Ao abordar este tema, alguns conceitos chaves se fazem imprescindíveis. O tratamento de espaços relacionados a acontecimentos traumáticos, como os que se deram durante a ditadura na UnB, requer a compreensão de concepções já estabelecidas: lugar de memória, território de memória, patrimônio difíceis e abordagem de ruínas.
Ao apresentar o conceito de lugares de memória, Pierre Nora (1993) trata do surgimento desse tipo de espaço em razão do desaparecimento dos “meios de memória”. O autor discorre que a ruptura com o modo tradicional de se perpetuar as lembranças de uma sociedade, nos tempos contemporâneos, gerou a necessidade de ancorá-las em espaços físicos, a fim de manter o elo entre passado e presente — elo este que caracteriza a própria memória.
Nora (1993) qualifica a memória como em elemento vivo, mutável e em constante transformação, intrinsecamente vinculado a um grupo social ativo. Em contraste com a história, que trata do passado com distanciamento, uma “operação intelectual” do que já foi. Desse modo, os lugares de memória são definidos como espaços que ainda conservam os vestígios de uma memória, antes que esta se converta em história, e surgem da necessidade de se resgatar a memória através de meios físicos, dos quais depende para persistir.
Segundo o autor, os lugares de memória reúnem, simultaneamente, três dimensões — material, simbólica e funcional:
“É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e de sua transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vividos por um pequeno número uma maioria que deles não participou.” (NORA, 1993)
Ludmila da Silva Catela (2001), inspirada na noção de lugares de memória, define os territórios de memória, os quais, diferentemente da ideia de lugar, não se caracterizam por uma ideia estática, unitária e substantiva. Os territórios de memória são compreendidos como a relação estabelecida entre os espaços vinculados a eventos de relevância histórica e as práticas dos agentes de rememoração desses eventos. Seu conceito, em contraste com o de Nora (1993), atribui uma dimensão espacial de vínculo, que ultrapassa a materialidade dos espaços, englobando as hierarquias e interações estabelecidas entre eles, o que pode ser representado por um mapa, e o processo de sua consolidação enquanto áreas de importância.
Além disso, Catela (2001), em seu texto “No Hablará Flores en la Tumba del Pasado”, discute a produção das memórias de um grupo em contexto de repressão intensa. Destaca-se o processo de formulação das memórias acerca de eventos traumáticos, entendido como uma disputa simbólica de poder entre a história oficial e a história daqueles que sofreram a repressão. O próprio ato de rememorar pode ser compreendido como um gesto de enfrentamento àqueles que impuseram a versão oficial, sendo a memória coletiva o resultado desse esforço. Nesse sentido, o reconhecimento dos espaços de memória relacionados à ditadura na Universidade de Brasília pode ser interpretado, sobretudo, como uma continuidade dos processos de resistência e valorização da democracia.
Ainda sobre a abordagem espacial das memórias, em especial no contexto da ditadura militar, os conceitos de patrimônio difícil e patrimônio sensível tornam-se fundamentais. Cristina Meneguello (2020), baseada no conceito de “difficult heritages” de William Logan e Keir Reeves (2009), explica o patrimônio difícil como um lugar associado a experiências traumáticas, cuja função é a de promover a “rememoração coletiva e de reconhecimento de direitos e reparação”. (MENEGUELLO, 2020)
Esse tipo de patrimônio é legitimado pelo Estado como forma de reconhecimento das violações ocorridas e validação do sofrimento das vítimas, convertendo vivências pessoais em memórias coletivas. Meneguello (2020) menciona, inclusive, os casos de patrimônios da ditadura, os quais atribuem outras dimensões ao patrimônio difícil — a da memória ativa e política.
Com a transição para o regime democrático, surgiu-se uma necessidade de preservação dos espaços significativos durante o regime autoritário, de modo a se preservar a história neles contida. Deborah Neves, em “Patrimônio da ditadura” (2020), discute essa ampliação do conceito de patrimônio cultural, ao se reconhecer o valor histórico de determinado local, dissociado da existência de seu valor arquitetônico ou não.
Para Aleida Assman, as ruínas são “sustento e garantia da memória” (ASSMAN, 2011), desde que seu contexto seja preservado, do contrário, convertem-se em monumentos do esquecimento: “Porém, na medida em que as ruínas, sem contexto nem saber, imbricam-se em um mundo que se tornou estranho, tornam-se monumentos do esquecimento.” (ASSMAN, 2011)
Atualmente, as ruínas da ESG estão caracterizadas como monumentos do esquecimento, desprovidas de um contexto de sua história. A intervenção nesse local visa exatamente devolver o enquadramento histórico e sua importância para a história da ditadura em Brasília e na UnB.
Brandi também discorre acerca do tratamento de ruínas em “Teoria da Restauração” . Para ele, ao caracterizar-se uma obra como ruína, determina-se automaticamente a necessidade de ações de preservação, já que deve ser resguardada para o futuro, como “vestígio ou testemunho da obra humana” (BRANDI, 2019). Além disso, fala da importância em se preservar o entorno que envolve a obra:
“Nesse caso deveria conservar-se não apenas a ruína do monumento, mas o âmbito que ela a ela conexo e que era, pela ruína, qualificado.” (BRANDI, 2019)