5 minutos de Filosofia

Colaboração semanal com Rádio Asas do Atlântico

Os áudios destes textos podem ser acedidos aqui.

2024_06_21_De pés assentes na terra [O que nos diz Aristóteles?]

Aristóteles foi um discípulo de Platão, tendo sido, aliás, um forte candidato para liderar a Academia platónica, contudo, outro tomou esse lugar e acabou por abrir a sua escola, o Liceu. Estes dois filósofos têm vincadas diferenças, contudo, quando nos detemos um pouco mais, percebemos que existem várias pontes. Aquela que é a grande inovação de Aristóteles é a sistematização do saber. Pela primeira vez nos aparecem áreas de estudo, disciplinas, como as concebemos. Aliás, as obras que nos chegam estão intituladas conforma as disciplinas e assuntos. Julgo que será desta forma que me organizarei nesta exposição, mas, antes disso, permitam-me dizer que mais recentemente se tem revisto Aristóteles, apresentando-o primeiramente como biólogo, uma vez que muito do seu trabalho foi, justamente, de investigação, até no terreno, sobre a vida.

Vamos, então à divisão das ciências segundo o pensador: temos as teoréticas, as práticas e as produtivas. As teóricas, correspondem à metafísica, física e matemática. Nestas ciências, o conhecimento é o fim em si mesmo. O nosso autor começa uma das suas grandes obras, Metafísica, a afirmar que «todos os homens desejam por natureza conhecer», a curiosidade está imbuída em nós.

A metafísica é o estudo da essência da realidade, uma ontologia, um estudo do ser. Para Aristóteles tudo o que existe, as substâncias, são constituídas de matéria e forma. A matéria é uma espécie de plasticina que se torna o que é, uma pessoa, uma mesa, uma rocha,…, conforme a forma que lhe é dada. Cada pessoa tem a sua forma à qual se chama alma. Cada substância tem as suas causas, finais e eficientes, ou seja, cada coisa, incluindo os seres humanos, tem um fim, origina-se para esse fim, contanto na sua existência, nas suas ações, com várias causas, as tais eficientes, que funcionam como meios. Estamos a ver como esta visão aristotélica criou todo um vocabulário, uma grelha de interpretação da realidade.

A física no âmbito da Filosofia Antiga deve ser interpretada como um estudo da natureza como um todo e não necessariamente como uma disciplina que estuda a matéria e as suas interações numa base sobretudo matemática, como o fazemos atualmente. Muito do estudo de Aristóteles neste âmbito prende-se com o movimento, a mudança, como se alteram as coisas. A própria noção de tempo só existe, porque existe movimento. Eu sei que existe tempo, porque agora estou aqui, quando também sei que já estive noutro sítio. Algo que me impactou muito foi a questão do espaço. A pensar nesta noção, aquilo que me vem imediatamente à cabeça é a distância, a área, o volume, numa acessão absoluta. Ou seja, temos um referencial onde podemos descrever qualquer espaço. Em Aristóteles temos a noção de lugar, que acaba por ser o volume que um objeto ocupa. Ou seja, o lugar só existe se existirem corpos, como circunscrição deles, sendo o vazio o limite desses. Esta abordagem parece-me ter um cunho muito mais relativista, denunciando uma física, agora na nossa conceção, que seria formalizada de forma muito diferente da que fazemos atualmente. Ainda neste âmbito de estudo cabem as suas investigações biológicas, mas também meteorológicas, entre outras.

A matemática surge como uma área entre a metafísica e a física, sendo um estudo aplicado à realidade, muitas vezes pela trigonometria, mas que se faz pelo uso da razão.

Ao falarmos das ciências práticas, falamos daquelas que aplicam o conhecimento.

A ética estuda a forma como devemos orientar as nossas ações. Aristóteles defende que o fim do Homem é a felicidade e que a forma de a atingir é sendo uma pessoa virtuosa, além de contemplativa, ou seja, ser um sábio. Neste prisma, ele afirma que as virtudes a seguir devem ser pautadas pela moderação, já que qualquer uma em excesso pode constituir um vício. O justo meio carateriza a ética aristotélica na busca da felicidade, eudaimonia.

Outra ciência prática é a política, o estudo da boa organização da sociedade. É de Aristóteles a famosa afirmação «o homem é um animal político». Isto significa que a nossa felicidade depende de estar em contacto com o outro. Neste sentido, precisamos de uma forma de nos organizarmos e entendermos. Ele não propõe um estado ideal, como Platão, antes reconhece virtudes e defeitos nos vários regimes e deixa-nos alguns critérios. Talvez o mais ilustrativo seja o de privilegiar a classe média. Aristóteles tenta trazer o justo meio para a política, através desta figura da classe média, de pessoas com alguma riqueza que impedem o império da ganância dos mais ricos e a raiva dos mais pobres, garantindo alguma estabilidade.

Para concluir, temos as ciências produtivas que se baseiam nas técnicas, nos algoritmos e desembocam nalgo material. O artesanato, arquitetura, engenharia, olaria,… Aqui também podem ser incluídas a poética e retórica, áreas ligadas à literatura e ao bom falar.

De notar que Aristóteles também tinha um corpo de obras que não eram tanto vistas como áreas de estudo, mas ferramentas a aplicar às várias áreas, trata-se do organon, onde se inclui, por exemplo, a Lógica.

Como podemos ver, Aristóteles distancia-se de Platão por ter uma visão que assenta na experiência sensível e nos objetos particulares, afastando-se do mundo inteligível platónico. Aristóteles parece tentar manter ao máximo os pés assentes na terra.


2024_06_14_Tudo para fora da caverna! [O que nos diz Platão?]

Hoje falemos de Platão, o discípulo mais ilustre de Sócrates. Nasceu numa família rica de Atenas, supostamente com o nome Arístocles (Platão seria apelido para grande testa ou costas largas). Fundou a Academia, a instituição do tipo que, provavelmente, mais tempo durou (e onde Aristóteles também estudou). A sua grande preocupação foi com a Verdade, sobre a qual abordaremos aqui algumas vezes.

Antes de mais, permitam-me partilhar um excerto d’A República que me serve de mote: «Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos». Julgo que se pode generalizar esta visão afirmando: se achamos que temos um bom caminho a seguir, que o façamos. Esta proatividade aliada ao conhecimento julgo ser aquilo que mais me afeta em Platão.

A obra platónica divide-se em três momentos distintos, de acordo com o amadurecimento das suas ideias ao longo da vida. Os textos que nos chegaram são diálogos, quase como que histórias, onde as personagens debatem assuntos filosóficos, fá-lo para contrariar o caráter imóvel da palavra escrita. Esta é outra grande afetação: a Filosofia como construção viva. Já vimos como Sócrates o fazia, é isso que aqui se substancializa. É interessante notar que a esmagadora maioria das suas obras são protagonizadas por Sócrates, sendo que isso não garante que as ideias expostas tenham sido por ele defendidas. Não obstante, esta personagem é apresentada como o paradigma do homem sábio, do homem justo e bom.

Olhemos para a mundivisão de Platão. A realidade está dividida na sensível e na inteligível, ou seja, naquela em que habitamos e contactamos e naquela que nos é invisível pela experiência quotidiana. Esta parte sensível é o mundo da doxa, da opinião, da aparência. Pensemos nas ilusões de ótica e facilmente percebemos como nos podemos enganar. É no inteligível que está a possibilidade de contactar com a Verdade. Num primeiro patamar, a utilização da razão de modo a fazer ciência, no segundo, aí sim, a inteligência onde temos o famoso mundo das ideias, eternizado na alegoria da caverna.

Na alegoria da caverna temos a imagem de um conjunto de prisioneiros, acorrentados, obrigados a olhar para a parede de uma caverna, oposta à sua abertura. Para essas pessoas, as sombras que aparecem na parede são a realidade. Afinal, essas pessoas nunca tiveram oportunidade de perceber que estavam aprisionados, nunca conheceram condição diferente. O mundo fora da caverna é, então a metáfora para o mundo inteligível que só pela contemplação pode ser atingido. Nesse mundo estão as ideias, sendo a maior delas, o Bem, tal como a Beleza e a Justiça. Mas também é nesse mundo que está, por exemplo, o azul, ou o gato, são entidades universais de onde participam os particulares que contactamos diariamente. Isto parece-nos tudo muito místico, mas se pensarmos um pouco começamos a duvidar desta nossa aversão inicial: afinal, o que são as ideias que temos na cabeça? afinal, o que são os números?

A alegoria da caverna, contudo, não finda aqui, mal seria, nem constitui uma história assim. Platão conta-nos, portanto, que um dos indivíduos se liberta e se deslumbra com esse novo mundo, apesar do sofrimento de lidar com a luz pela primeira vez. Há a revelação, após o movimento de conversão. É isto que o ensino deve fazer, orientar as faculdades da alma, segundo Platão, para atingirem este mundo. No entanto, quem vê a verdade torna-se excêntrico para os outros. Esse indivíduo retorna à caverna para partilhar a boa nova e ninguém acredita nele, ninguém o quer seguir e até se tornam hostis.

Estas noções atravessam muitos assuntos neste pensador. Por exemplo, na política, critica a democracia, justamente pela irracionalidade das massas. Defende uma espécie de aristocracia, onde existe uma classe de governantes que é educada com esse propósito, como se fossem filósofos-reis. A cidade, a pólis, regida pela Verdade. A leitura do pensamento político de Platão deve servir para refletirmos sobre aquilo que temos a melhorar num sistema democrático.

Na arte também temos uma implicação direta: as obras não são mais do que uma cópia da cópia. Ou seja, as coisas que existem no mundo são uma cópia das ideias, pelo que a arte que se propõe a representar o que existe no mundo sensível é a dupla-cópia da ideia. Como entre cópias se perde a qualidade, a arte não fica muito bem-vista pelo autor. Não obstante, podemos perguntarmo-nos o que pensaria Platão da arte abstrata.

Esta é uma introdução muito breve ao pensamento platónico que ressoa até aos nossos dias, nas mais diversas áreas.

2024_06_07_Só sei que nada sei [O que nos diz Sócrates?]

Sócrates assinala um ponto de viragem na Filosofia Ocidental. Já anteriormente vimos que nele temos um antes e um pós. Antes, vejamos rapidamente um excerto de Bertrand Russell sobre o enquadramento biográfico deste pensador:

«Para o historiador, Sócrates é tema difícil. Há muitos homens de quem sabemos pouco; outros de quem sabemos muito. De Sócrates ignoramos se sabemos pouco ou muito. Era sem dúvida cidadão ateniense de recursos modestos, que passou a vida a discutir e a ensinar filosofia à mocidade sem receber dinheiro, como os sofistas. Foi julgado, condenado e executado em 399 a. C., com cerca de setenta anos. Era decerto bem conhecido em Atenas, pois que Aristófanes o caricaturou na comédia As Nuvens. O resto é controvertido.» [1]

O próprio Russel menciona o trabalho de um investigador português, Magalhães-Vilhena, que trabalhou esta tema. O que acontece é que Sócrates não deixou obra escrita, pensa-se que por julgar que «a escrita torna a mente preguiçosa». Tudo o que se sabe é por outras fontes. A maior é Platão, seu célebre discípulo. Este filósofo faz menção a Sócrates, instrumentalizando-o. Quero com  isto dizer, as obras de Platão são sob a forma de diálogos e em vários deles a personagem principal é Sócrates – resta saber o que deste é invenção platónica e o que é histórico.

Passemos à Filosofia propriamente dita. O que Sócrates adorava era ir para a Ágora, o local em que se discutiam os assuntos públicos, e argumentar com os sofistas. Xantipa, uma das suas esposas, supostamente iria frequentemente buscá-lo, já que se perdia no tempo, pelo que esse nome ficou associado a uma esposa que repreende o marido – imagina-se como uma sociedade patriarcal adora este tipo de anedotas. Sócrates considerava que estes retóricos, os sofistas, se consideravam sábios equivocadamente, que, na verdade, nada sabiam. Do embate do filósofo com os sofistas surge, então, o método socrático. Este é um método dialético, funciona como um diálogo entre duas pessoas.

O método socrático é composto por dois momentos: a ironia e a maiêutica.

A ironia segue o mote do famoso: só sei que nada sei. É um momento destrutivo, no qual Sócrates vai fazendo várias perguntas ao interlocutor, de forma a levá-lo a contradizer-se ou a diretamente reconhecer a sua ignorância. Nas palavras de Abbagnano sobre este assunto: «A primeira condição deste exame é o reconhecimento da própria ignorância. […] andou a interrogar os que pareciam sábios e deu-se conta de que a sabedoria deles era nula. Compreendeu então o significado do oráculo: nenhum dos homens sabe verdadeiramente nada, mas é sábio apenas quem sabe que não sabe, não quem se ilude com saber e ignora assim até a sua própria ignorância. E na realidade só quem sabe que não sabe procura saber, enquanto os que crêm estar na posse dum saber fictício não são capazes da investigação, não se preocupam consigo mesmos e permanecem irremediavelmente afastados da verdade e da virtude. Este princípio socrático representa a antítese nítida da sofística. Contra os sofistas que faziam profissão de sabedoria e pretendiam ensiná-la aos outros, Sócrates fez profissão de ignorância. O saber dos sofistas é um não-saber, um saber fictício privado de ver- dade que dá apenas presunção e jactância e impede de assumir a atitude submissa da investigação, a única digna dos homens.» [2]

Depois da ironia vem a maiêutica com o mote: conhece-te a ti mesmo. Este é o momento da edificação do saber, que se norteia pela busca da verdade presente em nós. De volta às palavras de Abbagnano: «Sócrates não se propõe portanto comunicar uma doutrina ou complexo de doutrinas. Ele não ensina nada: comunica apenas o estímulo e o interesse pela pesquisa. Em tal sentido compara, […], a sua arte à da mãe, a parteira Fenarete. A sua arte consiste essencialmente em averiguar por todos os meios se o seu interlocutor tem de parir algo fantástico e falso ou genuíno e verdadeiro. Ele declara-se estéril de sabedoria. […] E ele não tem nenhuma descoberta a ensinar aos outros e não pode fazer outra coisa senão ajudá-los no seu parto intelectual. […] Esta arte maiêutica não é na realidade senão a arte da pesquisa em comum. O homem não pode por si só ver claro em si próprio. A pesquisa que o concerne não pode começar e acabar no recinto fechado da sua individualidade: pelo contrário só pode ser o fruto de um dialogar continuo com os outros, como consigo mesmo. […] E é aqui, portanto, que o interesse de Sócrates, enquanto entende promover em cada homem a investigação de si, se dirige naturalmente ao problema da virtude e da justiça.» [2]

Este método socrático tem muitas ressonâncias na pedagogia. Esta dialética, o uso da racionalidade, o foco na condição humana, marca uma viragem na filosofia, levando ao surgimento de diversas escolas.

Talvez tão importante como este método, tenha sido a sua morte. Foi condenado à morte com acusações de heresia e corrupção da juventude, estaria a incutir-lhes ideias perigosas. A morte de Sócrates já na sua altura foi considerada injusta. Ainda assim, o pensador submeteu-se às leis da cidade, sem ter tentado fugir. Está criada a figura do mártir, a perseguição da Filosofia enquanto formadora de espíritos livres.

[1] Russell, B.; História da Filosofia Ocidental, Círculo de Leitores, 1977 [1945].

[2] Abbagnano, N.; História da Filosofia, V. 1, Editorial Presença, 1976.

2024_05_31_Os pais do átomo e aquelas da retórica [Quais as visões dos atomistas e dos sofistas?]

Na semana passada falámos sobre os pré-socráticos, sobre como fundaram a Filosofia por tentarem superar o mito como explicação da natureza, causas naturais para efeitos naturais, sem a presença mitológica dos deuses.  Hoje olhemos para dois movimentos contemporâneos de Sócrates: os atomistas e os sofistas.

Há quase dois mil e quinhentos anos, onde deixámos a nossa exposição, apareceu uma escola que deixou uma marca até nós: os atomistas. Tornaram-se influentes não tanto por terem vários discípulos, mas por terem sido atacados por muitos pensadores. Leucipo e Demócrito são os dois pensadores mais relevantes desta linha que partia de um princípio bem definido: a natureza é divisível de forma finita. Quando ampliamos a matéria esbarramos com um limite, que é o limite do indivisível. É justamente desta noção que surge a palavra átomo. O facto de termos átomos e vazio, permita que haja movimento, já que existe um espaço onde eles se podem deslocar, é assim que se explica a existência de movimento. Esta teoria tem, aliás, um outro elemento revolucionário: a existência do vazio. Até então, havia muito relutância em afirmar que algo cuja definição é ausência de ser, possa ser, existir.

Ora, então o Universo que temos à nossa frente é constituído por matéria, tudo o que ele contém, pelo que estamos diante uma perspetiva eminentemente materialista. São as leis físicas e o acaso que o regem. O movimento que existe é originado por colisões entre átomos, sendo que aquilo que se pretende é haver uma boa disposição dos átomos, de forma a termos a organização do kosmos. Aquilo que mais me fascina neste visão não é tanto como nesta altura se falava numa realidade científica que só milhares de anos depois foi falada novamente e é hoje aceite como facto, o que me fascina é como de uma análise Física os atomistas retiraram uma Ética, um modo de agir. Tal como o kosmos é a boa disposição dos átomos, também nós queremos esta boa disposição em nós, uma vida tranquila. Defende-se a moderação e a passividade como forma de não agitar os átomos. É dado o conselho de não embarcar naquilo que supera os nossos limites.

Passando para outro grupo: os sofistas são vistos como um conjunto de filósofos independentes que vendiam o seu conhecimento aos jovens de famílias com posses – ou seja, é um grupo não por alinhamento propriamente ideológico, mas de profissão. Tendo em conta o contexto da democracia ateniense, os sofistas deram particular destaque ao ensino da retórica, como forma de treinar esses jovens para persuadir terem sucesso na Ágora. Para a História ficaram as caricaturas que Sócrates e Platão cunharam dos sofistas. Eram estrangeiros, mercenários do saber. O seu objetivo era meramente mercantil, não se interessavam pela verdade, apesar de se autointitularem sábios. Cada um deles podia ter a sua verdade, sendo possível até a mudarem com o tempo, como era particularmente conveniente sempre que novos ventos políticos sopravam. Não deixa de ser irónico como alguns pensadores olham para Sócrates e Platão como sofistas eles próprios, sendo que este último, por vezes, é acusado de ter plagiado ideias desses ditos mercenários.

Na verdade, quando se deitam novos olhares sobre quem foram estes sofistas, é possível distinguir traços que os marcavam individualmente, constituindo um esquema para ver a realidade. Não obstante, nota-se aqui, desde logo uma mudança no objeto de estudo: a natureza perde força e começa-se a falar do Homem.

Protágoras é normalmente visto como o primeiro Sofista, é dele a famosa afirmação «O Homem é a medida de todas as coisas, das que são que são, das que não são que não são». Colocando o Homem no centro e trazendo à tona o ceticismo, aquilo que Protágoras defendia não era a morte da verdade ela própria, mas a impossibilidade de verdades absolutas.

Górgias ficou conhecido como inventor da dialética, sendo que até se passou a utilizar o verbo «Gorgianizar». Trata-se de encontrar aporias para justificar proposições difíceis. Ao fim e ao cabo, é um exercício de erística vazia – dizer tudo, sem dizer nada. Escreveu alguns discursos, considerando que eles são os mestres das aparências, criam a realidade humana e fazem sobressair o que lhes interessam. De notar que este uso da persuasão, segundo Górgias, por si só, não é bom ou mau. Para aumentar o caráter persuasivo convém ter em atenção a musicalidade e o tempo oportuno, existe uma espécie atomização do tempo que o torna heterogéneo. É também interessante notar que Górgias considera que a linguagem é desadequada para se aplicar às coisas, não obstante, considera-a um bom veículo para passar emoções.

Este foi uma percurso muito rápido, mas espero que tenha servido para atiçar alguma curiosidade e levantar questões.

2024_05_24_As origens da nossa Filosofia [O que diziam os pré-socráticos?]

Quando comecei a estudar Filosofia, apaixonei-me por um livro: Os filósofos pré-socráticos [1]. Talvez tenha sido por ser um dos primeiros livros que estudei, mas mesmo nos seus aspetos formais o considero um excelente livro (talvez também aí um primeiro contacto com a literatura académia). De qualquer das formas, esse livro, como indica o nome, pretende desenvolver o pensamento de alguns pensadores antes de Sócrates.

Bem, se há um pré e um pós-Sócrates, já podemos deduzir que neste filósofo algo de importante há de acontecer, mas isso fica para outra altura. Hoje quero trazer aqueles que são vistos como os pais da Filosofia Ocidental, tendo-se desenvolvido na zona da atual Grécia e arredores. Estes autores são identificados por um nome próprio e a sua localidade.

Esta viagem começa com Tales de Mileto, uma, então, cidade na Turquia, há dois mil e quinhentos anos. É por muitos considerado como o primeiro filósofo – apesar de não ter chegado até nós nenhuma obra sua ou mesmo fragmentos, o que se conhece é de outros afirmarem sobre ele. O que fez ele de tão especial? Olhou para a natureza, a physis, em grego, de onde vem Física, e tentou interpretá-la sem o mito, sem matérias de fé, antes explicar a natureza com a natureza, tentando perceber as suas leis. A sua questão mais premente era de onde tudo provinha, qual a archê, elemento primordial em grego? Tales vai afirma que é a água primordial esse elemento, aliás, onde flutuaria a Terra e pela qual as coisas se iam diferenciando. Esta cosmovisão talvez nos pareça bastante fantasiosa, ou talvez não, mas a verdade é que é uma teoria que poderíamos considerar científica.

É de um suposto seu discípulo, Anaximandro de Mileto, que temos o primeiro fragmento: «segundo a necessidade; pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do Tempo». Estas palavras, um tanto quanto líricas, simplesmente querem-nos dar a ideia de que o que existe se vai destruindo e gerando ao longo do tempo. No caso deste pensador, o elemento primordial é o apeiron. Ou seja, Anaximandro criou um termo para designar uma entidade abstrata (que se traduz como «indiferenciado», uma matéria de onde os particulares surgem).

De Xenófanes de Cólofon temos a primeira formulação cética, que aqui cito: «Ninguém conhece, ou jamais conhecerá, a verdade sobre os deuses e sobre tudo aquilo de que falo: pois, ainda que, por acaso, alguém dissesse toda a verdade, mesmo assim não se daria conta disso; mas a aparência está forjada sobre todas as coisas», «Se deus não tivesse criado o louro mel, os homens achariam os figos bem mais doces».  Ele coloca a imagem dos Deuses como semelhantes aos seres humanos, antropomorfizados, algo que não tem cabimento, uma vez que «os Etíopes dizem que os seus deuses são de nariz achatado e negros, os Trácios, que os seus têm os olhos claros e o cabelo ruivo», ou seja, que cada os faz à sua imagem, sem qualquer outra razão.

Pitágoras de Samos, famoso pelo Teorema de Pitágoras, teve a proeza de conseguir fundar uma escola que perdurou por um par de séculos. Para ele o elemento primordial era o número. A sua escola teve grande importância na matemática, sendo de natureza ritualística, quase como uma seita. Com o passar do tempo ia sendo dado a conhecer aos seus membros novas informações. Existe a lenda que que os pitagóricos matavam quem tentasse publicar o seu maior segredo: a existência dos números irracionais. Além da matemática, o dualismo, corpo e alma, também está presente, com uma tentativa de descrever um ciclo das almas – em que a nossa alma ia transmigrando noutros seres. Esta última tese com um cunho muito oriental, não? Uma caraterística comum a estes pensadores é a viagem, reúnem e trazem saberes de muitos espaços. A título de curiosidade, são algumas a referências ao possível plágio de Pitágoras nas suas descobertas matemáticas, que teriam vindo do Egipto.

Entramos numa importante trilogia: Heráclito de Éfeso, Parménides de Eleia e Empédocles de Agrigento. Com Heráclito temos o nascimento do logos a inteligência universal, pode ser vista como um deus, em última instância, mas é o reconhecimento de uma ordem na natureza. É conhecido como o filósofo chorão, por considerar que tudo está em constante mudança, que não é possível «banhar-se duas vezes na mesma água do rio». Já Parménides preocupa-se em afastar a doxa, a opinião, e encontrar o caminho da verdade, afirmando a imutabilidade do ser. De notar que muitos destes pensadores se expressavam por versos e não ensaios. Por fim, temos Empédocles como sintetizador, acaba por compatibilizar estas visões e desenvolver todo um sistema muito bem estruturado.

Ficam de fora muitos pensadores e muitas notas poderiam ser dadas. Analisar mais profundamente estes pensadores, mesmo que os seus sistemas nos pareçam fantasiosos, é defrontarmo-nos com perguntas que foram transversais a toda a História e colocar em perspetiva aquelas que são as nossas intuições, por estarmos a 2500 anos de dustância.

[1] Kirk, G. S., Raven, J.E., Schofield, M., Os filósofos pré-socráticos. F.C. Gulbenkian, 2013.

Ver também Santos, J. T., A filosofia antes de Sócrates, Gradiva, 1992.

2024_05_17_O nosso desafio [O que é ser contemporâneo?]

Por vezes, desiludo-me com a Filosofia. Ou melhor, desiludo-me com como se faz Filosofia. A ler ou ouvir as investigações que se fazem, por vezes, sinto dois movimentos: a exposição de algo que já foi dito por outra formulação ou, quando há a promessa de um novo horizonte, a ausência de concretização. Talvez pior, sou confrontado com a trágica realidade de cada indivíduo ter vários limites face à possibilidade de conhecer. Nós não podemos saber tudo, nunca trabalhamos tendo informação perfeita e não temos todos os mesmos factos na nossa cabeça. Há sempre uma fragilidade associada à investigação. Talvez, por outro lado, seja eu sem poder reflexivo, como se só tivesse um olho, sem noção de profundidade, a projetar uma dificuldade pessoal.

O grande tema aqui parece-me perceber um pouco melhor como se move este objeto da Filosofia e, assim sendo, perceber o que é o contemporâneo. Contudo, antes de a ele chegarmos temos a outra questão que levantei sobre a investigação. Uma pergunta-resposta pode ser: uma equipa de investigação pode saber algo que os seus investigadores individualmente não sabem? A concatenação de pensares, a cooperação, é a resposta prática que nos coloca no terreno a ensinar e aprender. Esta questão é uma de Filosofia da Ciência, de modo algum quero dizer que é factualmente respondida afirmativamente, é, no entanto, um caminho possível. Talvez o ouvinte consiga pensar noutro que coloque no centro o indivíduo.

De volta à questão que já avancei como sendo da contemporaneidade. Esta superficialidade, quase trivialidade, a existir, talvez possa ser a busca de lugares-comuns, a busca da concordia. Infelizmente, lugares-comuns pouco contribuem para o avanço, porque neutralizam a discussão. Mas julgo que esta intuição que descrevi ao início se prende com o facto de estarmos perante uma mesma realidade, é ela em que vivemos e descrevemos, tentamos compreender. Ora, nós somos seres humanos e já o somos há muito tempo. As nossas necessidades não mudaram, quanto muito têm novos meios de serem saciadas. Como tal, a cada tempo as perguntas são colocadas em paralelo ao anterior. Quando olhamos para grandes autores na História, percebemos que dizem vários o mesmo, com vocabulário diferente. Que se note que não digo que há só uma linha de interpretação, antes que as várias linhas de interpretação existem transversalmente à História. O desafio de um grande pensador é perceber a partir do seu tempo, da sua contemporaneidade, esse caule que liga o seu tempo aos outros. Isto faz-me pensar, no limite, numa História que é estática (no contexto do grande debate sobre a sua circularidade ou linearidade). Pensar as alterações climáticas, as migrações, a inteligência artificial, as identidades,… é pensar a atualidade; perceber como se colocam na nossa Hsitória é ser contemporâneo.

Utilizando uma referência, no ensaio «O que é o contemporâneo» [1], ao Agamben colocar no contemporâneo a competência de, no escuro, encontrar as luzes, coloca o desafio de nos definirmos como definimos outros tempos – como é o exemplo da questão, o que é o Homem hoje? Esta reflexão tem paralelo numa planta, cuja «origem» do pensador é o caule e o seu meristema apical é onde «pulsa com mais força» o presente. Esta tarefa torna-se mais complexa pelo contínuo crescimento, pela constante mudança na escuridão que é apresentada na «moda».

Permitam-me uma pequena interrupção para afirmar que neste ponto o pessimismo não tem lugar: por um lago, é nosso desafio o de tentar sempre e fazer melhor e preencher, principalmente, aquilo que damos por preencher; bem como é nosso dever agir pelo nosso tempo. Evitar o silêncio complacente (o que não significa preenchê-lo com sons vazios). Julgo que sobre esta dimensão crítica já muito falei.

Não são raras as vezes em que olhamos para o passado para pensarmos o presente. As diferentes contemporaneidades das várias gerações de pensadores reportam-nos para uma grande riqueza de sistemas e noções. Com a devida honestidade intelectual devemos tirar o máximo partido desse tesouro. Talvez um dos desafios mais estimulantes e profícuos seja a leitura entrelinhas desse pensamento, perceber as suas implicações colaterais, porque nelas podemos ter respostas para a nossa atualidade. Os pensadores do passado não as exploraram, ou porque não consideravam ser necessário, ou não tinham consciência dessas implicações, justamente, porque não relevava para a sua atualidade.

Nas próximas semanas julgo que trarei algumas janelas para autores antigos, no sentido Clássico, cuja forma de ver o mundo possa ser pertinente para interpretarmos este nosso, que também era o deles.

[1] https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4332647/mod_resource/content/3/contempagamben.pdf

2024_05_10_Deixa de ser chato! [Como pode advir o pensamento crítico?]

Na semana passada, trouxe-vos um excerto de Feyerabend para mostrar como a Filosofia pode ser feita num registo mais a heterodoxo, sem um sistema rígido. Aliás, mencionei-o como uma questão existencial que tenho sentido. Fi-lo numa abordagem sobre o método científico e a nossa forma de o ver, ou seja, numa perspetiva intelectual – ao fim e ao cabo, a oposição realisto/antirrealismo. Permitam-me desta vez uma abordagem comportamental, quero com isto dizer a minha identificação com as palavras de Feyerabend como forma de significar uma atitude que tenho - isto é um claro caso de Filosofia clínica, em que se usa o conhecimento filosófico para ajuda na resolução das questões pessoais. Relembremos, muito rapidamente, o excerto:

“Noutro sentido, também eu tenho uma filosofia, uma visão do mundo, mas não a sei expor de modo linear, revela-se por si própria, quando enfrento qualquer coisa com que entro em conflito; está sujeita a mudanças e é mais uma disposição do que uma teoria, a não ser que por «teoria» se entenda uma história cujo conteúdo nunca é idêntico.” [1]

Enquanto jovem e enquanto estudante tenho várias hesitações em afirmar as ideias, afinal há sempre muito caminho para percorrer a partir qual seja o raciocínio que se tome. Tal como no «Banqueiro anarquista» de Fernando Pessoa, as bifurcações sucedem-se umas às outras. Julgo até, se me permitirem a especulação, que o período de maior criatividade, aquele onde está restringido pela menor formatação, deve ser empreendido na exploração dessas várias bifurcações, independentemente de se estar em acordo com elas, ou seja, criar uma multiplicidade de hipóteses de trabalho, mundos outros, para depois serem rigorosamente estudados. Desta forma, a minha intuição é a de valorizar a coleção de uma ampla multiplicidade de ideias, para alargar ao máximo o debate possível e, como tal, diversificar as soluções às decisões a tomar. Feyereband afirma algo parecido quando associa ao cientista a necessidade de liberdade, ou seja, a ausência de um método predefinido. Mas vai além disto.

É importante contextualizar o excerto localizando-o num diálogo, num debate de ideias entre um alfa e um beta. O que este estilo permite é a reflexão pelo confronto. «A Filosofia revela-se por si própria». E é isto que sinto quotidianamente na pele: uma intuição involuntária em negar aquilo que me é dito, não para o recusar, mas para o testar e perceber se a sua oposição constitui também um cenário plausível. Mais, numa conversa o abandono da coerência, dando lugar ao refutador que opõe cenários àquilo que é dito, fazendo com que, a querermos retirar um sistema desse refutador, obtenhamos algo circunstancial, uma teoria que não existiria caso não tivesse acontecido aquela conversa e que até pode não corresponder às intuições desse refutador. Quem não acha piada a isto, são os meus amigos. Pode ser que seja só uma fase.

A grande lição e relevância do contraste é a geração da dúvida, e, por consequência, a reflexão. Isto leva-nos, até numa dimensão um pouco mais avançada, ao papel do choque, no qual a arte é mestre. O momento em que o nosso pensamento cessa de admiração, positiva, negativa, o que for, e é obrigado a dar sentido, a encontrar uma forma de voltar a ter estabilidade, de ter conforto. Pensar custa por isto mesmo: por nos desenquadrar, nos confrontar com outros mundos, com aquilo que para nós é o desconhecido.

Nietzsche tem uma expressão muito bonita que é «filosofar a golpes de martelo». Este filósofo do século XIX é sumamente conhecido, mas muitas vezes mal interpretado. Muitas vezes é associado ao pessimismo, quando o seu pensamento contém um otimismo. Em vários dos seus livros fez uso de aforismos, ou seja, pequenos textos, para passar aquelas que são as suas ideias. Desta forma, cria uma ritmicidade quebrada, onde a cada novo aforismo surge uma ideia. O seu propósito de vida foi desconstruir as ideias já preconcebidas que existiam na sociedade, ideias dadas por adquiridas, valores. Assim sendo, cada nova ideia é mais uma martelada no sistema que damos como natural.

Em «Assim Falava Zaratustra» [2], no capítulo «Do País da Educação», apresenta-nos a imagem de uns quantos homens com «cinquenta borrões pintados na cara e nos membros». Esta é a ilustração, numa descrição altamente irónica, daqueles que se julgam como sábios, mas que não entendem que vêm tudo turvo por já terem em si uma enormidade de ideias pré-concebidas, uma mundivisão.

Espero que, chegados a este ponto, se tenha percebido a importância e o papel daquilo que dá por nome de espírito ou pensamento crítico, algo, por vezes, muito falado, embora pouco concretizado.

[1] Feyerabend, P.; Diálogo sobre o método; Editorial Presença; 1991.

[2] Nietzsche, F.; Assim Falava Zaratustra; Relógio D’Água Editores; 1998.

2024_05_03_Um sem rumo orientado [Como nos situamos?]

“Noutro sentido, também eu tenho uma filosofia, uma visão do mundo, mas não a sei expor de modo linear, revela-se por si própria, quando enfrento qualquer coisa com que entro em conflito; está sujeita a mudanças e é mais uma disposição do que uma teoria, a não ser que por «teoria» se entenda uma história cujo conteúdo nunca é idêntico.” [1]

São estas as palavras de Paul Feyerabend, um importante pensador da Filosofia da Ciência, que viveu entre 1924 e 1994. Sabem aquela sensação de não conseguir colocar perfeitamente em palavras algo que pensamos, talvez uma intuição? Feyerabend expõe claramente aqui um modo de ver as coisas, uma mundivisão, que me é bastante próxima.

Vamos por partes, sendo que, por vezes, um discurso autobiográfico confessional possa ser pertinente.

Carl Sagan, com quem eu comecei este programa num longo excerto, foi uma importante presença na minha socialização secundária. N’ O Mundo Infestado de Demónios, o seu melhor livro dialogante com as humanidades, o método científico é utilizado como o instrumento cético para perspetivar o mundo. O ceticismo é entendido como uma forma de proteção contra o erro e a manipulação. Trata-se, portanto de um modo de vida. Podemos entender o ceticismo como colocar em questão toda e qualquer afirmação, não aceitando de imediato. O método científico entra em cena para julgar essa afirmação. Esta perspetiva leva-nos a uma forte componente pedagógica, pelo que Carl Sagan envereda por uma defesa de um sistema de ensino com esta visão. Julgo que este modo de ver o mundo parece-me bastante sedutor, sendo um apelo ao bom senso, foi ele que levou ao percurso acadêmico que tive e tenho.

Não obstante, existem muitas questões que minam esta visão, afinal Carl Sagan não era um filósofo e julgo que não tinha pretensão a sê-lo, elaborando um sistema filosófico. O que é conhecer? Como se pode conhecer? É possível conhecer? Sob outro prisma: Qual é o método científico? Foi ao estudar uma ciência natural que me dei conta que estas questões faziam todo o sentido: Não tive respostas. Percebemos como funciona o mundo através de um sistema de axiomas e leis, já muito dentro de uma artificialidade que a Ciência construiu. Como podemos ter a certeza deste conhecimento?

Há já alguns meses que aquela que me tem sido a pergunta mais importante tem sido: Existe o método para adquirir conhecimento? Será que Carl Sagan me enganou com o seu método científico? Aqui entrou Feyerabend com a sua visão de que a Ciência se faz numa pluralidade metodológica. A liberdade é a maior aliada de um cientista (Anything goes). Este “vale tudo” não é a ausência de regras mas a construção de um método próprio a cada caso. Quando olhámos para um problema, qualquer que ele seja, nós teremos uma abordagem singular, quer seja pelas circunstâncias em que nos encontramos, pela forma como esse problema pode já ter sido abordado, pela forma como o objeto se apresenta, … Claro que esta visão tem um problema: a ansiedade que acarreta. Afinal, como podemos saber que estamos diante de algo que se aproxima a verdade? Também nestes meses me deparei com um texto do professor Paulo Tunhas que afirma que:

“Num sistema filosófico, todas as partes se encontram em correspondência interna, numa ordem arquitectónica. Dito de outra maneira, a relação entre o todo e as partes é fundamental. A divisão dos sistemas em domínios e regiões de modo algum os transforma em puros agregados. Tal divisão é orgânica. […] A exigência de coerência desdobra-se neles numa exigência de completude. O preenchimento do espaço do pensável deve neles ser total e não comportar lacuna alguma.” [2]

Estas palavras igualmente me representam, o que gera um problema: Como se pode compatibilizar a visão de filosofia como um sistema filosófico (uma interpretação coerente e radical da totalidade da realidade) com a ausência de um método. Julgo que a nossa única saída simples é o relativismo. É o abandono da Verdade.

O excerto de Feyerabend com que iniciei é a resposta que me aprece intuitiva. Uma resposta insatisfatória. É o reconhecimento da tensão entre racionalismo e antirracionalismo que nos habita. Uma tensão que não se evidencia só na forma de fazer ciência (adotantes de uma visão circunscrita da ciência), mas também na política: a tolerância para com os intolerantes – é um problema exemplo, outro poderá ser o das nossas relações pessoais. No fundo, aquilo que parece estar em evidência é uma antiga disputa por nós fabricada que opõe a razão aos sentimentos.

 No meio destas indagações, talvez, a maior consequência prática seja o nosso cuidado para com as circunstâncias, do mais restrito ao mais amplo que esta noção comporta. Uma perspetiva das nossas problemáticas que seja numa terceira pessoa e humana. Sem receio de ser posteriormente alterada, naquele que é o movimento da nossa vida.

[1] Feyerabend, P.; Diálogo sobre o método; Editorial Presença; 1991.

[2] Tunhas, P.; Filosofia; U.Porto Press; 2023.

2024_04_26_Olha-me o descaramento! [O que são falácias informais?]

Na semana passada tentei mostrar como a simples introdução à Lógica, enunciar o ponto de partida que é a validade, constitui uma valiosa aprendizagem para avaliar argumentos. Recordo sucintamente: assumimos a premissas como verdadeiras e percebemos se a conclusão pode ser falsa – se puder ser, falhou. Imagine-se, então, o que o estudo na Lógica não nos ajudaria ainda mais! Abordar por esta via os elementos formais, as linguagens e o seu funcionamento seria complicado, talvez no futuro tente. Hoje sigo na Lógica, mas pela sua via informal e com o mesmo objetivo em vista: identificar charlatões.

A Lógica informal tem o discurso por objeto: inscreve-se na Lógica por procurar regras para a validade do que é expresso e é informal por não recorrer necessariamente à formalização, à tradução da linguagem natural em linguagens lógicas. Muitas vezes sucede que aquilo que proferimos não consegue ser, ou muito dificilmente, é expresso pelas línguas formais que temos. Não obstante, aquilo que se analisa continua a ser a forma, o objetivo não é dizer se algo é verdadeiro ou falso, mas se faz sentido, tal como na lógica formal. Para quem estiver interessado em perceber melhor esta área, pode pesquisar «Lógica informal» no site «Crítica na rede» que chega a um artigo de Leo Groarke [1].

Em Lógica, os erros de pensamento são chamados de falácias. Não importa o que seja dito, se for dito daquela forma, é inválido. As falácias formais, da Lógica formal, consistem nas formalizações inválidos – o que exigiria conhecimentos de linguagens formais para melhor explorar. Aqui, pretendo elencar várias falácias informais. Elas são métodos usados, consciente ou inconscientemente, no discurso, disfarçadas como argumentos, mas que, se virmos bem, não nos dizem nada ou nos levam ao erro. É, portanto, imperativo um espírito crítico conhecê-las. Estão muitas vezes presentes no espaço público, como no âmbito político ou publicitário, e querem condicionar-nos a pensar de um determinado modo, para isso servindo-se, várias vezes, das nossas emoções. Julgo que na enumeração que se segue é fácil constatar como existe um esbatimento da racionalidade a favor da exaltação da emoção – os demagogos disto são mestres. Vamos às falácias:

Falso dilema: ela ocorre quando nos dizem «isto ou aquilo», ou seja, que só existem duas hipóteses possíveis, quando na esmagadora maioria dos casos existem outras possibilidades.

Apelo à ignorância: quando se justifica algo, no facto do seu contrário não estar justificado. É como dizer «Se não me demonstras que estou errado, é porque estou certo».

Bola de neve: a partir de uma afirmação apresentam-se sucessivas consequências vistas como negativas. Trata-se de exagerar, ou até inventar, implicações da afirmação para a refutar. «Se defenderes isto, daqui a pouco vais defender aqueloutro e depois o mundo acaba».

Pergunta complexa: é quando se misturam perguntas numa mesma, ou seja, tenta-se ligar duas questões não estão propriamente relacionadas. Quando perguntamos, por exemplo, «Quando Deus criou o Universo?», estamos já a afirmar que o Universo tem um início, que Deus existe, que Deus criou o Universo.

Apelo à força: são apresentadas consequências negativas se não se aceitar a afirmação. Ao fim e ao cabo, são ameaças.

Apelo às consequências: em vez de fazermos ameaças, podemos mostrar implicações desagradáveis, no sentido de nos serem intelectualmente desagradáveis.

Apelo ao povo: como um número razoável de pessoas concordo com algo, também o devemos fazer.

Ataque pessoal: o famoso ad hominem, no qual se critica a pessoa, a sua circunstância ou ação e não as suas ideias.

Autoridade anónima: faz-se o apelo a um perito ou fonte, mas sem dizer quem ou quê.

Estilo sem substância: por exemplo, quando alguém se deixa convencer pela autoconfiança que o outro manifesta.

Falsa analogia: quando se tenta comparar duas coisas que têm diferenças relevantes.

Omissão de dados: ocorre quando não se tem em conta informação relevante.

Petição de princípio: quando se conclui o que se afirmou. Como A, então A.

Espantalho: ridiculariza-se um argumento, obtendo um mais fácil de refutar.

Esta é só uma amostra das falácias informais. Também no site «Crítica na rede» existe um artigo, «Guia das falácias» [2], de Stephen Downes, que fornece uma extensa base de trabalho para quem esteja interessado no assunto.

Algumas destas falácias parecem-nos óbvias, mas a verdade é que elas se disfarçam bem e, se não estivermos atentos, nem damos por elas.

[1] https://criticanarede.com/log_informal.html [consultado em 20/04/2024]

[2] https://criticanarede.com/falacias.html [consultado em 20/04/2024]

2024_04_25_O que é o 25 de abril?

O que é o 25 de abril?  Qual o sentido de o pensar?

Podemos vê-lo como um mero acontecimento ou é um conjunto de valores? Porque aconteceu? Por quem? Onde? Como foi idealizado? Como aconteceu? Que tipo de revolução foi? O que tinha a cumprir? Cumpriu-se? Estamos melhor do que antes? Pode-nos servir como inspiração? É a Constituição o seu vestígio?

É um conjunto de valores? Atua como um gerúndio? Se são valores, quais são? Será a liberdade a sua expressão máxima? E a fraternidade e igualdade? E a democracia? São os valores a herança ou tem uma materialidade? O Sistema Nacional de Saúde é 25 de abril? E a Escola Pública? Se forem, não o será um Serviço Nacional de Habitação? E a Ciência e Investigação? E a Cultura?

A democracia é o regime de abril? É ela que o concretiza? Falamos de uma democracia representativa ou participativa? Como podemos participar politicamente? Cantar no meio da rua pode ser ação política? Devem-se pensar novos regimes? Deve-se pensar numa democracia do digital? O que é democratizar?

O que é um espaço público de abril? Como são as suas cidades, vilas e aldeias? Estão divididas por padrões demográficos? Estão divididas por setores? Têm amplas praças? E jardins? Ouvem-se risos? Os namorados beijam-se descaradamente?

Será o 25 de abril uma grande narrativa? Estará condenado a desvanecer-se num mundo de pós-verdade, onde predomina uma indiferença sobre se algo é verdadeiro ou falso? Quais as bases da insatisfação com o 25 de abril? Quem a tem? Como se expressa? Qual o papel do mundo virtual na democratização? Pode-se regular esse mundo? Quais as fronteiras da liberdade?

Conseguiu o 25 de abril sobrepor-se à narrativa do Estado Novo? Terá eliminado completamente a cultura de medo? A obsessão pelo consenso e pela estabilidade serão heranças do regime autoritário? A relutância do questionamento também? Aceitar o que se dá, sem mais pedir, também? Não terá o 25 de abril de se radicalizar para haver melhores condições de trabalho? Não terá de se aprofundar abril para a vida não ser só trabalho? Não se terá de estudar abril para se perceber que um ordenado não é um favor do patrão?

Qual a memória do 25 de abril? Estaremos condenados a um relativismo na interpretação histórica da revolução, quando morrer a última pessoa que experienciou o Estado Novo? Pode um filho puxar mais de abril que um pai? Qual o papel das gerações neste processo? São os jovens, por excelência, abril? Que espaços podem ser criados para preservar a memória? Qual o papel da cultura nesse contexto? A preservação dessa memória é doutrinação? Qual a relação entre memória e pensamento crítico? Ainda existe espaço para vocábulos como «luta de classes», artefactos dessa memória? Será que o 25 de abril só se concretiza quando não sentirmos necessidade de o recordar? Como é que em 50 anos tanto se perdeu de memória ao ponto dos saudosos da velha senhora considerarem normal fazer a sua apologia à autocracia? Como se normalizou o ódio? Faz sentido ser tolerante com o intolerante?

Consegue o 25 de abril de 1974 dialogar com os abris do século XXI? Como responde à crise climática, às desigualdades, às migrações, à geopolítica, ao ódio? Como se abre ao mundo fora de Portugal?

Somos felizes? O que é a vida boa? Como a atingimos? Qual é o nosso papel? 25 de abril é a busca da vida boa?

São só 5 minutos de perguntas, só 50 anos de democracia, para um futuro incerto que nos compete definir, para nós e para os outros, os que cá estão e os que estão por vir, até pelos que já cá estiveram: as respostas somos nós.

2024_04_19_Uma ferramenta para detetar charlatões [Por onde começar na Lógica?]

Muitas vezes se ouve falar em pensamento crítico, na necessidade de pensarmos pela nossa cabeça e sermos capazes de criticar a informação com que nos deparamos. Digo crítica no sentido de julgar, de analisar, fundamentadamente – o que pode ser feito independentemente de estarmos de acordo ou não com o que criticamos. Mas afinal, como pensamos criticamente?

Uma forma de abordar esta questão é através da Lógica. Num volume editado pela Gulbenkian [1], o casal Kneale afirma que «a Lógica trata dos princípios da inferência válida». Vamos por partes. Com «princípios» falamos de regras, de critérios. Com «inferência» referimos raciocínios. Com «válida» apresentamos o centro da questão. Noutras palavras, podemos dizer, muito simplistamente, que a Lógica é a ciência da validade. Vamos, então, num instante, tentar perceber o que é isto de validade.

Quando estamos a fazer raciocínios, a argumentar, se o entendermos com um objetivo persuasivo, estamos diante de um encadeamento de afirmações. Ou seja, um argumento é a junção de várias afirmações, de forma a chegar a uma conclusão. Essas afirmações que dão suporte à conclusão chamam-se premissas. Ora, um argumento é válido quando a verdade das premissas garante necessariamente a verdade da conclusão. A validade, como vemos, relaciona-se com o conceito de verdade, mas é independente dela e é essa a riqueza da Lógica e o que a leva à matemática. Permitam-me dar um exemplo:

Se danço, então chove.

Não está a chover.

Logo, posso concluir que não estou a dançar.

Este argumento que aqui apresento parece estúpido, afinal, existe uma dança da chuva? Nós podemos dizer que a primeira premissa é falsa e encostar aqui o argumento, mas aquilo que a Lógica nos diz é que ele é válido. Vejamos: se assumir se as proposições são verdadeiras, que existe a dança da chuva e que não está a chover, então a conclusão também é necessariamente verdadeira, porque se eu dançasse estaria a chover (ao contrário do que assumimos antes). Se eu modificar um pouco o argumento, por exemplo, dizendo:

Se chove, então cai água.

Não está a cair água.

Logo, posso concluir que não está a chover.

Julgo que já ninguém duvidará que este argumento está correto. O que aconteceu de diferente? Além do argumento ser válido, as premissas são verdadeiras (vamos assumir que não está a chover).

Assim sendo, fica visível que para um argumento ser correto, irrepreensível, é necessário que seja válido e que todas as premissas, bem como a conclusão, sejam verdadeiras. São duas condições distintas.

Mas retomemos só por mais uns segundos os exemplos anteriores: não são estranhamente parecidos? Ambos afirmam:

Se P, então Q.

Não Q.

Logo não P.

O que eu fiz aqui foi abstrair a forma do argumento [2], retirar a informação e ficar só com os conetores, ou seja, as palavras que articulam essas considerações que fazemos sobre o mundo. Nestes moldes abstratos, fica evidente que a verdade não é tudo num argumento, afinal como sei se P ou Q são verdadeiros?! O que sei é que esta forma é válida e até tem um nome específico: modus tollens. Então, qualquer argumento que tenha esta estrutura é válido, sendo que se tiver as premissas verdadeiras, será correto, sendo a conclusão necessariamente verdadeira.

As várias Lógicas que existem são várias formas de abstração, de formalização. O que pretendem é traduzir afirmações de linguagem natural, como o português, para uma linguagem formal, à semelhança do exemplo que acabei de dar (o exemplo dado era em lógica preposicional, porque as letras representam proposições, frases).

A grande vantagem de sabermos Lógica num debate, ou a ouvir uma argumentação, é a possibilidade de perceber se o argumento é válido: se não for, nem vale a pena a massada de pensar se estou de acordo com as afirmações, porque já falhou. Isto permite uma análise crua, a frio, da discussão, sem a interferência da nossa inclinação pessoal. Como faz Desidério Murcho no Filosofia em Directo [3], também podemos olhar para isto numa perspetiva interna: em nós próprios aprendermos a raciocinar. E aqui ele alerta «pensar que aprender a racicionar permitiria um automatismo infalível seria um erro; seria substituir Deus ou a Observação ou a Experimentação pela Lógica. O que a lógica permite fazer é apenas mais controlos e ajustes.»

Qual a minha sugestão para contornar charlatões? Que quando ouvimos um argumento pensemos: se eu aceitar as premissas, a conclusão segue-se delas? É impossível um argumento ser válido se as premissas forem verdadeiras e a conclusão falsa (é, aliás, o único caso em que um argumento é necessariamente inválido, até quando as premissas e a conclusão são falsas é possível ser válido). Às vezes é difícil perceber distintamente qual o argumento, porque se usam muitos ornamentos e retórica para responder, mas conseguimos ter alguma intuição. E se o assunto não for algo com que estejamos familiarizados e não saibamos formalizar o argumento, podemos mudar as afirmações e manter a forma. Vou aproveitar o exemplo de Murcho:

Há uma causa de todas as causas, porque todas as causas têm uma causa.

Isto assim, provavelmente, será um pouco intragável. Aqui o que estão em causa são conceitos, «causa» e «causas» (nos exemplos antes eram frases), então vamos alterá-los e manter a forma. Por exemplo.

Há uma mãe de todas as pessoas, porque todas as pessoas têm mãe.

Isto já dá uma luz e fará soar uns alarmes. Com um pouco de esforço conseguimos digerir aquilo que nos é dado e fazer de forma mais prudente, se assim for o caso, as nossas escolhas.

[1] Kneale, W., Kneale, M., O Desenvolvimento da Lógica, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.

[2] Forbes, G., Modern Logic, Oxford University Press, 1994.

[3] Murcho, D., Filosofia em Directo, FFMS, 2011.


2024_04_12_Os ninhos filosóficos [Quais as áreas da Filosofia?]

Já tentámos perceber o que é a Filosofia e o que é o filosofar. Vimos a Filosofia como um estudo da realidade, onde a problematização, a pergunta, é essencial. Talvez num outro texto seja pertinente discutir-se se os filósofos acreditam ou aceitam as suas teorias, ou seja, se foi um sistema a que chegaram ou algo que pretendem que seja o correto. Podemos ver o trabalho de um pensador como o desbravar de caminhos, sem ter de fazer uso da sua opinião. Não obstante, o que pretendo hoje é clarificar, talvez, a questão do objeto da Filosofia: sobre o que se filosofa?

Os modos de olhar a realidade, as áreas, podem ser circunscritas por tipologias de perguntas. O exercício que se segue é a apresentação de algumas dessas áreas, com algumas das suas perguntas mais fundamentais, radicais, essenciais, basilares, associadas.

Desde logo, no cerne da Filosofia temos a Lógica, a Metafísica e a Epistemologia. São campos muito abrangentes e teóricos, servindo de base, mesmo que inconscientemente ou implicitamente, para considerações noutras áreas que se seguem.

A Lógica pretende encontrar um conjunto de regras para avaliar os argumentos, perceber quando ele é forte, quando podemos confiar. O mais engraçado é que a Lógica não nos diz propriamente no que devemos acreditar, a validade de um argumento só nos dirá que a conclusão se segue necessariamente do que foi dito antes, das premissas, e, portanto, se as considerarmos verdadeiras (coisa que não cabe à Lógica julgar), então a conclusão é verdadeira. De forma ilustrada, a Lógica é a malha do nosso pensamento, ousa guiá-lo. O que é um argumento válido?

A Metafísica tem em si um palavrão várias vezes ouvido. As perguntas que faz pretendem perceber a estrutura do mundo. Existe a verdade? Qual é a origem? Existe deus? Os seres que consideramos imaginários existem? Quando perguntamos sobre o ser, já nos encontramos na ontologia, uma subárea.

Epistemologia é outro palavrão recorrente. Basicamente, trata de tudo o que tenha a ver com conhecimento, ou melhor, o processo de conhecer. O que é conhecimento? O que podemos conhecer? Como o adquirimos?

Como se pode ver, estas três áreas têm um caráter muito geral. Podemos elencar outras onde, como se disse, estas têm impacto, mas que vivem por si e constituem importantes pilares de uma Filosofia mais prática.

A Ética pretende chegar à boa conduta. Como consideramos uma ação boa ou má? O que é a responsabilidade? Como devemos agir?

A Filosofia Política questiona sobre a nossa organização social, a forma que deve tomar. Qual o sistema ideal? Como organizar? Podemos ter uma sociedade justa? O Estado é legítimo?

A Filosofia da Ciência tem a importante missão de nos guiar perante a forma de fazer ciência. O que é a ciência? Há um método para fazer ciência? A ciência evolui?

A Estética versa sobre a sensibilidade, sobre o belo. O que é o belo? O que é uma experiência estética? O que define uma obra-de-arte?

A Antropologia Filosófica estuda o Homem. O que é o Homem? O que são os Homens? Há a dualidade mente/corpo?

A Filosofia da Linguagem é importantíssima para percebermos o instrumento que utilizamos quotidianamente. A linguagem condiciona-nos? Como é que uma expressão corresponde a um significado?

A Filosofia da Mente é um campo em ascensão que procura explicar estes processos mentais que tantas vezes nos parecem transcendentes. Afinal, o que é a mente? O que são as imagens mentais? Qual a relação com o corpo? Alguém é uma mesma pessoa ao longo de toda a vida?

Um dos grandes aliciantes da Filosofia é a proliferação de campos que é possível. Podemos falar ainda de Filosofia da Cidade, Filosofia da Religião, Filosofia do Direito, Filosofia da arte, Filosofia da Ação, Filosofia da Educação, Filosofia da História, Filosofia da Matemática, entre muitas outras, onde até há espaço para a Filosofia da Filosofia que é a Metafilosofia. Várias vezes se aborda, também, a História da Filosofia que corresponde à sistematização das ideias dos vários pensadores ao longo do tempo. Também pode acontecer formar os campos por adjetivação, como o caso das nacionalidades, por exemplo, Filosofia em Portugal, ou pela identidade, como a Filosofia Feminista.

Existe, portanto, a uma multiplicidade incontável de áreas, que dependem somente da forma como pretendemos analisar o mundo.

Apresentei-as deste modo, mas também é possível tentar sistematizá-las mais rigorosamente. Por exemplo, Kant distinguia dois grandes grupos: uma Filosofia teórica, como a Metafísica, e uma Filosofia prática, como a Ética. Aristóteles terá sido dos primeiros, se não primeiro, pensador a fazer a divisão do saber por áreas, tendo justamente olhado para a questão teórica (Metafísica, Física e Matemática), prática (Ética e Política), além das ciências produtivas (as técnicas, como o artesanato, a medicina ou a carpintaria). Que se note, até há modernidade, até há 400/300 anos, todo o saber era visto como enquadrado na Filosofia.

A Filosofia é um mundo e mundos outros de possibilidades, cada um de nós consegue fazer nela o seu ninho.

2024_04_05_Entre o café e a missa [O que é filosofar?]

No nosso momento anterior, pensou-se sobre o que é a própria Filosofia [1]. Hoje, avança-se sobre como se faz Filosofia, o que é filosofar.

Se formos a um dicionário [2], temos que filosofar pode ser discutir “assuntos filosóficos” (o que não nos traz grande esclarecimento, estando o definido na definição, de alguma forma), mas também “discorrer sobre qualquer matéria científica”. Esta última é, aliás, a primeira entrada. É importante perceber o que é “discorrer” e o que se entende por “matéria científica”.

Este processo de conceptualização, dar um sentido preciso às palavras, é, aliás, um elemento fundamental do filosofar.

Podemos tomar o “discorrer” como um fluxo de significantes, de conceitos, palavras, que se encadeiam e criam sentido. Este “discorrer” como uma teia que se vai tecendo, um naperon que se vai criando, um jardim que se vai construindo. Falo em conceitos, com definições precisas, mas também podemos alargar a noções, onde se circunscreve os significados do que dizemos, apesar de que com menos clareza e precisão (às vezes ela não nos é possível, até porque parece que não pensamos só com palavras, ou, pelo menos, fazemos ligações mais rápidas que a nossa capacidade de interpretação, talvez as chamadas intuições).

Quando falamos de “matéria científica” podemos estar diante daquilo que é passível de ser analisado cientificamente. Isto não é mais nem menos do que empregar um método, critérios, orientar o pensamento estruturada e fundamentadamente. A grande ferramenta da Filosofia é a Lógica, que permite perceber se um argumento está bem construído, é válido, independentemente de ser correto, da verdade do que é afirmado.

O filosofar é uma forma de pensar específica. Aquela que obedece à coerência, entendida como validade, sobrevivência do teste lógico. Julgo que a grande dificuldade do filosofar é que, ao tentar responder a uma questão, avançam-se com respostas colaterais sobre outras, sendo o pensamento muito difícil de disciplinar. Quando estamos a comparar duas respostas tem-se de pensar nessas implicações. Mais, ao falarmos, no fundo, de mundivisões, estamos num nível muito estrutural, radical, de assunções, pelo que muitos desacordos são-no por axiomas de partida (por exemplo, haver uma verdade para tudo ou não, ou a beleza estar predente nos objetos em si ou nas nossas mentes).

Este meu discurso acaba por ir buscar muito da visão do professor Paulo Tunhas, que, por sua vez, radica de Kant [3], nomeadamente quando trago esta noção de sistematicidade, do filosofar como a construção de um sistema. No entanto, há outras visões que podem, de alguma forma, romper com este pensamento. Por exemplo, Nietzsche traz-nos uma proposta que permite contradições, que nos desafia a ver a vida como uma obra-de-arte e a dançarmos à beira do abismo (que poderosa imagem) [4].

Esta evocação de pensadores também é muito importante: faz-se para se perceber o que já foi pensado e escrito, em que sentido os debates estão a evoluir, havendo a honestidade intelectual de não reivindicar a nós algo que, na verdade, não é original. Julgo que perceber que há mais pessoas que pensaram de forma semelhante a nós pode trazer-nos segurança, bem como confrontarmo-nos com o já existente leva à afinação do pensamento.

Não obstante, há muitas formas de filosofar, sendo que muita mais gente contribui para a Filosofia, além dos próprios filósofos. A própria expressão da Filosofia não se limita aos ensaios. Platão, tão conhecido, recorria a diálogos, colocava as suas personagens a pensar. Thomas Moore deu-nos a conhecer a Utopia pela voz de um ficcional navegador português.

Gosto muito de um texto de Fernando Pessoa, “Banqueiro anarquista” [5], por ser um desafio lógico. Num diálogo entre duas personagens, Pessoa cria bifurcações lógicas (se isto, aquilo, mas se não isto, então), levando-nos numa teia enorme de cenários possíveis. Isto é particularmente relevante para nos levar a pensar em como o filosofar pode ser visto de alguma forma impessoal: trata-se de uma crítica metodológica e crua de cenários.

Mário-Henrique Leiria tem um micro-conto, “Anti-provérbio” [6], onde, muito humoristicamente também evidencia estes mundos outros do pensar. Aliás, exponho aqui esse mesmo micro-conto:

«Usando do direito lhe é conferido pelo provérbio, o Gato estava muito bem escondido atrás da porta, com o rabo de fora.

Passou o Cão. Viu aquilo e disse:

- Olha uma salsicha! - E zás, deu-lhe logo uma dentada.

- Irra que é bruto. O senhor não vê que isso é o meu rabo! - Informou o Gato, abespinhado.

- Ora essa, - retorquiu o Cão - quem tem uma salsicha com um gato na ponta, não a põe de fora. - E seguiu o seu caminho.

Donde se conclui que a lógica deverá ser: rabo escondido com gato de fora.»

Natália Correia, na sua “Comunicação”, um fabuloso poema dramatizado de algumas páginas, apresenta-nos a Feiticeria Cotovia, que está a ser julgada e condenada à morte pela Inquisição, por fazer uso de uma magia a que chama “Poesia” [7]. Vaticina a Feiticeira:

“Se a palavra poderosa

Ilumina o que é vedado

Há-de abrir-se a brusca rosa

Do que está vaticinado.”

Talvez o mais puro filosofar esteja na inocência da infância. Talvez por isso “O Principezinho”, de Saint-Exupéry, e a “Alice no País das Maravilhas”, de Carroll, sejam na verdade, autênticos tratados, de arrepiar, sobre a Filosofia e o Mundo.

[1] Amaral, P; (2024, 29 de março); 5 minutos de Filosofia (Irra com o porquê!) [Rádio Asas do Atlântico] https://sites.google.com/view/pedrogasparamaral/colabora%C3%A7%C3%B5es/5-minutos-de-filosofia

[2] "filosofar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/filosofar.

[3] Tunhas, P.; Filosofia; U. Porto Press, 2023.

[4] Nietzsche, F.; Assim falava Zaratustra; Relógio D'Água; 1998.

[5] Pessoa, F.; Wilde, O.; Banqueiro Anarquista & A alma do homem sob a égide do socialismo; Guerra & Paz; 2016. 

[6] Leiria, M.; Obras completas de Mário-Henrique Leiria: Ficção; E-primantur; 2017?.

[7] Correia, N.; Antologia Poética; Dom Quixote; 1999.



2024_03_29_Irra com o porquê! [O que é a Filosofia?]

Julgo que para o exercício que se quer aqui fazer, é pertinente percebermos do que falamos: o que é a Filosofia? Esta é, aliás, uma questão da metafilosofia (a área de estudo cujo objeto de reflexão é a própria Filosofia). É, portanto, uma pergunta de âmbito filosófico e, como tal, não é fácil de encontrar uma definição consensual. Parece-me, aliás, que quando consideramos uma possibilidade de definição de alguém, é o momento que consideramos esse alguém um filósofo – sim, porque em Filosofia não se é filósofo, é-se considerado filósofo.

A ideia mais comum da Filosofia prende-se com uma coletânea de opiniões de «pessoas mortas» sobre assuntos sem qualquer dimensão prática, talvez por ser assim que muitas aulas de Filosofia possam parecer. Essas pessoas são, na verdade, ferramentas para construirmos o nosso pensamento e resolver, ou tentar resolver, as questões que nos inquietam.

Pensa-se na Filosofia como a área dos “porquês”. O objeto da Filosofia como o da problematização. Efetivamente, parece-me que um bom filósofo é aquele que problematiza adequadamente, mas não nos enganemos: a Filosofia também responde às questões. Nuns próximos momentos, havemos de explorar como se formam as respostas e sobre quê. Por enquanto, vejamos um pouco melhor como se pode enquadrar a Filosofia.

Um pensador muito popular, que marcou o início do século XX e deixou uma marca indelével na Lógica, foi Bertrand Russell. Um escritor versátil, foi e é extremamente lido pelo público em geral. Numa das suas obras, História da Filosofia Ocidental [1], afirma «Filosofia é termo com vários sentidos, mais latos ou mais estritos. Usá-lo-ei no sentido lato que vou explicar. Filosofia, como entenderei a palavra, é algo intermédio entre teologia e ciência. Como a teologia, consiste em especulações sobre matérias inacessíveis até agora ao conhecimento definido [como a existência de Deus], mas como a ciência, apela para a razão de preferência à autoridade, quer da tradição quer da revelação. Todo conhecimento definido assim o sustento pertence à ciência; todo dogma, como o que excede o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre teologia e ciência há uma terra-sem-dono, exposta ao ataque de ambos os lados: é a filosofia. As questões de maior interesse para espíritos especulativos raro têm resposta científica, e as respostas confiantes de teólogos já não parecem tão convincentes como nos séculos anteriores.»

A Filosofia é a dúvida radical, que vai à raiz, mas, além disso, que lhe dá sentido. Existem várias posições filosóficas sobre o mesmo tema, por existirem várias formas de dar sentido às questões. As teorias acabam por nos aparecer como respostas, mas todos sabemos que a uma resposta se seguem mil perguntas.

O essencial é, então, clarificar ao máximo o que se entende por cada palavra que se usa, cada conceito, e articulá-la. Ninguém consegue ler o nosso pensamento e não são raras as vezes que temos dificuldades em exprimi-lo. Será este um dos maiores desafios. A única regra que a Filosofia exige é a coerência, um uso correto da Lógica. A partir do momento que há um sistema sólido, sem contradições, pelo menos de maior, temos um caso digno de ir parar a um manual escolar. A beleza da Filosofia parece-me estar nisto mesmo: o livre jogo de articulação. Parece que podemos estar a dizer algo e o seu contrário, mas, se for bem feito, estamos diante uma obra de arte robusta.

Muitas vezes, o que a Filosofia nos faz é dar um passo atrás, fazer-nos enquadrar. E nesse momento percebemos como qualquer questão, de alguma forma, se relaciona com outra qualquer questão. Se pensarmos bem, isso não é assim tão estranho: todas as questões têm um denominador comum, a nossa realidade. Fui para Física para apreciar a realidade como um músico aprecia uma música e passei para Filosofia pela mesmíssima razão.

Esta tentativa de dar sentido ao mundo – ou provar a inexistência dele -, esta distanciamento e profunda reflexão, este preciosismo na noção falada, leva-nos a crer que, mais do que conteúdo, Filosofia é forma. É o bom pensar, uma espécie de método. O desafio está justamente em se estar profundamente informado sobre aquilo que se aborda. É preciso ter informação para saber aquela que está em falta, como num puzzle [2], ou até mesmo para desconstruir e reformular. É por todos estes processos que é importante toda a gente ter um contacto com a Filosofia. A abordagem em contexto escolar de várias perspetivas sobre temas que são pescados de várias áreas, são a oportunidade de ver a forma como grandes pensadores jogaram com os seus raciocínios. O objetivo não é decorá-los, mas percebê-los. Ver como chegaram a eles. A nós, cabe-nos mundos outros.

Julgo que que é por uma via semelhante que o professor Paulo Tunhas escreveu [3] «A filosofia pode ser concebida quer como uma actividade, como uma busca de saber, quer como uma doutrina, como algo que é ensinável, algo de sistemático. "Sistemático" refere-se a um pensamento que procura organizar-se como um todo coerente, em que os vários elementos que o compõem não chocam entre si como peças dispares e sem qualquer relação interna umas com as outras. Quando levada às suas últimas consequências, a ambição sistemática da filosofia, presente em qualquer filósofo digno desse nome, conduz-nos aos sistemas filosóficos. Estamos, neste último caso, face a algo cuja ambição é maior. Não se trata já aqui apenas de buscar a coerência - coisa que, de resto, também é procurada pelo pensamento quotidiano, embora com um menor grau de exigência -, mas de procurar esgotar a totalidade do pensável, sem deixar lacunas algumas. Dito de outra maneira: de procurar construir um mundo integralmente coerente que seja habitado por tudo aquilo que podemos pensar, sem que nada lhe escape e sem que nada se encontre fora do lugar que essa coerência da totalidade exige.»

A Filosofia é engraçada, porque sempre que me zango com ela, volto a ela. É uma área tão ampla, diria universal, onde o ónus está na problematização, que acabo sempre por cair nela de novo. É uma liberdade total de questionamento, sem com isso, constituir uma tudologia presunçosa.

Qual é a importância da Filosofia? É dar-nos sentido, é colocar-nos a pensar. Bem sabemos como disso precisamos nestes dias (em todos, na verdade).

[1] Russell, B.; História da Filosofia Ocidental, Círculo de Leitores, 1977 [1945].

[2] Amaral, P.; «O nosso intelecto é democrático» in Diário Insular [12/12/2023], [https://sites.google.com/view/pedrogasparamaral/colabora%C3%A7%C3%B5es/di%C3%A1rio-insular].

[3] Tunhas, P.; Filosofia: U. Porto Press, 2023.


2024_03_22_Um rasgo [Porquê Filosofia?]

«Der Heer convencera uma bonita lagarta azul a trepar para um galho fino e ela ia avançando desembaraçadamente, com o corpo iridescente ondulando ao ritmo do movimento de catorze pares de patas. Chegada ao fim do galho, segurou-se com os cinco últimos segmentos e fustigou o ar numa corajosa tentativa para encontrar um novo poleiro. Não o conseguindo, virou-se para trás sem se atrapalhar e voltou a percorrer em sentido inverso os muitos passos dados. Então, Der Heer modificou a maneira como segurava o galho, de modo que, quando a lagarta voltou ao ponto de partida, não havia de novo nenhum lado para onde ir. Como um mamífero carnívoro enjaulado, a lagarta andou muitas vezes para trás e para diante, mas, pareceu a Ellie, com crescente resignação nas últimas idas e vindas. Começava a sentir pena da pobre criatura, apesar de ela poder ser, por exemplo, a larva causadora da ferrugem da cevada.

- Que programa maravilhoso existe na cabeça deste bichinho! - exclamou ele. - Funciona todas as vezes: software de fuga ótimo. E sabe como proceder para não cair. Quero dizer, o galho está efetivamente suspenso no ar. A lagarta nunca experimenta isso na natureza, porque os galhos por onde anda estão sempre presos a qualquer coisa. Ellie, alguma vez pensou que sensação lhe causaria se esse programa estivesse na sua cabeça? Isto é, parecer-lhe-ia simplesmente óbvio o que tinha de fazer quando chegava ao fim de um galho? Teria a impressão de que estava a pensar na maneira de resolver o assunto? Sentiria admiração por saber agitar as dez patas da frente no ar, mas agarrar-se com força com as outras dezoito? Ela inclinou a cabeça para a frente e observou-o, a ele, e não à lagarta. Der Heer parecia ter pouca dificuldade em imaginá-la como um inseto. Tentou responder-lhe desapaixonadamente, recordando a si mesma que, para ele, aquilo devia ser uma questão de interesse profissional.

- Que lhe vai fazer agora?

- Voltar a colocá-la na relva, acho. Que outra coisa lhe faria você?

- Algumas pessoas poderiam matá-la.

- É difícil matar uma criatura depois de ela nos deixar ver a sua percepção - respondeu, enquanto continuava a transportar o galho e a larva. Caminharam um bocado em silêncio, passando por quase cinquenta e cinco mil nomes gravados em granito preto-brilhante.

- Todo o Governo que se prepara para a guerra pinta os seus adversários como monstros - observou Ellie. - Não quer que pensemos no outro lado como humano. Se o inimigo é capaz de sentir e pensar, nós podemos hesitar em matá-lo. E matar é muito importante. É melhor vê-los como monstros.

- Olhe para esta beleza - pediu ele, passado um momento. - Olhe bem, com atenção. Ela assim fez. Contendo um pequeno estremecimento de repugnância, tentou ver o bicho através dos olhos dele.

- Repare no que faz - continuou Der Heer. - Se fosse tão grande como você ou eu, assustaria mortalmente toda a gente. Seria um monstro genuíno, não é verdade? Mas é pequenino. Come folhas, mete-se na sua vida e acrescenta um pouco de beleza ao mundo.» (Carl Sagan) [1]

Esta é uma das minhas passagens preferidas de um dos meus livros preferidos de um dos meus autores preferidos. Trata-se do único romance de Carl Sagan, um astrofísico e pioneiro da divulgação da ciência – este livro em 1997 dá vida a um filme homónimo, Contacto. Trago-a como antecâmara a este novo espaço de reflexão no âmbito da Filosofia. O olhar para o mundo numa incessável curiosidade, questionamento e admiração. Foi para percecionar o mundo, como quem diz, o que nos rodeia, como um músico aprecia música, que comecei por estudar Física e, entretanto, me desloquei para a Filosofia – Carl Sagan, como se vê, sempre presente como mote.

 Permitam-me, desde já, aqui trazer um filósofo: Max Scheler, numa matriz cristã, afirma-nos o humano como afetividade e a sua ação filosófica ancorada no amor ao transbordante significado do mundo. Ou seja, a busca pelo conhecimento não se faz pelo sentimento de ausência, de ignorância, mas de estupefação pelo mundo que nos é dado. O conhecimento faz-se pela abertura. [2]

Este movimento de abertura à questão é comum a qualquer pessoa, mas uma reflexão ponderada exige tempo e, no mundo em que vivemos, temos muito pouco tempo para pensar.

Espero que estes cinco minutos, de que estas palavras servem de motivação, atuem como um rasgo, como uma ponte para mundos outros.

[1] Sagan, Carl; Contacto; Gradiva; 2011 [1985].

[2] Davis, Zachary and Anthony Steinbock, "Max Scheler", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2024 Edition), Edward N. Zalta & Uri Nodelman (eds.), forthcoming URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2024/entries/scheler/>.