Como sei o quanto és intensa, e como os mínimos pormenores são importantes para ti, descrevo-te a cena que me envolve.
Dormi mal — nada de estranho nas minhas noites. Enrolados nas voltas que dei na cama andaram os pensamentos. Antes das cinco da manhã resolvi levantar-me. Levantei-me com um pensamento fixo: preciso de escrever à Carmen.
À primeira vista, como se tivesse que pagar uma dívida. Mas não. Na amizade não existem dívidas. Existem períodos silenciosos — silêncios que não matam a amizade. A verdadeira guarda-se, ela própria, num cofre com um código seguro: fidelidade.
Voltando ao momento real que me envolve: bebo um café, imaginando estar frente a frente contigo, com as minhas mãos nas tuas. Conversamos tão naturalmente como se sempre o tivéssemos feito.
Quanto mais avanço na idade, maior é a certeza do que — e de quem — foi realmente importante para mim, e do que se torna inesquecível. Caminham comigo, diariamente, embora nem sempre com a mesma densidade, os tesouros que fui armazenando.
Sim, porque feridas, embora fiquem as cicatrizes, não as guardo na sala dos tesouros. Estão noutro lugar: no meu dicionário pessoal. Dicionário importantíssimo! Indispensável!
Convém retornar a “embora nem sempre na mesma densidade”, pois ambas sabemos que as memórias oscilam consoante o momento e o nosso estado de espírito.
Guardo com muita ternura os programas da rádio — tardes que entravam pela noite dentro. Foram momentos de interação muito ricos. Mas, para além da rádio, existiram as nossas mensagens. A tua disposição para ler os meus contos. A única leitora que tive durante muito tempo. Depois ganhei uma outra: Irene Coimbra.
Ainda assim, apenas com duas leitoras continuo a escrever. A escrita faz parte das minhas células. Se passar mais do que um dia sem o fazer, deixo de viver. Não sofro por não ter leitores. Nem todos usufruem do privilégio de ter leitoras tão atentas.
Para mim, eras suficiente. Transmitias-me coragem para continuar.
Os teus extensos e pormenorizados comentários — que ainda hoje guardo, e que serão integrados no livro — esses, sim, são tesouros valiosos.
Não, Carmen, ainda não os publiquei.
Perguntaste-me várias vezes:
— Para quando?
No próximo ano. Com toda a certeza — ou, melhor, com a certeza que nos é permitida como seres humanos.
Voltando à nossa mesa de café, ainda mãos nas mãos: senti daqui, bem longe, a tua dor quando perdeste a tua mãe; o modo carinhoso como cuidaste do teu pai — o que me inspirou a escrever alguns contos.
É impossível, apenas em algumas linhas, descrever todos os sentimentos. Sei que somos diferentes, mas a amizade e o amor são um universo onde as diferenças existem para enriquecer as relações.
Quero dizer-te que te admiro, que és uma mulher inteligente, com quem sempre gostei de “conversar”.
Quem sabe — talvez um dia tenha o prazer de te abraçar e tornar real este café imaginário.
Ada Abaé