O trabalho irá tratar dos lugares importantes para a memória da ditadura militar no campus da UnB, por meio de intervenções físicas e da criação de um roteiro arquitetônico pelo campus Darcy Ribeiro, que culminará no parque criado na região das Ruínas da ESG e em um museu dedicado no mesmo local.
A Universidade de Brasília surgiu, assim como a nova capital, como um sonho de inovar. Suas origens se deram no ímpeto de criar uma nova instituição de ensino superior adequada à realidade brasileira em um contexto propício à renovação do ensino universitário que a construção da nova capital federal possibilitava.
Darcy Ribeiro e seus companheiros projetaram uma nova universidade para Brasília, com o objetivo de revolucionar o quadro universitário do país, em que as universidades encontravam-se envelhecidas e em crise (ALENCAR, 1969). As inovações incluíam o sistema de créditos, possibilitando a flexibilidade dos currículos, o sistema departamental, a interação entre cursos e um vestibular único para o ingresso.
Para além do caráter revolucionário, a UnB tinha objetivos práticos devido à sua localização particular: o assessoramento aos poderes públicos e à formação de profissionais com nível superior para abastecer o novo mercado que seria formado.
Para cumprir seus objetivos, a universidade foi baseada em ideais básicos, como a autonomia da fundação, a representação estudantil e a preocupação com o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Ideais estes garantidos pelos princípios que guiavam a nova universidade, como consta no Art. 4º de seu Estatuto de 1962:
“Para alcançar seus fins e objetivos, a Universidade se regerá pelos princípios de liberdade de investigação, de liberdade de ensino e de liberdade de expressão, (...) e estará aberta, com o objetivo de estudo, a todas as correntes de pensamento, (...)”
Contudo, três anos após a fundação da UnB, o Brasil sofreu o Golpe Militar, em 1º de abril de 1964. Este evento, o qual instaurou a ditadura militar no Brasil, representou uma cisão na sociedade brasileira: uma ruptura da democracia, da liberdade de expressão, do direito de ir e vir, de direitos humanos básicos e de muitos outros direitos dos quais os brasileiros foram cerceados pelo governo autoritário.
Não coincidentemente, no dia 9 do mesmo mês, poucos dias após o golpe, a UnB sofreu sua primeira ocupação pelas forças armadas, que chegou armada e acompanhada de ambulâncias, com uma lista de prisão de 12 professores, além de outras pessoas que foram também presas na ocasião.
Esta invasão simbolizou o início de uma repressão aos ideais da universidade, vista como elemento subversivo e perigoso ao governo ditatorial e que deveria ser extinto ou, no mínimo, controlado por rédeas curtas — perseguição esta materializada pela espionagem, prisão e expulsão de estudantes, professores e técnicos, intervenções e total perda da autonomia, que fundamentou sua fundação (Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, 2016).
Apesar das intervenções e repressões, a universidade continuou a crescer: a maioria de seus prédios estava em construção ou a ser construída. A história da UnB está intimamente ligada à ditadura, já que ela foi construída nos âmbitos do governo ditatorial. Exemplo disso é o ICC, um de seus edifícios mais icônicos e base para o sistema departamental de ensino, que começou a ser construído em 1963, apenas um ano antes da primeira invasão, e, em 1969, apenas 15% da obra estava completa (SCHLEE; et al., 2013).
Com o avanço da construção e consolidação da Universidade de Brasília, configurou-se um cenário múltiplo: enquanto militares nomeavam reitores interventores, organizavam uma rede de espionagem e repressão dentro do próprio campus, realizavam invasões, prisões e agressões de alunos e professores; estudantes e docentes mobilizavam-se politicamente, realizavam greves, ocupavam territórios e se revoltavam contra repressões; e a UnB e seu campus cresciam, marcados por esses acontecimentos que cunharam sua história. História esta marcada por ações e acontecimentos de ambos lados, tanto de repressão quanto de resistência.
Neste mesmo contexto de controle e presença militar no campus, surge a proposta de mudança da Escola Superior de Guerra, do Rio de Janeiro para Brasília. A Escola Superior de Guerra foi inaugurada em 1949, em um contexto de polarização política intensa pós-guerra e da possibilidade de outro conflito. Seu curso, aberto para militares e civis, tinha o intuito de discutir temas relacionados à segurança nacional e ao desenvolvimento da nação, envolvendo questões militares, econômicas, políticas e diplomáticas.
Dessa forma, a instituição consolidou-se como um instituto de altos estudos e, também, como um centro de pesquisas, envolvendo militares e assuntos nacionais e internacionais diversos (SALOMÃO, 2019). A ESG teve entre seus alunos — chamados estagiários — pessoas marcantes da ditadura militar como Humberto Castelo Branco, Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Este último possuía certa proximidade com o arquiteto Sérgio Bernardes, escolhido para fazer o projeto, na ocasião da transferência da Escola para Brasília.
Sérgio Bernardes encontrou no governo militar a possibilidade de materializar seus ideais de inovação tecnológica e transformação por meio do espaço. Em uma época de evasão de grandes arquitetos, com o aumento da repressão, e de realização de grandes obras, financiadas pelo chamado “milagre econômico”, Bernardes aproveitou a oportunidade para realizar seus projetos grandiosos, os quais dependiam da escala monumental do poder público para serem realizados (SILVA, 2016).
Após a inauguração do Monumento ao Pavilhão Nacional, na Praça dos Três Poderes, concebido por ele, foi chamado por Golbery para projetar a nova sede da Escola Superior de Guerra em Brasília.
Sérgio Bernardes produziu duas propostas para a nova ESG: a proposta escolhida foi a segunda, já que o primeiro plano do arquiteto fora descartado por ser muito custoso e com área menor do que a necessária. O projeto consistia em um grande volume com base triangular equilátera, com três pavimentos e um subsolo, que aparentemente estaria projetado sobre o Lago Paranoá, por meio de uma modificação das margens do lago.
Sua construção foi iniciada em 1973, com previsão de conclusão em 1976. Contudo, durante o ano da edificação de suas fundações e lajes iniciais, ocorreu o fim do “milagre econômico”, com a crise do petróleo e a redução do orçamento governamental. Por não ser considerada uma prioridade, a obra da ESG foi suspensa em 1975, e, posteriormente, cancelada definitivamente pelo decreto de Ernesto Geisel, em janeiro de 1976, em razão da suposta falta de estrutura para receber os “estagiários” e da escassez de verbas.
Apesar de não ter sido finalizado, a ideia de transferir a ESG do Rio de Janeiro para a nova capital visava trazer a escola para a centralidade do poder público e associá-la ao ambiente acadêmico.
“O projeto mais arrojado, que obteve simpatia inicial de Golbery, era aquele de uma Escola Superior de Guerra junto à Universidade de Brasília” (CAVALCANTI, 2004, p. 59, apud FELICETTI, 2016, p. 7)
Além disso, a proximidade ao campus permitiria a presença militar permanente em local adjacente à universidade, sendo uma forma de afirmação de controle, poder e vigilância sobre o ambiente universitário.
O período ditatorial imprimiu fortes marcas na memória de todas as pessoas que vivenciaram o campus naquela época, configuradas como memórias traumáticas para todos os envolvidos, mas que, em sua maioria, não estão representadas fisicamente no campus atual.
Houve esforços de manifestação dessas memórias, que valem ser ressaltadas: a placa colocada, em 2018, em memória aos alunos que ficaram presos na quadra de esportes ao lado da mesma; a releitura da obra “Trouxas ensanguentadas” que foi exposta no Ceubinho e em outro locais da UnB, também em 2018; a denominação oficial da Praça Edson Luiz, em homenagem ao estudante assassinado no Rio de Janeiro; a exposição “Conexões 1968-2018” da aluna Gabriela Zchrotke; entre outras.
Apesar de serem relevantes, há a necessidade de configurar os espaços relacionados aos acontecimentos da ditadura como verdadeiros lugares de memória, evidenciando o valor histórico de cada local de forma mais definitiva.
Nesse sentido, as Ruínas da ESG e a área em que estão inseridas podem abrigar a preservação dessas memórias, com a criação de um museu. Além de subversão de seu propósito, ao converter um espaço que seria usado para maior presença militar perto do campus, um local de repressão, em um local destinado aos alunos e membros da sociedade, um parque.
Atualmente, as fundações da construção inacabada da Escola Superior de Guerra encontram-se em estado de ruínas, abandonadas às intempéries, sem tratamento para sua preservação. Trata-se, portanto, de um espaço com potencial para uso cultural, memorial e de lazer, ainda não plenamente aproveitado.
Diante disso, este trabalho visa à materialização das memórias de espaços relevantes para a Universidade de Brasília durante o período ditatorial, por meio da demarcação desses espaços de forma concreta e da criação de um parque com museu memorial no território hoje ocupado pelas ruínas da ESG.