A digestão anaeróbia é um processo biológico complexo no qual microrganismos degradam compostos orgânicos na ausência de oxigênio, convertendo-os em gases, compostos orgânicos mais simples e energia. Embora classicamente associada à produção de metano (biometano) e dióxido de carbono, esse processo abrange uma série de rotas fermentativas paralelas e complementares, que resultam em diferentes perfis de produtos metabólicos, como o hidrogênio molecular, ácidos orgânicos, solventes e álcoois. As vias mais importantes incluem a fermentação escura, a solventogênese e a fermentação ABE, todas com elevado potencial biotecnológico.
A fermentação escura (dark fermentation) é uma rota metabólica em que microrganismos anaeróbios convertem açúcares e outros substratos orgânicos em hidrogênio molecular (H₂), dióxido de carbono (CO₂) e ácidos orgânicos, principalmente ácido acético, ácido butírico e ácido lático. Essa rota ocorre tipicamente nas primeiras fases da digestão anaeróbia (acidogênese e acetogênese) e é chamada "escura" porque não depende de luz, diferentemente da fotossíntese ou da fotofermentação.
A fermentação escura é uma estratégia promissora para produção biológica de hidrogênio, considerado um combustível limpo de alto poder energético. Ao mesmo tempo, permite acúmulo de intermediários metabólicos que podem ser aproveitados em biorrefinarias integradas.
A solventogênese é uma fase metabólica facultativa que pode ocorrer após a acidogênese, especialmente quando o pH e as condições ambientais são favoráveis. Nesse processo, determinados microrganismos convertem ácidos graxos voláteis produzidos anteriormente (como ácido acético e ácido butírico) em solventes como etanol, butanol, acetona e isopropanol. Clostridium spp. são os gêneros bacterianos mais frequentemente envolvidos nesse processo, que pode ocorrer em reatores com controle de pH ou sob pressão parcial de gás adequada.
A solventogênese permite produzir biocompostos com alto valor agregado, que podem ser usados como solventes industriais ou biocombustíveis, além de contribuir para o equilíbrio redox no metabolismo microbiano.
A fermentação ABE é um caso particular da solventogênese, também conduzida principalmente por bactérias do gênero Clostridium, como Clostridium acetobutylicum. Nesta fermentação mista, a bactéria passa por duas fases:
Acidogênese: produção de ácidos (acético, butírico).
Solventogênese: redirecionamento metabólico, geralmente induzido por queda de pH, resultando na conversão desses ácidos em solventes — principalmente acetona, butanol e etanol — em uma proporção típica de 3:6:1.
O butanol tem vantagens significativas como biocombustível em relação ao etanol, como maior densidade energética, menor volatilidade e compatibilidade com motores convencionais. A fermentação ABE, originalmente estudada para a produção de solventes durante a Primeira Guerra Mundial, voltou a atrair interesse no contexto da biotecnologia moderna e da produção sustentável.
A digestão anaeróbia apresenta um amplo espectro de aplicações:
Geração de energia renovável: o biogás (principalmente metano e CO₂) pode ser usado para cogeração de eletricidade e calor, ou purificado para se tornar biometano, substituindo o gás natural fóssil
Tratamento de resíduos orgânicos: reduz a carga poluente de efluentes industriais e sanitários, estabilizando a matéria orgânica
Produção de biofertilizantes: o digestato, subproduto sólido ou líquido do processo, é rico em nutrientes e pode ser aplicado no solo
Descentralização energética: permite a geração local de energia em propriedades rurais, agroindústrias e estações de tratamento
Redução de emissões: mitiga a liberação de metano em aterros e sistemas de manejo inadequado de resíduos
O processo é composto por quatro etapas interdependentes, conduzidas por diferentes grupos funcionais de microrganismos:
Hidrólise: macromoléculas como carboidratos, proteínas e lipídios são quebradas em compostos menores (açúcares, aminoácidos, ácidos graxos)
Acidogênese: os monômeros produzidos são fermentados em ácidos orgânicos voláteis, hidrogênio, dióxido de carbono e álcool
Acetogênese: os produtos da acidogênese são convertidos em ácido acético, hidrogênio e dióxido de carbono
Metanogênese: metanogênicos (arqueias) convertem os produtos finais em metano (CH₄) e dióxido de carbono (CO₂), formando o biogás
Cada etapa possui sensibilidade distinta a parâmetros operacionais como pH, temperatura e carga orgânica, sendo fundamental compreender essas interações para o bom desempenho dos reatores
Na linha de pesquisa da biotecnologia da digestão anaeróbia, temos alguns temas importantes que são emergentes e podem representar uma revolução disruptiva na produção de biogás.
Eletroestimulação de biorreatores: uso de campos elétricos ou eletrodos para modular vias metabólicas e estimular produção seletiva de metano ou hidrogênio.
Engenharia de consórcios microbianos: manipulação ou seleção de comunidades microbianas para melhorar estabilidade e rendimento do processo.
Co-digestão otimizada e pré-tratamentos inovadores: estudo de misturas sinérgicas de substratos e técnicas físico-químicas que aumentam a biodegradabilidade da matéria-prima.
Modelagem matemática e machine learning: integração de sensores, predição e controle inteligente de desempenho com base em algoritmos de aprendizagem.
Integração em biorrefinarias: uso combinado com outras rotas biotecnológicas (como fermentação escura ou produção de ácidos graxos voláteis).