CONDIÇÃO HUMANA
TEORIA E PRÁTICA DE BOLSO
TEORIA E PRÁTICA DE BOLSO
O Homem é um ser que se repete.
E na inutilidade dessa repetição ilustrada no mito de Sísifo de Camus, e recuperada, como um acto de vontade, no eterno retorno de Nietzsche, reside o movimento que Pascal faz coincidir com o paradigma da natureza humana. Entre presenças e esquecimentos, entre suportes de onde emergem e, aparentemente se afundam, as figuras do nosso imaginário, e superfícies amnésicas por onde deslizam, sem se fixarem, réplicas do mundo, constróiem-se nebulosas de sentidos que voltam a ter o Homem como centro, mas um Homem fragmentado, estilhaçado nas suas representações, nas suas dúvidas, nos mitos que inventa para justificar as lógicas onde se cumpre a sua condição humana. Às marcas que, no chão, determinam o lugar onde as representações se tornam verosímeis, juntam-se os trilhos que se cantam no deserto, para que a terra não se perca dos homens – maquettes que se acumulam, mapas do mundo que a errância determina, retratos que se acordam sem interlocutores geridos como uma colecção que se revela também nos caprichos da montagem.
A presente proposta prática, consiste em combinar e re-combinar uma colecção de trabalhos. A partir de um espaço pictórico definido, gradualmente com o tempo, surgirá uma sala impregnada de imagens. Inserido na instalação o espectador será confrontado com um mapa-mundo da "condição humana". Uma selecção de artistas contemporâneos contribuem na construção do work in progress.
COMO O TEMPO PASSA ...
O projecto começou como trabalho final necessário à conclusão do mestrado na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e assim se mantém. Mas a actividade desenvolvida por Rodrigo Vilhena, entre Janeiro e Junho deste ano, não poderá nunca ser entendida se for reduzida à oportunidade do autor em conceber, realizar e apresentar em suporte fixo, seja em tradicional impressão tipográfica seja na virtualidade de qualquer solução digital, uma tese de mestrado.
O artista tem prática de itinerâncias e efemeridades. Formado pela ESAD (escola de artes das Caldas da Rainha de onde têm saído alguns valores recentes), devem-se-lhe a concepção, em 2000, da Galeria virtual "D. Ivone", com várias apresentações colectivas entre as Caldas e Lisboa.
"Condição Humana", título indirectamente buscado em Camus, apresenta-se como verdadeiro "work in progress" colectivo que, controlado embora pela vontade permanente do seu organizador, coloca sucessivas questões de autoria e identidade.
Num espaço fabril em abandono, o artista colocou sem selecção prévia a totalidade das suas obras de tempos criativos que vão de 1986 a 2001 - numa solução que designa claramente como uma prática de "assemblage" - e convidou um conjunto de mais de 20 pessoas para ali apresentarem as suas peças. Nem todos são artistas (por exemplo Adília Lopes ou Cristiana Veiga Simão) e alguns surgem como representantes de colectivos (Cerveira Pinto, pela galeria Quadrum, que orienta), sendo exemplos dessa abertura para espaços fronteiros da criação individual e artística.
Um verdadeiro entendimento do projecto teria exigido uma visita semanal ao espaço e o acompanhamento das alterações permanentes a que esteve sujeito: colocação de obras nas paredes ou intervenção directa de cada convidado nos espaços (em "graffiti", pinturas murais ou instalações), deslocação regular de obras de uns lugares para outros, retirada progressiva das obras iniciais do promotor desta cadeia de eventos e registo progressivo dessas faltas através do desenho dos contornos das obras em falta. O espaço encontra-se agora muito esvaziado e este fim-de-semana restarão as intervenções dos convidados. O que se mantém são os jogos visuais que dois grandes espelhos frontais conferem ao espaço, a presença documental de um grande mostruário de armações de óculos e a omnipresença da espécie de mapeação de lugares de ausência que Vilhena foi realizando no chão e paredes e que são a marca da sua autoria.
Já não chove pelas telhas partidas e as festas que regularmente se foram realizando, sempre com uma componente alimentar (bifanas, grelhada mista e uma próxima sardinhada a 21 de Junho), têm agora condições excepcionais de realização.
Entre estes "happenings" alimentares, a comunicação de Cristina Veiga Simão, que fez deste "work in progress" tema do seu próprio trabalho como professora universitária ("Enciclopédia e Hipertexto"), a intervenção de Manuel João Vieira, que deslocou todo o seu "atelier" lisboeta (incluindo uma cama) para o centro do armazém, a apresentação, em cópia não numerada, do vídeo "The Passing" de Bill Viola, ou o vídeo porno do colectivo da Quadrum, se definem os parâmetros mais radicais de uma intervenção. Trabalho também sobre o tempo que passa, o modo como passa e se regista essa passagem e cuja avaliação individual havia que ser feita em função dos públicos mobilizados (a falta de apoios extraordinários - vide subsídios - limitou este alcance), dos reflexos e progressos das discussões entre os participantes e das modificações provocadas pela experiência na própria vida (no trabalho?) dos participantes.
João Pinharanda
PÚBLICO
Mil Folhas, Artes Plásticas
Sábado, 15 de Junho de 2002