A guerra dos livros didáticos

A Editora Abril se valeu do período mais pesado do macartismo para impor seus interesses na área de livros didáticos.

Há tempos, a empresa adquirira as editoras Ática e Scipione - fornecedores de livros para o MEC. Depois, metera-se no campo dos cursos apostilados, valendo-se da Veja para investir contra concorrentes (confira o capítulo O caso Coc).

Até a gestão Tarso Genro, o MEC definia uma relação de livros didáticos aprovados por bancas independentes. Foi um modelo desenvolvido ainda na gestão Paulo Renato de Souza no MEC.

Desde governo FHC, sistema de escolha dos livros didáticos é impessoal. O sistema de seleção criado virou padrão para muitos países.

O papel do MEC é definir um conjunto de universidades que sejam centros de excelência.

Depois, cada qual indica professores para analisar as obras. O MEC avalia apenas se há conflito de interesses, se o professor eventualmente tem ligação com alguma editora.

Em seguida, todos são chamados a Brasília e lhes são entregues os livros sem identificação de editora ou autor.

As obras recomendadas entram em uma lista do MEC e são apresentadas às escolas, para escolha dos professores.

No início, a Abril recorria a uma esquipe de vendedores para ir de escola a escola vender seus livros. Criava-se um diferencial em relação aos concorrentes menores. Na gestão Tarso Genro, o MEC decidiu publicar a relação de livros aprovados e enviar para cada escola escolher, sem a pressão dos vendedores.

Na época, Roberto Civita fez chegar aos ouvidos de Genro que Veja poderia atacá-lo, se prosseguisse nessa linha. A resposta dura de Genro segurou as retaliações da parte da Abril.

O passo seguinte foi levantar motivos ideológicos para desalojar concorrentes.

Até então "A Nova História Crítica", do professor Mário Schmitt era um campeão de vendas, responsável por 30% das vendas de livros de história do MEC. com mais de 10 milhões de unidades vendidas. Seu livro entrara na lista do MEC em 2002 e acabara de sair, bloqueado por uma avaliação de um professor do Rio Grande do Norte. Mesmo assim, continuava com enorme prestígio junto às escolas privadas.

Em 2007 surgiu uma ONG disposta a denunciar livros marxistas recomendados pelo MEC. O livro entrou na sua mira.

Depois, entra em cena Ali Kamel, diretor de conteúdo da Globo.

O caso Ali Kamel

A edição de 22 de agosto da revista Veja saudou, em um texto laudatório de duas páginas assinado pelo diretor Mário Sabino, o último livro de Ali Kamel, "Sobre o Islã".

Dizia o texto:

"Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, tornou-se um especialista em dinamitação de lugares-comuns e idéias fora do lugar. Para tanto, conta com rigor e aplicação vários metros acima dos níveis habituais dos ensaístas destas plagas. Ele também exibe bastante destemor em seus bons combates. No asilo de conceitos que é o Brasil, há que ter couraça das mais duras (e estômago dos mais fortes), para agüentar os golpes desferidos pelos velhos patrulheiros da imprensa e da universidade – golpes sempre vindos da esquerda e, portanto, abaixo da linha da cintura".

Um mês depois, Kamel iniciou sua catilinária.

No artigo "O que ensinam às nossas crianças", publicado em O Globo de 18 de setembro, Kamel iniciava explicando como havia chegado ao livro "A Nova História Crítica": recebera de presente de um psicanalista, Francisco Daudt. A menção a quem o presenteou soou meio fora de foco.

Sobre o ideal marxista

O trecho citado por Kamel

“Terras, minas e empresas pertencem à coletividade. As decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando o (sic) bem-estar social. Os produtores são os próprios consumidores, por isso tudo é feito com honestidade para agradar à (sic) toda a população. Não há mais ricos, e as diferenças sociais são pequenas. Amplas liberdades democráticas para os trabalhadores.”

O texto suprimido de seu artigo:

“Entretanto, os planos econômicos não eram democráticos. O povo não participava, apenas cumpria ordens do governo, (…) Muitas vezes, em vez de eficácia econômica havia mesmo era uma administração confusa e lenta”.

Sobre Mao Tse Tung

O trecho citado por Kamel

“Foi um grande estadista e comandante militar. Escreveu livros sobre política, filosofia e economia. Praticou esportes até a velhice. Amou inúmeras mulheres e por elas foi correspondido. Para muitos chineses, Mao é ainda um grande herói. Mas para os chineses anticomunistas, não passou de um ditador.”

O trecho suprimido

O Grande Salto para a Frente tinha fracassado. O resultado foi uma terrível epidemia de fome que dizimou milhares de pessoas. (...) Mao (...) agiu de forma parecida com Stálin, perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda para criar a imagem oficial de que era infalível.” (p. 191) “Ouvir uma fita com rock ocidental podia levar alguém a freqüentar um campo de reeducação política. (...) Nas universidades, as vagas eram reservadas para os que demonstravam maior desempenho nas lutas políticas. (...) Antigos dirigentes eram arrancados do poder e humilhados por multidões de adolescentes que consideravam o fato de a pessoa ter 60 ou 70 anos ser suficiente para ela não ter nada a acrescentar ao país...”

A reação foi instantânea. Graças à enorme visibilidade proporcionada por Veja a Kamel, a coluna mereceu republicação no Estadão, longa matéria de denúncia na revista Época, repercussão por outros jornais.

Seguiu-se um patrulhamento insano da revista sobre uma escola privada que troxou o material de um de seus aliados por cursos da Carta Capital Escola.