por qué es un imposible para los países del sur?» em Ecuador Today, 23/2/2023.
Ver o Manifiesto de los Pueblos del Sur por una Transición Justa y Popular, 2023, disponível em: pactoecosocialdelsur.com/manifiesto-de-los-pueblos-del-sur-por-una-transicion-energetica-justa-y-popular-2/.
Ver, a respeito, os trabajos de Pablo Bertinat e a Declaración de Bogotá del Pacto Ecosocial e Intercultural del Sur.
R. Lo Vuolo: «Crisis climática y políticas sociales. Del Estado de Bienestar al Estado Eco-Social», Serie Documentos de Trabajo CIEPP No 111, 12/2022.
Por g1 PB
O Ministério Público da Paraíba (MPPB) instaurou um procedimento extrajudicial para investigar o projeto chinês que propõe a construção de um porto de águas profundas e de uma cidade futurística (veja imagens no vídeo acima) em Mataraca, no Litoral Norte da Paraíba, e os impactos dele aos cofres públicos municipais. Os investimentos previstos, que teriam parceria de investidores internacionais, seriam de R$ 9 trilhões. E o projeto também fala em aumentar a população da cidade de 10 mil para 3 milhões de habitantes.
O empreendimento seria construído pela Brasil CRT, divulgada como uma empresa que pertence a um grupo chinês, e tem sede em Minas Gerais.
O valor do investimento anunciado é praticamente o mesmo do PIB do Brasil em 2022. Além disso, representa 450 vezes o orçamento da Paraíba previsto para 2024, que é de quase R$ 20 milhões. A empresa, por outro lado, apresentou o capital social de R$ 800 bilhões. O procedimento foi aberto pela promotora Ellen Veras Ximenes no último dia 12 de dezembro, mas confirmado pela assessoria de comunicação do órgão ministerial nesta terça-feira (26). No procedimento, a representante do Ministério Público determinou que um ofício fosse enviado à Prefeitura de Mataraca, que teria o prazo de 30 dias para que encaminhasse à promotoria o relatório com o protocolo de intenções assinado com o grupo chinês no dia 11 de dezembro e qualquer outro documento firmado na parceria. A resposta também deve apontar se há participação dos governos estadual e federal no desenvolvimento do projeto. Essa solicitação foi encaminhada ao Município no dia 13 de dezembro. Agora, a promotora epera pela resposta da solicitação para decidir se há ou não a necessidade de que outras medidas sejam adotadas pelo Ministério Público A medida do órgão ministerial foi tomada após indícios de irregularidades se tornarem públicas. Veja algumas delas listadas abaixo:
Suspeita de que a obra seja cópia de um projeto de um escritório dinamarquês para um distrito futurista em Shenzhen, no sul da China;
Consulado-geral da China em Recife afirmar que a Brasil CRT não exerce atividades oficiais como empresa em território chinês;
Falta de detalhes sobre como os recursos para a obra seriam obtidos;
Falta de um site (com informações organizações e referências de outras construções) ou contatos disponíveis para comunicação com a empresa.
O g1 entrou em contato com a Brasil CRT, por meio de um e-mail ligado ao CNPJ da empresa, para saber como a organização responde às acusações, de onde os recursos para a obra seriam tirados e se o projeto está mantido. Porém, não recebeu respostas até a publicação desta reportagem.
O g1 também procurou a Prefeitura de Mataraca, nas figuras do prefeito - Egberto Coutinho Madruga - e de assessores de comunicação do Município com os mesmos questionamentos que fez à empresa, mas também não teve as mensagens respondidas até a publicação desta reportagem.
Já o escritório dinamarquês de onde o projeto pode ter sido copiado disse, em nota, que não está envolvido "neste projeto de forma alguma".
No último dia 11 de dezembro, foi assinado um protocolo de intenções para construção da obra, que foi apresentada pelo grupo chinês Brasil CRT, com sede em Minas Gerais.
A implantação do porto e a cidade planejada, conforme o material apresentado, deve ocupar uma área de 1,1 mil m² (11 mil hectares).
A partir do empreendimento, a intenção era de aumentar a população da cidade de menos de 10 mil para 3 milhões de habitantes. A população atual da Paraíba, contudo, é de 3.974.687 habitantes, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A região de Mataraca foi escolhida após estudos feitos em outras três áreas do estado:
Baía da Traição
Lucena
Pitimbu
A região de Mataraca, segundo a apresentação, foi a que apresentou as melhores características marinhas, como profundidade mais perto da costa, de relevo e potencial logístico.
A intenção do grupo de investidores é construir o porto de Mataraca em uma praia localizada entre a praia da Barra do Camaratuba e a praia do Guaju. Ele deverá ser edificado no estilo ‘offshore’, ou seja, ‘extra margem’, e não diretamente ligado à terra. No Nordeste, um exemplo desse modelo de área portuária é o porto de Pecém, no Ceará.
Já a cidade internacional de Mataraca contará com unidades residenciais, comerciais, industriais, serviços, lazer, universidades, colégios, porto, hospitais, estádio, ginásios, prédios públicos, clinicas, comércios, shopping, indústrias, meios de transportes modernos, metrô, agricultura, dentre outros benefícios que devem ajudar no crescimento da região do Litoral Norte da Paraíba.
A previsão é que a obra possa gerar mais de 100 mil empregos diretos e indiretos no período de construção, e o porto e a cidade futurística, quando entrar em funcionamento, será impossível mensurar o número de pessoas trabalhando.
Published 1 day ago on December 18, 2023 By Pallavi Rao
Article/Editing: Niccolo Conte
https://www.visualcapitalist.com/big-tech-companies-billions/
First there was oil, then tobacco, then pharma. The “Big” epithet has always denoted the unique scale and power of certain industries, and today’s Big Tech companies are the perfect example. These six tech giants—Alphabet, Amazon, Apple, Microsoft, Meta (formerly Facebook), and Nvidia—are each one of the eight most valuable companies in the world by market capitalization. Thanks to the ubiquity of their business, they routinely pull in an annual revenue that exceeds many national GDPs. We visualize how and where Big Tech’s revenues came from, per their latest full-year SEC filings.
Big Tech Spotlight: Alphabet, Amazon, and Meta
First we look at Alphabet, Amazon, and Meta, whose financial years ended in December 2022. Alphabet made slightly north of $280 billion in 2022, nearly 60% of that coming from monetizing Google Search and other related activities. Their $60 billion profit is the third-highest amongst its Big Tech peers. Their net profit margin (net income divided by total revenue) stood at 21.2% for the year, or 21 cents in profit for every dollar of revenue earned.
Here’s a quick look at the numbers.
Company Revenue Profit Net Profit Margin Revenue Change
(YoY)
Alphabet $282.8B $60.0B 21.2% 10%
Amazon $514.0B $-2.7B -0.5% 9%
Meta $116.6B $23.2B 19.9% -1%
At $514 billion, e-commerce giant Amazon logged its highest revenue ever, beating its Big Tech peers by landslide. However, severance payouts and a $720 million impairment charge (due to shutting some of their physical grocery stores), hurt the company’s bottom-line. Amazon posed a nearly $3 billion net loss for the year, and, consequently, a negative net profit margin (-0.53%). Meta pulled in close to $117 billion in 2022 and turned a $23 billion profit, for a nearly 20% net margin. Meta’s slight year-on-year revenue decline (-1%) was attributed to foreign exchange movement.
Big Tech Spotlight: Apple, Microsoft, and Nvidia
Apple is an investor darling for a reason. Consider: $383 billion revenue (for financial year ending Sep. 2023) and $97 billion in profit—second-most in the world after oil giant Saudi Aramco. Finally, Apple’s 25% net profit margin is the second-highest amongst the Big Tech companies. Nevertheless, even Apple has less-than-stellar years on occasion. Sales for all Apple products declined year-on year, pulling revenue down 5%. The iPhone continues to be the company’s chief moneymaker, contributing 52% of total revenue.
Company Revenue Profit Net Profit Margin Revenue Change
(YoY)
Apple $383.3B $97.0B 25.3% -5%
Microsoft $211.9B $72.4B 34.1% 7%
Nvidia $27.0B $4.37B 15.9% Flat
Meanwhile, Microsoft earned nearly $212 billion for its financial year ending July 2023, led by gains in their cloud and server segment, which CEO Satya Nadella prioritized back in 2014. The company’s $72 billion net income meant the company raked in 34 cents for every dollar it made, the highest profit margin in Big Tech. Finally, chip-designer Nvidia—the newest entrant into the trillion dollar club—made about $27 billion for the financial year ending January 2023, with a $4 billion profit. Net profit margin stood at 15.9%. However, the company’s profile amongst investors is rising rapidly, due to its critical position in the growing AI chip business. The company has already registered a more-than-four-fold profit increase in 2023 so far—even without accounting for the last four months of the year.
Published 7 days ago on December 12, 2023 By NeoMam Studios green checkmark icon Featured Creator
Article/Editing: Freny Fernandes
https://www.visualcapitalist.com/cp/mapped-interest-in-generative-ai-by-country/
In the past two years, AI’s ability to produce text, images, audio, and video has become massively widespread. With millions of people worldwide now embracing tools like ChatGPT and Midjourney to bring their ideas to life, billions of dollars are being invested to take AI technology to the next level. But so far, AI interest by country varies, at least according to search data. This graphic sheds light on the countries most interested in generative AI tools using data compiled by ElectronicsHub.
Search Interest in Generative AI by Country (2023)
To determine interest in different generative AI technologies, ElectronicsHub first determined the top 10 tools in each category based on their global monthly search volumes. They then recorded the monthly Google search volumes for each tool, combined the overall volumes of each country, and scaled the results by population (per 100,000 people) and Google’s search engine market share in each respective market. According to the compiled data, the highest search volume for generative AI tools was seen in the Philippines (5,288) followed by Singapore (3,036) and Canada (2,213). Let’s take a closer look at the different generative AI tools nations worldwide seem to prefer.
Generating Text with AI
The launch of ChatGPT last year turned the world’s attention to the world of generative AI. However, some tools, like QuillBot, have helped users check grammar, edit, and summarize text for over five years.Generative AI tools used for tasks ranging from drafting emails to creating job application packages have been most sought after in Asian nations like the Philippines, Singapore, Malaysia, and other parts of the world including Canada, and the UAE.
Generating Images with AI
A picture speaks a thousand words. And the launch of generative Image AI tools like DALL-E 2, Midjourney, and Stable Diffusion have created a whole new world of storytelling. Once used only by designers, these text-to-image tools are now being used in science and medicine. Israel and Singapore, the two nations leading the global interest in generative image AI, seem to prefer using Midjourney, the most-searched tool in 92 nations worldwide.
Generating Audio with AI
While the use of generative AI is not as established in audio generation, it has already begun making its mark. From its uses in voice-to-text transcription platforms to the music industry, generative AI in audio is growing worldwide. While this may pose challenges in the music industry, tools like FakeYou and VoiceGPT, which allow mimicry of the voices of celebrities and artists, are growing increasingly popular in the South American nations of Uruguay, Chile, Argentina, and Peru in 2023.
Generating Video with AI
From movies and TV shows to TikTok reels and YouTube content, videos are often the fastest way of capturing an audience’s attention. Despite this, generative AI’s video generation tools are not as developed as other generative media tools, yet. While nations including Singapore and the UAE are searching the most for video-generation tools like InVideo and Synthesia, the world is looking for what emerges next in this field.
Generative AI is Just Starting Out
Much like how the printing press changed the way we disseminate information, generative AI is revolutionizing the way we produce and use information. As the world of generative AI blurs the line between what’s real and what’s not, and what’s fake and what’s true, an intriguing path unfolds. While businesses and users seek to harness the full potential of AI, governments and lawmakers are simultaneously grappling with the challenge of comprehending its regulation to curb potential drawbacks and misuse.
Link para notícia: https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2023/12/cidades-do-pais-tem-fome-escancarada-nas-ruas-e-oculta-nas-periferias.shtml
Doações de alimentos são cruciais para famílias vulneráveis num contexto de inflação e desmonte de programas sociais
Em setembro de 2011, militares da CIA e dos EUA lançaram em conjunto um ataque de drone autorizado pelo presidente Barack Obama. O ataque resultou no assassinato de Anwar al Awlaki – um fervoroso clérigo muçulmano nascido nos Estados Unidos – no Iêmen. Quem organizou o ataque com drones atacaram Awlaki baseou-se em dados de geolocalização monitorados pela Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) como parte de um programa de vigilância. Duas semanas depois, um ataque de drone da CIA matou outro cidadão americano usando o mesmo tipo de dados: o filho de 16 anos de al Awlaki, Abdulrahman al-Awlaki.
Embora al Awlaki tenha sido deliberadamente assassinado pelas forças americanas, outros cidadãos americanos – e milhares de civis no Afeganistão e em outras partes da Ásia Central e Oriente Médio – foram mortos acidentalmente por drones. Esses casos prenunciam uma grande falha na versão mais recente da guerra automatizada: a imprecisão das tecnologias e as grandes margens de erro que acompanham até mesmo os novos sistemas de armas mais sofisticados. Em sua forma mais avançada, as ferramentas computadorizadas fazem uso de inteligência artificial e aprendizado de máquina e poderão em breve ter recursos totalmente autônomos.
Dispositivos digitais portáteis prontos para a Internet transfiguraram bilhões de pessoas em todo o mundo em máquinas atomizadas de produção de dados, alimentando informações em centenas, senão milhares, de algoritmos todos os dias. Embora tenhamos absorvido e integrado rapidamente smartphones e tablets em nossas vidas, raramente refletimos sobre como os dados armazenados e transmitidos por esses dispositivos podem facilmente ser militarizados. Por exemplo, relatórios recentes descrevem como a Agência de Inteligência de Defesa dos EUA, afiliada ao Departamento de Defesa (DD), usa rotineiramente dados de geolocalização disponíveis comercialmente coletados de telefones celulares individuais – às vezes sem nenhum mandado judicial que as autorize. Agências militares e de inteligência podem usar esses dados não apenas para espionagem, mas também para reconstruir redes sociais e até mesmo para direcionar ataques letais a indivíduos.
Drones, software de geolocalização, spyware e outras ferramentas semelhantes são emblemáticos de uma nova série de colaborações entre as Big Techs e as grandes estruturas de defesa, a Big Defense. Nas últimas duas décadas, o DD e 17 agências governamentais dos EUA, coletivamente conhecidas como Comunidade de Inteligência dos EUA [US Intelligence Community], tentaram capturar a inovação tecnológica em sua fonte: o Vale do Silício. Agências militares e de espionagem fizeram isso criando postos avançados ao longo da Costa Oeste; organizaram um conselho consultivo de alto nível que liga o Pentágono às grandes empresas de tecnologia; coordenaram cúpulas, fóruns e reuniões privadas com investidores influentes e executivos corporativos; e apelaram diretamente para os corações e mentes dos empresários, engenheiros, cientistas da computação e pesquisadores que às vezes são céticos em relação aos burocratas do governo, especialmente os do Departamento de Defesa.
Por diversas razões, é impossível entender totalmente as forças armadas dos EUA hoje sem uma análise de suas profundas conexões com a indústria de tecnologia.
As interconexões entre os mundos da tecnologia de rede e da defesa remontam a mais de 50 anos. Por exemplo, desde o início dos anos 1960, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do DD desempenhou um papel crucial no financiamento de pesquisas de computador que levaram à ARPANET, a precursora da internet atual. O desenvolvimento inicial do Vale do Silício foi financiado em grande parte por agências de defesa e inteligência, e o Pentágono investiu pesadamente em empresas de tecnologia durante toda a Guerra Fria.
O que é guerra virtual?
A guerra virtual obviamente significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Não há uma definição consensual – o que dá espaço para interpretar o termo de forma ampla, holística e antropológica. Adoto uma visão ampla, focando em quatro elementos diferentes: sistemas de armas robóticas e autônomas; uma versão de alta tecnologia de operações psicológicas (ou psyops); programas preditivos de modelagem e simulação, que alguns chamam de “contrainsurgência computacional”; e a guerra cibernética, ou seja, o ataque e defesa de infraestruturas críticas. Essas tecnologias e técnicas são baseadas na produção, disponibilidade e análise de grandes quantidades de dados – geralmente dados de vigilância –, coletados de drones, satélites, câmeras, telefones celulares, transações eletrônicas, mídias sociais, mensagens de e-mail e outras fontes da Internet.
Podemos pensar nisso como uma guerra por algoritmos. Cada vez mais, as tecnologias fazem uso de inteligência artificial ou IA para automatizar os processos de tomada de decisão. O desenvolvimento de armas virtuais depende dos esforços combinados de uma ampla gama de cientistas e especialistas técnicos – não apenas químicos, físicos, engenheiros, programadores de computador e analistas de dados, mas também pesquisadores de biotecnologia, cientistas políticos, psicólogos e antropólogos. Grande parte do trabalho é bastante banal e ocorre em edifícios indefinidos em parques de escritórios suburbanos, campi tecnológicos ou laboratórios universitários. O Vale do Silício emergiu como um importante centro para esse tipo de trabalho de defesa e inteligência.
De certa forma, a guerra virtual é uma continuação da chamada Revolução em Assuntos Militares ou RMA, uma doutrina que foi articulada pelo Escritório de Avaliação de Redes do Pentágono nas décadas de 1980 e 1990. Inclinou-se fortemente para soluções baseadas em tecnologia. Após o 11 de Setembro, quando os EUA desencadearam sua chamada Guerra Global ao Terror e entraram em guerra contra redes globais de insurgentes armados com tecnologias relativamente simples, como bombas improvisadas, rifles e lançadores de granadas, a RMA perdeu força e a contrainsurgência tornou-se moda depois de um longo hiato. Mas agora, em um período marcado por rápida inovação, modos algorítmicos de governança e a ascensão ao poder de nações rivais como China e Rússia – cada uma delas buscando suas próprias tecnologias virtuais de combate –, o combate computadorizado voltou a ocupar o centro do palco, entre as elites militares estadunidenses.
A interseção entre Big Defense e as Big Techs: a criação da DIUx
Mountain View fica confortavelmente entre as montanhas densamente arborizadas de Santa Cruz e as margens do sul da Baía de São Francisco. Durante a primeira metade do século XX, era uma cidade sonolenta com fazendas de gado, pomares e ruas pitorescas do centro. Mas depois que uma equipe de cientistas liderada por William Shockley inventou o semicondutor lá em 1956, ela cresceu rapidamente, junto com o resto do Vale do Silício. Hoje, é um subúrbio movimentado com mais de 80 mil habitantes.
À primeira vista, parece um lugar estranho para as agências militares e de inteligência se estabelecerem. Mountain View fica a quase 2.500 milhas (4.024 km) de distância do Pentágono. Os voos diretos de São Francisco para Honolulu levam menos tempo do que os voos para Washington.
O Pentágono e o Vale do Silício não são apenas geograficamente distantes, mas também existem outras diferenças. O Departamento de Defesa é muitas vezes considerado uma burocracia notoriamente inchada, enfadonha e perdulária, com estruturas organizacionais rigidamente hierárquicas e normas de trabalho inflexíveis. Por outro lado, o maior empregador de Mountain View é a Alphabet, empresa controladora do Google, uma das corporações mais valiosas do mundo. Seu campus de 10 hectares, conhecido como Googleplex, inclui mais de 30 cafés, comida e bebida grátis para seus funcionários, academias de ginástica e piscinas. Um esqueleto de ferro em tamanho natural de um Tiranossauro Rex, carinhosamente chamado de Stan pelos funcionários do Google, é exibido com destaque do lado de fora de um prédio principal.
Uma réplica do esqueleto de Tiranossauro Rex chamado de Stan fica no pátio da sede do Google, o Googleplex em Mountain View, Califórnia. Foto: Nicolas Grevet/Flickr/(CC BY-NC-SA 2.0)
Apesar dessas diferenças – na verdade, por causa delas –, o secretário de Defesa Ash Carter estabeleceu publicamente um posto avançado do Pentágono a menos de duas milhas (3 km) de distância do Googleplex. A Unidade Experimental de Inovação em Defesa, ou DIUx, foi criada em agosto de 2015 para identificar e investir rapidamente em empresas que desenvolvem tecnologias de ponta que possam ser úteis para os militares. Com a DIUx, o Pentágono construiu seu próprio acelerador de startups dedicado a financiar empresas especializadas em IA, sistemas robóticos, análise de Big Data, segurança cibernética e biotecnologia.
A nova casa da DIUx não estava tão deslocada. Sua sede estava localizada em um prédio outrora ocupado pela Guarda Nacional do Exército, no terreno do Ames Research Center, o maior dos dez locais de campo da NASA, e Moffett Field, que já abrigou o 130º Esquadrão de Resgate da Guarda Aérea Nacional da Califórnia. As gigantes da defesa Lockheed Martin e Northrop Grumman têm escritórios a menos de 3 km de distância dali. Em 2008, o próprio Google estava invadindo o território do governo: firmou um contrato de arrendamento de 40 anos com a NASA Ames para um novo campus de pesquisa. Em seguida, assinou um acordo de 60 anos com a NASA para alugar o Moffett Field de 400 hectares, incluindo três enormes hangares para dirigíveis. Hoje, o Google usa os hangares para construir balões estratosféricos que podem um dia fornecer serviços de internet para pessoas que vivem em áreas rurais – ou talvez realizar missões militares de vigilância em grandes altitudes.
O escritório da DIUx ficava próximo a outras empresas de tecnologia: o Lab126 da Amazon (onde o leitor Kindle, Amazon Echo e outros dispositivos digitais foram gestados); a sede corporativa do LinkedIn; e o campus da Microsoft no Vale do Silício. Os escritórios corporativos da Apple ficavam a 8 km de distância, nas proximidades de Cupertino. As mais novas instalações do Pentágono estavam literalmente na zona de intersecção entre as Big Techs e a Big Defense. O escritório da DIUx, situado em um prédio baixo de tijolos, abraçou as contradições do Pentágono Oeste: “Os corredores são monótonos à moda antiga, as portas trancadas com fechaduras de combinação. Mas por dentro, os recém-chegados renovaram os espaços com quadros-negros, quadros brancos e mesas dispostas em diagonais aleatórias, para combinar com a vibração não hierárquica de uma startup do Vale”, relatou um observador.
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O plano de Ash Carter era ambicioso: reunir as melhores e mais brilhantes mentes da indústria de tecnologia para uso do Pentágono. O nativo da Pensilvânia passou vários anos na Universidade de Stanford antes de sua nomeação como Secretário de Defesa e ficou impressionado com o espírito inovador e os magnatas milionários da região da Baía de São Francisco: “Eles estão inventando novas tecnologias, criando prosperidade, conectividade e liberdade”, disse Carter. “Eles sentem que também são servidores públicos e gostariam de ter alguém em Washington com quem pudessem se conectar.” Surpreendentemente, Carter foi o primeiro secretário de Defesa em exercício a visitar o Vale do Silício em mais de 20 anos.
O Pentágono tem sua própria agência de pesquisa e desenvolvimento (P&D), a DARPA, mas busca projetos que estão a décadas, não meses, de distância. Carter queria um escritório ágil e simplificado que pudesse servir como uma espécie de corretora, canalizando dezenas ou centenas de milhões de dólares do enorme orçamento do DD para empresas promissoras que desenvolviam tecnologias prestes a serem concluídas. Idealmente, a DIUx serviria de ligação, negociando as necessidades de generais grisalhos de quatro estrelas, líderes civis do Pentágono e engenheiros e empresários de agasalho de moletom. Logo, a DIUx abriu filiais em duas outras cidades com setores tecnológicos em expansão: Boston e Austin.
No curto prazo, Carter esperava que a DIUx construísse relacionamentos com startups locais, recrutasse os melhores talentos, envolvesse reservistas militares em projetos e agilizasse os notoriamente complicados processos de aquisição do Pentágono. Seus objetivos de longo prazo eram ainda mais ambiciosos: contratar oficiais militares de carreira e designá-los para trabalhar em projetos futuristas no Vale do Silício por meses a fio, para “expô-los a novas culturas e ideias que eles possam levar ao Pentágono […] [e] convidar técnicos para passar um tempo na Defesa”.
Em março de 2016, Carter organizou o Conselho de Inovação em Defesa (DIB, sigla em inglês), um grupo de confiança civil de elite encarregado de fornecer conselhos e recomendações à direção do Pentágono. Ele nomeou o ex-CEO do Google e membro do conselho da Alphabet, Eric Schmidt, para presidir o DIB, que incluía atuais e antigos executivos do Facebook, Google e Instagram, entre outros.
Três anos depois que Carter lançou a DIUx, ela foi renomeada como Unidade de Inovação em Defesa (DIU, sigla em inglês), indicando que não era mais experimental. Apesar dos desafios iniciais, a DIUx foi descrita como “um ativo valioso e comprovado” pelo Vice-Secretário de Defesa, Patrick Shanahan. “A própria organização não é mais um experimento”, disse ele em 2018. “DIU continua vital para promover a inovação em todo o Departamento e transformar a maneira como o DD constrói uma força mais letal.” No início de 2018, o governo Trump solicitou um aumento acentuado no orçamento da DIU para o ano fiscal de 2019, de US$ 30 milhões para US$ 71 milhões. Para 2020, a administração solicitou US$ 164 milhões, mais que o dobro da solicitação do ano anterior.
Fundo de capital de risco da própria CIA
Embora os funcionários do Pentágono retratassem a DIUx como uma organização inovadora, ela foi, na verdade, modelada em outra empresa estabelecida para servir a comunidade de inteligência dos EUA de maneira semelhante. No final da década de 1990, a CIA criou uma entidade sem fins lucrativos chamada Peleus para capitalizar as inovações desenvolvidas no setor privado, com foco especial no Vale do Silício. Logo depois, a organização foi renomeada como In-Q-Tel.
O primeiro CEO, Gilman Louie descreveu como a organização foi criada para resolver “o problema do Big Data”:
[Os líderes da CIA] estavam realmente com medo do que chamavam na época de perspectiva de um ‘Pearl Harbor digital’… Pearl Harbor aconteceu com todas as diferentes partes do governo tendo uma informação, mas eles não conseguiram juntá-la para dizer: “Olha, o ataque a Pearl Harbor é iminente”… [Em] 1998, eles começaram a perceber que as informações estavam isoladas em todas essas diferentes agências de inteligência e que eles nunca poderiam uni-las… eles estavam tentando resolver o problema dos Big Data. Como você une isso tudo para obter inteligência?
Ao canalizar fundos da CIA para empresas nascentes de vigilância, coleta de informações, análise de dados e tecnologias de guerra cibernética, a agência esperava obter uma vantagem sobre os rivais globais cooptando engenheiros criativos, hackers, cientistas e programadores. Em 2005, a CIA injetou aproximadamente US$ 37 milhões na In-Q-Tel. Em 2014, o financiamento anual da organização aumentou para quase US$ 94 milhões e realizou 325 investimentos em uma gama surpreendente de empresas de tecnologia.
Se In-Q-Tel soa como algo saído de um filme de James Bond, é porque a organização foi parcialmente inspirada por – e recebeu o nome de – Q Branch, o escritório fictício de P&D do serviço secreto britânico, popularizado nos romances de espionagem de Ian Fleming e sucessos de bilheteria de Hollywood. A In-Q-Tel e a DIUx foram ostensivamente criadas para transferir tecnologias emergentes do setor privado para as agências de inteligência e militares dos EUA, respectivamente. Uma interpretação um pouco diferente é que essas organizações foram lançadas “para capturar inovações tecnológicas… [e] capturar novas ideias”. Os críticos apontam a In-Q-Tel como um excelente exemplo da militarização da indústria de tecnologia.
Em termos monetários e tecnológicos, é provável que o investimento mais lucrativo da In-Q-Tel tenha sido a Keyhole, uma empresa sediada em São Francisco que desenvolveu software para combinar imagens de satélite e fotos aéreas para criar modelos tridimensionais da superfície da Terra. O programa poderia essencialmente criar um mapa de alta resolução de todo o planeta. A In-Q-Tel forneceu financiamento em 2003, e em poucos meses, os militares dos EUA estavam usando o Keyhole para apoiar as tropas americanas no Iraque.
Fontes oficiais nunca revelaram quanto a In-Q-Tel investiu na Keyhole, mas em 2004 o Google comprou a start-up. Ela foi renomeada como Google Earth. A aquisição foi significativa: a jornalista Yasha Levine escreve que o acordo Keyhole-Google “marcou o momento em que a empresa deixou de ser uma empresa de internet puramente voltada para o consumidor e começou a se integrar ao governo dos Estados Unidos”. Em 2007, o Google estava buscando ativamente contratos governamentais distribuídos uniformemente entre militares, inteligência e agências civis.
Além do Google, o portfólio da In-Q-Tel inclui empresas com projetos futuristas como a Cyphy, que fabrica drones conectados que podem realizar missões de reconhecimento por longos períodos graças a uma fonte de energia contínua; Atlas Wearables, que produz rastreadores de fitness que monitoram de perto os movimentos do corpo e os sinais vitais; Fuel3d, que vende um dispositivo portátil que produz escaneamentos tridimensionais detalhados de estruturas ou objetos; e a Sonitus, que desenvolveu um sistema de comunicação sem fio, cuja parte cabe dentro da boca do usuário. Se a DIUx apostou em empresas de robótica e IA, a In-Q-Tel perseguiu aquelas que criam tecnologias de vigilância – empresas de satélites geoespaciais, sensores avançados, equipamentos de biometria, analistas de DNA, dispositivos de tradução de linguagem e sistemas de defesa cibernética.
Mais recentemente, a In-Q-Tel mudou para empresas especializadas em mineração de dados em mídias sociais (link externo) e outras plataformas de internet. Isso inclui Dataminr, que transmite dados do Twitter para detectar tendências e ameaças potenciais; Geofeedia, que coleta mensagens de mídia social indexadas geograficamente relacionadas a eventos de notícias de última hora, como protestos; e a TransVoyant, empresa que coleta dados de satélites, radares, drones e outros sensores.
Alguns podem aplaudir o recrutamento bem-sucedido de empresas de tecnologia pelas agências militares e de inteligência dos EUA. Dado o rápido desenvolvimento e implantação de sistemas de armas de alta tecnologia e programas de vigilância por nações rivais, como a China – que implantou tecnologias comparáveis contra seus próprios cidadãos na província de Xinjiang – os proponentes frequentemente afirmam que os militares dos EUA não podem ficar para trás em um Corrida armamentista de IA. Mas tais argumentos falham em considerar como a fusão da Big Defense com outra grande indústria vinculará a economia dos EUA cada vez mais fortemente a guerras intermináveis no exterior e policiamento militarizado em casa.
Projeto Maven
Muitas empresas financiadas pela In-Q-Tel e DIUx são pequenas startups que precisam urgentemente de dinheiro. Mas o interesse do Pentágono no Vale do Silício também se estende às maiores empresas baseadas na Internet.
Considere o caso do Projeto Maven – conhecido formalmente como Algorithmic Warfare Cross-Functional Team, ou Equipe Trans-Funcional de Armamentos Algorítmicos. O subsecretário de Defesa Robert Work estabeleceu o programa em abril de 2017, descrevendo-o como um esforço “para acelerar a incorporação pelo DD de Big Data e aprendizado de máquina… [e] transformar o enorme volume de dados disponíveis para o DD em inteligência acionável e percepções em alta velocidade…”. O Boletim dos Cientistas Atômicos expõe o problema de forma sucinta:
Os aviões e satélites espiões dos EUA coletam mais dados brutos do que o Departamento de Defesa poderia analisar, mesmo que toda a sua força de trabalho passasse a vida inteira nisso. Infelizmente, a maior parte da análise de imagens envolve um trabalho tedioso – as pessoas olham para as telas para contar carros, pessoas ou atividades… a maioria dos dados do sensor simplesmente desaparece – nunca é vista – embora o departamento venha contratando analistas o mais rápido possível há anos.
O Pentágono gastou dezenas de bilhões de dólares em sensores. Criar algoritmos para classificar e analisar as imagens fazia sentido economicamente e, com um custo projetado de US$ 70 milhões, o Projeto Maven deve ter parecido uma pechincha. O escopo do trabalho era impressionante. Em seu estado atual, os sistemas de IA exigem conjuntos de dados massivos para “aprendizagem profunda”, o que significa essencialmente aprender pelo exemplo. Durante a segunda metade de 2017, as pessoas que trabalham no Projeto Maven rotularam mais de 150 mil imagens visuais para criar os primeiros conjuntos de dados para treinar os algoritmos. As imagens (fotos de veículos, indivíduos, objetos, eventos) tiveram que levar em conta centenas, senão milhares, de condições variáveis: diferentes altitudes, ângulos fotográficos, resolução de imagem, condições de iluminação e muito mais.
Que organização poderia assumir tal tarefa? Funcionários do Pentágono não falaram sobre quais empresas estavam envolvidas, mas pessoas com informações internas forneceram dicas oblíquas de que importantes atores das Big Techs estavam envolvidos. O Coronel do Corpo de Fuzileiros Navais, Drew Cukor, que chefiou o Projeto Maven, observou que “estamos em uma corrida armamentista de IA… Está acontecendo no setor [e] as cinco grandes empresas de Internet estão perseguindo isso fortemente. Muitos de vocês devem ter notado que Eric Schmidt [então CEO da Alphabet Inc., empresa controladora do Google] agora está chamando o Google de empresa de IA, não de empresa de dados”.
Apenas oito meses após o Departamento de Defesa lançar o Projeto Maven, os militares estavam usando os algoritmos do programa para apoiar missões de drones contra o Estado Islâmico [ISIS] no Iraque e na Síria.
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Em março de 2018, Gizmodo publicou uma série de bolhas expostas revelando que o Pentágono contratou silenciosamente o Google para o trabalho do Projeto Maven em setembro de 2017. De acordo com e-mails internos de executivos do Google, o negócio valia pelo menos US$ 15 milhões e esperava-se que aumentasse para até US$ 250 milhões.
Alguns e-mails detalhavam reuniões entre executivos do Google e o vice-secretário de Defesa Jack Shanahan. Mais de dez funcionários do Google foram designados para o projeto, e a empresa fez parceria com várias outras empresas, incluindo a DigitalGlobe, uma empresa de imagens geoespaciais, e a CrowdFlower, uma empresa de crowdsourcing. A CrowdFlower (que desde então mudou seu nome para Figure Eight) pagou os chamados “trabalhadores da multidão” – pessoas que realizam tarefas repetitivas online, como identificar fotos – para rotular milhares de imagens para “aprendizagem profunda” algorítmica. Aparentemente, os trabalhadores da multidão não sabiam o que estava construindo, ou quem se beneficiaria com o resultado.
Alguns dos e-mails internos do Google sugeriam que a empresa tinha planos ambiciosos que iam além do que foi inicialmente sugerido nos anúncios iniciais do Pentágono. Um deles sugeriu a criação de um sistema de espionagem “semelhante ao Google Earth”, dando aos usuários a capacidade de “clicar em um prédio e ver tudo associado a ele”, incluindo pessoas e veículos.
Internamente, funcionários do Google estavam preocupados com um possível problema de relações públicas caso o projeto Projeto Maven vazasse: “Acho que devemos fazer um trabalho de RP sobre a história da colaboração do DD com o GCP sob o ângulo da tecnologia de nuvem (armazenamento, rede, segurança, etc.)”, escreveu Fei-Fei Li, cientista-chefe de IA do Google Cloud, “mas evite a TODO CUSTO qualquer menção ou implicação de IA”.
Mas, por fim, a história vazou.
Drone de vigilância de fronteira. Foto: Jonathan Cutrer/Flickr
Revolta dos engenheiros
Em fevereiro de 2018, e-mails internos sobre o Projeto Maven circularam amplamente entre os funcionários do Google, muitos dos quais ficaram chocados e consternados com o que os executivos seniores da empresa haviam feito. Em poucos meses, mais de 4 mil pesquisadores do Google assinaram uma carta ao CEO Sundar Pichai, exigindo o cancelamento do contrato do Maven. A carta, assinada por vários engenheiros seniores, começava com a declaração: “Acreditamos que o Google não deveria estar no negócio da guerra”. Também exigia que o Google desenvolvesse “uma política clara afirmando que nem o Google nem seus contratados jamais construiriam tecnologia de guerra”. Até o final do ano, quase uma dezena de funcionários demitiram-se em protesto por conta dos contratos militares da empresa e falta de transparência dos executivos.
Surpreendentemente, os funcionários conseguiram uma vitória, pelo menos momentânea. No início de junho, o Google anunciou que a empresa encerraria seu trabalho no Projeto Maven quando o contrato expirou. Dias depois, o Google divulgou um conjunto de diretrizes éticas ou “Princípios de IA”, afirmando que a empresa “não projetará ou implantará IA” para sistemas de armas, para “vigilância que viole normas internacionalmente aceitas” ou para tecnologias usadas para violar o direito internacional e os direitos humanos.
O compromisso do Google de cancelar seu trabalho no Projeto Maven era bom demais para ser verdade. Em março de 2019, The Intercept obteve um e-mail interno do Google indicando que uma empresa terceirizada continuaria trabalhando no Projeto Maven usando “a Google Cloud Platform pronta para uso (serviço básico de computação, em vez de Cloud AI ou outros serviços de nuvem) para dar suporte ao trabalho”. Walker acrescentou que o Google está trabalhando com o “DD para fazer a transição de maneira consistente com nossos princípios de IA e compromissos contratuais”.
Outros relatórios revelaram que o Departamento de Defesa concedeu o contrato do Projeto Maven à Anduril Industries, mais conhecida por criar o fone de ouvido de realidade virtual Oculus Rift. No ano anterior, a Anduril havia pilotado um sistema de vigilância desenvolvido para agentes da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA. O sistema usa IA para detectar a presença de pessoas tentando cruzar a fronteira dos EUA.
Embora os relatos da mídia sugiram que o Google (e mais tarde a Anduril) foram as únicas empresas que participaram no Projeto Maven, a realidade é muito mais complexa e problemática. A análise cuidadosa pela organização de pesquisa sem fins lucrativos Tech Inquiry documenta o envolvimento mais profundo de vários outros contratados e subcontratados. O Pentágono concedeu “prêmios principais” à ECS Federal e à Booz Allen Hamilton, e “subprêmios” a uma série de empresas, incluindo Microsoft, Clarifai, Rebellion Defense, Cubic Corporation, GATR Technologies, Technical Intelligence Solutions e SAP National Security Services, entre outras. Esses contratos nunca foram amplamente divulgados.
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Embora os funcionários do Google que resistiram ao Projeto Maven representassem apenas uma modesta parcela dos 70 mil funcionários da empresa, eles conseguiram provocar discussões sobre contratos militares da indústria de tecnologia e um debate mais amplo sobre a ética da IA.
A revolta do Google repercutiu em toda as Big Techs e inspirou outras na sequência. Por exemplo, em fevereiro de 2019, mais de 200 funcionários da Microsoft exigiram que a empresa cancelasse um Contrato do Exército dos EUA de US$ 480 milhões para fornecer às tropas mais de 100 mil dispositivos de cabeça HoloLens de realidade aumentada. O edital do Pentágono delineou a necessidade de um dispositivo de cabeça capaz de dar aos soldados visão noturna, mira oculta de armas e a capacidade de reconhecer ameaças automaticamente. Idealmente, daria aos soldados “maior letalidade, mobilidade e consciência situacional”, de acordo com o anúncio.
Em uma carta aberta ao CEO da Microsoft, Satya Nadella, os trabalhadores expressaram preocupação de que, nas mãos dos militares, o HoloLens pudesse ser “projetado para ajudar as pessoas a matar” ao “transformar a guerra em um videogame simulado”. Os funcionários acrescentaram: “não fomos contratados para desenvolver armas e exigimos uma posição sobre como nosso trabalho é usado”. Os executivos da Microsoft recusaram-se a rescindir o contrato. Nadella disse: “não vamos restringir a tecnologia de instituições que elegemos em democracias para proteger as liberdades de que desfrutamos”.
No verão de 2018, cerca de 450 funcionários da gigante de tecnologia Amazon assinaram uma carta exigindo que a empresa pare de vender Rekognition – um software de reconhecimento facial – para agências de segurança pública. A carta dos funcionários também pedia que a divisão de Web Services da Amazon parasse de hospedar a Palantir, uma empresa de tecnologia que fornece software de análise de dados para a Imigração e Alfândega dos EUA, já que a agência tinha como alvo crianças desacompanhadas e suas famílias para deportação. O CEO da Amazon, Jeff Bezos deu de ombros e ignorou a carta dos funcionários. “Um dos trabalhos da equipe de liderança sênior é tomar a decisão certa mesmo quando ela não é popular”, disse ele em outubro de 2018. “Se as grandes empresas de tecnologia vão virar as costas para o Departamento de Defesa dos EUA, este país estará em apuros.”
Enquanto os trabalhadores de tecnologia expressavam reticências sobre o envolvimento em projetos militares, os executivos vendiam os produtos de suas empresas para funcionários do Pentágono. A Microsoft anunciou segredo governamental do Azure, um serviço de nuvem para clientes do Departamento de Defesa e da comunidade de inteligência que tem como exigência “trabalhos secretos para os EUA”. Os Sites da Oracle gabavam-se de como seus produtos “ajudam as organizações militares a melhorar a eficiência, a preparação e a execução de missões”. E a Amazon criou um slick, vídeo promocional de noventa segundos em agosto de 2018, intitulado simplesmente “Amazon Web Services for the Warfighter” (Serviços de Internet da Amazon para o Combatente).
A luta contra a fusão das Big Techs com a Big Defense
As tecnologias do Vale do Silício dão diversos exemplos das consequências imprevisíveis do lançamento de um novo hardware ou software. A ideia de que uma invenção pode ser usada para fins pacíficos ou militares – ou seja, a noção de tecnologia de uso duplo – tornou-se amplamente aceita na sociedade estadunidense no século passado. A historiadora Margaret O’Mara lembra que, durante a Guerra Fria, “o Vale construiu pequenos: micro-ondas e radares para comunicação de alta frequência, transistores e circuitos integrados… O Vale do Silício construiu elegantes máquinas miniaturizadas que podiam alimentar mísseis e foguetes, mas que também ofereciam possibilidades de uso pacífico — em relógios, calculadoras, eletrodomésticos e computadores”.
Essas tecnologias continuam tendo aplicações de uso duplo. O Google Earth pode ser empregado para mapeamento e pesquisa geográfica, mas também pode ser usado por equipes de Forças Especiais para atingir redes de energia elétrica, pontes ou outras infraestruturas. A Microsoft primeiro comercializou o HoloLens como um dispositivo de realidade aumentada para jogadores, artistas e arquitetos, mas os consumidores mais lucrativos provavelmente são a infantaria. O programa de reconhecimento facial da Amazon pode ser usado para transações seguras em bancos ou caixas eletrônicos, mas também pode ser usado como tecnologias de vigilância por agências militares, de inteligência ou de segurança pública, como a Imigração e Fiscalização Alfandegária nos EUA. As plataformas de nuvem oferecidas pela Amazon, Oracle, Microsoft e Google podem potencialmente armazenar dados para pesquisadores científicos, autoridades de saúde pública ou empresas comerciais. Mas também podem aumentar a letalidade das forças militares.
Alguns podem repreender os engenheiros e cientistas dissidentes do Google como ingênuos polianas. Afinal, eles não sabiam no que estavam se metendo? Se os cientistas geralmente entendem o fato de que, uma vez que produzem conhecimento, provavelmente não terão controle sobre como ele será usado, então certamente devem ter entendido que os dispositivos e aplicativos que estavam criando poderiam, em algum momento, ser transformados em armas. Ou não?
É possível que muitos cientistas e engenheiros que agora se opõem ao trabalho militar do Vale do Silício nunca tenham imaginado que seriam atraídos para o complexo militar-industrial-tecnológico. Talvez eles até tenham decidido trabalhar para empresas de tecnologia porque pensaram que essas empresas não estavam no ramo de armas. Afinal, a carta escrita pelos manifestantes da Microsoft afirma: “Não fomos contratados para desenvolver armas”.
Os pesquisadores também podem ter depositado uma fé exagerada nos executivos de suas empresas. No Google, os funcionários se sentiram traídos por decisões secretas que levaram ao contrato do Projeto Maven. A imprensa de negócios reconhece regularmente a empresa como tendo a melhor “cultura corporativa” dos Estados Unidos, não apenas porque os funcionários podem trazer animais de estimação para o trabalho e ter acesso a refeições orgânicas preparadas por chefs profissionais, mas também porque a organização tem a reputação de valorizar a colaboração dos funcionários.
Assim que o Projeto Maven veio à tona, a falsa consciência dos trabalhadores de tecnologia começou a evaporar. Quando se ganha uma renda de seis dígitos como engenheiro ou programador ao sair da faculdade fica difícil pensar em si mesmo como um proletário, especialmente quando você aproveita as vantagens oferecidas pelo setor – almoços gourmês gratuitos, academias no local e creche gratuita, por exemplo. Para milhares de funcionários, ficar de fora das discussões sobre se a empresa deveria colaborar no desenvolvimento de armas de IA despertou um sentimento latente de consciência de classe.
Havia também outro problema: os envolvimentos de longa data do Vale do Silício com o Pentágono. Como este ensaio relata e como observado por Margaret O’Mara, “quer seus funcionários percebam ou não, todos os gigantes da tecnologia de hoje têm algum DNA da indústria de defesa… Isso envolve um reconhecimento muito mais completo da longa e complicada história do Vale do Silício e do negócio da guerra”.
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A divisão entre o Pentágono e o Vale do Silício é basicamente um mito – nunca existiu de verdade, pelo menos não de maneira significativa. As diferenças são superficiais e estilísticas. Durante quase um século, a economia e a cultura regionais foram moldadas pelo que se poderia chamar de complexo militar-industrial-universitário. Durante a Guerra Fria, o Pentágono ajudou a construir a indústria de computadores concedendo contratos militares em áreas como eletrônica de micro-ondas, produção de mísseis e satélites e pesquisa de semicondutores.
O historiador Thomas Heinrich nos lembra que as representações populares de “inventores-empresários engenhosos e capitalistas de risco [que] forjaram uma economia dinâmica e de alta tecnologia livre da mão pesada do governo” desviam a atenção do papel crucial do “financiamento do Pentágono para pesquisa e desenvolvimento [que] ajudou lançar as bases tecnológicas para uma nova geração de startups” no século XXI. Dos anos 1950 até o final dos anos 1990, o maior empregador do setor privado do Vale do Silício não foi Hewlett Packard, Apple, Ampex ou Atari. Era a gigante da defesa Lockheed. Hoje, a região enfrenta um padrão conhecido, embora o tamanho gigantesco e a influência das empresas de tecnologia de hoje superem as empresas de computadores do passado.
É provável que isso tenha grandes implicações no futuro próximo. Jack Poulson, ex-cientista de pesquisa sênior do Google e cofundador da Tech Inquiry, colocou-me a questão da seguinte forma: “Acredito que estamos testemunhando a transição de grandes empresas de tecnologia dos EUA para contratos de defesa e chegaríamos ao ponto de prever que eles comprariam fornecedores de defesa nos próximos anos – algo como a compra da Raytheon pela Amazon”.
A verdadeira linha de cisão não está entre o Pentágono e o Vale do Silício. Está dentro do Vale do Silício, onde um modesto contingente de engenheiros e cientistas politicamente conscientes resolveu resistir ao uso militar de seu trabalho. Quando eles enfrentarem um ataque total de mensagens de relações públicas, campanhas visando corações e mentes, discussões “colaborativas”, mais remuneração e privilégios – e talvez a ameaça tácita de perder seus empregos ou de vê-los terceirizados –, eles irão capitular?
A essa altura, é muito cedo para saber o resultado, mas o futuro da guerra virtual e dos campos de batalha digitais pode estar nas mãos dessas pessoas.
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Robert J. González Membro do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de San José, autor de livros como War Virtually: The Quest to Automate Conflict, Militarize Data, and Predict the Future. Fundador da Network of Concerned Anthropologists (Rede de Antropólogos Preocupados).
por Karen Honório - abril 10, 2017 (Observatório de Regionalismo)
Criada em 2000, na I Reunião de Presidentes da América do Sul em Brasília, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA) foi a primeira instituição formada pelos doze países da América do Sul. Proposta pelo governo brasileiro em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a iniciativa tinha como objetivo central desenvolver metodologia e uma carteira de obras de infraestrutura que interligasse fisicamente as principais regiões econômicas do subcontinente com o intuito de diminuir custos de transporte e circulação de mercadorias visando o aumento dos níveis de exportação intra e extrarregional.
Marco do chamado “regionalismo estrutural” na América do Sul (LIMA;COUTINHO,2007), a IIRSA representou a emergência do tema da infraestrutura na agenda da integração regional durante a primeira década do ano 2000. Com caráter intergovernamental, a estrutura institucional de funcionamento da IIRSA foi composta da seguinte forma: a)Comitê de Direção Executiva (CDE); b) Comitê de Coordenação Técnica (CCT) formado pelo BID, Fonplata e Corporação Andina de Fomento (CAF) e, c) grupos técnicos de trabalho (GTEs). O fluxo de funcionamento da IIRSA pode ser resumido da seguinte forma, a partir do agrupamento de projetos elencados pelos GTEs, o CCT, baseado nos diagnósticos de identificação e estudos das principais atividades econômicas e fluxos de comércio existentes e potenciais, seguindo os princípios da IIRSA, realizava um processo técnico de hierarquização dos projetos e encaminhava ao CDE para análise e votação, uma vez aprovados em consenso pelos representantes dos governos eles entravam para a carteira de projetos. Em termos de metodologia, os projetos foram agrupados em Eixos de Integração e Desenvolvimento (EIDs). São dez os EIDs: 1) Eixo Andino; 2) Eixo Andino do Sul; 3) Eixo da Hidrovia Paraguai – Paraná; 4) Eixo de Capricórnio; 5) Eixo do Amazonas; 6) Eixo do Escudo das Guianas; 7) Eixo do Sul; 8) Eixo Interoceânico central; 9) Eixo Mercosul – Chile; e 10) Eixo Peru – Brasil – Bolívia.
Dessa forma, em 2005, a IIRSA apresenta a Agenda de Implementação Consesuada (AIC) , composta por 31 projetos prioritários a serem executados no período de 2005 a 2010. Além dessa agenda, a carteira da IIRSA reuniu mais de 500 projetos de obras, em sua grande maioria de caráter nacional. Em 2009, a IIRSA é incorporada como secretaria técnica ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) da Unasul, a incorporação da IIRSA ao Conselho pode ser entendida como resultado da cobrança dos países da região em torno de uma maior coordenação política no tema da infraestrutura, com o desenvolvimento de mecanismos que garantissem os financiamentos dos projetos, além de buscar superar a falta de conexão da iniciativa com os mecanismos de integração regional existentes, munindo-a de um “guarda-chuva” institucional ampliado. No COSIPLAN, em 2011, a AIC foi reformulada e re-nomeada como Agenda de Projetos Prioritários de Integração (API) reunindo os mesmos 31 projetos, com prazo de conclusão das obras em 2022.
Ao longo de seus dez anos de existência a IIRSA logrou o mapeamento dos entraves de infraestrutura na região e desenvolveu metodologia e carteira de projetos que podem indicar possíveis caminhos para avanços na questão da infraestrutura, ainda muito cara à competitividade e conexão dos nosso países. No entanto, a iniciativa não conseguiu desenvolver meios de financiamento multilaterais dos projetos levantados pelos países, a baixa capacidade de endividamento dos países acabou influenciando de maneira objetiva os resultados da IIRSA. O financiamento dos projetos de infraestrutura na região, a razão de criação da iniciativa, tornou-se ironicamente, o motivo pelo qual não houve resultados mais efetivos em termos de implementação dos projetos elencados na carteira de obras.
Em termos políticos, podemos considerar a IIRSA como a sul-americanização da estratégia de planejamento de infraestrutura interna brasileira, ela foi a proposta de maior expressão para a América do Sul na política externa no governo FHC sofrendo uma reavaliação nos governos Lula. Por ser considerada um projeto ligado às diretrizes do governo antecessor não adquiriu relevância na política externa a partir de 2003. Isso não significa dizer que ela foi abandonada, mas que o enfoque da política externa de Lula deu-se mais pelo destaque do tema “integração de infraestrutura” em detrimento à instuição, IIRSA, o que também nos dá chaves para entender a escolha pelo financiamento de obras de infraestrutura via bilateral por meio dos financiamentos do BNDES no subcontinente durante o período de seus governos.
Referências:
IIRSA. Disponível em: http://www.iirsa.org/. Acessado em 07 de abril de 2017.
HONÓRIO, Karen dos Santos. O significado da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA) no regionalismo sul-americano (2000-2012): um estudo sobre a iniciativa e a participação do Brasil. 2013. Dissertação (Mestrado Em Relações Internacionais) – Programa De Pós-Graduação San Tiago Dantas, São Paulo, p. 70 – 85/ 90 – 95, 2013.
LIMA, Maria Regina; COUTINHO, M.V. (2007) Uma versão estrutural do regionalismo. In: DINIZ, Eli (org.). Globalização, Estado e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora FGV.
ESCRITO POR
Karen Honório
Doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI- San Tiago Dantas (Unicamp,Unesp e PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp-Franca. É professora assistente nível 1 na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre Capitais Transnacionais, Estado, classes dominantes e conflitividade na América Latina e Caribe (GIEPTALC) e do Núcleo de Pesquisa em Política Externa Latinoamericana (NUPELA).Integra o Grupo para Reflexões sobre Relações Internacionais (GR-RI). Áreas de pesquisa e interesse: Teorias de Relações Internacionais, Teorias de Integração, Política Externa Brasileira, Economia e política na América do Sul, Integração Sul-Americana e Latino-americana.
Publicado originalmente em 10/06/2021 - Observatório das Metrópoles
Escrito por Alexandre Yassu, o livro “A reestruturação imobiliária e os arranjos escalares na (re)produção da metrópole: o caso de Cajamar-SP” explora aspectos da reestruturação capitalista através do estudo da atividade imobiliária em Cajamar, na Região Metropolitana de São Paulo.
A obra é resultado da dissertação de mestrado do autor, desenvolvida no âmbito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e orientada por Adauto Cardoso, professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
O trabalho de Yassu busca entender como ocorreu o desenvolvimento do setor imobiliário em Cajamar através das redes de agentes envolvidas na produção do espaço, além de identificar as estratégias, as práticas e o comportamento desses agentes. O autor parte da hipótese de que a pesquisa destes arranjos e a identificação de seus procedimentos podem fornecer novas perspectivas para as questões relacionadas à produção do espaço metropolitano.
Conforme destacado no início do livro:
A intensificação da atividade imobiliária é apontada como parte da reestruturação geral do capitalismo em curso, na sua constante busca de superação de suas crises. (…) O novo patamar que atinge a demanda por terra, resulta da busca por ganhos financeiros através das diversas formas que a propriedade assume, como uma forma de ativo financeiro que acelera a sua circulação e está reorganizando o mercado de solo urbano. Portanto, o estudo das transformações no setor imobiliário é crucial para entender as transformações que vem ocorrendo nas metrópoles brasileiras.
Confira a apresentação dos principais pontos do trabalho:
A que pergunta a sua pesquisa responde?
Como a financeirização do setor imobiliário tem transformado a metrópole e quais as peculiaridades do processo de financeirização urbana no Brasil.
Por que isso é relevante?
A financeirização como fenômeno global tem promovido intensas transformações socioespaciais. Em países periféricos, como o Brasil, isso também gera efeitos que tem impactado nas cidades e intensificado os conflitos em torno do acesso à terra.
Qual o resumo da pesquisa?
As recentes transformações no setor imobiliário sob a dominância financeira têm impactado na (re)produção da metrópole de São Paulo. Esta pesquisa busca reunir elementos que ajudem a ampliar a compreensão de como os fluxos globais de capital se friccionam e se ajustam às diversas texturas sociais, permitindo que o capital global possa se “ancorar” ao solo, extrair a renda e continuar seu fluxo. Procura-se fazer uma análise dos arranjos multiescalares que sustentam e comandam o processo de produção do ambiente construído. Trazer à tona como agentes financeiros globais se organizam e se movimentam, suportados por outros agentes, como: agências globais multilaterais, poder público e agentes locais. Isto é feito a partir do estudo da intensa atividade imobiliária, residencial e logística, na última década, em Cajamar na Região Metropolitana de São Paulo.
Quais foram as conclusões?
O trabalho apontou que a financeirização do urbano ocorre através de arranjos multiescalares entre agentes que tem o papel de coordenar a atividade imobiliária para execução de seus objetivos de extrair a renda fundiária. Identifica-se, também, que os produtos imobiliários estão em transformação, assim como expressam a articulações ocorridas nos arranjos multiescalares.
Quem deveria conhecer seus resultados?
Gestores públicos, pesquisadores de planejamento urbano, geografia urbana e sociologia, além de membros de movimentos sociais.
O livro está disponível em nossa Biblioteca Digital.
Alexandre Mitsuro da Silveira Yassu
Resumo
Em meio às transformações na (re)produção da metrópole, em razão da reestruturação produtiva e imobiliária, o galpão logístico emerge como expressão de ambas, tanto é parte das alterações na organização da empresa capitalista como é um novo produto imobiliário alinhado à demanda de grandes varejistas e do comércio digital, envolvendo agentes financeiros e imobiliários em múltiplas escalas, do local ao global. Um fenômeno que invadiu a cidade de Cajamar e a transformou no principal polo logístico da RMSP. O nosso objetivo é, a partir do caso de Cajamar, explorar a gênese dessa nova mercadoria imobiliária, suas formas específicas de propriedade e de circulação, sua modelagem como produto e sua forma de inserção no espaço.
Palavras-chave: indústria, logística, imobiliário, financeirização, metrópole
Texto completo: https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/56540/38092
O CASO BRASILEIRO
Regressão industrial na periferia do desenvolvimento do subdesenvolvimento
O desaparecimento da indústria transformou o país numa economia de pequenos comércios, sem sofisticação produtiva, na qual a síntese é a expansão das micros e pequenas empresas.
Juliano Giassi Goularti
17 de maio de 2019
Até 1980, o Brasil estava entre as três economias do mundo que mais cresciam. Durante o milagre econômico (iniciado em 1968) a renda per capita foi dobrada. Crescíamos a taxas chinesas, de mais de 10% ao ano nos 1970 e nossas exportações de manufaturados aumentavam exponencialmente, de 24%, em 1974, para 44,8%, em 1980, e 54,2%, em 1989.
Na década seguinte, Brasil, China e Coreia do Sul exportavam aproximadamente US$ 20 bilhões. Ao longo dos anos 1990, o Brasil foi perdendo mercado na economia mundo. A sobrevalorização cambial, a política de austeridade fiscal e a taxa de juros elevada castigaram a indústria doméstica que já estava tentando se adaptar à abertura tarifária. Foram, portanto, quatro golpes violentos sucessivos. Hoje, a China exporta mais de US$ 2 trilhões; a Coreia do Sul, US$ 500 bilhões; e o Brasil, US$ 200 bilhões.
Partindo desses dados, a estrutura produtiva de um país tende a alterar-se na medida em que ele se desenvolve e ocorre um aumento da renda per capita. Além disso, segundo Kaldor (1966), o processo de crescimento econômico de um país deve-se à transferência de fatores produtivos de setores com rendimentos decrescentes de escala (agricultura) para aqueles com rendimentos crescentes (indústria). Esse deslocamento é responsável por criar economias dinâmicas de escala e escopo.
Na Riqueza das nações, publicado em 1776, Adam Smith (1996) já havia observado que “As nações mais opulentas geralmente superam todos os seus vizinhos tanto na agricultura como nas manufaturas; geralmente, porém, distinguem-se mais pela superioridade na manufatura do que pela superioridade na agricultura”. Smith, como um bom liberal, demonstra que as manufaturas exibem retornos crescentes de escala e agricultura não e que a divisão social do trabalho, “causa do aprimoramento das forças produtivas”, é um dos pilares do avanço produtivo e, logo, dos ganhos de produtividade. Desse modo, “a natureza da agricultura não comporta tantas divisões do trabalho, nem uma diferenciação tão grande de uma atividade para outra, como ocorre nas manufaturas”.
Nesse sentido, a indústria deve ser entendida como um sistema complexo, e não como apenas um setor de atividade. Agricultura e produção de commodities (complexidade parcial) não constituem um sistema complexo, pois não há encadeamento nas etapas produtivas de seus produtos (exemplo do automóvel: motor, carcaça, pneus, chassi, vidros, bancos), não há elos de conexão entre o produto final e o inicial, justamente os elos que poderiam ser mecanizados e apresentar potencial de especialização produtiva. Logo, a agricultura, assim como as atividades ligadas ao Simples Nacional, é incapaz de realizar tamanha complexidade.
Através da análise da pauta exportadora é possível medir de forma indireta a sofisticação tecnológica de seu tecido produtivo ou de sua complexidade econômica (Gráficos 1 e 2). Ao longo dos anos 2000, observou-se um aprofundamento da participação das manufaturas baseadas em recursos naturais no total exportado pelo país, dando início a um processo, denominado na literatura, por “reprimarização da pauta exportadora”, cuja contrapartida foi a perda de importância das manufaturas não baseadas em recursos naturais nas exportações totais.
O melhor posicionamento das empresas brasileiras, ligadas ao agronegócio, no mercado externo contribuiu para a melhoria do saldo comercial nacional. Mas essa pauta exportadora não resultou um aumento da complexidade exportadora do país, ou seja, prevaleceram as vantagens comparativas ricardianas. Os gráficos 1 e 2, extraídos do Atlas of Economic Complexity, é a confirmação da tese cepalina de que os países centrais se especializam em mercados de concorrência imperfeita e os periféricos em concorrência perfeita.
Gráfico 1 – Principais produtos brasileiros exportados (1995/2016)
Fonte: Atlas of Economic Complexity – http://atlas.cid.harvard.edu/
As cores representam categorias de produtos, sendo os mais sofisticados as máquinas e equipamentos na cor azul. No cinturão externo estão as commodities agrícolas, minerais e energéticas.
A incorporação de novas tecnologias determina a ocorrência de rendimentos de escala crescentes para o setor manufatureiro, fato que termina estimulando a demanda por manufaturados. Como consequência, há um aumento dos investimentos com tendência à formação do investimento autônomo. No caso da indústria brasileira, há um processo de desarticulação das cadeias produtivas, o que acaba restringindo a capacidade de a indústria gerar as condições para o crescimento do produto. Assim, o processo de expansão industrial não é auto-alimentado e, em longo prazo, não haverá diversificação da estrutura produtiva nacional.
Esse processo de desarticulação das cadeias produtivas é acompanhado por uma forte atratividade econômica em regiões como Centro-Oeste e Norte, impulsionado pelo ciclo ascensionista da demanda internacional por grãos e minerais, que contam com uma gama de incentivos fiscais e subsídios financeiros. Na ausência de rendimentos crescentes, as desonerações fiscais e financeiras da União, estados e municípios para as atividades agrícolas, além de estarem vinculadas a rendimentos descrentes, reforçam as condições do subdesenvolvimento e das vantagens comparativas ricardianas.
Os países centrais têm estruturas produtivas sofisticadas com manufaturas high tech e serviços de ponta; dominam marcas, patentes e tecnologias avançadas; estão na fronteira da inovação tecnológica; produzem o máximo possível em seus territórios e exportam para o mundo; transferem produção para países em desenvolvimento quando os salários internos e custos de produção são altos a ponto de não compensar produzir mais na matriz, criam as multinacionais que recebem lucros e dividendos dentro da lógica de funcionamento do sistema na busca do lucro, mas o Brasil, além de se especializar em produtos primários, está virando uma economia do tipo Feirão da Madrugada de São Paulo, perdendo a corrida das máquinas e da produção de manufaturas e bens complexos (GALA, 2017).
Além disso, o mercado de trabalho brasileiro, com suas características periféricas, possui elevada heterogeneidade, presença disseminada do subemprego, excedente estrutural de mão de obra, elevada rotatividade do emprego (curta duração), empregos de baixos salários, pejotização (dispensar um empregado com registro em carteira e recontratá-lo na forma de pessoa jurídica) e elevada informalidade (sem proteção social previdenciária), mesmo com ascensão quantitativa das desonerações fiscais e financeiras. O desaparecimento da indústria transformou o país numa economia de pequenos comércios, sem sofisticação produtiva, na qual a síntese é a expansão das micros e pequenas empresas (Simples Nacional).
Em todo caso, não dá para afirmar que as desonerações são condições sine qua non para elevar a competitividade da empresa nacional, em particular da indústria de transformação no comércio mundial de mercadorias, como demonstrado pela linha azul no quadro acima. Tais características de acumulação primitiva substituíram a agricultura familiar pelo agronegócio sem que o trabalho análogo às condições de escravo, a monocultura e a grande propriedade rural desaparecessem. O fato de o governo federal dar tanta ênfase à produção agrícola no processo de crescimento do produto e dos saldos comerciais fez com que, a partir da década de 1990, as políticas de subsídios financeiros e incentivos fiscais contribuíssem com o agronegócio, tornando-o o que ele é hoje.
A modificação na taxa cambial, a expansão do crédito agrícola para financiamento da safra e as políticas de incentivos fiscais para reduzir custos de produção, trabalho e terra tendem a determinar uma série de modificações na estrutura comercial. A ação desses fatores e a luta dos diferentes grupos em defesa de sua renda real valorizaram os excedentes criados pela agricultura tradicional, consolidando sua posição no sistema de poder, dentro e fora do Estado. Partindo dessa premissa, a derrubada de barreiras protetivas por Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso criou um forte impulso para a importação e atração de capitais, proporcionando regressividade da indústria nacional.
De certa forma, a reinserção da economia brasileira no comércio mundial de mercadorias não representou uma alteração expressiva na participação do país na economia mundial, mesmo com avanço das exportações vinculadas ao agronegócio. A presença do investimento direto estrangeiro tampouco colocou o Brasil numa posição mais favorável da divisão internacional do trabalho e nas exportações com maior valor (POCHMANN, 2008).
Gráfico 2 – Principais produtos brasileiros importados (1995/2016)
Fonte: Atlas of Economic Complexity – http://atlas.cid.harvard.edu/
Os produtos sofisticados são manufaturas, químicos e alimentos ou minerais processados e com marcas. São produtos com diferenciação feitos em ambientes de concorrência monopolística ou oligopólios. Os produtos simples são feitos em ambiente concorrencial; tratam-se de commodities.
Numa conta rápida, nosso comércio exterior movimenta aproximadamente U$S 200 bilhões no ano. Importamos bens sofisticados (smartphones, máquinas de última geração, fármacos, química fina, mecânica de alta precisão) e exportamos produtos básicos (café, açúcar, proteína animal, soja e minério de ferro). Importamos bens industriais que pagam altos salários na produção lá fora e exportamos produtos que empregam um mínimo de pessoas com baixos salários, sem considerar que as importações de manufaturas representam uns 12% do PIB, mais que a indústria da transformação produz hoje no Brasil.
O grosso do PIB são serviços não sofisticados, R$ 5 trilhões para produção de coisas simples e não sofisticadas, do total de um PIB total R$ 6,5 trilhões. Sem uma estratégia industrial definida por parte do Estado, assistiu-se à reprimarização da economia brasileira, ou seja, o Brasil é uma espécie de
“País de sobremesa. Exportamos bananas, castanhas-do-pará, cacau, café, coco e fumo. País laranja! (…). Os nossos economistas, os nossos políticos, os nossos estadistas deviam refletir sobre este resultado sintético da história pátria. Somos um país de sobremesa. Com açúcar, café e fumo só podemos figurar no fim dos menus imperialistas. Claro que sobremesa nunca foi essencial. Quando os nossos grandes compradores, por falta de dinheiro ou mitragem, suspendem a sobremesa, mergulhamos nas mais desgraçadas e imprevistas das crises.” (ANDRADE, 2011, p. 275)
Somado a esse fator, a especialização em agricultura e extrativismos não permite salto tecnológico, embora sustente o saldo da balança comercial do Brasil. O caminho do desenvolvimento mostra que é preciso produzir tratores, colheitadeiras, plantadeiras ou fertilizantes, ou algo complexo que não seja soja, milho, algodão, cacau e café, ou seja, produtos primários. Todavia o comércio exterior subjacente às manifestações das grandes potências e grandes corporações constrói barreiras de entrada para que um país periférico almeje seu próprio desenvolvimento (GALA, 2017).
Ademais, o crescimento do comércio exterior de produtos primários também significa a transferência de muitas das contradições capitalistas para a periferia, entre elas, a pressão ambiental por recursos naturais, a emissão de poluentes na atmosfera e o desmatamento de floresta nativa. Dessa maneira, o desenvolvimento do setor rural brasileiro (agronegócio) muito pouco beneficiou a massa trabalhadora rural, cujo nível de vida e renda continua precarizado.
Juliano Giassi Goularti é doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp.
Referências
ANDRADE, O. País de Sobremesa. (15 de agosto de 1937) In: ANDRADE, O. Estética e política. 2ed. São Paulo, Globo, 2011. 512p.
GALA, P. Complexidade econômica: uma nova perspectiva para entender a antiga questão da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado para o Desenvolvimento, 2017. 144p.
KALDOR, N. Causes of the slow rate of economic growth in the United Kingdom (1966). In: TARGETTI, F.; THIRLWALL, A. P. (Ed.). The essential Kaldor. New York: Holmes & Meier Publishers, 1989.
POCHMANN, M. O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo, Boitempo, 2008. 238p.
SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Com a Introdução de Edwin Cannan. Apresentação de Winston Fritsch. Trad.: Luiz João Baraúna. São Paulo, Nova Cultural Ltda, 1996. 479p.
20/09/2023
Por LUIZ GONZAGA BELLUZZO*
Prefácio do livro de de Lucas Crivelenti e Castro
Vou perpetrar a ousadia de rabiscar algumas ideias a respeito do livro de Lucas Crivelenti e Castro Novíssima dependência: a subordinação brasileira ao imperialismo no contexto do capitalismo financeirizado.
Peço vênia, diria um jurista de escol, para começar com a globalização, um conceito demasiado impreciso, enganoso e carregado de contrabandos ideológicos. Entre os contrabandos mais notórios, inscreve-se a tentativa de excluir as relações de poder entre os Estados nacionais, ou seja, abolir as relações entre os Impérios e seus súditos.
Ainda assim, se pretendemos avançar na análise e compreensão dos processos de transformação que sacodem a economia e a sociedade contemporâneas, estamos condenados a empreender a crítica ao conceito de globalização.
São muitos os que defendem, desde uma posição supostamente “científica”, o caráter benigno do chamado processo de globalização. Dois pressupostos estão implícitos nesta formulação: (i) a globalização conduzirá à homogeneização das economias nacionais e à convergência para o modelo liberal de mercado; (ii) esse processo ocorre acima da capacidade de reação das políticas decididas no âmbito dos Estados nacionais.
As receitas liberal-conservadoras, em voga, recomendam para os países emergentes, popularescas deduções, em linha direta, dos modelos abstratos da teoria neoclássica. Senão vejamos: a ampla abertura comercial está apoiada na vetusta teoria das vantagens comparativas, sem as tímidas modificações da “nova teoria do comércio”; as privatizações e o não intervencionismo do Estado emanam de uma modelo competitivo de equilíbrio geral; a liberalização financeira decorre da hipótese dos mercados eficientes.
Quando falamos em etapa financeira do capitalismo, em capitalismo financeiro, frequentemente não nos damos conta do significado que essa palavra tem. Karl Marx tratou a forma financeira como a mais desenvolvida do capital. “Mais desenvolvida” na concepção marxista diz respeito à realização do conceito de capital enquanto processo de acumulação de riqueza, monetária, abstrata. A economia do capital é um regime cujo objetivo não é a produção de mercadorias, nem mesmo a submissão do trabalho, ainda que em sua metamorfose – Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro – o capital seja obrigado a passar necessariamente por tais agruras.
Karl Marx trabalha com a simultaneidade de dois movimentos: o da reiteração dos mecanismos básicos de reprodução econômica e social do capitalismo e a transformação, a mudança, conduzida pelo incessante impulso à superação destes limites. É essa a história do capitalismo. Autoidentidade e diferença, no sentido de que os mecanismos de controle despótico impostos pela máquina capitalista continuam a operar sempre, enfrentando os métodos de resistência e as alternativas criadas pelas classes trabalhadoras na luta de classes. Vamos repetir: o regime do capital tem uma única finalidade: acumulação de riqueza abstrata, encarnada no dinheiro. Por isso, no capitalismo qualquer ato só adquire significado econômico quando começa e termina com o dinheiro.
A financeirização não é, portanto, uma deformação do capitalismo, mas um “aperfeiçoamento” de sua natureza. Aperfeiçoamento que exaspera o seu movimento contraditório: na incessante busca da “perfeição”, ou seja, a acumulação de dinheiro a partir do dinheiro – sem a mediação da exploração do trabalho – o regime do capital é obrigado a desvalorizar a força de trabalho e a expandir o capital fixo para além dos limites permitidos pelas relações de produção, o que engendra as crises periódicas de realização e de superacumulação.
No capitalismo, a finança é a instância de controle e dominação. É através da forma financeira que se realiza a chamada alocação de recursos, processo encarado pela economia neoclássica como a grande proeza dos mercados competitivos. Na visão marxista, a concorrência capitalista se realiza no âmbito dos mercados financeiros que promovem, de fato, a distribuição de recursos mediante o “descongelamento” do capital imobilizado nas diversas esferas de produção, em busca das melhores oportunidades e das aplicações mais rentáveis.
A respeito do tema alocação de recursos, vou me permitir a reprodução de um trecho do livro Dinheiro: o poder da abstração real, escrito em parceria com Gabriel Galípolo: “Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização espacial e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção”.
A centralização do comando no capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva. Os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de tesouraria. Já os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para garantir “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve (FED) revelam que, no período 2003-2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de emprego e renda no setor produtivo.
Na posteridade da crise de 2008, a reiteração da dominância da forma financeira da riqueza e dos rendimentos das empresas e das famílias endinheiradas está ancorada “em derradeira instância” no inchaço das dívidas públicas nacionais.
Vamos repetir uma banalidade: a dívida pública é riqueza privada. Para a compreensão do enriquecimento e reprodução das desigualdades é necessário avaliar o papel do endividamento público no ciclo atual de “inflação de ativos”. Os “mercados” sustentam uma nova escalada de preços nas bolsas de valores, escorados nas operações do FED com títulos públicos destinadas a regular a liquidez e manter reduzidas as taxas longas. Os títulos do governo americano constituem, portanto, o lastro de última instância, fiador das políticas monetárias de “facilitação quantitativa” e de suas consequências para a deformação da riqueza e ampliação das desigualdades.
O capitalismo global assumiu a sua forma mais avançada como economia monetária, cujos agentes detentores dos poderes de criação da riqueza social são tangidos pelo império da acumulação de riqueza abstrata. Isso não depende da maldade ou bondade desses agentes, senão de forças sistêmicas que lhes impõem a necessidade de desejar sempre mais para sobreviver em sua natureza capitalista. Esse comportamento impulsiona a dinâmica sistêmica e, ao mesmo, é reforçado por ela. É necessário sublinhar a palavra forma porque a compreensão da dinâmica capitalista como movimento das formas transformadas permite conferir significado preciso à palavra contradição. Contradição como negação da negação no movimento de construção de novas positividades, logo adiante negadas.
É sob esse critério que devemos observar a concomitância entre o avanço tecnológico, pífia evolução na produtividade trabalho, dissolução das relações salariais, queda nos rendimentos médios dos trabalhadores, encolhimento da massa de salários, empregos precários, redução nas taxas de investimento, crescimento explosivo do endividamento privado e público, a valorização incessante dos ativos financeiros e, finalmente, o rápido agravamento das condições ambientais.
Estas transformações nos mercados financeiros ocorridas nas últimas duas décadas estão submetendo, de fato, as políticas macroeconômicas nacionais à tirania de expectativas volúveis. Não foram poucos os ataques especulativos contra paridades cambiais, os episódios de deflação brusca de preços de ativos reais e financeiros, bem como as situações de periclitação dos sistemas bancários. É desnecessário reafirmar que estes episódios são o resultado inevitável, na maior parte dos casos, do livre movimento do floating capital.
Essas situações têm sido contornadas pela ação de última instância de governos e bancos centrais da tríade (Estados Unidos, Alemanha e Japão). Apesar disso, não raro, até mesmo países sem tradição inflacionária foram submetidos a crises cambiais e financeiras, cuja saída exigiu sacrifícios em termos de bem-estar da população e renúncia de soberania na condução de suas políticas econômicas.
A inserção dos países neste processo de globalização foi hierarquizada e assimétrica. Os Estados Unidos usufruindo de seu poder militar e financeiro dão-se ao luxo de impor a dominância de sua moeda, ao mesmo tempo em que mantêm um déficit elevado e persistente em conta corrente e uma posição devedora externa. Isto significa que o os mercados financeiros parecem dispostos a aceitar, pelo menos por enquanto, que os Estados Unidos exerçam, dentro de limites elásticos, o privilégio da “segniorage”.
Esta polarização da confiança se traduz em limitações à autonomia das políticas nacionais de outros países. A intensidade da restrição depende da forma e do grau da articulação das economias nacionais com os mercados financeiros sujeitos à instabilidade das expectativas. Japão e Alemanha, por exemplo, são superavitários e credores e por isso têm mais liberdade para praticar expansionismo fiscal e juros baixos, ou tolerar amplas flutuações no valor de suas moedas, sem atrair a desconfiança dos especuladores.
Países, com passado monetário turbulento, precisam pagar elevados prêmios de risco para refinanciar seus déficits em conta corrente. Isto representa um sério constrangimento ao raio de manobra da política monetária, além de acuar a política fiscal pelo crescimento dos encargos financeiros nos orçamentos públicos.
O “capital vagabundo” conta, nos Estados Unidos, com um mercado amplo e profundo, onde imagina poder descansar das aventuras em praças exóticas. A existência de um volume respeitável de papéis do governo americano, reputados por seu baixo risco e excelente liquidez, tem permitido que a reversão dos episódios especulativos, com ações, imóveis ou ativos estrangeiros, seja amortecida por um movimento compensatório no preço dos títulos públicos americanos.
Os títulos da dívida pública americana são vistos, portanto, como um refúgio seguro nos momentos em que a confiança dos investidores globais é abalada. Isto significa que o fortalecimento da função de reserva universal de valor, exercida pelo dólar, decorre fundamentalmente das características já aludidas de seu mercado financeiro e do papel crucial desempenhado pelo Estado americano como prestamista e devedor de última instância.
É por isso que as oscilações das taxas de juros de longo prazo, que exprimem as variações de preços dos títulos de 10 anos do Tesouro americano, são hoje, no mundo das finanças desregulamentadas e securitizadas, o indicador mais importante do estado de espírito dos mercados globalizados. Seus movimentos refletem as antecipações dos administradores das grandes massas de capital financeiro a respeito da evolução do valor de suas carteiras, que tomam as variações de preços dos títulos do Tesouro como base para fazer antecipações sobre evolução provável dos preços e da liquidez dos diferentes ativos, denominados em moedas distintas.
Os novos mercados têm a obsessão da liquidez, como diz o professor Michel Aglietta. Essa obsessão, aliás, é a decorrência natural e inevitável de mercados cuja operação depende de conjeturas a respeito da evolução do preço dos ativos. Apesar de todas as técnicas de cobertura e distribuição de riscos entre os agentes, ou até por causa delas, estes mercados desenvolveram uma enorme aversão à iliquidez e aos compromissos de longo prazo.
Além disso, e muito importante: aumentou significativamente a sensibilidade dos novos mercados financeiros a elevações imaginadas das taxas de inflação. Ainda que a mudança prevista no patamar inflacionário possa ser julgada desprezível – se avaliada pelos critérios das décadas anteriores – a reação dos mercados tende a ser muito elástica às antecipações pessimistas.
Por isso, é de pouca sabedoria dizer, como o fez o relatório do BIS, que os níveis atuais de inflação (ou de deflação rastejante) são razoáveis e que os governos deveriam tratar do crescimento. Cabe perguntar: são razoáveis para quem? As opiniões dominantes são, nesta etapa do capitalismo, aquelas que se aferram à defesa do valor real da riqueza já existente, ou da “riqueza velha”, em detrimento do espírito empreendedor que busca a criação de nova riqueza. Vivemos num mundo em que predomina o “ethos” do rentismo e prevalecem as taxas de juros reais elevadas.
A sensibilidade à inflação e a aversão à iliquidez, que se exprimem através das reações das taxas longas, funcionam como freios automáticos, cuja função é conter o crescimento da economia real, antes que ele se revele “inconveniente” para os detentores de riqueza financeira.
Estas peculiaridades da finança contemporânea, fundada na preeminência de mercados amplos e profundos para a negociação de papéis e seus derivativos, têm suscitado uma variedade muito grande de interpretações. O crescimento espetacular da riqueza financeira (em relação a outras formas de acumulação da grande empresa e das famílias de alta renda) e o desenvolvimento correspondente de mercados sofisticados e abrangentes, destinados à avaliação diária desta massa de riqueza mobiliária, estão afetando de forma importante o comportamento do investimento, do consumo e também do gasto público.
Independentemente das boas intenções ou de reformas virtuosas buscadas pelos governos, a lógica da valorização patrimonial vai se apoderando de todas as esferas da economia, impondo os seus critérios como os únicos aceitáveis em qualquer decisão relativa à posse da riqueza. Não se trata apenas de que o cálculo do valor presente do investimento produtivo seja afetado pelo estado de preferência pela liquidez nos mercados financeiros (um velho, mas pouco compreendido problema keynesiano), mas sim que a acumulação produtiva vem sendo “financeirizada” como, aliás, o professor José Carlos Braga vem tentando explicar em seus trabalhos pioneiros.
A generalização e intensificação da concorrência, protagonizadas pela grande empresa, que opera em múltiplos setores e em muitos mercados só pode ser compreendida corretamente à luz destas transformações financeiras.
As questões relativas às estratégias de localização da corporação transnacional moderna ou de suas mutações morfológicas (constituição de empresas-rede, com concentração das funções de decisão e de inovação e dispersão das operações comerciais e industriais) devem ser avaliadas a partir desta perspectiva. O fenômeno se apresenta, prima facie, sob a forma de “contestação” das estruturas oligopolistas “estabilizadas” que regulavam a concorrência no período anterior. Analisada com mais profundidade, essa generalização da concorrência explicita uma nova etapa de reconcentração e recentralização dos blocos de capital, sob a égide e a disciplina do capital financeiro.
A economia mundial está atravessando um momento de intensificação da rivalidade intercapitalista (o que não exclui acordos e coalizões, mas os supõe) e, neste clima, nenhum protagonista é capaz de garantir a posição conquistada. Por isso, todos se sentem compelidos a ganhar a dianteira.
Para escândalo dos liberais, a grande empresa que se lança a incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio dos Estados Nacionais dos países de origem. O Estado está cada vez mais envolvido na sustentação das condições requeridas para o bom desempenho das suas empresas na arena da concorrência generalizada e universal. Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para suas exportações nos setores mais dinâmicos e seriam deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de ciência e tecnologia.
Ao invés da vitória dos mercados, em que prevalece o automatismo da concorrência perfeita, estamos assistindo à reiteração da “politização” da economia. As transformações em curso não se propõem a reduzir o papel do Estado, nem enxugá-lo, mas almejam aumentar sua eficiência na criação de “externalidades” positivas para a grande empresa envolvida na competição generalizada. A disparidade de situações e de projetos nacionais e regionais, entre os países desenvolvidos e entre estes e os países em desenvolvimento, vem aumentando nos últimos anos.
O relatório da UNCTAD Trade and Development Report de 2003 traz o subtítulo “Acumulação de capital, crescimento e mudança estrutural”. Trata-se de um estudo histórico-comparativo sobre o desempenho dos países em desenvolvimento ao longo do movimento de transformação da economia global nas décadas dos 1980 e 1990.
(i) os de industrialização madura como a Coréia e Taiwan que já atingiram um grau elevado de industrialização, produtividade e renda per capita, mas apresentam uma taxa declinante de crescimento industrial; (ii) os de industrialização rápida, como a China e talvez a Índia que – mediante políticas que favorecem elevadas taxas de investimento doméstico e graduação tecnológica – apresentam uma crescente participação das manufaturas no produto, emprego e exportações; (iii) os de industrialização de enclave, como o México que, a despeito de aumentar sua participação na exportação de manufaturados têm desempenho pobre em termos de investimento, valor agregado manufatureiro e produtividade totais; e (iv) finalmente, os países em vias de desindustrialização, que inclui a maioria dos países da América Latina.
A tipologia desenhada pela UNCTAD é o ponto de chegada do jogo complexo. Em todas as etapas de expansão do capitalismo este jogo envolve as transformações financeiras, tecnológicas, patrimoniais e espaciais que decorrem da interação de dois movimentos: (a) o processo de concorrência movido pela grande empresa, sob a tutela das instituições nucleares de “governança” do sistema: a finança e o Estado hegemônico; e (b) as estratégias nacionais de “inserção” das regiões periféricas. As transformações que hoje observamos são impulsionadas pelo jogo estratégico entre o “polo dominante” – no caso a economia americana, sua capacidade tecnológica, a liquidez e profundidade de seu mercado financeiro, o poder de seignorage de sua moeda – e a capacidade de “resposta” dos países em desenvolvimento às alterações no ambiente internacional.
É desnecessário dizer que as economias periféricas dispõem de estruturas e trajetórias sociais, econômicas e políticas muito dessemelhantes, o que dificulta para umas e facilita para outras a chamada “integração competitiva” nas diversas etapas de evolução do capitalismo. Assim, por exemplo, o sucesso do Brasil, até o início dos anos 1980, desencadeou a crise que iria provocar o seu reiterado “fracasso” na tentativa de se ajustar às novas condições internacionais. No polo oposto, o fracasso chinês até os anos 1980 propiciou condições iniciais mais favoráveis para o sucesso das reformas empreendidas a partir de então.
A década de 1970 é o momento da aproximação China-EUA, promovida por Nixon e Kissinger. De uma perspectiva geopolítica e geoeconômica, a inclusão da China no âmbito dos interesses americanos é o ponto de partida para a ampliação das fronteiras do capitalismo, movimento que iria culminar no conflito entre o protecionismo do republicano (liberal?) Donald Trump e o “livre-comércio” do comunista Xi-Jinping. Ironias da história: uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa.
Essa “desarticulação” (ou rearticulação?) econômica descortinou uma nova fase, marcada por conflitos e contradições entre o modo de funcionamento dos mercados globalizados e os espaços jurídico-políticos nacionais.
A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação universalista das empresas americanas. No afã de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, o deslocamento “competitivo” da produção manufatureira americana buscou as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.
Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.
No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da
“abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para empreender estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.
À sombra da aproximação com os Estados Unidos e outros países ocidentais, Deng Xiaoping entrosou as reformas domésticas com a abertura ao investimento estrangeiro. Nesse momento, a força do dólar e as condições oferecidas pelo mercado financeiro dos EUA favoreceram a migração das empresas de Tio Sam para fruir as vantagens do novo espaço de expansão.
Em simultâneo à abertura controlada, “o mercado passou a ser instrumento de governo para revigorar sua base material”. A reinauguração do mercado na China inicia-se com a permissão aos camponeses ao comércio de seus excedentes de produção, fato que pode ser comparado com o destampamento de uma panela de pressão que foi a base do desenvolvimento da sociedade chinesa por cerca de três mil anos e que fora temporariamente proibido. O resultado foi o aumento da produtividade agrícola e a “fabricação de fabricantes” em massa. Atualmente, 80% dos empresários de Shenzhen eram camponeses médios em 1978.
A formulação estratégica do Partido Comunista da China está ancorada em um sistema de consultas da base para a cúpula e vice-versa, sistema que obedece a uma sequência de instâncias de avaliação e decisão. Uma vez tomada a decisão, as burocracias de Estado, os gestores das empresas estatais, os governos provinciais, o People’s Bank of China, todos cuidam de implementar as diretrizes.
Durante a primeira década do novo milênio, a taxa de crescimento média anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e 0,9% da Alemanha. No fim da década, a China respondia por 42% da produção mundial de televisores em cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones móveis, 97% dos PCs e 62% das câmeras digitais.
O livro China versus The West, de Ivan Tselichtchev, dá a dimensão da transformação ocorrida. Nos anos 1980, a economia chinesa detinha o mesmo 1% do Brasil de participação no comércio mundial, em 2010 sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos EUA e 8,3% da Alemanha.
A escalada chinesa avançou amparada na relação favorável câmbio/salários, nos crescentes ganhos de escala e no rápido desenvolvimento tecnológico. A China enfrentou os desafios da globalização com concepções e objetivos que desmentem a propalada perda de importância das políticas nacionais e intencionais de industrialização e desenvolvimento.
A estratégia chinesa promoveu, com sucesso, a atração do investimento direto estrangeiro em parceria com as empresas locais, privadas e públicas. A determinação da taxa de câmbio escapou aos humores dos mercados financeiros. Foi utilizada como instrumento de competitividade e de atração do investimento forâneo.
Em 2013, o presidente Xi Jinping lançou o projeto “Nova Rota da Seda”, um programa de longo prazo para promover investimentos e conexões com todas as regiões do mundo. Esse projeto revela que, em poucas décadas, a China virou o jogo. Antes da Rota da Seda, o Império do Meio havia transitado de receptor de capitais para grande promotor de investimentos no exterior.
Em discurso de abertura no 19º Congresso do Partido Comunista da China, Jinping discorreu a respeito da economia com características chinesas. O presidente anunciou políticas de “ampliação do papel do mercado e de reforço às empresas estatais”. Ao avaliar as palavras de Jinping em sua edição de 22 de julho de 2017, a revista The Economist publicou um artigo com o título “Seleção Antinatural”. A revista imagina que a “seleção natural” é promovida pela livre concorrência, processo que sobrevive apenas nos livros-textos de introdução à economia. O capitalismo aboliu-o há tempos. Inspirada nesse anacronismo, The Economist lamentou o programa chinês de fusões das empresas estatais (Soes): “A agência do governo organizou a fusão de portos, ferrovias, produtores de equipamentos e empresas de navegação… Essas ações parecem destinadas a promover campeões nacionais”.
O governo chinês encaminhou uma dura reforma de suas empresas estatais nos últimos anos da década de 1990. Preparar sua economia ao cumprimento das normas de admissão à Organização Mundial do Comércio, ocorrida em 2001, demandou conceber um tipo de empresa com forte tendência à conglomeração, métodos de administração ultramodernos, comercialmente agressivas e com função de núcleo duro do desenvolvimento de um Sistema Nacional de Inovação.
*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente).
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Referência
Lucas Crivelenti e Castro. Novíssima dependência: a subordinação brasileira ao imperialismo no contexto do capitalismo financeirizado. São Paulo, Editora ialética, 2021, 234 págs. [https://amzn.to/3Luhi5Y]
Enel: governo e fundo de investimentos estão em guerra
https://www.agrandeguerra.com.br/p/briga-italia-enel-sao-paulo-luz-energia?utm_source=post-email-title&publication_id=852521&post_id=138652415&utm_campaign=email-post-title&isFreemail=true&r=1lebnk&utm_medium=email
NOV 6, 2023
Muito se fala dos problemas das privatizações. Todos deveriam saber: uma empresa pública não precisa perseguir lucros e movimentos de mercado a todo custo – e por “a todo custo” entenda-se “prejudicando a população” para faturar mais.
Quer exemplo melhor e mais recente do que a “eficiência” da Petrobras? A empresa se tornou a maior distribuidora de lucros pros acionistas de todas as petrolíferas do mundo às custas do brasileiro pagando gasolina a 8 reais.
Como se vê, a palavra “eficiência” tem muitos usos.
Então temos o caso Enel
Vastas regiões de São Paulo estão sem energia elétrica – estima-se 500 mil imóveis às escuras entre residências, comércio e serviços essenciais como UPAs, clínicas, hospitais e escolas. Comida jogada no lixo, respiradores parando de funcionar. Um caos. O temporal foi sexta-feira. A responsabilidade pela operação de serviços de energia elétrica na cidade de São Paulo e parte da Região Metropolitana de São Paulo chama-se Enel Distribuição São Paulo.
A Enel é uma empresa de economia mista controlada pelo Estado italiano (detém 23,6% dela). Ou seja: a Itália, por meio de seu ministério da Economia, é a maior acionista da empresa, mas ela conta com sócios privados, que são maioria. No Brasil, ela comprou as operações da estatal Eletropaulo em 2018.
Os donos da Enel na Itália. Fonte: site oficial da Enel.
Briga interna em Roma, São Paulo no escuro
Este ano, uma briga inesperada explodiu nos corredores da Enel. Um sócio até então pouco conhecido e que possui uma fatia de cerca de 1% do capital da empresa começou a cutucar o governo, tanto em reuniões como em praça pública, dando entrevistas para os maiores jornais do país. A guerra iniciada pelo fundo Covalis Capital visava dominar a Presidência ou ao menos parte do Conselho da empresa. Entendendo esses bastidores, entendemos como milhões de pessoas estão sem luz em São Paulo.
O que está em jogo
De um lado o governo de Giorgia Meloni
Chama-se Giancarlo Giorgetti seu ministro da Economia. É de Giorgetti o ministério que possui os tais 23,6% da Enel. Giorgetti é um dos mais proeminentes políticos da Lega Nord, o partido ultradireitista e liberal da Itália. Não apenas isso: o ministro é da corrente mais liberal dentro da própria Lega. Algo como: se a terra fosse plana, Giorgetti já estaria se segurando na borda.
Seu plano para o estado italiano – e para a Enel como consequência –, como não poderia deixar de ser, é apenas um: cortar, cortar, cortar.
O plano de cortes é tudo o que o governo quer. A ideia de cortar todos os custos possíveis da Enel e das outras 33 empresas estatais controladas pela pasta de Giorgetti é simples: levar todo o dinheiro que conseguir para a Itália. Esse movimento de repatriação de euros é fundamental para ajudar a reduzir o déficit fiscal italiano, esperado em 5,3% este ano. E não melhora muito no ano que vem. A dívida pública italiana fechou no ano passado em 144,4% do PIB.
Meloni & Giorgetti.
Do outro lado está o fundo Covalis Capital
O Covalis Capital sequer é um dos grandes fundos do mundo. Seu portfólio está estimado em cerca de 500 milhões de dólares, muito longe dos verdadeiros e trilionários tubarões do mercado. O Covalis tem sede em Londres mas seu dinheiro, na prática, fica flutuando pelas ilhas Cayman. Durante a pandemia, esse fundo fez grana comprando ativos desvalorizados por causa do lockdown. E investiu pesado em empresas de energia, sobretudo em uma delas, chamada Li-cycle Holdings Corp. Essa empresa fica sediada no Canadá e recicla baterias de íons de lítio, dominantes no mercado. O Covalis é, hoje, o maior acionista da Li-cycle Holdings Corp.
Fonte: Yahoo Finance.
O que o Covalis quer
Que a Enel faça desinvestimentos em algumas áreas para poder gastar nas energias ditas renováveis. Que tire recursos de países como Chile e Brasil, por exemplo, e jogue tudo em seu setor de interesse imediato.
A Enel é muito forte nisso e vem fazendo investimentos. Há um braço do grupo chamado Enel X, por exemplo, que vende toda a sorte de soluções renováveis, muitas delas focadas no uso de baterias. Há investimentos específicos em inovações em baterias pra eletrificar casas, trens, carros, indústrias. O problema é que, para o fundo Covalis, o ritmo precisa ser muito mais rápido. Se por um lado eles se beneficiam quando a Enel corta custos, por outro eles precisam que ela seja uma das líderes na difusão do uso de baterias – que depois serão recicladas por empresas como a Li-cycle Holdings Corp.
Qualquer movimento de um colosso como a Enel – segundo o ranking da revista Fortune, o 59º maior faturamento do mundo – faria o setor dar um salto.
A Li-cycle Holdings Corp está no topo de investimentos do fundo Covalis. Fonte: clique aqui.
Mas afeta São Paulo como mesmo?
A Enel demitiu no Brasil 36% dos funcionários desde 2019, ou seja: desde o primeiro dia em que pegou as chaves da mão da Eletropaulo. Esses milhares de empregos a menos ajudaram a verdejar os balanços da Enel na Itália. Além disso, a Enel é famosa por deixar a rede sucatear, evitando fazer investimentos sequer para a manutenção do sistema. Mais dinheiro poupado, mais dinheiro no caixa.
Para o governo italiano, que é seu maior acionista, um ótimo negócio. Para o fundo Covalis, idem, com a diferença que seus interesses são outros. De todo modo, ambos – governo e Covalis – só pensam em uma coisa quando se trata de empregos e investimentos no Brasil: cortes, cortes, cortes.
De um lado e de outro, o cidadão de São Paulo ficou na mão.