Cada vez mais temos noção que o estudo da história e ação assistencial da Ordem da Santíssima Trindade é transversal a vários países europeus. Esta ordem religiosa foi criada no século XII por S. João da Mata e S. Félix de Valois, em França, com o objetivo de resgatar cativos cristãos e prestar-lhes apoio religioso e assistencial enquanto prisioneiros em terras muçulmanas. Desde cedo a simbologia desta ordem religiosa – um anjo com os braços cruzados de cujas mãos partem duas correntes para dois cativos que o ladeiam, de um lado para o cativo cristão e do outro um cativo muçulmano – apontam para a troca de cativos, numa preocupação, sobretudo, assistencial, de troca de prisioneiros. Com a conquista das praças norte africanas e depois, ao longo de toda a idade moderna (o último resgate de cativos portugueses de Argel ocorre já no início do século XIX), a apreensão de indivíduos de ambos os lados do Mediterrâneo foi pratica comum entre reinos cristãos e muçulmanos, visando a sua troca ou lucro consequente ao pagamento de resgates. Argel tornou-se a partir do século XVI, fruto de uma política sistemática de corso junto das costas europeias e ilhas atlânticas, o principal centro de cativos, onde indivíduos provenientes dos variados reinos europeus aguardavam pelos seus resgates e retorno à terra natal. Países como a Espanha, a França, a Itália, o Reino Unido, a Polónia, a República Checa, a Áustria, a Hungria, entre outros, onde a Ordem da Santíssima Trindade esteve, e nalguns casos ainda está presente, atuaram de modo similar no resgate de cativos. Constituem factos transversais de estudo na história destas nações os modos de organização e adaptação religiosa da ordem, a relações estabelecidas com as diferentes coroas, os ritos religiosos, a organização dos resgates de cativos, as procissões com os libertados na sua chegada aos países de origem. Temáticas comuns que estão na base desta proposta de criação de rede de investigação.
Para além do resgate dos indivíduos por pagamento ou por troca com os cativos muçulmanos apreendidos pelos europeus, nos conflitos bélicos e nas armadas de guarda das costas continentais e insulares, os religiosos da Ordem da Santíssima Trindade, como anteriormente referido, dedicavam-se ao apoio assistencial aos cativos enquanto prisioneiros em terras do Norte de África. Impedidos de missionar, desenvolveram a missão assistencial, tanto religiosa como na doença, como o atesta, por exemplo, o hospital trinitário de Argel na posse dos religiosos espanhóis e fruto de sucessivas doações por parte dos monarcas portugueses. Esta vertente assistencial a par dos contactos estabelecidos entre os trinitários e os governantes dos Norte de África – os sultões de Marrocos ou os deis de Argel –, e com os proprietários dos cativos, proporcionou uma relação de proximidade atestada pelas fontes documentais que nos chegaram. O conhecimento do Outro e modos de viver e sobreviver num mundo diferente estão bem documentados nos relatos dos resgates organizados pelos padres trinitários.
A simultaneidade no mesmo território de populações de origem diversa, fruto destas migrações forçadas a par dos que se deslocavam livremente, obrigaram os governantes dos reinos e cidades que as receberam a determinar qual o grau de integração e inclusão no tecido social e produtivo dos recém-chegados e a definir as políticas a adotar. As relações entre os soberanos da Europa e do Norte de África, mais pacíficas ou mais conflituosas, moldaram um conjunto de práticas e normas diplomáticas comuns. Os tratados de paz e comércio estipulados testemunham a longa história das trocas económicas partilhadas e das negociações comerciais, políticas e militares entre as duas costas marítimas. Intercâmbios que, progressivamente, foram tecendo uma rede de contactos, mediadores e referenciais para créditos, trocas e circulação de informação. A coexistência de membros de diferentes confissões religiosas e nacionalidades colocaram em causa os modelos jurídicos, os padrões culturais e sociais de cada grupo, que, obrigados a partilhar o mesmo espaço urbano, tiveram de, quer quisessem quer não, chegar a acordos de modo a assegurar a convivência.
A economia de resgate, um tema fundamental da fronteira mediterrânica e atlântica, num mundo em mudança e em movimento, inseguro e perigoso, no qual, o cativo aguarda pelo regresso à terra de origem do outro lado daquela fronteira ou, para sobreviver ou por opção, escolhe alterar de lado político ou religioso (os renegados). O estudo de casos concretos de missões de resgate (religiosas e não) e a análise das redes de crédito e dos agentes envolvidos no comércio de cativos, permitem-nos ultrapassar os conceitos de infiel e inimigo, e revelar a natureza transversal dos interesses em jogo nas negociações de resgate. O verdadeiro conflito não era entre cristãos, muçulmanos e judeus, mas sim entre cativos e comerciantes de cativos de qualquer origem, num conflito de interesses, totalmente transversal às fronteiras políticas e confessionais.
PALAVRAS-CHAVE:
Mediterrânio Ocidental; Migrações; Construções identitárias; Alteridade; Interculturalidade.