Diário Insular

2024_05_21_As últimas notas sobre a Europa

Nestas últimas duas semanas, trouxe uns tópicos que me parecem pertinentes no seguimento das eleições europeias, que se realizarão dia 9 de junho. Hoje julgo concluir esta sequência.

Desde logo, é importante divulgar uma grande alteração na votação: dia 9, sem inscrição prévia, é possível votar em qualquer mesa de voto. Também vai estar disponível o voto antecipado em mobilidade a 2 de junho, nos moldes que já têm vindo a ser usados nas eleições dos últimos anos. [1]

Tal quando comecei esta sequência, julgo que é necessário vincar o debate sobre a Europa, sobre as instituições europeias, que é necessário ser feito de forma estrutural, radicalmente. A União Europeia, neste momento, pode ser perspetivada como uma oportunidade perdida de um projeto internacionalista. Um bloco europeu que se deve saber alargar, é uma chave importantíssima para conseguir lidar com grandes temáticas, que levam a crises, como as alterações climáticas, as migrações, inteligência artificial, a digitalização,… Não obstante, só faz sentido falarmos desta unidade, se tivermos em mente um modelo democrático: um Parlamento Europeu desburocratizado e com mais poder, em que as suas eleições sejam vistas como eleições transnacionais e com protagonistas de nível europeu, sendo a Comissão Europeia um resultado direto dessas eleições. É óbvio que a realidade é muito mais complicado do que aquela que eu posso fazer crer com estas pretensões virgula com tudo tento mostrar como está nas nossas mãos a possibilidade de mudança.

Algumas controvérsias colocaram as instituições europeias nas notícias, como o caso do Qatargate. É uma realidade que muitos eurodeputados auferem de rendimentos de outras atividades que desempenham. O POLITICO tem um artigo que analisa com rigor esta questão. São 185 os eurodeputados nessas condições e é curioso notar que só 4% são da Esquerda e os seus rendimentos correspondem a 0,2%, caso semelhante com os verdes. Ou seja, é curioso notar que esta questão parece-me funcionar como um espelho da ideologia. No meio disto, aquilo que nos importa é garantir que não existem conflitos de interesses. Felizmente, já algumas medidas foram adotadas [3].

Contudo, a necessidade de transparência afigura-se cada vez mais premente. Úrsula von der Leyen já afirmou a sua disponibilidade, enquanto spitzenkandidat, de diálogo com os Conservadores, que incluem partidos de extrema-direita como o de Meloni e o Vox. Tendo em conta as eleições mais recentes nos diversos países e as sondagens que vão saindo, é expectável um crescimento dos grupos parlamentares das direitas radicais e extremistas. Esta porta aberta é o fim das possibilidades de um verdadeiro projeto europeu. Nós estamos numa situação agradável [4].

Julgo ser importante evidenciar a demagogia desses projetos que se alicerçam no ódio, que não poupam insultos à «classe política», mas que faz quase 1 000 000€ noutras atividades [2] e tem uma escassa participação legislativa [5].

A minha esperança é que os jovens sejam um garante de progresso, olhando para quem por toda a Europa foi privado da sua Liberdade e não ouvindo quem prefere incendiar a construir.

[1] https://www.deco.proteste.pt/familia-consumo/orcamento-familiar/noticias/eleicoes-saiba-onde-como-votar

[2] https://www.politico.eu/article/how-meps-make-millions-on-the-side-legal-advice-speeches-and-covid-cures/

[3] https://www.politico.eu/article/eu-meps-qatargate-transparency-assets-declaration/

[4] https://www.theguardian.com/commentisfree/2024/may/04/giorgia-meloni-ursula-von-der-leyen-double-act-steering-eu-rightwards?CMP=Share_AndroidApp_Other

[5] https://www.politico.eu/article/european-parliament-data-groups-far-right-green-deal-gender/


2024_05_07_Um olhar sobre a nossa Europa

Esta semana aloja, na sua quinta-feira, o Dia da Europa. Para muitos portugueses, União Europeia é sinónimo de apoios financeiros, de projetos – principalmente para quem nasceu nos anos oitenta e por aí diante. Parece-me que pensamos muito pouco a Europa e o nosso lugar nela. Os momentos em que mais ouvimos falar nela são de cinco em cinco anos, aquando das eleições europeias – e, mesmo assim, os temas de campanha e os debates, muitas vezes, resvalam para assuntos nacionais. Cerca de metade dos portugueses não está interessada nestas eleições que ocorrerão a 9 de junho, apesar de uma grande maioria perceber o impacto da EU nas duas vidas [1]. Estas eleições são aquelas com maior abstenção em Portugal. Julgo que isto revela um pouco daquela que é a minha intuição: a Europa é uma oportunidade perdida. Este projeto internacionalista cria a possibilidade de uma ação conjunta, com um profundo impacto dentro das suas fronteiras, mas, também, fora delas. O caso das alterações climáticas é um excelente exemplo. A Europa é uma defesa aos perigos do mercado desregulado, da inteligência artificial desregulada,… Ou melhor, podia ser. Podia ser tudo isto e mais. Basta irmos às redes sociais das instituições europeias para se ter um cheiro do que pode ser feito [2]. Onde está o «mas»? Na falta de democracia. É isso que devemos discutir: como democratizar a Europa. Desde logo, não nos fazia mal nenhum ver o debate entre aqueles que são as escolhas dos partidos europeus como possibilidades para presidir à Comissão Europeia [3].

Permitam-me olhar um pouco para o cenário eleitoral das europeias em Portugal.

Já temos todos os cabeças-de-lista a estas europeias [4]. Tanto o PS como a AD (PSD+CDS) surpreenderam. O PS por colocar Marta Temido em destaque, quando o seu nome parecia (talvez ainda esteja) seguro para a Câmara de Lisboa, mas também por constituir uma renovação total (nenhum dos eurodeputados atuais do PS manterá o seu lugar). Não obstante, parece mais do mesmo e só o nome de Bruno Gonçalves gera alguma curiosidade. Por outro lado, a lista da AD surpreendeu pela novela com Rui Moreira e com a escolha de Bugalho para a encabeçar. Rui Moreira sempre afirmou que cumpriria o mandato até ao fim no Porto, mas andou pelos corredores a dizer que seria cabeça-de-lista da AD para ser comissário europeu [5], e veio a público queixar-se da indecência da AD o convidar para segundo ou mandatário (a ofensa!). Bugalho foi efetivamente uma surpresa. Já li várias críticas pela idade e falta de experiência política. Discordo e em artigos anteriores já o expliquei. O problema de Bugalho é que andou anos no comentariado a fazer campanha, apesar de se afirmar como jornalista. Trata-se de uma traição ao bom senso. No seu primeiro discurso [6] já conseguiu: errar o número de quinas da bandeira portuguesa (um episódio caricato, já que o governo da AD ajuda a importar uma guerra cultural, mudando o logotipo do governo de forma a melhor «respeitar» a identidade nacional) e usar uma expressão conotada com a extrema-direita [7]. Bugalho é, aliás, a prova do desvio do PSD para a direita, numa tentativa de recuperar eleitorado do CH. Muito mau prenuncio.

[1] https://europa.eu/eurobarometer/screen/home

[2] https://www.instagram.com/europeanparliament/reels/

[3] https://maastrichtdebate.eu/watch-live/

[4] https://www.jpn.up.pt/2024/04/23/saiba-quem-sao-os-candidatos-as-eleicoes-europeias/

[5] https://www.publico.pt/2024/04/09/politica/noticia/rui-moreira-cabeca-lista-comissario-europeu-2086322

[6] https://www.youtube.com/watch?v=RGxoQwyc9K0&ab_channel=PSDTV

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Sieg_Heil

2024_04_30_Foi bonita a festa, pá!

No passado dia 25 de abril celebrámos os 50 anos da nossa democracia, da liberdade como valor fundamental, sujo mote é o do seu aprofundamento. «Celebrámos», como quem diz, a multidão gigantesca de portugueses que saíram à rua e muitos outros que gostariam de lá ter estado ou estiveram através das suas ideias. A verdade é que existe uma parte dos portugueses a quem o 25 de abril é indiferente, e outra em como foi um evento negativo [1] [2]. Haverá sempre um grupo de desalinhados, como em tudo (e ainda bem, porque nos relembram do nosso papel ativo, de como nada pode ser dado como garantido), mas quando mais de um milhão de portugueses confia o seu voto, a sua voz, num partido que abandona o parlamento mal se começa a cantar «Grândola Vila Morena», ficamos cientes que algo está mal. E não foram só os deputados do CH a abandonar o hemiciclo, como também os do CDS e uma minoria do PSD [3].

Sobre este episódio, julgo tratar-se claramente de uma tentativa de associar a música à esquerda, uma tentativa de polarizar a sociedade que, em última instância, polarizará sobre os valores de abril. Está-se a dar uma importação da guerra cultural que se vive no outro lado do Atlântico pela direita radical, sendo que a direita democrática é cúmplice, pelo medo da perda de eleitorado. «Grândola Vila Morena» foi uma senha do 25 de abril, tal como «E depois do adeus», tendo sido usada como a confirmação do início do processo revolução: esta cação de José Afonso representa o 25 de abril, não fações partidárias.

Outra forma de enfraquecer o 25 de abril advém da sua relativização, como a de Moedas a tentar associar a revolução à «moderação» [4]. Como a tentativa de ofuscar as comemorações do 25 de abril, através de uma discussão sobre o 25 de novembro [5], mais uma vez, com o propósito de importar uma guerra cultural. Nisto, fica a vergonha de ver a maior Câmara Municipal do país a não dar resposta a uma tradicional comemoração da Revolução dos Cravos [6].

O caminho deve ser o de aprofundamento de abril: não faz sentido a discussão sobre os seus valores, mas a discussão sobre a forma como os concretizar. A liberdade é o maior dos valores de abril, não me cabe na cabeça a possibilidade de a discutir (mas é isto que está a acontecer).

Um grande obstáculo às discussões são as incursões moralizantes, que pretendem fazer as discussões na base de regras sem um substrato teórico fundamentado. Não se discutem valores, mas contingências particulares, desmembrando a ação política. Muitas vezes, mais uma vez, são instrumento para a guerra cultural.

Saibamos celebrar abril, juntos. Apesar de parecer haver uma relutância em se publicarem números, desde 1974 que não se deve ter visto tanta gente nas ruas a celebrar abril [7]. Ninguém largará a mão de ninguém.

[1] https://democracia.iscsp.ulisboa.pt/resultados-do-inquerito-nacional/os-portugueses-e-a-democracia/atitudes-face-ao-25-de-abril-de-1974/o-25-de-abril-na-historia/o-25-de-abril-na-historia

[2] https://sondagens-ics-ul.iscte-iul.pt/wp-content/uploads/2024/04/Estudo-ICS_ISCTE_25A.pdf

[3] https://www.sapo.pt/noticias/atualidade/esquerda-canta-grandola-vila-morena-no-final-_662a63728b0345014f5fe17c

[4] https://twitter.com/Moedas/status/1782880958435283172

[5] https://cnnportugal.iol.pt/videos/nos-50-anos-do-25-de-abril-a-direita-trouxe-o-25-de-novembro-e-gerou-polemica/662be6b50cf2a41c2ed27ad5

[6] https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/iniciativa-arraial-dos-cravos-foi-cancelada-porque-camara-municipal-de-lisboa-recusou-financiamento/

[7] https://www.noticiasaominuto.com/pais/2548509/centenas-de-milhares-de-pessoas-desfilaram-em-lisboa-no-25-de-abril

 

 


2024_04_23_O caminho que nos falta

Estamos a poucos dias dos 50 anos do 25 de abril. Arrepia-me escrever estas palavras, por sentir a vertigem da sorte que tenho: estou vivo e faço-o num espaço e tempo onde a Liberdade se escreve com um éle maiúsculo [1]. Nunca conheci a sua ausência, mas os meus avós sim. Sentiam-na não só pelos constrangimentos à expressão do pensamento, como também na falta da «paz, pão, habitação, saúde e educação» [2].

A melhoria de condições de vida é transversal às várias dimensões, o que não significa que estejamos no ponto ótimo: é necessário melhorar, continuamente, sempre a tentar cumprir abril, uma esperança que alumia o caminho.

Não obstante, o nosso mundo hoje enfrenta grandes desafios, crises que nos servem de desafios, à nossa capacidade de superação e engenho, mas que também custam vidas. As crises climática, social (desigualdades), migratória, geopolítica,.. intersetam-se no nosso tempo e o 25 de abril tem de lhes fazer frente. O seu grande contributo reside em nos colocar a pensar nas grandes questões: a nossa forma de fazer política, de agir socialmente, tem sido a concatenação de compromissos em áreas circunscritas, impedindo qualquer discussão estrutural. Como é possível pensar o futuro sem discorrermos sobre o que é a vida boa? Perguntava ainda outro dia a professora Paula Pereira. Tem toda a razão.

Deixarmos cair a radicalidade do pensamento é o que leva a que as pessoas sejam suscetíveis a preferir tecnocracias e autocracias, como podemos ver na sondagem que saiu em parceria com o Público [3]. As pessoas, sentindo tempos de incerteza, buscam a segurança num poder central, num foco único capaz de garantir uma verdade e um rumo. Ainda para mais quando temos a corrupção e as questões de criminalidade a serem percecionadas como as piores áreas, segundo a sondagem realizada em parceria com o Expresso [4]. É terreno fértil para quem se quer afirmar como um messias. Queremos olhar o futuro, melhorando o presente, mas não podemos esquecer o passado. Preservarmos a memória é essencial.

Aquilo que importa é perceber que «25 de abril» é um gerúndio, um presente em construção. «25 de abril» é o respeito pela dignidade humana, que compreende uma vida boa, tal como o pensamento crítico, uma atitude inconformada que aponta sempre à melhoria do presente e, além de o pensar, executa. É verdade que estão a sair da toca [5], que se normaliza o ódio e a ignorância, mas somos, democratas, muitos mais. Sejamos capazes de mostrar isso, não nos demitirmos da nossa parte. Se isso implica ir para a rua participar na marcha do 25 de abril, que seja, se for ir a uma Assembleia Municipal tomar palavra no período do público, que seja, se isso for assinar petições, que seja, se isso for ter de explicar àquele familiar ou amigo que o Estado Novo não são boas memórias, que seja, se for explicar que os direitos não são obrigações, mas possibilidades de existência, que seja, se for distribuir panfletos, que seja. Cada um de nós tem cabeça, consegue perceber onde melhor encaixa. Celebremos, dancemos, cantemos, e garantamos que deixamos ao outro, nosso contemporâneo ou vindouro, um lugar para se juntar à celebração. Viva ao 25 de abril!

[1] https://freedomhouse.org/country/portugal/freedom-world/2024

[2] https://www.youtube.com/watch?v=HVCt3RGcjRQ&ab_channel=SergioGodinhoVEVO

[3] https://democracia.iscsp.ulisboa.pt/resultados-do-inquerito-nacional/os-portugueses-e-a-democracia/atitudes-face-a-democracia-e-as-instituicoes-politicas/possiveis-formas-de-governo-em-portugal

[4] https://sondagens-ics-ul.iscte-iul.pt/wp-content/uploads/2024/04/Estudo-ICS_ISCTE_25A.pdf

[5] https://www.rtp.pt/noticias/cultura/crescimento-da-direita-radical-na-europa-deve-se-a-mudanca-das-normas-sociais-vigentes_n1564700

2024_04_16_Não me chateiem

Desde logo peço desculpa a quem lê este texto por quase metade serem referências: julgo serem todos pontos desta semana que passou que nos devem fazer refletir.

Se na semana passada já aqui tinha posto a incoerência de Montenegro quanto à primeira medida, que foi a mudança do logótipo, em vez da baixa dos impostos, esta semana ficámos a conhecer mais contradições deste novo governo, demonstrando um enorme desrespeito pelos eleitores.

A grande notícia é a do «choque fiscal» [1], tão aguardado, e de tal forma frouxo que até as forças de direita o criticam. Fazendo as contas, é fácil perceber que a redução do IRS corresponde quase totalmente ao previsto pelo PS, nos 1500 milhões anunciados, há só um acréscimo de 173 milhões em relação ao avançado por Medina [2]. Julgo que ver estes dois vídeos [3] nos permitem perceber a desonestidade deste governo. Isto deve-nos preocupar seriamente, estamos a falar dum «partido de governo» que sistematicamente atua diferentemente do proposto.

Infelizmente, também sabemos para quem trabalha este governo, quem pretende beneficiar. As mudanças no IRS jovem, por exemplo, beneficiam só quem tem salários mais elevados [4]. As moções de censura apresentadas justificam-se, justamente, pelos benefícios dados a uma elite económica, em detrimento dos trabalhadores [5].

Como se não bastasse, temos reações de retrocesso em questões sociais, tendo, por exemplo, o Observatório das Migrações já alertado para as fragilidades desta nova visão sobre a imigração [6]. No âmbito de uma proposta votada no parlamento europeu sobre o aborto, Montenegro mostrou-se desfavorável ao reconhecimento desse direito como direito fundamental na União Europeia [7].

Este conservadorismo que figura no governo tem paralelo na sociedade civil, fruto de uma normalização que permite o à-vontade para dizer as maiores absurdidades [8], ainda por cima com o apoio de um ex-primeiro-ministro. Ao olharmos para estes académicos conservadores, percebemos facilmente a sua desonestidade intelectual e baixeza moral [9].

Nos Açores, uma deputada, imagine-se, do CHEGA, achou por bem votar contra um voto de saudação aos 50 anos do 25 de abril (ao contrário de todos os outros deputados) [10]. Já para não falar do drama da SATA e as vagas no Governo dois meses depois das eleições.

Quando chegamos a este ponto, só apetece mesmo dizer: não me chateiem. Mas que ninguém se iluda: este é o momento de irmos para a rua defender a nossa voz e os nossos direitos.

[1] https://www.publico.pt/2024/04/12/economia/noticia/nova-reducao-irs-so-rondara-200-milhoes-admite-governo-2086905

[2] https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/confirma-se-que-90-do-alivio-do-irs-prometido-por-luis-montenegro-e-responsabilidade-do-governo-socialista/

[3] https://twitter.com/Tomas_Pereira_T/status/1778704118460112989

[4] https://www.dn.pt/4341698983/proposta-de-irs-jovem-do-governo-so-tem-vantagem-nos-salarios-mais-altos/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

[5] https://www.publico.pt/2024/04/11/politica/noticia/be-pcp-tentam-rejeitar-programa-donos-2086674

[6] https://www.publico.pt/2024/04/13/sociedade/entrevista/imigracao-programa-governo-recuos-20-anos-directora-observatorio-2086853

[7] https://www.lusa.pt/article/42674565

[8] https://expresso.pt/politica/2024-04-11-movimento-acao-etica-quer-criar-estatuto-de-dona-de-casa-ha-coisas-que-so-as-mulheres-podem-fazer-50176e28

[9] https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/paulo-otero-fez-paralelismo-entre-o-casamento-homossexual-e-entre-humanos-e-animais-num-enunciado-de-um-exame-de-direito-constitucional/

[10] https://acores.bloco.org/noticias/voto-de-saudacao-pelos-50-anos-de-liberdade-e-democracia-aprovado-por-maioria-com-voto-cont

2024_04_09_O que realmente importa

Olhamos para a agenda mediática, para os jornais, para a agenda política, e percebemos que se fala do que importa: de resolver a crise na habitação, da emergência climática, da melhoria do Serviço Nacional de Saúde, a fixação de jovens, o combate à precariedade laboral, o aprofundamento da democracia, a erradicação da pobreza,…

Mentira.

Peço desculpa pelo sarcasmo, mas aquilo que se fala é de um logotipo. Mais concretamente, a reversão do logotipo do governo. Não vale a pena entrar em discussões sobre design, sobre simbologia, julgo que isso está mais do que debatido. Aquilo que me importa é a ação. O próprio autor do design adotado em 2023 disse que esta mudança é «ideológica e estratégica» [1], e muito bem. Aliás, a justificação avançada pelo governo assume-o perfeitamente: «repõe símbolos essenciais da nossa identidade» [2]. Ou seja, esta mudança tem um cunho nuclearmente nacionalista. Da confusão e ignorância sobre o que é um símbolo do governo, traz-se para Portugal a tentativa de acender a chama do identitarismo nacionalista. Este é um presente à extrema-direita, que, nem mais nem menos, é quem mais grita sobre o assunto. O grande acontecimento é esta discussão de Twitter ter passa a ser uma decisão política assumida por um executivo. A identidade nacional, que não tem tido problemas em Portugal, de repente tornou-se uma prioridade. É trágico perceber que é uma prioridade o ponto de ser a primeira medida tomada por este governo quando na campanha foi dito que a primeira medida seria a baixa dos impostos [3]. Como de não fosse suficiente a direta democrática entrar no jogo da extrema-direita, temos ainda a mostra como aquilo que foi dito em campanha de pouco vale.

De forma semelhante, esta semana lemos numa notícia que o programa económico que foi apresentado em campanha por Montenegro afinal tem de ser mudado para respeitar as metas europeias [4]. O problema? Essas metas já eram conhecidas no final de 2023 [5] e Pedro Nuno Santos, no debate com Montenegro já tinha alertado para questão. Parece que os polígrafos desta vida terão bastante trabalho em relação às declarações deste governo.

Também é lamentável a posição do governo sobre o genocídio em Gaza, de novo evidenciando a vontade de uma mudança cultural na sociedade portuguesa, que foi publicada pelo MNE [6]. Quando temos António Guterres na ONU, e até os EUA que finalmente mudaram a retórica, a alertar a plenos pulmões para o massacre que Israel inflige aos palestinos, o ministério de Rangel fala no Hamas e nos civis israelitas, sem qualquer menção aos crimes que estão a ser cometidos pelo país.

Com um governo assim e um Presidente da República assado [7], temo pelo futuro.

[1] https://www.publico.pt/2024/04/03/politica/noticia/autor-simbolo-governo-mudanca-logo-ideologica-estrategica-2085801

[2] https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/comunicacao/noticia?i=comecamos-a-trabalhar-num-governo-de-mudanca-para-os-portugueses

[3] https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/luis-montenegro-tinha-prometido-que-a-sua-primeira-medida-como-primeiro-ministro-seria-diminuir-os-impostos/?utm_term=Autofeed&utm_medium=Social&utm_source=Twitter#Echobox=1712519655

[4] https://eco.sapo.pt/2024/04/04/governo-forcado-a-ajustar-programa-economico-as-novas-regras-de-bruxelas/

[5] https://eco.sapo.pt/2023/12/20/novas-regras-orcamentais-arrancam-em-2024-saiba-o-que-muda/

[6] https://twitter.com/nestrangeiro_pt/status/1777037486989906293

[7] https://expresso.pt/semanario/primeiro/em-destaque/2024-04-04-Caso-das-gemeas-IGAS-diz-que-Presidencia-da-Republica-condicionou-investigacao-e02b9166


2024_04_02_Pensar é chato

E está fora de moda. Vivemos numa sociedade acelerada, onde o tempo é visto como um recurso escasso e valioso. É «natural» tudo ser feito sem haver lugar para uma respiração profunda (só para suspiros e mesmo assim…). Quando se faz uma pergunta a alguém, a nossa expectativa é de uma resposta naquele exato momento. Provavelmente, talvez dependendo do contexto, até julgaremos a pessoa que toma uns momentos – pior ainda se não souber a resposta, então foi fazer-me perder o meu tempo! [1]

Como se não bastasse o imediatismo da resposta, ela tem de ser concisa. Um bom raciocínio é o mais simples possível, que permita a coerência mínima da teia conceptual e está a andar. A nossa atenção é menor e não queremos debater (com debater entendo uma troca de argumentos válidos estruturada e justificada, muito longe das redes sociais e da maioria das conversas de café). Ou seja, pensar antes de responder, responder justificadamente e permitir o desenvolvimento da resposta é tudo, na verdade, um custo de tempo. É esta a nossa sociedade. Não admira que às vezes as respostas de que precisamos estejam tão longe da nossa vista.

O pensamento crítico é a atitude de não aceitar per si uma afirmação, desconstruindo a realidade que nos é dada, e formular estruturada e justificadamente essa afirmação, num sólido processo construtivo. Estes processos são complicadíssimos de fazer com tudo o que nos aparece: é impossível estarmos o dia todo a fazê-lo. Por isso, confiamos nos testemunhos. Nesse sentido, o nosso treino tem de ser o de reconhecer a autoridade epistemológica das fontes e estar atento a algo que soe mais estranho, averiguando se houver essa importância. Este hábito de questionar e investigar tem de ser estimulado, por forma a se perceber o que é pura retórica, demagógica, e o que tem conteúdo.

Para que servem debates? Quando os interlocutores têm posições definidas e fundamentadas, podem ser úteis para encontrar fragilidades na argumentação e, assim, robustecer cada raciocínio. Parece-me ser muito romântica a ideia do debate como conversão. Não digo que com eles pessoas não possam mudar de opinião, mas parece-me uma minoria das vezes. Talvez em alguns se consegue chegar a alguma conclusão conjunta, mas isso exige haver uma flexibilidade ou essa conclusão ter um caráter geral/abstrato. Agora, quando falamos de debates entre alguém com uma posição definida e fundamentada com alguém sem opinião ou de espectadores sem opinião de um debate entre pessoas com posições definidas e fundamentadas, penso que já podemos falar mais claramente da possibilidade de conversão. Julgo que esta é a base dos debates eleitorais: a persuasão dos indecisos. Um grande problema é existir muita gente (pelo menos muito ruidosa) que tem as posições definidas, mas não fundamentadas: não esclarece, nem deixa esclarecer. Emperra o debate. E aqui encaixa o desenvolvimento da questão anterior: mesmo diante das afirmações mais estapafúrdias devemos tomar um tempo para pensar, quanto mais não seja em como foi possível aquela verbalização ou como contrariá-la.

Não sei se por estar em Filosofia, o meu primeiro instinto numa conversa é contrariar, mesmo que concorde com o que a pessoa está a dizer. Admito que é bastante irritante, faço-o, muitas vezes inconscientemente, em piloto automático, como resposta cética. No mínimo, treina-se a paciência (dos outros).

[1] É interessante analisar como em certos contextos não saber a resposta é o suposto, há um endeusamento da ignorância. Talvez pela insegurança pessoal que se gera por viver numa sociedade sedenta de respostas (e rápidas) e sentir-se que não se consegue atingi-las (nos moldes que a sociedade fast food impõe).

2024_03_26_A normalização da selvajaria

As nossas circunstâncias parecem estar a mudar. Talvez não seja num rompimento, mas antes numa transformação gradual que tem na atualidade uma expressão que começa a ganhar visibilidade. A deterioração dos valores de abril parece evidente, sendo que me parece ingénuo afirmar que esse processo é especificamente deste tempo e não uma questão estrutural, cultural. A hegemonia cultural hoje, aliás, é da normalização do ódio. E da selvajaria.

Recordo que num artigo anterior já escrevi sobre a utilização de crianças, filhos de políticos, como arma política [1]. Intuitivamente, por bom senso, seria impensável num debate este assunto ser levantado ou ter qualquer relevo. O respeito pela vida privada e pela integridade do outro, neste caso acentuado por ser relativo a pessoas estranhas à atividade política, tem de ser um princípio na arena política. Se hoje é possível este debate rasteiro, é porque se normalizou a selvajaria.

Basta ir às redes sociais para perceber esta banalização da barbaridade. Existe um completo atropelamento ao outro a partir do momento que discorda da opinião, ou até, e aqui entra no ódio, integra uma comunidade considerada intrinsecamente inferior. Não são raras as ameaças à integridade física que se leem nesses espaços. Isto não pode ser visto como normal.

Este discurso de ódio [2], em específico, tem levado a um aumento nos crimes de ódio [3], esta correlação já tem vindo a ser estudada há anos [4]. Trata-se de uma hegemonia cultural do ódio que custa vidas. Infelizmente, ao que tudo parece indicar, os Açores foram palco de um desses hediondos crimes [5]. Quando se dá margem a discursos discriminatórios, segregadores e violentes, é impossível achar-se que é inconsequente. Infelizmente está bem à vista. Está agora a ser lançado um livro de um investigador português, Vicente Valentim, justamente sobre esta normalização [6].

Neste contexto, é imperativo agir. Não basta colocarmo-nos à margem, mas intervir. Não necessariamente ir para a rua marchar, mas consciencializar quem tem esse discurso à nossa volta que, além de intrinsecamente errado, tem consequências terríveis para vidas.

É necessário criar a empatia pelo outro, mesmo que não o conheçamos. Por isso também é importante o que acontece à volta do mundo. Há uns dias deparei-me com uma notícia [7] sobre declarações da UNICEF a afirmar que as crianças em Gaza nem têm «energia para chorar». Quando algo não nos afeta, é fácil fechar os olhos e deixar andar.  

Acabo com esta citação, tão conhecida, proferida por um pastor luterano na sequência do holocausto:

«Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista.

Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista.

Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu.

Foi então que eles me vieram buscar, e já não havia mais ninguém para me defender.»

(Martin Niemöller)

[1] https://sites.google.com/view/pedrogasparamaral/colabora%C3%A7%C3%B5es/di%C3%A1rio-insular#h.f6gntkf01xn

[2] https://www.publico.pt/multimedia/interactivo/discurso-de-odio

[3] https://expresso.pt/sociedade/2024-02-09-Crimes-de-odio-em-Portugal-subiram-38-em-2023-9bab2866

[4] https://www.nyu.edu/about/news-publications/news/2019/june/hate-speech-on-twitter-predicts-frequency-of-real-life-hate-crim.html

[5] https://www.acorianooriental.pt/noticia/mais-de-uma-centena-de-pessoas-em-manifestacao-antirracista-nos-acores-358599

[6] https://www.vicentevalentim.com/book-project.

[7] https://rr.sapo.pt/noticia/mundo/2024/03/17/mais-de-13-mil-criancas-ja-morreram-em-gaza-denuncia-unicef/371105/

2024_03_19_Umas notas sobre as legislativas

Permitam-me hoje uma análise mais fria e refletida sobre as legislativas do passado dia 10 [1].

Grosso modo, parece que a AD aumenta em relação a 2022 a custo do PS, traduzindo-se a diminuição da abstenção no crescimento das terceiras forças, principalmente, no do CHEGA. Trata-se de uma abordagem generalista e intuitiva, havendo, contudo, a conivência dos números. Significa isto que a maioria dos eleitores continua a valorizar o centro, votando nas duas forças do centrão, e um expressivo eleitorado volátil no seu cerne. Não obstante, o PS deve ter sofrido um sangramento dum punhado de eleitores para os partidos à sua esquerda, nomeadamente o Livre, tendo, ainda assim mantido o grosso do apelo ao voto útil. De notar que a grande queda do PS e o modesto aumento da AD são acentuados por fatores terceiros, a diminuição da abstenção e estes novos eleitores não terem optado pelo centrão. Pedro Nuno Santos terá mais votos que António Costa em 2015, quando ficou em segundo, e Luís Montenegro terá uma votação pouco superior a Durão Barroso em 1999, quando este ficou em segundo.

Continuando nos números, o CHEGA tem um resultado expressivo, ultrapassando o PRD em 1985 e, escrevo antes de sair os votos do estrangeiro, a pouca distância do PCP em 1979. De tal forma expressivo, que, se a eleição fosse por um círculo nacional, teria menos deputados do que os já distribuídos. Este é, aliás, um excelente tema: os votos desperdiçados nestas eleições foram mais de 673 000 [2]. Existe um site que intuitivamente indica ao utilizar se o seu voto foi usado (se o partido elegeu no círculo onde votou), elencando estes números circunscritos a essa pesquisa [3]. Se houvesse um círculo nacional de compensação, à semelhança do que temos nos Açores, PS, AD e CH perderiam alguns deputados, e o BE, por exemplo, passava de 5 para 10 (trata-se do dobro dos deputados).

Passando à necessária análise da conação aos eleitores do CHEGA: parece-me incorreto dizer que estas 1108797 pessoas são descontentes. Eu duvido muito que quem tenha votado IL, BE, CDU, L, PAN,… também não esteja descontente. É algo mais. Pode-se dizer que é uma vontade radical de mudança, mas há alternativas estruturais, e também com retóricas populistas, como o BE e a CDU. É, aliás, interessante notar que o CH se apresenta como antissistema, mas aceita donativos dos maiores vultos económicos [4] e não consegue assegura a transparências dessas contas [5]. Fala muito de corrupção, mas é incapaz de expor um caso e, mesmo sobre as minorias que acusa de parasitismo, não consegue apresentar um exemplo real – quando temos uma Mortágua nas comissões de inquérito... É importante notar que a comunicação social deu um pódio tremendo ao partido e, quando o contrariava, perdia impacto [6]. Também me parece pertinente olhar para as regionais açorianas de fevereiro e notar um paralelismo dos resultados: será esta viragem à direita algo estrutural e não meramente circunstancial?

Aquilo que me parece importantíssimo, independentemente de tudo o que deve ser debatido e feito, é fazer com que a literacia política e dos media chegue ao maior número de pessoas possível.

[1] https://www.legislativas2024.mai.gov.pt/resultados/globais

[2] https://www.jn.pt/6761243323/mais-de-670-mil-votos-desperdicados-nas-legislativas/

[3] https://omeuvoto.com/elegeu/

[4] https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/familias-mello-e-champalimaud-financiaram-o-chega-em-2021

[5] https://expresso.pt/politica/eleicoes/legislativas-2024/2024-03-02-Centenas-de-donativos-do-Chega-por-identificar-indiciam-financiamentos-proibidos-avanca-TVI-Ventura-saiu-pelas-traseiras-41a23615

[6] https://www.lusa.pt/article/42403477/desinforma%C3%A7%C3%A3o-com-tiros-a-comitiva-do-chega-com-mais-impacto-do-que-corre%C3%A7%C3%A3o-medialab

2024_03_12_50 anos, 50 fachos

Escrevo estas palavras na fatídica noite de 10 de março de 2024. Vejo os resultados a aparecerem no computador e comentários arremessados na televisão. Tenho 22 anos e medo do futuro.

2024 era para ser um ano de festa, um ano para lembrar os horrores da falta de liberdade, de perceber que não se pode dar a democracia como garantida, é uma construção quotidiana. O facto de termos pessoas a sair do sofá para votar num partido que tem uma retórica antagónica à nossa constituição, demonstra como é necessário um debate sobre a nossa organização mais básica.

Intitular este artigo com «fachos» e não «fascistas», advém de considerar que esta onda de ódio vem da frustração e não de uma vontade de implantar o programa do partido de extrema-direita. Não obstante, a discussão de saber se há uma mudança sociológica na população portuguesa (e europeia/internacional), numa viragem à direita, conservadora (mais do que numa perspetiva económica) deve ser estudada.

Os Açores vão ser representados por 5 homens, um dos quais sem propostas, a falar dos filhos dos outros. Eu tenho sérias dúvidas que a maioria dos açorianos se revêm nestas pessoas e isso deve-nos fazer refletir.

Mais do que qualquer palavra que possa escrever, importa a questão: qual o valor da liberdade? Este espaço em branco não é engano, é a tua voz, porque importa, porque é ela que dita o nosso futuro, porque ela não se esgota nas urnas, é tempo de parar e refletir, contrariar a aceleração do mundo:







2024_03_02_Deixem as crianças em paz, pá!

Bem sei que na semana passada já usei este título, por isso acrescentei a interjeição, mas ela importa: vinca a indignação que sinto ao ver este curso de coisas. Se na semana passada discorri sobre a infantilização dos jovens (e podia fazê-lo, também, das pessoas em geral), a desresponsabilização parental, hoje escrevo sobre a instrumentalização das crianças.

A minha motivação vem de um episódio muito concreto: logo ao início do debate entre os cabeças-de-lista açorianos, na primeiríssima intervenção de todas, que coube ao candidato do CHEGA, Miguel Arruda, temos as palavras «Antes de mais queria fazer aqui uma pergunta ali ao senhor Francisco César, para começar, o seu filho já está inscrito na JS?» [1].

Se estas declarações não merecem a nossa indignação, então temos mais um sintoma do desmoronar da nossa democracia nos seus 50 anos. Julgo haver aqui duas dimensões necessárias de abordar: a instrumentalização das crianças, mas também o próprio debate.

Francisco César tem 45 anos, pelo que me parece ilógico achar que qualquer filho seu estaria em idade de ocupar um cargo público. Assim sendo, a afirmação só tem o propósito do ataque pessoal, é mera retórica (e de tabernerio – com todo o respeito pelos próprios taberneiros). Na resposta do deputado «socialista» temos a confirmação do filho ter meramente 11 anos. Miguel Arruda achou por bem abrir um debate a falar de uma criança de 11 anos que provavelmente nem tem bem consciência do que está a ser acusada. Trespassou-se a vida privada e trouxe-se ao debate uma pessoa que não tem nada a haver com política. Mas isto cabe na cabeça de alguém?

Em que mundo é que se faz política a sério com ad hominem e instrumentalização de inocentes? Tanto mais séria é a questão quando percebemos que se está a pôr em perigo vidas de pessoas que nada têm a ver com o assunto (nem os próprios políticos deviam ser o assunto, mas as suas propostas e visões). E este discurso está a ser normalizado! O próprio moderador nem reagiu com qualquer repreensão, simplesmente mudou de assunto. Já há umas semanas tinha acontecido algo muito semelhante com Rui Tavares [2]. O CHEGA está a fazer um trabalho de fundo de tentar tornar esta retórica aceitável (tal como muitas outras), principalmente através das redes sociais. Não é aceitável publicarem-se fotos de crianças (terceiros) como forma de fazer política. Não é aceitável publicar-se fotos de crianças (terceiros) sem consentimento. Não é aceitável.

E enquanto estamos desta disputa pelo bom senso, onde a vida privada e o debate político se imiscuem, esse debate perde-se. E é esta a segunda dimensão: a democracia perdeu a vitalidade, a reflexão informada e estruturada, a oposições de visões construtivas. Como é possível debater com quem quer rebolar na lama e nos atira para ela? Não é por falta de aviso que nos vamos afundar, é mesmo estupidez.

Como nota final, é tragicamente engraçado como tanto as críticas da semana passada sobre as crianças e jovens, tal como esta instrumentalização, vem daqueles que a plenos pulmões berram para «deixar as crianças em paz» quando concerne a ensinar a respeitar. Percebemos, assim, que se trata de pura demagogia eleitoral, cavalgar no ódio alheio, nessa força que temos em nós e nos cabe domar para vivermos numa comunidade funcional, justa e fraterna. Não nos deixemos enganar pelo ódio.

[1] https://www.rtp.pt/play/p13059/legislativas-2024-debate

[2] https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/debates-2024-rui-tavares-foi-deputado-do-chega-quem-comecou-a-utilizar-os-meus-filhos-como-arma-de-arremesso-politico

2024_02_27_Deixem as crianças em paz

De várias frentes ouvimos falar da infantilização dos jovens. Desde o tempo no ecrã à falta de desenrasque, são vários os exemplos usados. Este é visto como um sério problema à autonomia pessoal, à própria vivência em comunidade. Nas universidades, local onde frequentam jovens adultos, assistem-se a cenas de secundário, onde o não-saber estar parece imiscuído em parte destes novos estudantes.

 

Não só pelo desenvolvimento pessoal, mas também pelo impacto na sociabilidade, esta é uma questão extremamente pertinente de explorar. Porque acontece? O famoso TikTok? As sensibilidades? Havendo uma diversidade de problemas, maior é a diversidade de respostas. Aquilo que me parece é que estas questões em muito se relacionam com a educação (não ensino), pelo que os pais têm mais a haver do que aquilo que é costume se falar. A par de outros fatores, são as suas atitudes que moldam os jovens. No próximo parágrafo trago um exemplo corrente.

 

Fala-se de proibir o uso do telemóvel dentro das escolas. Ora há aqui uma decisão de base que temos de tomar: pretendemos pessoas com hábitos saudáveis ou incutir proibições? Julgo estar para aparecer a criança que não veja no fruto proibido um aliciante. Além de que o que devemos almejar é que os cidadãos sejam pessoas autónomas, capazes de tomar as suas próprias decisões, tendo como base o seu bem-estar. Uma escola é uma comunidade, regendo-se como uma: salvaguardar a liberdade de cada um, assegurando a integridade do outro. Não lhe compete outras escolhas, sendo o seu objetivo basilar o ensino (dos poucos elevadores sociais que existe). Essencialmente, educar está nas mãos dos progenitores e ensinar nas da escola – que até podem ensinar sobre o assunto, dar informação. Se os pais entendem que o filho não deve usar o telemóvel na escola, então podem escolher não o deixar levá-lo para a escola – mal estaríamos se as escolas não tivessem a capacidade de comunicar com as famílias, se os alunos precisassem. Assim sendo, colocar na escola o ónus da educação, implica uma mudança estrutural da sociedade: a abolição da família. Parece-me que os encarregados de educação que usam desta retórica, que eu entendo à luz dos malefícios que os telemóveis trazem [1], acabam por se demitir da sua tarefa, é uma desresponsabilização. Ainda para mais, fazer estas discussões sem incluir as próprias crianças e jovens é, por si só, contribuir para a sua infantilização, principalmente jovens a partir do segundo ciclo, ignorando quem está no centro do potencial da proposta. Em última instância, é uma noção muito errada da democracia, onde o paternalismo é ensinar a estar calado e aceitar o que outro impõe.

 

Julgo que muitas vezes nos esquecemos de algo: jovens são tela em branco. Em tudo. De que serve queixar que o filho está perdido no mundo virtual, se o pai passa horas e horas nas redes sociais? Quantos hábitos e formas de pensar não nos compõem por esta osmose? A própria abstenção parece-me um fenómeno de imitação, onde os filhos aprendem dos pais a desilusão e impotência sobre o regime democrático.

 

Houve, há e haverá sempre um conflito geracional, é algo inerente à nossa existência. Resta-nos tentar ser melhores, tentar refletir mais estruturada e aprofundadamente. Muitas vezes não nos apercebemos das nossas incoerências por, simultaneamente, não pensarmos em tudo a mesmo tempo, dividimos em compartimentos, mas que vida faz sentido sem pontes entre eles?

 

[1] https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2024/jan/10/smartphone-screentime-good-bad-expert-advice

2024_02_20_Nós não começámos o fogo

Todos temos esta intuição de olhar para o nosso tempo e colocarmos as mãos à cabeça, talvez como forma de nos sentirmos parte de um tempo especial, que nos sirva de conforto existencial. Estou certo de que a nossa História é mais estática do que parece: os problemas são os mesmos, apesar de se apresentarem com contornos distintos. Gostamos muito de dar destaque ao tempo, mas é no espaço que se jogam muitas desigualdades e idiossincrasias. Falo do espaço como coordenada, urbanismo, ecologia, nacionalidade, instituição, tradição, objetos,… Não obstante a tudo isto, partilho aqui algumas preocupações que tenho particularmente tido. Partilho-as como forma de dar visibilidade, mas também para fazer o clique a quem considera que não estamos a ir por um caminho grave.

Desde logo, começámos o mês com o espectro de uma ameaça direta e assertiva à nossa democracia: a possibilidade da polícia não colaborar nos procedimentos das eleições a 10 de março [1]. Por muito justa que seja a luta das forças de segurança públicas, é completamente injustificável colocar em causa a nossa democracia. Termos declarações deste teor feitas nos 50 anos do 25 de abril deve fazer-nos refletir em como é fácil perder algo que damos por garantido.

Há uma outra situação gravíssima que só estes dias me tenho apercebido: a violência contra jornalistas. Portugal é um país seguro e calmo, um nas posições cimeiras no mundo. [2] O editorial conjunto das redações do Fumaça e do Setenta e Quatro, perto da sua conclusão, elenca quatro situações, além daquela que lhe dá origem. [3] São 5 situações em dois meses – 8 jornalistas agredidos. É inconcebível que em parte destas situações tenha sido a própria polícia a agredir, mesmo havendo a identificação de jornalistas.

Claramente tem de haver uma clarificação e uma reflexão estrutural sobre a polícia que está a atingir um ponto de rutura muito perigoso.

No ambiente de campanha temos, também, muitos dissabores. Desde logo, a interrupção infeliz que Luís Montenegro fez a Mariana Mortágua no debate: “Posso interromper?”, perguntou Montenegro; “Não, não pode”, respondeu Mortágua; Montenegro afirma “Poder posso mas não quero, poder posso mas não quero.” É impressionante como o líder do segundo maior partido tem uma intervenção deste tipo. Além da infantilização do debate, temos uma ponta do patriarcado em que vivemos. Muito se falou sobre o assunto e muito se percebeu como as mulheres na política têm a vida muito dificultada. No debate de Montenegro com Inês Sousa Real ficou claro o desrespeito do líder da AD.

Como se não bastassem estes episódios, ainda temos a prova de como a comunicação social escolhe dar palco, desproporcional, ao Chega. Não é pura negligência violar as regras dos debates e dar a Ventura e a Montenegro 19min a cada, quando o tempo máximo tem sido 14min – situações houve que acabaram o debate sem chegar aos 11min para infelicidade dos candidatos. [4] Como se não bastasse, há o recurso a ferramentas pseudocientíficas para valorar os debates, como o «Pulsómetro». [5]

Nós não começámos o fogo, mas temos a responsabilidade de o controlar e extinguir, sob pena de sermos queimados.

[1] https://www.publico.pt/2024/02/03/politica/noticia/sinapol-admite-forte-possibilidade-protestos-policias-impedirem-eleicoes-2079193

[2] https://www.visionofhumanity.org/wp-content/uploads/2023/06/GPI-2023-Web.pdf

[3] https://fumaca.pt/psp-agride-jornalistas-do-fumaca-e-setenta-e-quatro/

[4] https://www.publico.pt/2024/02/16/politica/noticia/debates-televisivos-esticaramse-tempo-ventura-principal-responsavel-2080463

[5] https://twitter.com/joaobernarciso/status/1755292164400050184

2024_02_13_A nossa pluralidade

Escrevo estas linhas na sequência das regionais passadas, enquanto açoriano e candidato. Julgo que, mais, estou em crer que estas linhas possam servir de reflexão para qualquer pessoa que se interessar pelo assunto.

Um dado que me parece importante é notar a força que alternativas aos dois principais partidos têm conseguido. Em 2012 eram 14594 votos, em 2016 eram 16186, em 2020 eram 24348 e em 2024 são 21519. Que se note que em 2020 estão-se a incluir os votos no CDS e PPM, pelo que o número cresceu. Claro que se pode argumentar que este aumento é natural, porque há diminuição da abstenção. Bem, antes de mais a abstenção só diminuiu em 2020 e em 2024, além de que podia diminuir e as pessoas optarem por votar só nos dois grandes. Há, efetivamente, um desconforto com o estado de coisas que faz candidaturas alternativas a PS e PSD serem mais atrativas. Digo desconforto e não descrença, porque me parece que esta última se traduz na abstenção.

Esta aposta na alternativa resultou na pluralidade de termos 8 partidos na Assembleia. Isto é excelente porque permite: as alternativas terem um palco de afirmação, mas também de trabalho, podendo, mais do que falar, propor e votar. Nós podemos ver o que essas forças defendem e o que estão a fazer, tendo uma antevisão do que poderá ser o seu trabalho se chegarem ao executivo.

O grande desafio é se conseguir eleger projetos alternativos por círculos eleitorais mais reduzidos: 2 ilhas elegem 4 deputados cada, 4 elegem 3, 1 elege 2. Se na Terceira com 10 já é difícil e em São Miguel com 20 são duas forças alternativas, que, no máximo conseguem eleição simultânea, não é certamente fácil termos uma alternativa com um crescimento que rompa com o bipartidarismo. Não obstante, esta conclusão tem mais de mentalidade e cultura do que de pragmatismo. O nosso sistema eleitoral, com a compensação, torna-nos num exemplo de sucesso no que concerne ao respeito pela percentagem de votos na respetiva percentagem de mandatos. Tem em conta que são 57 deputados, um partido conseguir superar 1,75% regionalmente deve garantir a eleição de um deputado (3,5% de dois, 7% de 4,…). Por vezes não será perfeito, por dinâmicas específicas de cada eleição, mas está sempre próximo dessa justiça – até porque o método de Hondt depende muito do resultado do vencedor. Isto quer dizer que, em qualquer ilha, ao se votar num partido está a contribuir para ele estar representado, mesmo que não eleja por aquela ilha. Decerto que se o conhecimento do sistema eleitoral fosse mais generalizado, teríamos mais pessoas a apostarem em alternativas mais próximas da sua identificação pessoal.

Além disso, e que particularmente afeta ilhas pequenas, está o derrotismo: se se acha que não elege, não se vota. Os votos na alternativa têm aumentado, mas nessas ilhas é são precisos pelo menos 20% para a eleição. Muitas vezes me disseram para ir para um partido dos grandes, se quisesse realmente fazer algo pela minha terra. Faz algum sentido ir para um partido com ideais que não me revejo para ter a oportunidade de trabalhar pela nossa terra? Nos Açores há muita gente extremamente capaz e séria que é fiel a si própria e, por isso, se submete à frustração partir mais pedra que o vizinho e, provavelmente, não ter resultados. Uma em cada quatro horas que estive acordado desde o início de dezembro dediquei-as à campanha, as ações e divulgações do programa. Eu e muitos outros. 1+1 são 2, as urnas começam vazias. Pior do que isto é ver que alternativas sem seriedade, vazias, sem trabalho, simplesmente à base do ódio (às pessoas e ao mundo), conseguem mobilizar mais.

2024_02_06_A descrença na política

Escrevo este artigo por volta das 23:30 de domingo (e acabo uma hora e meia depois), no calor dos resultados eleitorais. Começo por fazer uma breve análise macroscópica deles.

Estamos diante de um cenário de bipolarização. Já se antecipava essa tendência pela aposta numa coligação de direita, havendo a expectativa da concatenação de votos do PSD, CDS e PPM. Ora, não só houve concatenação como acréscimo. Mas o PS não ficou atrás, tendo também aumentado o número de votos (apesar de mingar em termos relativos). Ou seja, a diminuição da abstenção serviu para reforço destes polos. Seria interessante saber quantas pessoas não tiveram o voto condicionado pelos empates técnicos das sondagens, até porque elas próprias afirmavam um elevado número de indecisos.

Uma grande preocupação é que no meio da bipolarização tenha havido o crescimento expressivo de uma terceira força – o que não colocou em causa a bipolarização. Se virmos os votos de todos os partidos que não a coligação, o PS ou o CH, percebemos que os totais de 2020 e 2024 são muito semelhantes. Mais uma vez, parece ser a abstenção a peça chave. Houve sensivelmente mais dez mil votos, que é, aproximadamente o que estas três forças cresceram. Perceber que transferências estão em jogo é muito complicado, talvez mais tarde possa tentar avançar um cenário. Uma possibilidade é a migração do voto do BE para o PS como voto útil, algo que me parece bastante provável, até pela influência das sondagens e a estratégia do próprio PS. Existem várias dinâmicas locais que devem ser tidas em consideração e que, no fim, explicam o resultado ao final da noite.

De notar que em termos de mandatos, que, ao fim e ao cabo, é o que importa de uma eleição, a coligação conservou os mandatos que já tinha, sendo que a única mudança é interna: PSD conseguiu, se não me engano nas contas, engolir um deputado ao CDS e ao PPM – espanta-me nos comentários de domingo não se falar destas mudanças internas. Pela perda de relevo relativo do PS e BE, 3 deputados saíram destas forças, acabando nas mãos do CH. Esta, na prática, foi a única mudança na Assembleia: o enfraquecimento da esquerda e centro-esquerda em benefício da extrema-direita.

Posto tudo isto, a abstenção diminuiu, mas continua a ser, sensivelmente, de 50%. Não há como camuflar a descrença das pessoas na política. Enquanto candidato, foi o que mais senti nas ruas. Uma em cada duas pessoas (se bem que é preciso ter cuidado com a abstenção técnica) achou que o seu voto era desnecessário. Não obstante, quando olhamos para onde provavelmente foram os votos de quem em 2020 se absteve, vemos um aumento do CH.

Isto é particularmente problemático quando nos apercebemos que esta força é só retórica: fala de corrupção a toda a hora sem ter exposto qualquer caso de corrupção (como o BE fez incansavelmente e corajosamente), acusa os mais desfavorecidos de parasitismo, sem apresentar qualquer denúncia concreta, qualquer caso concreto. Em Santa Maria, o candidato (e independentemente do seu caráter) não participou em debates, tinha 9 propostas no manifesto e uma era repetição da outra, praticamente não fez campanha e quando abriu a boca, raras foram as ideias,… e, no entanto, conseguiu 170 votos.

Quase que me apetece dizer que as pessoas têm uma descrença na política e eu tenho uma descrença nas pessoas: a coisa que mais parecem valorar é o ódio, não importa o resto. Mas não o faço, porque há muitos mais que têm bom senso e estão atordoados. O castigo dos sérios que não querem governar é serem governados pelos maus. Eu farei parte dos que resistem.

2024_01_30_O que é Filosofia?

No seguimento das regras eleitorais, mais uma vez me abstenho de falar de política neste segmento.

Opto por abordar a minha área de estudo como um todo: a Filosofia. Muitas vezes me perguntam que estudo, ao que se segue a questão do que é isso em concreto? A ideia mais comum prende-se com uma coletânea de opiniões de «pessoas mortas» sobre assuntos sem qualquer dimensão prática, talvez por ser assim que muitas aulas de Filosofia possam parecer. Bem, é claro que vou defender o oposto a isto.

Como se pode imaginar, não há uma definição propriamente dita, não sendo aceite universalmente. Parece-me, aliás, que quando consideramos uma possibilidade de definição de alguém, é o momento que consideramos esse alguém um filósofo – sim, porque em Filosofia não se é filósofo, é-se considerado filósofo. Passemos ao objeto, a tentar uma descrição. Bertrand Russel afirmou que a Ciência se ocupa do que conhecemos e a Filosofia do que desconhecemos. Julgo que a ideia subjacente é a deste campo como a inquirição persistente. A Filosofia pergunta os porquês que a Ciência tenta responder – ao falar de Ciência, refiro-me tanto às naturais e exatas, como às sociais e humanas. A Filosofia é a dúvida radical, que vai à raiz, mas, além disso, que lhe dá sentido. Existem várias posições filosóficas sobre o mesmo tema, por existirem várias formas de dar sentido às questões. As teorias acabam por nos aparecer como respostas, mas todos sabemos que a uma resposta se seguem milhentas perguntas.

O essencial é, então, clarificar ao máximo o que se entende por cada palavra que se usa, cada conceito, e articulá-la. Ninguém consegue ler o nosso pensamento e não são raras as vezes que temos dificuldades em exprimi-lo. Será este um dos maiores desafios. A única regra que a Filosofia exige é a coerência, um uso correto da Lógica. A partir do momento que há um sistema sólido, sem contradições, pelo menos de maior, temos um caso digno de ir parar a um manual escolar. A beleza da Filosofia parece-me estar nisto mesmo: o livre jogo de articulação. Parece que podemos estar a dizer algo e o seu contrário, mas, se for bem feito, estamos diante uma obra de arte robusta.

Muitas vezes, o que a Filosofia nos faz é dar um passo atrás, fazer-nos enquadrar. E nesse momento percebemos como qualquer questão, de alguma forma, se relaciona com outra qualquer questão. Se pensarmos bem, isso não é assim tão estranho: todas as questões têm um denominador comum, a nossa realidade. Fui para Física para apreciar a realidade como um músico aprecia uma música e passei para Filosofia pela mesmíssima razão.

Esta tentativa de dar sentido ao mundo – ou provar a inexistência dele -, esta distanciamento e profunda reflexão, este preciosismo na noção falada, leva-nos a crer que, mais do que conteúdo, Filosofia é forma. É o bom pensar, uma espécie de método. Isto abre uma porta a uma tudologia, algo que, obviamente é indesejado. O desafio está justamente em se estar profundamente informado sobre aquilo que se aborda. É preciso ter informação para saber aquela está em falta, ou até mesmo para desconstruir e reformular. É por todos estes processos que é importante toda a gente ter um contacto com a Filosofia. A abordagem em contexto escolar de várias perspetivas sobre temas que são pescados de várias áreas, são a oportunidade de ver a forma como grandes pensadores jogaram com os seus raciocínios. O objetivo não é decorá-los, mas percebê-los. Ver como chegaram a eles. A nós, cabe-nos mundos outros.

2024_01_23_A História é cíclica ou linear?

Por respeito ao período de campanha oficial, que acarreta igualdade de tratamento aos partidos políticos, este artigo e o da próxima semana não serão sobre as regionais, nem terão conteúdo propagandístico.

Posto isto, a nossa questão: como progride a História? O que vivemos hoje é totalmente diferente do que já aconteceu, ou tem traços comuns? Haverá um outro eu que estará nestas mesmas condições a escrever este mesmo artigo no futuro? Na História há dois grandes conjuntos de teorias: lineares e cíclicas. As lineares têm em comum a defesa de uma cronologia como reta, uma evolução propriamente dita. As cíclicas realçam que os momentos históricos se repetem, mesmo que não sejam exatamente iguais e havendo progresso.

Podemos olhar para esta questão pensando no tempo, como sendo a sua extrapolação metafísica. Aliás, na Antiguidade Clássica, a cultura grega concebia o tempo, justamente, como cíclico. Tinham as mais variadas formas de o justificar e de lidar com ele, estando presente na mitologia e nas crenças de transmigração da alma – também muito presentes no mundo oriental. É o iluminismo que cimenta a visão do tempo como uma reta. O cristianismo haverá de ter dado o seu contributo, tal como a teoria darwiniana da evolução, mas o progresso tecnológico que radica do pensamento iluminista será decerto o expoente da razão como estrela polar para o futuro do Homem, rumo a um desconhecido cada vez melhor que o momento anterior.

Mais do que um problema filosófico ou da História (ou da Física), falamos de uma questão com profundo impacto social, estando aqui igualmente subjacentes teorias sociológicas. Falar de um tempo cíclico leva-nos a olhar para a História e poder vê-la de uma forma algo determinista, na medida em que identificamos um tempo muito semelhante ao nosso e especulamos o futuro com base no que aconteceu no passado – muito útil para evitar catástrofes humanas. O passado é um espelho do futuro e o trabalho do historiador é, também, fazer alertas à navegação. Claro que o modelo linear não exclui esta importância do historiador, mas tenta trazer algum otimismo, olhando para o futuro como uma tela em branco, cujo passado é mero conselheiro.

Uma noite apeteceu-me pensar diferente. Talvez seja absurdo, mas se fizer alguma das pessoas que lê estas palavras pensar, dou-me por feliz. Julgo que o nosso tempo histórico não é linear, nem cíclico: é estroboscópico. Pensemos numa bola de basquetebol que largamos: ela cai, bate no chão, sobe, desce, sobe, desce,…, até ficar no chão. Se lhe dermos um empurrãozinho para a frente quando a largamos, podemos ter uma imagem estroboscópica perfeita: tiramos periodicamente fotografias, de um mesmo local, ao espaço onde esta a bola e fazemos uma montagem, juntando todas as fotografias. Veremos nesta imagem a bola várias vezes repetidas, quase que fazendo uma linha a marcar o seu trajeto – mais espaçado aqui ou ali, denotando as várias velocidades do movimento. Um conceito perfeito para cinética na física. Mas esta bola é cada momento do nosso mundo, todo um contexto que se move estaticamente.

Dirão que esta minha imagem é cíclica, uma vez que conserva a sua maioria, que é um movimento algo aleatório. Dirão que esta minha imagem é linear, porque avança no tempo com mudanças, mesmo que com alguma aleatoriedade. Pois bem, a mim, cabe-me justificar: os nossos problemas humanos são os mesmos de sempre. Apesar do mundo progredir, o nosso contexto é essencialmente o mesmo. Isto acontece por uma razão muito simples: as nossas necessidades são sempre as mesmas, mesmo que possam assumir novos moldes.

2023_01_16_A farsa mariense (e açoriana)

Na semana passada, expus a minha visão de construção do programa, a minha matriz programática. Neste momento, julgo poder falar do outro lado da moeda: a crítica, a fiscalização. Estas duas componentes são essenciais no trabalho parlamentar, independentemente de estar no partido do governo.

Nesse domínio o Bloco está mais do que à vontade: tem sido ele a oposição que investiga e denuncia. Se não estamos a pagar 5 milhões de euros ilegais de dinheiro dos contribuintes à EDA, deve-se ao olho atento bloquista. Se sabemos que o governo fez ajustes diretos com a, então, empresa do subsecretário Faria e Castro, idem. Em Santa Maria compilámos dez exemplos, a que chamamos «10 Mandamentos», de más práticas governativas [1].

A farsa surge quando olhamos para o panorama partidário e percebemos que várias candidaturas esquecem o interesse público, que a política não é futebol. Passo a alguns exemplos.

Há umas semanas o governo visitou Santa Maria, apresentando vários projetos. Entre eles, um da Santa Casa, sob tutela da vice-presidência. O provedor da Santa Casa de Vila do Porto aproveitou o seu discurso para sinalizar carências da entidade que ficaram por resolver e que são problemas da ilha: como a extensa lista de espera de idosos dependentes em ter um espaço que os acolha. O vice-presidente, Artur Lima, optou por humilhar o provedor, numa resposta rasteira. Artur Lima desprezou os problemas de Santa Maria. Não é a primeira vez, já que é bem conhecido a sua repulsa pelo investimento no aeroporto de Santa Maria, ou basta olhar para a sua área de tutela na ilha para perceber a estagnação a que a vetou, até com elevados tempos de resposta a pedidos das entidades. Sobre tudo isto, Carlos Rodrigues, atual candidato da coligação, no âmbito do Conselho de Ilha (reunião pública), pediu desculpa ao vice-presidente pelas declarações do provedor em nome dos marienses. Como é possível o candidato submeter-se assim a quem humilha os seus? Mais: falar em nome dos marienses. Em meu nome não falou. Se alguém precisa de um pedido de desculpas é o nosso provedor pelo desrespeito de que foi alvo.

Noutro exemplo, no fim de 2022, numa audiência na Assembleia da República ao responsável pela ANA, na sequência da questão da reabertura noturna do aeroporto de Santa Maria, o deputado do Chega afirmou «"não se pode pedir a uma empresa privada que assuma prejuízos por causa do desenvolvimento de uma ilha». A ANA tem lucros de 300 milhões de euros e para a reabertura só era necessário pagar mais um salário. Entre os interesses e a ignorância, este partido é o pior que o sistema tem e tenho pena do seu candidato em Santa Maria não ter comparecido no debate.

Por fim, olhar para a execução do prometido em orçamentos e ver que se chega ao extremo de só se terem executado 5 dos 30 milhões de euros em 2022 em Santa Maria. Em 2023 a previsão baixa para 19 milhões, ainda não havendo dados de execução. Esta grande quebra deve-se muito à Iniciativa Liberal e a sua cegueira sobre o endividamento zero.

Muitas destas questões vão-nos passando ao lado no quotidiano, mas demonstram o que cada um realmente é.

A acrescer a isto, vemos que os problemas são os mesmos de ano para ano e os partidos a apostarem em políticos de carreira, que até agora foram incapazes de os resolver. É necessário ousar mudar, ter a coragem de dar a voz a uma alternativa que possa, de facto, apresentar uma nova perspetiva, com novo fulgor. Em Santa Maria, a isso me proponho.

[1] https://sites.google.com/view/santamariatemfuturo/10-mandamentos?authuser=0

2023_01_09_Afinal, como se pensa integradamente? Dois exemplos concretos

Tenho muito falado na urgência de uma estratégia, de um pensamento, interligado. Em concreto, como podemos aplicar esta noção? Para o ilustrar, usareis dois exemplos que me são próximos, como o são dos marienses – julgo que qualquer pessoa tem contexto suficiente para compreendê-los plenamente.

Algumas ilhas açorianas não contam com a presença de varroa, um ácaro prejudicial às abelhas. Trata-se de uma caraterística praticamente única no globo. Santa Maria é uma dessas ilhas, já havendo vários produtores a colocar mel no mercado. É um produto de alto valor, totalmente biológico. Havendo espaço no mercado e boas condições para se implantar, é uma excelente oportunidade de diversificação económica. Como integrar? Através de parcerias com os serviços florestais, no sentido de perceber como o ecossistema mariense potencia essa exploração sustentadamente – por exemplo, uma definição de locais de silva-mansa. Infelizmente a nossa floresta endémica está ameaçada por espécies invasoras, pelo que há uma grande oportunidade de diálogo entre o setor agropecuário e florestal, no sentido de, preservando a ilha, diversificar a economia. Ainda na questão do mel, as entidades públicas e privadas também podem ser incentivadas a ter plantas melíferas, havendo aqui uma interseção com o urbanismo. Também é possível estimular um turismo profissional, com eventos em torno deste assunto a ocorrer em solo mariense – sendo que para isso é necessário ter a garantia de boas acessibilidades. Seria, também, muito positivo que houvesse, pelo menos, um curso profissional que desse uma formação inicial aos jovens que pretendem ser produtores, sendo que isto deve ser acompanhado de apoios ao início da exploração, havendo esse interesse.

O outro exemplo rende-se com a zona do aeroporto. Santa Maria tem parte da sua identidade vinculada a este espaço, pelas décadas, em meados do século passada, de efervescência económica e cultural decorrentes da presença do aeroporto internacional. Dentro da ilha, onde as garrafas eram de barro, havia uma pequena cidade de chapa e alumínio. O declínio do aeroporto foi um duro golpe. Hoje discutimos a sua reabertura noturna, uma migalha – um tema particularmente embaraçoso, porque bastaria a contratação de um profissional, algo que não devia custar à ANA, uma vez que tem lucro na casa dos 300 milhões de euros. O nosso aeroporto tem uma potencialidade de aumentar de novo a sua importância e com isso gerar emprego e receita. Mas também é a oportunidade de pensarmos em toda a sua área: no parque habitacional, talvez a construção de novos com inspiração nesses, uma reabilitação de infraestrutura para fins públicos, como a musealização da torre antiga, um combate a infestantes, com um projeto de arquitetura paisagista,…

Agora, para isto, aquilo que precisamos é de investigação: mobilizar os recursos da Universidade dos Açores para produzir conhecimento científico sobre Santa Maria, tal como a réplica açoriana desta proposta. Temos de enunciar os grandes temas e reunir em seu torno equipas multidisciplinares, cada um com as suas visões e intersetá-las. Não quero que esse estudo, por exemplo, diga que se deve investir na reabilitação de casas devolutas: quero que digam quantas casas devolutas há, a sua localização, a sua tipologia, uma sondagem com as intenções dos proprietários, em que paisagem estão inseridas,… É à política que cabe o estabelecimento de um percurso, mas nunca se pode descurar a informação e o conhecimento.

2024_01_02_A festa da vida

Hoje apercebi-me da profunda dimensão de uma música dos anos oitenta do nosso cancioneiro português, pelo que gostava de a explorar aqui. Não obstante, aproveitando o início deste ano, parece-me apropriado abrir a narrativa e tomar uma posição mais ampla.

Desde o início dos tempos que cada um de nós procura a felicidade. Esse conceito de eudaimonia ocupou páginas e páginas de pensadores ao longo do tempo, além de estimular as nossas ciências sociais e humanas. Dentro deste último ponto, a título de exemplo, a pirâmide de Maslow constitui uma hierarquia de necessidades que, em última instância, nos leva à felicidade [1].  Até posso aqui enunciar as etapas, de baixo para cima, que vão sendo passadas: fisiologia (como alimentação), segurança (como habitação), afeto, estima e realização pessoal. Julgo que muitos de nós percebemos o quanto somos privilegiados, quando confrontados com esta lista de necessidades.

A nossa vida é, então, marcada pela busca da supressão de necessidades e é nisso que a política se deve enquadrar, sempre num ponto de vista consequente e integrado. Em qualquer altura este desafio é difícil, mas nestes dias tenho pensado particularmente na terceira idade. Felizmente, cada vez vivemos mais tempo, tal como, e em parte por isso, temos uma população mais envelhecida (olhando para os Açores e, particularmente, Santa Maria). Estas realidades levam a que tenha de haver uma aposta em respostas ao nível da saúde, segurança social, criação/ampliação de lares,… Há um grande problema de isolamento que trás invisibilidade e, como tal, uma qualidade de vida deficitária. Infelizmente, atualmente, a posição do governo regional é de preferir um apoio ao domicilio sem dar os meios para isso, fazendo com que entidades como a Santa Casa não consigam aumentar a sua capacidade para fazer face às listas de espera de pessoas idosas altamente dependentes (por não disponibilizarem financiamento para esse investimento). Pessoas que trabalharam toda uma vida e que chegam ao fim numa posição precária.

Na verdade, foi por pensar nestes assuntos que captei numa nova interpretação o «Vinho do Porto», música de Carlos Paião e Cândida Flor que nos representou na Eurovisão de 1983 [2]. Nesta obra musical temos duas partes melódicas: a primeira, que se arrasta, cheia de repetições; e uma segunda, alegre, cheia de vida. A própria letra é sensível a essa mudança com a primeira associada à produção do vinho e a segunda ao seu usufruto. Não é o vinho a alegria, antes a festa onde está, esse ambiente onde somos todos irmãos. Faz lembrar uma música que o leitor com mais interesse no Festival da Canção podia ter adivinhado pelo título [3]. Voltando ao «Vinho do Porto», esta componente do labor não tem necessariamente de ser vito como um constituinte negativo da vida, antes como uma mecânica que precisamos para a comunidade viver na sua «festa», na sua realização. Um leitor mais pessimista talvez diga que, na verdade, a música reflete a vida: um início de trabalho e uma reforma de festa – infelizmente, na realidade, esta última parte está muito longe da verdade.

Aquilo que me apraz é justamente salientar este dar e receber, o trabalho para a comunidade e o saciamento das nossas necessidades, ambos contribuindo para a felicidade. Que 2024 traga muita felicidade!

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Hierarquia_de_necessidades_de_Maslow

[2] https://www.youtube.com/watch?v=X1jsclRxrWw&ab_channel=FestivaisdaCan%C3%A7%C3%A3o

[3] https://www.youtube.com/watch?v=vJPZ5mc0Eis&ab_channel=RTP


2023_12_26_O pensamento ecossistémico

Nesta altura do ano seria o mais indicado ter uma mentalidade natalícia ou fazer um balanço do ano. Pois bem, a minha criatividade não chega para trabalhar o tema que quero aqui trazer nesses moldes, pelo que o apresento em bruto e quem o ler, se assim o entender, pode fazer uma ponte com a altura do ano.

Assim sendo, termino o ano com um apelo ao pensamento sistémico: coabitamos um ecossistema. Em última instância, esse ecossistema é a Terra e percebemos melhor do que nunca a gravidade que desequilíbrios ambientais geram, bem como o poder do humano em desencadeá-los [1] – só não notamos mais, porque, felizmente, habitamos num país, dito, desenvolvido [2].

Desengane-se, contudo, quem achar que falo apenas de ecologia. As alterações climáticas são o exemplo por excelência dos impactos em ecossistemas: nós, que fazemos parte do ecossistema, lançamos gases com efeito de estufa para a atmosfera, ocorre o efeito de estufa, dá-se a acidificação dos oceanos (um processo natural para contrabalançar a nossa emissão de gases), animais marinhos não conseguem desenvolver as suas conchas e esqueletos [3], essas espécies desaparecem dessas zonas, os seus predadores também,… É só uma linha das milhentas possíveis de mostrar que vivemos em teia. Também podemos falar do enorme número de refugiados climáticos, ou de quebra de mão de obra por questões de saúde decorrentes de ondas de calor ou poluição, ou a destruição de edifícios em inundações ou a sua inutilização pelos materiais não suportarem as amplitudes térmicas [4]. Tudo problemas políticos.

Deixemos de lado as alterações climáticas. Olhemos para o nosso mel. Os Açores são uma região privilegiada para a sua produção, por ainda não ter a prevalência de um ácaro prejudicial às abelhas [5]. Trata-se de uma excelente oportunidade para diversificação económica! Contudo há outras ameaças, como a mudança da flora que as abelhas polinizam. Não obstante, é possível combater essas espécies invasoras e ainda obter vantagens económicas [6]! A investigação em biologia dá-nos esta visão da tal teia que devemos trazer para tudo. A investigação científica dá-nos modos de compensar e melhor operar aquilo que pretendemos.

Os desequilíbrios que hoje provocamos artificialmente só podem ser explicados pela presunção e ignorância. Por olhar ao próprio umbigo e pela relutância à ponderação e investigação.

Cada proposta que vemos em cima da mesa (e em campanha eleitoral veem-se muitas), tem várias consequências a vários níveis. Um exemplo: a ausência do navio de passageiros para Santa Maria levanta maiores custos para a realização de eventos e escoação de produtos, reduz o número de turistas de outras ilhas, reduz as emissões por via marítima, aumenta aquelas por via aérea, mitiga uma rota deficitária, implica mais custos em viagens aéreas,…

Em suma, o que quero transmitir é que o quer que façamos ou decidimos consequenta mais que o seu objeto. Pensemos integradamente.

[1] https://news.un.org/pt/news/topic/climate-change

[2] https://news.un.org/pt/story/2023/09/1820467

[3] https://noticias.uac.pt/wp-content/uploads/2023/09/Revista-17_09_2023-12317-Paginas-12e13-Edicao.pdf

[4] https://climate.ec.europa.eu/climate-change/consequences-climate-change_pt

[5] https://fnap.pt/seis-ilhas-dos-acores-reconhecidas-como-indemnes-de-varroose-pela-uniao-europeia/

[6] https://www.publico.pt/2019/08/02/p3/noticia/conteira-planta-capacidades-necessarias-substituir-plastico-1881902

2023_12_19_Uma luta de egos

“O mundo é um palco e todos os homens e mulheres são meramente personagens”, segundo Shakespeare. Penso que é fácil termos esta relação: quanto mais não seja pelos dias em que nada nos parece fazer sentido, em que perguntamos, afinal, porque fazemos o que fazemos? e a cada porquê colecionamos novas incertezas. Nesses momentos, tendemos a ver o mundo como uma farsa, uma aparência, onde somos marionetas e nem sabemos se somos quem controla os fios. Há aqueles dias em que não nos voltamos para o mundo, mas para a sociedade: porque é que me submeto à legislação, a papeis?, qual a legitimidade da nossa democracia?, afinal, o poder é um mero conceito. Nesse momento as nossas instituições esfumam-se e sentimo-nos, quase, como os outros animais - digo quase por estes também terem as suas instituições. O mundo é, portanto, um palco, uma ficção à qual tentamos dar sentido. Hoje, gostava de fazer uma outra alusão a partir da célebre frase shakespeariana: o mundo como palco de egos.

 

Desde logo, perceber de que forma uso os termos. O mundo, naturalmente, é o ambiente onde estamos, o espaço que partilhamos na nossa vivência. Já o ego corresponde à nossa resposta à pergunta quem somos?, trata-se do conjunto de crenças, opiniões, que temos sobre nós próprios. Quando dizemos que alguém tem o ego inflamado, quer dizer que se tem em grande consideração. A forma como nos vemos, naturalmente, não é necessariamente coincidente com o que as outras pessoas vêm em nós - nem a como de facto somos, se é que é possível ser dessa forma. Não obstante, mesmo não coincidindo, o ego afeta a nossa forma de estar no mundo. Dito isto, penso ser natural afirmar que aquilo que todos procuramos é ter um ego positivo, reforçá-lo, estimulando a nossa auto-confiança e auto-estima, o nosso bem-estar. Assim sendo, não só o nosso ego impacta as nossas ações e visão do mundo, também o queremos agradar. Daí se segue que as nossas ações são maracadas pela tentativa de reforço do ego. E está criada a ficção: não sabemos o que somos, sabemos o que queremos ser e dançamos neste palco da “melhor” forma que conseguimos - julgo que para a maioria de nós as aspas não se aplicam.

 

Julgo que esta última visão não nos incomoda particularmente, afinal, o único problema parece ser as pessoas incorrerem no mal para benefício próprio, contudo, esse problema pode-se argumentar que sempre acompanhará a História da Humanidade. O problema, parece-me, é quando o próprio bem sai afetado: quando dentro do campo do moral e legítimo (segundo o sentido comum) se entra numa competição. Quando podemos falar de palco para luta de egos.

 

Esta é uma luta normalizada. Neste sistema somos linhas num papel que diz onde estudámos e trabalhámos. Para fazer face, valoriza-se a quantidade à qualidade, retirando o genuíno e omitindo as verdadeiras questões. Não temos nada a ganhar com o evitar de discussões, já basta nos camuflarmos para parecermos bem.

 

Em jeito de comentário final, penso ser esta uma das razões para vermos poucos filósofos e formados em Filosofia como políticos - discutem-na academicamente e mediaticamente, mas sem tomar uma participação no real processo de decisão. Como facilmente duvidam e notam esta coreografia de aparências, quase como se perde a esperança numa real consequência. Talvez também aqui haja uma misantropia que pode vir de pensar o Homem - que se note que não estou a dizer que os filósofos são misantropos.

 

Posto tudo isto, é uma maravilha poder estar para conhecer pessoas tão fantásticas.

2023_12_12_O nosso intelecto é democrático

Os problemas são mais fáceis do que parecem e as respostas mais difíceis do que se possa intuir. É esta a mensagem que, hoje, pretendo transmitir. Ela parece-me especialmente importante num período como este, que antecede duas campanhas eleitorais (para as regionais açorianas e as nacionais, ambas antecipadas). Vejamos por partes:

O que quero dizer com «problemas»? Refiro-me a todo e qualquer enunciado que se possa ter ou fazer. Toda a afirmação que possa ser colocada sob a forma de pergunta. Se amanhã chove, o que se entende por Mecânica Quântica, como redistribuir rendimentos, quando se deve fazer uma média, porque é que o carro está a fazer um barulho estranho, como se processa a fotossíntese, o que está alguém a sentir,… Mais gerais ou mais concretas, mas práticas ou mais abstratas, são tudo problemas.

Porque parecem difíceis? Aqui falo da dificuldade que é perceber o problema, sabermos a forma da peça que falta, mesmo não sabendo como está pintada. Ora, se o meu carro não anda, até posso conjeturar um conjunto de possibilidades, mas como não tenho muitos conhecimentos de mecânica, não consigo avaliar a situação de forma a escolher (sem ser aleatoriamente) a solução que posso ter equacionado. Portanto, a dificuldade de perceber problemas é que para saber a forma da peça que falta, temos de saber as peças que estão à volta: como ninguém sabe tudo, torna-se complicado. Há problemas que requerem muita energia mental, ou empatia, que nos afasta de os tentar perceber.

Mas então, porque não o são? Nós vivemos na era da informação, não só porque há uma enormidade de desenvolvimento técnico e científico a ser feito diariamente, mas também porque dois terços das pessoas têm acesso à internet [1], o maior reservatório dessa informação, além de cerca de 320 000 bibliotecas públicas no mundo [2]. Todos nós temos um cérebro para pensar e, com tempo, todos conseguimos entender quais as peças que definem os contornos de qualquer problema.

O que quero dizer com «respostas»? Uma resposta é, portanto, uma teia de ideias que é coerente com as premissas do enunciado, a peça que completa o puzzle. Desta forma, mesmo que coloquemos um problema como tendo como possibilidades de resposta «sim» ou «não», a simples escolha de uma palavra não é inteiramente uma resposta, por carecer do que lhe dá substância. Nunca devemos negar justificação às respostas.

Porque parecem intuitivos? Como seres racionais e criativos, mesmo que não queiramos, o nosso cérebro está sempre a funcionar. Quando ligamos isto aos nossos instintos, obtemos as intuições: quando nos debruçamos sobre um problema temos um palpite quase instantâneo. Na verdade, o nosso sistema social empurra-nos para termos de responder na hora, sendo o melhor exemplo os exames académicos. É-nos estranho alguém ter de pensar.

Mas então, porque não o são? A cada resposta há uma quantidade de novos problemas.

Enquanto entes de razão temos a possibilidade de recolher e sistematizar informação. Um problema é perceber que falta uma peça. Só se estivermos esgotados, não conseguimos concluir essa ausência. Podemos pensar criticamente. Uma resposta é saber que peça falta. Mais difícil, pode ser qualquer coisa. Mas a nossa capacidade de sistematização é capaz de avaliar as respostas que as pessoas vão dando e perceber se o puzzle fica com bom aspeto com essa peça, isto, se há coerência. Podemos pensar criticamente. Não nos deixemos levar por discursos fáceis, pensemos.

[1] https://news.un.org/pt/story/2022/09/1801381

[2] https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000246778

2023_12_05_A nova comunicação política

Isto não está bonito: estamos no meio de duas crises políticas, uma nacional e uma açoriana. O espetro da corrupção, dos casos e dos casinhos, vai assombrar a agenda como combustível para demagogia e não como discussão sobre propostas para aumentar a transparência e as boas-práticas públicas. 

Outro dia, apareceu-me um vídeo no TikTok da JP de Lisboa, de janeiro deste ano [1]. Tratava-se de um excerto do espaço de comentário onde têm a palavra Cecília Meireles e Mariana Mortágua. Em letras garrafais, sempre no vídeo, a JP afirmava «Cecília Meireles desconstrói a demagogia de Mariana Mortágua e do BE».* Fui ver por curiosidade. Falavam de habitação, Mortágua a explicar porque a construção não é necessariamente uma solução. Posto isso, julguei que a desconstrução fosse a demonstração por parte de Meireles como tal ideia é falaciosa. Mas não. A ex-deputada do CDS-PP não aponta qualquer contra-argumento sobre a questão, escolhe mostrar-se insultada por Mortágua a associar à defesa de «interesses», acusando-a de demagogia. Isto é desadequado por duas razões: toda a gente tem interesses e Mortágua não acusou Meireles de estar a ganhar nada com a sua posição. É triste ver uma reação deste tipo num dos quadros mais capazes do CDS, e ainda mais triste a JP considerar que este excerto em algo desconstrói a demagogia.

Na verdade, o vídeo é um excelente exemplo de demagogia. Em tempos recheados de populismo e demagogia temos tendência em confundir estes dois conceitos. A demagogia é a manipulação com fins políticos. O populismo é a defesa de um «nós» e «eles». [2] Este vídeo é demagogo, porque está apresentado de forma a que a pessoa tenha interesse em clicar, acabando a ver uma pessoa a falar num tom de voz assertivo e elevado, sem conteúdo. Isto leva-me à mensagem principal que queria aqui trazer: a novilíngua na comunicação política. Ainda antes disso, dizer que a posição de Mariana Mortágua, ao afirmar a existência de interesses de um grupo económico, enquadra-se numa perspetiva populista, por ser uma oposição entre interesses de dois grupos (normalmente uma grande maioria em oposição a uma pequena minoria**). Este populismo económico não deve ser confundido por demagogia, uma vez que não se socorre de mentiras [3] e tem conteúdo político.

Sobre a novilíngua, lembrei-me fazer o exercício de ir ao Youtube do CHEGA: ARRASA, EMOCIONANTE, VERGONHA, ÉPICO, FARSA, FRAUDE, MARIMBAR, TERRORISTAS. Isto tem de ser uma nova língua, porque em português não significa nada. É conteúdo desprovido de significado, onde ficamos minutos a ouvir uma pessoa aos berros.

Eu até comecei por conceber este artigo como glossário, mas é impossível, porque as palavras pura e simplesmente só existem em forma, para captar a atenção, são usadas indiscriminadamente.

*Não deixa de ser curioso o facto das minhas pesquisas terem uma clara tendência à esquerda e o algoritmo do TikTok e do Instagram mostram-me conteúdo de direita. O Facebook é um caso mais extremo, estando de vez em quando a mostrar e a sugerir uma página de apoio ao Estado Novo – tive de a bloquear para deixar de aparecer no meu feed. A agenda de quem controla o algoritmo está forte em Portugal, tenhamos todos muito cuidado.

**Há um populismo extremamente perigoso, aquele que se socorre na vertente social, atacando minorias como aquelas sexuais, étnicas, raciais,… O racismo e a xenofobia usam muito esta oposição entre «pessoas de bem» e aquela «minoria que tem de ser combatida», como os imigrantes ou os ciganos.

[1] https://www.tiktok.com/@juventudepopularlisboa/video/7192368351224548613

[2] https://lawliberty.org/between-demagoguery-and-populism/

[3] https://wid.world/


2023_11_28_Não digam que não foram avisados

No dia 10 de novembro de 2023 houve a assinatura de dois protocolos de colaboração entre o Politécnico do Porto (P.PORTO), a Universidade do Porto (UP) e os Serviços Sociais da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP) com o objetivo de permitir aos agentes das forças policiais acederem aos serviços de alimentação das instituições de ensino a partir de dezembro. [1] Este desenvolvimento não aparece do nada, uma vez que já no início do ano o ministro da Administração Interna afirmou essa vontade, embora num espírito nacional. [2] Trata-se de uma decisão muito mal pensada essencialmente por duas razões.

Em primeiro lugar, porque as cantinas já se encontram cheias, havendo enormes filas para ter as refeições. Quando as condições de conforto não estão garantidas para a própria população académica que é suposto servirem, como se pode pensar em responsabilizar estas entidades pela alimentação de mais gente?

Em segundo lugar, juntar estudantes e agentes policiais num mesmo espaço faz lembrar um clima muito pouco democrático, principalmente numa altura onde se fazem sentir vozes estudantis por uma mudança nas políticas ambientais. [3] Como pode o ministro da Administração Interna falar em «fomentar a convivência» entre estudantes e polícias quando temos notícia de uso desproporcional de força [4] e uma detenção por uma pessoa ter dito para verem se a polícia não roubou nada enquanto esta os revistava [5]? Como se pode ver isto se não como uma forma de dissuadir os alunos de se manifestarem, ainda por cima quando a direção da FLUP em maio os silenciou? [6] O próprio ministro parece não esconder o que está subentendido ao dizer «[os agentes podem] socializar com os estudantes, que vivem muitas vezes momentos que exigem uma atenção especial» [1]. Uma atenção especial pela polícia?

Há uma vilificação de ativistas, mesmo daqueles que protestam pacificamente, que colocam o direito à manifestação em causa. As metas para apaziguar as alterações climáticas estão ainda muito aquém. [7] Estes jovens que estão a ser detidos estão do lado certo da História, a defender uma Terra habitável, a defender vidas. Esta medida das cantinas pode resultar numa situação tumultuosa que só vai dar a ganhar à extrema-direita.

Que se note, por fim, que ninguém se deu ao trabalho de disponibilizar publicamente os protocolos. Não há respeito pelos estudantes, nem pela academia.

[1] https://noticias.up.pt/cantinas-da-u-porto-abrem-as-portas-aos-elementos-da-gnr-e-psp/

[2] https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2023/01/19/psp-e-gnr-vao-poder-comer-nos-refeitorios-das-universidades/316524/

[3] https://expresso.pt/sociedade/2023-11-24-Mais-agressivos-e-violencia-progressiva-universidades-e-policias-preocupadas-com-ativistas-jovens-defendem-se-e-falam-em-repressao-9acc5a5e

[4] https://www.publico.pt/2023/11/17/azul/noticia/situacoes-excepcionais-repressao-protestos-clima-levaram-policia-volta-universidades-2070671

[5] https://www.publico.pt/2023/11/24/azul/reportagem/activistas-ocupam-ministerios-marcha-ate-ambiente-invasao-infraestruturas-somam-20-detidos-2071482

[6] https://www.publico.pt/2023/05/02/azul/reportagem/direccao-mandounos-calar-assim-fez-silencio-clima-faculdade-letras-porto-2048165

[7] https://www.publico.pt/2023/11/14/azul/noticia/caminho-errado-so-vamos-reduzir-2-emissoes-ate-2030-43-necessarios-2070210

2023_11_21_Contacto, a minha revolução

Hoje não me apetece falar da atualidade. Abrir um jornal e ver o que lá vem até dá arrepios (e nós podemos estar na ponta da europa, mas ainda assim no conforto da europa). Vou aproveitar para deixar aqui uma sugestão de leitura que me tem ocorrido.

Para ajudar a que aquilo que vou escrever faça sentido, convém fazer um pequeno resumo dos meus hábitos de leitura antigos: enquanto pré-adolescente e adolescente preferia ler divulgação científica e histórica, sentia ser por eles que podia construir um sentido sobre o mundo. Nesse sentido, colocava a ficção num patamar inferior, restringindo-me a alguns clássicos e os pedidos escolarmente. Esse preconceito foi caindo aos poucos, principalmente quando me apercebi que a ficção científica ou as utopias/distopias nos levavam as pensar, mas ainda assim continuava nos clássicos.

Em paralelo, em 2014 comecei a ler Carl Sagan, um dos maiores divulgadores de ciência de sempre, e pus-me a ler a sua obra toda (o que continuo a fazer). Se fui para Física, em muito se deve a Sagan. Se acabei em Filosofia, muito se deve a Sagan: o meu livro preferido dele é «Um Mundo Infestado de Demónios» [1] que, mais do que divulgação científica é um manifesto ao ceticismo, à educação e à literacia, além de uma tentativa de compatibilizar ciência e religião. Sagan foi um pensador que sabia bem que a Ciência não sobrevive por si só e há muitos demónios a assombrá-la – e que afetam as nossas vidas, como ganham dimensão política.

A revolução em mim, contudo, foi quando olhei para a prateleira da Bertrand do Parque Atlântico e o «Contacto» [2], único romance de Carl Sagan. Já antes o tinha visto, mas, como se pode imaginar pelo que disse antes, nunca tive vontade de o levar. Naquele dia foi diferente. Aconteceu. No fim de 2019 ou início de 2020 dei comigo a devorá-lo.

O que Carl Sagan fez foi uma versão ficcionada de toda a sua obra científica: através da narrativa abordar os vários assuntos. Percebi que matérias sociais, humanas, as questões que falei sobre o «Mundo» são aqui trazidas não só com a paixão do narrador, mas também as emoções das personagens. Talvez o que me tenha feito cair o preconceito com toda a ficção, foi justamente perceber que o estudo/especulação literária das emoções e sentimentos levam ao aprofundamento das matérias. Isto nem é complicado de perceber: e são o guia da nossa racionalidade. São o reflexo da nossa inteligência. Como gosta muito de dizer uma professora minha, são dinâmicas de tensão.

Podia colocar aqui inúmeros excertos de diálogos vertiginosos das personagens – sempre numa linguagem quotidiana. Podia exemplificar o sentido humor sempre presente. Podia sumariar o fio condutor da narrativa, muito bem construída. Penso que mais vale deixar para quem for ler esse prazer.

No na seguinte à morte do autor, foi lançado o filme baseado nessa obra. [3] Como é habitual, o livro leva a melhor. É interessante que até a emoção da leitura me parece um pouco mais forte, apesar de ser habitual os filmes serem fortes na empatia que pretendem atingir.

Fica aqui esta sugestão, talvez de esperança, talvez de inspiração, que possa abrir novas protas.

[1] Carl Sagan, Um Mundo Infestado de Demónios, Gradiva, 4ª edição, 2012.

[2] Carl Sagan, Contacto, Gradiva, 3ª edição, 2012.

[3] Contact, Robert Zemeckis, Warner Bros, 1997.

2023_11_14_Um livro e um avião, como dignificar pela autonomização

O local que me parece propício a uma maior concentração é estar confortavelmente sentado num avião. Talvez seja pela ausência de internet, consigo estar duas horas e meia a ler belamente. Na passada quinta apliquei esse método para ler um livro [1] de um professor sobre o qual tinha alguma curiosidade (a minha motivação até era mais pela forma do que pelo conteúdo).

Apesar de não ser o meu interesse ler rigorosamente sobre escolástica medieval, houve uma noção que me arrebatou: autonomizar é dignificar. Conferir autonomia é permitir que alguém se concretize, que possa definir o caminho que pretende trilhar. É justamente aí que reside a dignidade: a pessoa tem um caminho a fazer, um propósito para existir. Dar autonomia é dar espaço à realização do propósito.

O projeto político deve ser autonomizar, que é como quem diz, garantir possibilidades. Garantir que duas mulheres possam casar – o que não obriga que todas as mulheres casem com mulheres. Garantir que pessoas possam abortar ou requerer eutanásia – o que não obriga a todas as pessoas abortem ou requeiram eutanásia. Garantir que o SNS dê resposta a pessoas trans – o que não obriga a que pessoas cis tenham de usar esses mecanismos. Dar possibilidade não é conferir obrigatoriedade. Do mesmo modo, dar autonomia é garantir que uma pessoa abaixo do limiar de pobreza consiga frequentar o ensino superior, se o desejar – o que não obriga a que todas as pessoas frequentem esse ensino. Garantir que toda a gente tenha uma resposta aos seus problemas no SNS sem ter de pagar balúrdios. Penso que a questão dos rendimentos é a mais ilustrativa: num sistema onde a moeda rege a qualidade de vida, há que garantir que cada pessoa tem o suficiente para viver (muito acima de sobreviver). O Estado tem de garantir que o rendimento mais baixo de todos garante uma vida boa.

Há uma grande complexidade que se gera, quando nos apercebemos que as pessoas se organizam em pequenos grupos, as famílias – sendo elas muito diferentes entre si, com necessidades diferentes. O desafio do Estado é conseguir garantir resposta dos serviços públicos fundamentais e prestar apoio às anomalias da vivência individual: como ter filhos, ajudar o associativismo,... escolhas individuais que edificam a comunidade – para além das questões individuais que acima já se mencionou. Além de criar condições económicas para garantir uma ampla oferta cultural, estabilidade na criação de empresas e justiça social.

Que se note que autonomia não é independência. Autonomia do indivíduo perante o coletivo, mas reconhecendo-se como parte deste. Vivendo em comunidade, estamos submetidos a um sistema, a uma estruturação e burocracia. Para assim vivermos, precisamos de confiar nas instituições e respeitar as suas regras. Para termos um Estado que nos ajude a autonomizar, temos, por exemplo, de pagar impostos. Uma questão importante, claro, é como se distribui o poder no Estado: a democracia, enquanto cada cidadão poder exercer a sua voz, ser eleito e eleger, é, também, autonomizar. Como última nota, falar no coletivo é, também, falar no individual sobre a forma do outro: saber respeitar o espaço daquela e o seu caminho – tão legítimo como o de qualquer um.

[1] REBALDE, J., Liberdade humana e perfeição divina na Concordia de Luis de Molina, (Col. Textos e Estudos de Filosofia Medieval, nº 7) Húmus Ed., Famalicão 2015; ISBN: 978-989-755-162-8. 

2023_11_07_Recortes da atualidade

Há tanto que se passa e que me parece relevante, que decidi, hoje, fazer uma manta de recortes sobre temas da atualidade: falemos de pântanos políticos no meio do Atlântico, de rendimentos e de lavagem cerebral.

Escrevo este artigo no sábado, quando Nuno Barata anunciou o voto contra o Orçamento e Plano Regionais para 2024. [1] Podemos afirmar com toda a convicção que este Governo morreu. Mantendo-se o cenário tal como está, não haverá qualquer documento para 2024, assumindo o executivo de Bolieiro um papel de gestão corrente. Poderá ainda acontecer poder haver algum acordo de última hora, uma mudança no sentido de voto, mas parece-me que este cenário, na verdade, é o melhor possível para a direita açoriana. Eu até arriscaria dizer que esta coreografia já vinha sendo delineada desde 2020, acordada em compadrio entre os partidos da coligação e do ex-apoio parlamentar.

Mesmo com este fracasso, o governo consegue acabar a legislatura, ou, pelo menos, levar a que as eleições não soem a antecipadas. Frente ao eleitorado, empunhará a taça de chegar ao fim, sendo uma alternativa credível ao PS. Como a memória coletiva tende a ser curta, as tensões, zangas, trafulhices, serão empurradas para debaixo do tapete. Se fôssemos agora a eleições antecipadas, se o governo se demitisse, o eleitorado estaria em contacto direto com a instabilidade.

O mesmo se passa com os ex-parceiros, na verdade: apesar de sem eles não ter sido possível este governo, já no início deste ano decidiram começar a distanciar-se, de forma a poderem disputar o seu respetivo espaço. Tentam manter a energia de 2020, ignorando os seus contributos desastrosos na política executiva – a tal memória curta.

Mas isto não seria possível sem o contributo decisivo de uma pessoa: Marcelo Rebelo de Sousa. O mesmo Presidente que dissolveu a Assembleia da República por o Orçamento ter sido chumbado, apesar do Governo não se ter demitido, é o mesmo que, vendo o mesmo cenário, mas agora na sua área política, não se pronuncia, nem assedia a oposição. Marcelo tem uma agenda muito clara.

O Eurostat divulgou dados sobre rendimento segundo o poder de compra dos países europeus no ano de 2022. [2] Portugal é o sexto país com os rendimentos mais baixos, terceiro da zona Euro. Além disso, a par do sul e este europeus, tem uma desigualdade de rendimento maior do que a média europeia. [3] Esta realidade é ainda mais gritante nos Açores. [4]

Nas poucas palavras que me restam, deixar nota da lavagem cerebral que o governo italiano está a levar a cabo: uma revolução cultural que normaliza a visão fascista. Meloni, que se tenta apresentar como uma moderada, tem levado a cabo um processo de nomeações de ideólogos de si próximos para diretores artísticos, programadores e responsáveis de museus. [5] Que ninguém subestime o poder da cultura.

[1] https://acores.rtp.pt/politica/iniciativa-liberal-vota-contra-proposta-de-plano-e-orcamento-para-2024/

[2] https://www.publico.pt/2023/11/03/economia/noticia/rendimentos-portugal-sao-sextos-baixos-ue-compra-2068934

[3] https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Living_conditions_in_Europe_-_income_distribution_and_income_inequality&stable=1#Income_inequality

[4] https://diariodosacores.pt/NewsDetail/ArtMID/380/ArticleID/11583/Risco-de-pobreza-teve-o-maior-aumento-nos-A231ores-em-2021

[5] https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/nov/03/the-lord-of-the-rings-italy-giorgia-meloni-tolkien

 


2023_10_31_O mundo também arde nos ilhéus

Num destes dias estava estacionado no sofá e a testemunhar a diversidade de conteúdos dos canais de televisão. Num daqueles acessos de saudade, coloquei na RTP Açores e fiquei a ver as Notícias do Atlântico. Lá vi uma reportagem sobre a Conferência Internacional sobre Alterações Climáticas que não deixa ninguém indiferente: os Açores fazem parte deste planeta, não só vão sentir os efeitos do aquecimento global, como já os sentem. [1]

Apesar de já ter lido uma exposição rigorosa do que foi mencionado na Conferência [2], não me parece de todo desadequado trazer para aqui o assunto e explorá-lo um pouco.

Desde logo, ecoar as conclusões apresentadas na Conferência:

Fazendo a média das temperaturas mínimas de 1971 e 2000 e daquelas entre 1991 e 2020, apercebemo-nos de um aumento de um grau centígrado. De notar que a Conferência de Paris (2015) estabelece esforços para o aumento ficar por 1,5 graus, sendo que já em 1997, em Quioto, se pretendia um aumento máximo de dois graus.

Recorde-se que o aumento da temperatura leva ao derretimento das calotas polares, subindo o nível das águas do mar, potencia fenómenos como o El Niño, só para dar alguns exemplos à escala global. O aumento de um grau é capaz de branquear corais, aumentar a reprodução de gafanhotos e diminuir as áreas férteis para café, entre outros exemplos concretos.

O número de dias com temperatura máxima acima dos 25 graus centígrados aumentou, no período já mencionado, de 48 para 61, um aumento de 27%. Significa isto um aumento de secas, havendo também uma diminuição da precipitação – as ondas de calor são particularmente problemáticas para a saúde de grupos de risco, como idosos. Também ocorre um aumento de dias de chuva intensa. Ou seja, há um aumento de fenómenos extremos.

Justamente, nos períodos de 30 anos considerados, assistiu-se a um aumento de ciclones tropicais de 20 para 35. Além do aumento deste total, a intensidade também saiu reforçada: entre 1971 e 2000 houve 2 ciclones de intensidade igual ou superior a 3, enquanto entre 1991 e 2020 houve 11 – um aumento exponencial.

Finda esta descrição, aproveito para mencionar a monitorização de gases com efeito de estufa na Terceira da responsabilidade do IPMA. [3] Ao olharmos para os dados notamos a clara tendência de aumento do dióxido de carbono e metano. Muito pouco rigorosamente, olhando para o gráfico do dióxido de carbono, podemos afirmar que a cada ano há um aumento de 1,82 ppm, sendo que no globo esse aumento é de 2,27 ppm. Apesar da ligeira diferença nestes ritmos, apercebemo-nos que os valores absolutos são muito semelhantes.

Há uns poucos anos foi publicado um artigo científico sobre a evolução e previsão das alterações climáticas nos Açores. [4] Nele afirma-se justamente «Os resultados das recentes previsões de vários modelos climáticos, indicando o aumento da temperatura do ar e a diminuição da quantidade de precipitação, são também claros em relação ao aumento de eventos extremos na região dos Açores».

Preocupemo-nos.

[1] https://acores.rtp.pt/local/alteracoes-climaticas-conferencia-internacional-alerta-para-a-necessidade-de-mitigacao-das-variacoes-do-clima/.

[2] https://www.acorianooriental.pt/noticia/temperatura-media-e-numero-de-ciclones-tropicais-esta-a-aumentar-nos-acores-355003

[3] https://www.ipma.pt/pt/oclima/gases.estufa/

[4] https://www.ipma.pt/pt/media/noticias/documentos/2021/Alteracoes_Climxticas_Aumento_eventos_extremos_Acores.pdf

 


2023_10_24_Reforma ou revolução?

Quando falamos de alterar o mundo em que vivemos, fica a questão do método, independentemente da meta: como aplicar a mudança? Como é que a mudança se relaciona com o tempo? A nossa utopia, a sociedade a que queremos chegar, é atingível através das instituições já existentes? A evolução precisa de uma rutura que coloca as massas na rua? No fundo, reforma ou revolução?

Este tema ocorre-me no seguimento de uma discussão de cantina, como de costume. Nesta, tive um amigo a tentar demonstrar como o que dizia contradizia o que lhe tinha dito há dois anos – o que facilmente pode acontecer, a mudança de opinião é normal. Neste caso, tinha plena noção da minha coerência, mas a constipação esgotou-me as faculdades mentais. Então agora estou em casa a pensar sobre este assunto, com o objetivo de sintetizar e sistematizar uma visão pessoal sem referências diretas.

Desde logo, penso ser importante perceber que existem várias dimensões associadas à nossa utopia (aqui uso utopia como a sociedade que pretendemos atingir), pelo que pode acontecer que a resposta à questão, reforma ou revolução?, pode ser diferente para cada uma. Estas vertentes mencionadas resumem-se em três: política, economia e social.

A vertente política consiste na organização do poder, ou seja, nas estruturas e instituições que se consideram legítimas para tomar decisões. Monarquia, oligarquia, tecnocracia, anarquia, democracia (direta, representativa,…),… são tudo possibilidades de regimes que se diferenciam pela forma como representam o poder.

O lado económico consiste na forma como se distribuem os recursos. O sentido comum é pensar no dinheiro como expoente máximo do recurso, sendo isso, claro, resultado da circunstância em que vivemos. Não obstante, o dinheiro serve, justamente, para controlar a obtenção de recursos, sejam produtos ou serviços.

A dimensão social relaciona-se com a carga cultural, muito ligada também a questões de ética. Lutas como feminismo e ativismo queer enquadram a sua ação aqui. Trata-se, portanto, da forma como as pessoas se veem e se relacionam entre si, bem como a perceção do eu.

Apresentadas estas definições tentarei defender a dinâmica como me parece que cada uma deva ser modificada:

A parte política é aquela que agenda e delibera as decisões, sendo que, enquanto fonte de poder, condiciona as outras dimensões. A questão de como distribuir o poder é importantíssima numa sociedade, sendo necessário um forte alinhamento dos cidadãos. Justamente por isso, parece-me importantíssimo que as mudanças de regime sejam manifestadas pelas massas. Se se mudou de regime sem uma revolução, existe uma forte possibilidade do anterior regime viver de alguma forma. A utilização de referendos seria a forma mais racional e pacífica de consumar a alteração do poder – sendo muitas vezes feito como validação de alterações aos sistemas eleitorais.

A vertente económica seria a queria mais vantagens a ser mudada por uma revolução, por ser a que tem um impacto material na vida quotidiana das pessoas. Contudo a atual burocracia, complexidade e desigualdade acabam por a tornar insustentável. As reformas progressivas serão então mais prudentes.

No campo do social percebemos que existe uma inerência cultural: o pensamento é dependente do tempo, havendo uma evolução muito visível. O que hoje consideramos certo, amanhã pode ser visto como questionável. É necessário ter um espírito reformador que permita a evolução cultural.

Por fim, notemos que estas dimensões estão interligadas, sendo esta anatomização um exercício teórico.


2023_10_17_Quem tem medo do drag?

Há já algum tempo que não fazia um daqueles artigos, pessoais?, sobre temas muito estranhos. Hoje isso fica resolvido. Durante a semana passada passei por uma longa constipação que me atirou para a cama e para o sofá, sem grande capacidade de trabalho. Não obstante, no sábado de manhã deparei-me com a nova música de Troye Sivan, «One of your girls». [1] Esta foi a raiz das várias questões que se seguiram.

A música em si versa sobre a dolorosa e não rara realidade de gays se apaixonarem por héteros, a melodia fica no ouvido, não sendo particularmente ousada. Julgo que o grande impacto advém do videoclipe. No vídeo, numa primeira parte, temos a filmagem de vários homens, entre eles Troye Sivan, que têm um interesse romântico no Ross Lynch (uma estrela-adolescente de há dez anos na Disney). Há uma evolução para só o cantor e o ator serem os protagonistas, estando o primeiro a fazer drag (ou seja, adotar a expressão que associamos à mulher, desde a roupa, maquilhagem à postura). Neste contexto, o que se pretende é mostrar a submissão do sujeito lírico à paixão proibida que sente.

O que mais me tocou foi justamente contactar com esse ato inesperado de drag: os contactos anteriores com essa atividade foram sempre circunstanciais, onde já contava com a sua presença, como ao ver RuPaul's Drag Race. Apesar de nunca me ter manifestado crítico ou desgostado, ao saber ao que ia, os meus preconceitos eram acionados, levando a uma homofobia internalizada – nomeadamente sobre homens homossexuais socialmente afeminados. Aqui, apanho desprevenido, vi-me confrontado com uma nova realidade que me cativou imenso.

As questões pessoais que se despertaram com este encantamento resultaram em questionar se não seria bissexual: aquela pessoa está a representar a forma como vemos uma mulher. Vendo outros exemplos do tipo (até para saciar questões mais sociológicas) percebi que a atração não era sexual, mas antes uma experiência estética, como quando olhamos para o Jardim das Delícias Terrenas de Bosch. Despido do preconceito, percebi que era arte o que me chegava.

Encontrei um artigo deste ano [2] do vencedor do prémio «Pulitzer para a crítica» onde é abordada a questão estética e a relação com as políticas conservadoras (e autoritárias) que têm proliferado nos Estados Unidos da América. O ponto principal é que drag é uma forma intrinsecamente antipatriarcal, que vai contra a elite dominante e, por isso, um alvo a abater a bem da estabilidade do poder. O artigo explica muito melhor do que podia aqui deixar esta questão, bem como origens, significado e importância do drag.

Isto deixa-me a porta aberta para o pensamento de uma importante filósofa norte-americana, Judith Butler – publicou em 1990 uma obra basilar sobre o tema. Deixo aqui referência a uma pequena entrevista muito interessante. [3] Para ela, o género é uma construção social (algo que atualmente parece óbvio) – sendo o sexo atribuído à nascença e podendo ser corrigido posteriormente. O género é, na verdade, uma performance, sendo que o que consideramos como sendo um homem ou uma mulher um conjunto de fatores culturais. Masculinidade e feminilidade são performances. Fazer drag é provar isso mesmo: que as categorias somos nós que as colocamos.

Nós podemos escrever-nos a nós próprios.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=ZhGl8McrOHo

[2] https://www.latimes.com/entertainment-arts/story/2023-02-22/aesthetics-of-drag-gop-legislature

[3] https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2021/sep/07/judith-butler-interview-gender

2023_10_10_A minha avó

A minha avó é uma ilha. Era. No passado dia 4 de outubro a nossa família ficou um pouco mais pequena. Desde já peço a paciência do leitor, mas esta semana o presente artigo não pode ser de outro modo senão esta homenagem.

Estes dias mais intensos, à distância da família (voos cheios), são só mais toleráveis pela presença de pessoas amigas. O facto da maior parte não saber do sucedido permitiu manter a normalidade e evitar um isolamento severo. Não se trata de uma negação da dor: olhar a vida como quem olha uma formiga, reconhecer a sua fragilidade e a necessidade de a agarrar. Este era o sentido, profundamente otimista, de Angelina Bairos Pereira: «Amanhã também é dia».

Esse otimismo, companheiro de viagem, é, talvez, a marca do seu nascimento humilde. Uma entre a fraternidade de 9 que viviam na serra, rebentos de um tradicional casal rural. Uma vida marcada por valorar o que se tem, onde a felicidade, longe do nosso conceito utópico, é a fonte da força. Estou longe de dizer que foi uma vida fácil: foi uma vida de trabalho, foram rugas vincadas pelos obstáculos da vida, mas sempre com um amanhã. Os meus avós conseguiram criar 7 filhos, deram-lhes a oportunidade de estudar fora: é comovente como, sempre que chegava a Santa Maria, a primeira pergunta que me fazia era «Como vão os estudos?» A preocupação com a emancipação dos seus, o grande respeito pelo Conhecimento. A minha avó tinha a mais básica da «instrução», até chumbou um ano só por ser mulher, mas reunia em si a cultura, os saberes e a experiência que a tornaram uma sábia, além de asceta. Tivesse nascido noutra altura e noutro local e teria sido igualmente um exemplo, ter sido em 1939 e em Santa Maria foi praticamente milagre.

Talvez a melhor imagem que tenha é a do seu sorriso: uma espécie de imagem de marca que expressava a sua alegria (ou a não audição de algo). A sua voz que, no início de cada frase, parecia desenhar um princípio de superposição singular. O seu pragmatismo holístico, o encarar a realidade moldando aquilo ao nosso alcance e aceitando o que nos extravasa, é o mote que nos deixa. Um hedonismo minimalista, com prazer sincero: nunca precisou de muito para se satisfazer. Isto não é o mesmo que dizer um conformado com a vida: é a adaptação às circunstâncias. É não deixar ninguém para trás: seja a família ou amigos. É o vigor, mental e físico, de ser árvore que viçosamente cresceu durante 84 anos e que, quando o xilema deixou de circular, foram 3 meses de dúvidas: um deles no hospital, o último fora da cama, com o bem-estar da família, tendo a agonia da partida durado menos de uma semana. Até a morte a minha avó encarou com a força e pacificidade da vida. Sabia o seu tempo.

Uma octogenária que vê num ilhéu de 97 quilómetros quadrados o seu mundo diz «A gente somos como somos» - ela sabe que, na verdade, nós somos o mundo, cada pessoa é um microcosmos. As palas somos nós que as pomos. Estou confiante que existem mais Angelinas no mundo. Mais do que confiante: esperançoso. Esta é a minha e, por isso, sinto-me sortudo.

Do seu legado fica o conhecimento, a tradição, a comida, as histórias. E a memória. Memórias de ser criança junto de si a imitá-la, assassinando uma folha de papel com uma agulha e linha, enquanto se via O Preço Certo, de quando tranquei as portas da carrinha e dela saí com as chaves lá dentro durante uma vindima, dos jantares de caldo de nabos, do seu pão (perfeito e que me arrancou dois dentes de leite)… Se houvesse microscópios que analisassem identidades, parte substancial de mim seria Angelina.

A minha avó era uma ilha. É. 

2023_10_03_O rifte em ação

Face ao caótico cenário que nos chega do Atlântico, parece-me pertinente esquematizar em alguns pontos os desenvolvimentos recentes.

 

Das eleições deste ano na Madeira surgem-nos resultados iguais aos de sempre, mas num cenário novo. Quero com isto dizer que a configuração de forças na assembleia regional da Madeira será em tudo igual ao que anteriormente foi. O resultado de Cafôfo em 2019 foi uma anomalia, não existindo uma verdadeira segunda força. Não obstante, o cenário é novo, porque essa fragmentação surge sem o partido no executivo ter a maioria absoluta.

 

Uma noite sem vencedores: o estrondoso desempenho da coligação não apaga o histórico das maiorias absolutas, tecendo estas uma enorme sombra; o CDS provou-se uma inutilidade eleitoral para o PSD, sendo, neste momento, um partido fantasma no executivo; o PS voltou ao que era; o JPP não se afirma como alternativa de poder; o CH emerge, mas não conseguirá influenciar a governação; a CDU manteve-se; BE e PAN regressam à assembleia, mas representam uma fatia bastante reduzida do eleitorado.

 

Desde o primeiro discurso na noite eleitoral ficou evidente o pragmatismo do PAN em assegurar a sua influência. Miguel Albuquerque, melhor do que ninguém, percebeu que essa disponibilidade lhe garante maior estabilidade do que uma IL que se pretende afirmar ideologicamente. Já nos Açores é evidente essa dinâmica, tendo o deputado da representação parlamentar do PAN votado favoravelmente ou abstido na votação de grandes documentos, apesar da maioria já ter os votos necessários – e com menos histeria que CH e IL.

 

Engraçado é estarmos a comprovar a instabilidade destas forças, CH e IL, com a possibilidade do chumbo do Plano e Orçamento Regionais para 2024, levando a eleições antecipadas. Não será, obviamente, um ato inocente nem idealista, é uma tentativa desesperada destes atores se distanciarem de uma governação fracassada que apoiaram e influenciaram. O desinvestimento público da IL e o vazio aleatório do CH aprofundaram sérios problemas da região. A sede do CDS e PPM em colocar os seus boys nos cargos de nomeação (e em concursos públicos dignos de uma verdadeira meritocracia), valeram uma administração pública tão infestada como o legado do PS.

 

Recentemente, no "Quando há excesso da população, abate-se", já enunciei graves problemas que este governo não resolveu, ou aprofundou, problemas que toca de fachada, sem uma reforma estrutural que resolve ou melhore substancialmente a situação.

 

Pessoalmente, pertuba-me, também, muito a ausência de seriedade: o candidato do CH na Madeira a colocar baixa na pré-campanha; a IL na Madeira, depois de abrir a porta a Albuquerque, sendo o "adulto na sala", e sabendo do acordo com o PAN, vem num discurso que grita "agora nem queria"; um CH nos Açores que só berra repetidamente como está constantemente a romper os acordos; palavras de catavento, atitudes interesseiras, além da governação em função de si.

 

Tudo isto lembra um livrito de sátira política ficcional de Ian McEwan: A Barata.

 

E por tudo isto preocupemo-nos: estamos a caminhar por cima de um Rifte em efervescência. Um direita que se norteia pelo objetivo único de se manter no poder: sem programa, sem escrúpulos, só desmesura e egoísmo. Na Madeira, Albuquerque presunçosamente dizia que se demitia se não conseguisse a maioria absoluta: para ele, o que lhe interessava era o seu poder absoluto. Nos Açores, podemos ter eleições antecipadas, porque as forças de direita se querem afirmar politicamente isoladas dos seus fracassos. Há centenas de anos que vivemos em cima de um rifte, saibamos lidar com este.


2023_09_26_As pérolas do Atlântico

Não sei se rio, ou se choro. Na passada quinta, li no Público uma reportagem sobre as eleições na Madeira – publicada nesse mesmo dia. [1] Os três jornalistas fizeram um grande trabalho de desconstrução de discursos e investigação muito importantes para os eleitores não terem à sua disposição as narrativas partidárias – nenhuma candidatura principal foi poupada. Talvez a única nota que tenha ficado de fora foram as advertências da CNE a Miguel Albuquerque sobre instrumentalizar a sua posição de presidente do governo regional em seu favor – algo que o Público noticiou no mesmo dia dessa reportagem.

Ficamos a saber que o candidato do Chega colocou baixa durante a pré-campanha: impossibilitado, supostamente, de fazer esforços, meteu-se a fazer arruadas ao lado de Ventura – são estas pessoas que falam em «malandros». Mas aquilo que mais me chocou foi uma passagem que inclui o nosso próprio deputado açoriano desse partido – e que aqui reproduzo:

«Quando José Pacheco, deputado regional do Chega nos Açores, apareceu junto da comitiva, Castro [cabeça-de-lista do CH na Madeira] felicitou-o dizendo aquela ser a “união nacional”. Pacheco sorria, sendo imperceptível perceber se eles entendiam o que acabava de ser dito.»

Para o caso de o leitor não estar a ver imediatamente a pertinência da referência e do comentário dos jornalistas, tenha em conta que «União Nacional» é o nome do extinto partido salazarista, partido único do Estado Novo. Temos agentes políticos, potencialmente, a convocar a memória de uma organização fascista. Julgo ser evidente a problemática. Claro que podem dizer que foi só uma expressão infeliz: nesse caso, não deveria Pacheco reagir de forma distinta da de um sorriso? É possível termos na casa da democracia açoriana um deputado que desconhece a História recente do seu país?

Este episódio lembrou-me uma música dos Pet Shop Boys, de 2019, [2] que afirmava, numa tradução livre minha, «Pessoas inteligentes já tiveram o seu dizer / É tempo dos idiotas mostrarem o caminho / Vamos levar este mundo a uma dança alegre / Vamos dar uma oportunidade à estupidez» e continuava com «Esquece o politicamente correto, eu digo W-T-F / Não quero pensar sobre o mundo / Quer falar de mim próprio / Em vez de governar com ponderada sensibilidade / Vamos chocar e estupeficar o mundo com ódio idiota».

Como somos o fruto das nossas circunstâncias, da «sorte», ontem, no meio de uma fraterna aventura para apanhar um autocarro, li um livrinho que me deu uns conceitos capazes de colocar em ordem intuições que já tinha, sendo que os associei a esta questão: como evitar este mal da ameaça da extrema-direita, como cortá-lo pela raiz? Cohen [3] diz-nos que o nosso sistema se baseia no egoísmo e no medo, condições humanas, pelo que o caminho para um melhor sistema é redirecionar para a generosidade – o grande desafio é construir esse mecanismo, algo que o capitalismo fez muito bem com aqueloutras. A cereja é a «amizade social»: «não se pode ser amigo dos milhões de pessoas […] Basta que eu trate todas […] com quem me cruzo com a atitude de reciprocidade […] da amizade.» Cooperação em vez de competição.

Enquanto escrevo estas palavras, os madeirenses estão-se a fazer ouvir nas urnas, não sabendo ainda o desfecho – podia ficar até tarde a aguardar, como já fiz aqui noutros momentos, mas julgo que o meu comentário não é assim tão bom para ter de fazer parte da multidão de comentadores que se vão acotovelar nestes dias.

[1] https://www.publico.pt/2023/09/21/politica/noticia/eleicoes-madeira-regiao-insiste-circular-direita-2064211

[2] https://www.youtube.com/watch?v=P9jEuHbB0GQ&ab_channel=PetShopBoys

[3] Cohen, G.A., Socialismo. Porque não?, Gradiva, 2016

2023_09_19_A importância do humor

Já há umas semanas que tenho andado à espera de que o Polònia (TV3) voltasse das suas férias para dar seguimento às suas publicações. Trata-se de um programa catalão de televisão que, entretanto, emigrou para o Youtube [1]. O seu conteúdo é muito semelhante ao nosso DDT ou Estado de Graça, apesar de produzir, relativamente, mais musicais. Trata-se de curtas satíricas que retratam figuras públicas, a maior parte da política, centrando-se na forma como lidam com os temas da atualidade.

Cartoons e ilustrações que figuram na comunicação social também são formas humorísticas de olhar a atualidade. Temos muito bons cartoonistas que vivem do seu trabalho, destacando-se mesmo a nível internacional. Um cartoon animado que gosto muito é o Spam cartoon, pequenas curtas que contam com muita gente para serem produzidas. Elas são, aliás, transmitidas na RTP Play. [2]

O Ricardo Araújo Pereira e a sua equipa são provavelmente o exemplo mais mediático da atual sátira política. Mas precisamos de mais. De recuperar o DDT ou o Contra Informação. Aumentar a oferta desses conteúdos.

Falar humoradamente da atualidade é dar informação a pessoas que provavelmente não a teriam. O facto de haver figuras públicas, como apresentados ou humoristas, ou representações de figuras públicas, gera a curiosidade mesmo de quem não pretende inteirar-se propriamente das notícias. É claro que estes conteúdos são caricaturas, mas radicam da verdade. É claro que são enviesados, mas daí a importância de haver mais de uma fonte de conteúdos disponível – tal como sucede com aquele jornalístico.

Aliás, há alguns projetos de jornais satíricos, associados a jornais [3] ou não [4]. Fake news que são divulgadas como tal, não tentando enganar ninguém, antes entreter com a realidade.

Além da questão pedagógica e de tentar levar a informação a mais gente, pelo menos a curiosidade por ela, a sátira tem um papel na consciencialização e mobilização. Estou convencido que a democracia reserva um importante papel para estes espaços: incutir humildade aos líderes, conferir humanidade às figuras públicas. Perceber que os cargos são ocupados por pessoas, que o ideal democrático é ele poder ser alcançado por qualquer pessoa, desde que seja apoiada pelas massas. Perceber que a crítica é fulcral num ambiente plural. Perceber que o sentido de humor é um instrumento quotidiano. Perceber que o riso é uma necessidade.

Pus-me a escrever este texto nem tanto a pensar no panorama nacional, mas sim nos Açores, ou mesmo a um nível local. Apesar de não termos as representações que referi com saudade, há muito trabalho nesse sentido (maioritariamente for da televisão) e até feito por «anónimos». É a olhar para a realidade regional que vejo uma lacuna: tendo uma cena política complexa, uma dinâmica política própria, com imensos atores regionais, fará todo o sentido aplicar o humor nesse contexto. Bem sei que há alguns cartoons, às vezes alguns podcasts, mas não tenho conhecimento de nada mais, muito menos um real investimento nesse sentido. Seria muito relevante a RTP Açores tomar uma ação nesse sentido. Dinamizar os profissionais da cultura na região a criarem uma sátira regular e de qualidade à atualidade regional.

De forma semelhante para o poder local: pelo menos a comunicação social procurar alguns apontamentos humorísticos, tentar mobilizar pessoas para essa criação. Tentarei isso no Pensar Santa Maria.

[1] https://www.youtube.com/@polonia

[2] https://www.rtp.pt/play/p4088/spam-cartoon

[3] https://expresso.pt/inimigo-publico

[4] https://imprensafalsa.com/

2023_09_12_Manifesto e Pensar Santa Maria_quando as formigas tomam uma atitude

A amizade leva-nos a muitos portos, coloca-nos em longas viagens. No final de junho deste ano, um amigo começou-me a falar de formar um movimento. Vinha com o entusiasmo de participar noutros círculos, como coletivos de luta pelo direito à habitação, que têm um importante trabalho na mobilização de indivíduos para dar visibilidade a causas. O seu entusiasmo era justamente de ver ser possível o cidadão anónimo participar quotidianamente na construção da democracia.  No entanto ele percebeu que na sua faculdade não há uma cultura de participação – tendo lá estudado antes, sabia exatamente do que falava. Este novo movimento seria, portanto, uma forma de consciencialização. Um coletivo cuja atividade é promover o espírito crítico e a participação cívica, a par de divulgar os movimentos e associações que já existem com muito bom trabalho feito.

Às vezes aquilo que é preciso é só de um empurrão. Tentar expandir horizontes, para compreender o mundo que nos rodeia e o nosso papel nele. Construirmos a nossa comunidade é a nossa liberdade.

Neste momento o Manifesto, este coletivo que foi formado com mais amigos em comum, já é público e tem uma ManiFesta agendada para dia 19 de setembro, pelas 18:00, na «Rotunda da Boavista» [1]. Pretendemos fazer tertúlias, convívios, sessões de cinema, clube do livro,… Tudo atividades que permitam gerar reflexão, abordar temas e explorá-los. Tentar criar um ambiente fraterno onde é possível uma franca partilha de experiências e conhecimento, tal igual como quando estamos entre amigos na cantina a conversar. Ao mesmo tempo, falar do que se pode fazer, dos grupos que já existem a trabalhar nesses temas.

De tanto pensar neste projeto portuense em Santa Maria, em agosto percebi que se podia fazer algo numa lógica semelhante na ilha: o Pensar Santa Maria. Criar um espaço onde pessoas qualificadas falam dos temas das suas áreas de estudo, da forma como as desenvolver na ilha, como desenvolver a ilha através delas e informações úteis para o quotidiano de cada um de nós. Mais do que isso, lançar mensalmente uma extensa recolha de informações e entrevistas a pessoas e entidades sobre determinados temas – a Ágora. Escolher um tópico e explorá-lo exaustivamente, falando com as pessoas que lidam com ele na ilha. O que se quer é gerar uma reflexão estruturada, correta, factual e informada sobre Santa Maria

Pensar Santa Maria pode ser visto como um think tank, sendo independente. No entanto, apesar de haver um esqueleto e alguns jovens, o projeto precisa de ajuda para andar, pelo que deixo aqui a presença digital [2]. Aquilo que mais me fascina neste projeto é o anseio pela universalidade do acesso à informação. Democracia é também garantir que todos têm o máximo de informação, razão pela qual o grande objetivo deve ser a edição impressa enviada gratuitamente para todos os lares marienses.

Estes projetos têm em comum quatro aspetos: quererem aumentar a participação cívica, o debate e ação; serem um grupo informal de jovens e alicerçarem-se digitalmente. O mundo digital potencia os grupos informais, ou seja, sem personalidade jurídica como associações, por permitirem um acesso à partilha de conteúdos gratuita. Trata-se de uma plataforma privilegiada para atingir grandes audiências sem custos.

A minha esperança é estes novos projetos, nas costas do Atlântico, demonstrarem que é possível ter um impacto na nossa comunidade, mesmo que só com o poder da palavra.

[1] https://www.instagram.com/manifesto.porto/

[2] https://linktr.ee/pensarsantamaria


2023_09_05_Quando há excesso da população, abate-se

António Ventura é um político com uma forte veia lírica: não contente com a invenção da máquina do tempo, no início de junho, quando disse «uma visão estratégica […] é a capacidade de ir ao futuro ver como está a ocorrer e voltar ao presente», na semana passada decidiu abraçar o pragmatismo afirmando «quando há excesso de população, abate-se». Talvez não pareça algo com tanta força ou impacto, contudo os dezanove gamos florentinos que perderam a vida devem ter uma opinião distinta.

Estou longe do génio retórico de António Ventura, não obstante posso tentar reproduzir a sua fórmula.

Quando o escaravelho japonês e a rugulopterix okamurae se tornam pragas, assobie-se. Quando se tem uma dívida a uma empresa com 49,9% de participação privada, pagam-se juros acima dos legalmente necessários. Quando cheira a bazuca europeia, encha-se os bolsos da clientela. Quando abre vaga nos concursos públicos, contrate-se o boy. Quando um governante detém empresas, adjudique-se. Quando há um Faria e Castro, arranje-se uma Rosa Costa. Quando a mobilidade inter-ilhas é realizada exclusivamente por avião, privatize-se. Quando se quer melhorar a mobilidade, afunde-se as ligações marítimas. Quando a única forma prática de mover dentro de Santa Maria é de carro, conserve-se as estradas esburacadas. Quando uma ilha se queixa de poucos voos, mande-se a camioneta do Q200. Quando se elogia os festivais, corte-se-lhes o apoio. Quando a natureza é a imagem de marca, despreze-se a Rocha dos Bordões. Quando a saúde é parente pobre, ignore-se as dezenas de milhões que a região não transfere desde 2021 às Unidades de Saúde de Ilha. Quando se anuncia pomposamente um concurso internacional, adjudique-se o máximo permitido a uma empresa para cumprir o mesmo propósito. Quando se quer sustentabilidade ambiental, aplaudam-se os cruzeiros na região. Quando se cria um apoio à natalidade, que se exclua 73% das famílias açorianas. Quando se quer sufocar a região, que se opte pelo endividamento zero. Quando se quer aprofundar a autonomia, que se empurre para 2026 um nova Lei das Finanças Regionais. Quando se quer desenvolver a região, cesse-se o investimento público. Quando é preciso, maquilhe-se as contas. Quando a inflação dispara, rejeite-se qualquer controlo de preços. Quando se quer ilhas com mais carros que pessoas, aumente-se o preço dos transportes públicos. Quando se diz muitas vezes que o custo de algo não vai subir, é subi-lo.

Entretanto, com toda a pesquisa que fiz, perdi a vontade de continuar. É com cada má decisão atrás de outra que torna impossível um açoriano ler isto e não ficar maldisposto. Quando vamos ter uma região que se preocupa com as pessoas? Que não coloca os interesses económicos primeiro? Que não coloca a politiquice primeiro? Quando vamos ter uma região que é mais do que uma fachada verde? Queremos ou não a sustentabilidade ambiental? Na altura em que vivemos esta pergunta só tem uma resposta e ela obriga-nos a deixar o greenwashing de lado e tomar medidas a sério. Não é por termos árvores, lagoas e vacas que somos uma região sustentável. É quando a energia é fornecida por fontes renováveis, quando a mobilidade é sustentável, quando a via pública é verde,… Peguemos na máquina do tempo e percebamos que sermos fritos pelo alcatrão, habituarmo-nos a derrocadas e furacões é um assunto sério. Percebamos que as pessoas que as pessoas o que querem é viver a sua vida sem ter de se preocupar com ter um teto, comida em cima da mesa ou respeito. Elas têm de ser realidades quotidianas.

Quem paga são os gamos e os açorianos.


2023_08_29_O sentido de humor

Por vezes, dá-nos para pensar, melhor dizer, cismar. Quando a realidade de desfoca parece entramos em devaneios, sendo os mais espantosos os insights: esquecendo qualquer premissa, temos uma conclusão que consideramos robusta, uma verdade que nos aparece e ilumina. Chateia-me quando me esqueço dessa informação que durante instantes achei a coisa mais genial do mundo. Chateia-me ainda mais não perceber bem como eles funcionam, se seguem um formato lógico de conhecimento latente, se são um berro de um excerto do devaneio consciente, etc. Psicologia e neurociência para quem disso percebe, esta minha introdução foi só para dizer que ontem, salvo erro, tive um desses episódios, sendo que achei interessante explorar a ideia que se me veio.

O sentido de humor é o maior entrave à comunicação (tendo-se por base interlocutores com uma língua comum, claro). Não sou especialista em linguística, psicologia, antropologia ou sociologia, por isso perdoem-me quem o é e achar esta afirmação uma barbaridade.

A comunicação é a forma pela qual se transmite informação, ou pelo menos cria, entre interlocutores, sendo uma presença contínua no quotidiano de quem não vive solitariamente no meio de uma selva. Temo-la por via oral, gestual, escrita, visual,… Pessoas, publicidade, livros, filmes,… Uma vez que o meu ponto está na incompreensão, fará mais sentido pensarmos num grupo de duas ou mais pessoas. Como posso saber à priori se um grupo funcionará bem? A resposta mais óbvia parece-me ser se houve um denominador comum, um tema, em que todos se sentem incluídos. Podemos estar a falar de amigos de uma pessoa, de funcionários de uma mesma empresa, estudantes de um mesmo curso, adeptos de um desporto, por exemplo.

Não obstante, chegará um tema em comum? O facto de estarmos numa mesa onde todos falamos, com prazer e algum conhecimento, de política é suficiente para percebermos o que estamos a dizer uns aos outros? Que se note que não estou a falar de filosofias, como a impossibilidade de colocarmos em palavras o nosso pensamento, mas do outro apreender a intenção e conteúdo que pretendemos que apreenda. Aquilo que me parece é que não: talvez funcione na introdução da interação, mas, mais tarde ou mais cedo, vai haver uma comunicação que se perde no emissário. Uma poderosa aliada da compreensão mútua é a empatia, tendo em conta que o que nos faz estar a gostar mais ou menos de uma conversa é como ela nos faz sentir, sendo que isso depende da forma como vemos e interpretamos emocionalmente o outro. Quanto mais forte for essa harmonia emocional, melhor será a comunicação. Claro que uma pessoa pode nutrir empatia por alguém que não gosta particularmente, mas como há um esforço mental extra, facilmente se entende que há um entrave a uma boa comunicação.

Uma das expressões faciais que se consideram universais é o sorriso, a alegria. É interessante que ao vermos alguém a sorrir, sorrimos. A alegria é-nos tão importante a esse ponto, sendo que é capaz de gerar empatia. Se olharmos para os nossos tempos livres (difíceis no tempo em que o trabalho é o centro da vida), aquilo que fazemos é socializar para sermos felizes. Se examinarmos esses momentos, percebemos que o riso é uma espécie de constante. Piadas, anedotas, bocas, histórias, palhaçadas,… são fontes de riso. Mas sabemos que aquilo a que achamos graça pode ser muito diferente do que o outro acha graça, claro. Então olhemos para os grupos sociais. Parece que há uma seleção natural que faz com que as pessoas com sentidos de humor semelhantes se vão agrupando, surgindo, aliás, as piadas internas.

O sentido de humor é uma espécie de impressão digital na comunicação.

2023_08_22_A politiquice das nossas procissões

O verão é fértil nas festas populares, em todas as freguesias e municípios temos celebrações religiosas, nomeadamente, missas e procissões. São estes momentos as mais expressivas manifestações da fé católica nas nossas ilhas.

Nestas alturas temos as ruas adornadas, os tapetes de flores nas estradas, e animação à noite. Tanto nós como os turistas regalam os olhos para aproveitar ao máximo o tempo de descontração e alegria.

Mesmo não sendo um fervoroso crente, vejo estes momentos como manifestações culturais que enriquecem a nossa cultura e trazem a comunidade para a rua, num convívio intergeracional. Um evento religioso, uma feira do livro, um festival, um acontecimento desportivo, um teatro,… Tudo formas de dinamizar. Normalmente, os eventos religiosos têm inerente a participação gratuita que é um garante da universalidade de participação (dentro da comunidade religiosa, claro está). Toda a cultura (como a educação) deveria ter esse caráter de acessibilidade, não obstante, não é essa discussão que pretendo explorar.

Na passada terça, dia 15, no feriado da Nossa Senhora da Assunção, assisti à procissão que ocorreu em Vila do Porto. É notória a desmobilização de participantes e, até, de observadores. Olhando em volta, parecia-me claro que larga fatia dos que observavam eram emigrantes ou turistas. Trata-se de algo que tem acontecido progressivamente, sendo transversal a vários eventos. Quer se trate da energia mental sugada por ter um salário ao fim do mês, ou um posicionamento arcaico da Igreja, é uma evidência que deve gerar discussão – no entanto, não me parece que haja menos cristãos, da mesma forma que os abstencionistas têm pensamento político e os ausentes de palestras/tertúlias têm cérebro.

O que me traz aqui hoje é que, mesmo havendo uma desmobilização de participação nas procissões há sempre um segmento assíduo: os políticos. Ocupantes de cargos públicos, autárquicos ou regionais, vestem as melhores roupas para desfilarem na praça pública, tentando mostrar as boas pessoas que são. Este espetáculo acontece em todo o lado, sendo, talvez, o cúmulo açoriano desta evidência o Santo Cristo dos Milagres em Ponta Delgada, com a presença de figuras políticas regionais.

O problema que aqui trago é muito simples: o nosso Estado é laico. Os assuntos públicos não são moldados em função de qualquer religião, da mesma forma que qualquer cidadão tem o perfeito direito de escolher a sua religião, sendo proibida qualquer discriminação. Esta linha entre crença e coisa pública é importantíssima por ser um garante de liberdade e autonomia (do Estado e do indivíduo). Nos parágrafos anteriores afirmei eventos religiosos em vez de menções diretas ao catolicismo, justamente por acreditar na universalidade do que disse.

Alguns dirão que fará sentido os representantes do povo estarem presentes porque a maioria é católica. Este argumento o que faz é atacar pura e diretamente a laicidade. Não obstante, podemos pensar um pouco: não há uma maioria de portugueses a gostar do Tony Carreira, Bárbara Tinoco, Mariza, e, no entanto, não se vê uma enchente de políticos nos concertos? Além desta seletividade há uma outra: a representação é de todos os portugueses, 100%.

Numa outra resposta diz-se que os políticos estão lá como indivíduos, tentado contornar o problema: se isso fosse verdade, essas pessoas iriam onde estão todas as outras, não segmentadas. Além de todos os políticos irem juntos numa zona específica, eles organizam-se por organismo e hierarquia. Que coincidência!

Haja respeito pelas instituições!

2023_08_15_Que se averigue os factos!

Um sinónimo de uma democracia desenvolvida consiste no desenvolvimento do jornalismo. Uma comunicação social forte é a evidência do respeito pela liberdade de expressão, transparência e pluralidade. Não é, portanto, de espantar que reputadas organizações como a Amnistia Internacional, na defesa dos Direitos Humanos, e a Freedom House, na defesa da democracia, incluam nos seus relatórios sempre um parâmetro sobre a comunicação social.

O papel de um jornalista é informar a qualquer pessoa sobre o que o rodeia. O quê? Quem? Onde? Quando? Como? Porquê? São perguntas que devem ser respondidas sobre qualquer matéria: estejamos a falar de um escândalo financeiro ou de uma festa de Natal numa escola primária. Do âmbito nacional ao local, a preocupação dos órgãos de comunicação social é informar com o máximo de rigor.

Podemos adicionar aqui a questão da imparcialidade: a exigência de informação o mais factual possível, sem qualquer omissão invenção ou valoração. Esta questão não é vista de uma forma tão consensual como possa parecer à primeira vista, até porque é extremamente difícil alguém não deixar transparecer um bocado de si no trabalho que se escreve – idealmente, duas pessoas a escrever sobre a mesma coisa, por serem meticulosamente imparciais, deviam escrever o mesmo, algo que, claramente, não acontece. Não obstante, não é por toda esta discussão que quero entrar.

Quero desde logo desafiar o leitor a fazer uma pesquisa pelos nossos órgãos de comunicação social locais, dentro de cada ilha, de âmbito regional e nacional. De preferência, mais do que um de cada âmbito. Aquilo que encontramos são notícias de dois tipos: redigidas pela redação ou comunicados de entidades, aos quais a redação poderá dar uns retoques. Ou seja, jornalismo feito integralmente pela redação ou uma reprodução daquilo que lhe chega – neste último grupo incluem-se as notícias da LUSA. Aquilo que nos apercebemos é que à medida que nos aproximamos do âmbito local, os comunicados ganham força. O trabalho original fica cada vez mais condicionado a eventos que acontecem na comunidade. O jornalismo de investigação, aquele que tem por objeto chegar ao fundo das fontes – que vai além do comunicado, que o tenta verificar – é quase exclusivamente feito só a nível nacional.

Isto tem uma razão muito simples: quanto mais nos aproximamos do local menos dinheiro há, mais pequena é a redação. Assim sendo, a sobrevivência tem de ser através da informação que é fornecida pelos comunicados de imprensa e fontes jornalísticas como a LUSA. Na verdade, o próprio Estado financia a comunicação social, incluindo privada, em grande medida – algo imprescindível para a sua existência. Só nos Açores, o Governo Regional tem orçamentados 840000€ de apoio aos media. [1] Permitam-me uma nota sobre o apoio regional à comunicação social: da pesquisa que fiz, não encontrei as entidades a quem foram atribuídos apoios, informação até 2020 disponível.

Esta carência pelo jornalismo de investigação ao nível local e regional, algo discutido no I Congresso dos Jornalistas dos Açores [2], só acaba por ser colmatada politicamente pelo trabalho partidário. Lembro exemplo do Bloco sobre o Faria e Castro. [3] Mas não chega: precisamos de vozes sobre várias áreas em vários quadrantes, os olhos em abono da transparência.

[1] https://portal.azores.gov.pt/documents/36227/d2ea411f-db8e-260d-db78-08e24e61de3a

[2] https://acores.rtp.pt/local/michael-rezendes-diz-que-e-possivel-desenvolver-investigacao-jornalistica-mesmo-com-recursos-limitados/

[3] https://acores.bloco.org/noticias/empresa-de-membro-do-governo-regional-recebeu-460-mil-euros-em-ajustes-diretos-feitos-por-e

2023_08_08_A Francesinha como ceia

Estou desde junho para escrever este artigo. Nem sei bem o que o tem adiado, se bem que o medo de não conseguir ser eloquente deve fazer a sua parte. Temos uma ideia na cabeça, com a nossa linguagem, e colocá-la no papel fá-la perder parte do seu sentido. Qualquer das formas, mais vale tentar.

Outro dia, em junho, dei comigo a pedir uma Francesinha pré-feita de um supermercado para comer pelas 22 apesar de já ter jantado. Já não me lembro o porquê, mas que me deu um desconsolo, deu. A grande questão seria se o desconsolo era satisfeito, se valeria a pena gastar dinheiro num «luxo» desse tipo. Bem, tal como já desvendei, foi. Fiquei consolado.

Mas por pouco tempo: quando acabei a ceia e encontrei a paz, o meu cérebro tornou-se uma planície fértil ao remorso, mas, mais do que isso, à análise de toda a ação. Achei curioso como a única barreira que se me punha era o dinheiro. Eu não me preocupei com a distância do supermercado, o horário, ou até a minha saúde: pensei tão e somente no dinheiro. Estas palavras soam vazias e fúteis, mas imaginemos que estava a falar de leite, de cereais, de fruta. Eu safei-me na lotaria social (na família, no local, na época em que nasci), mas quantos não podem dizer o mesmo? Em Portugal, em 2021, o limiar do risco de pobreza estava nos 6608€ (rendimento anual), sendo que 42,5% da população está abaixo desse indicador. [1]

Se uma pessoa privilegiada (mesmo não abastada) como eu tem como preocupação o preço de algo, como não se sente quem vive com a corda ao pescoço? Dinheiro é uma invenção humana que nos tolda e limita psicologicamente. Contrariamente ao que podemos pensar, quem menos tem, menos vota.[2] Quando a preocupação é colocar comida em cima da mesa, quem vai ocupar um milímetro do seu cérebro a pensar em política? É assim que o sistema se mantém: alimentando a ansiedade de quem mais beneficiaria com uma mudança estrutural.

Grandes revoluções incontornáveis partiram da classe média. Porque é que a nossa classe média não se insurge contra o 1% que arrecadou 66% da riqueza produzida desde 2020 [3]? Para quem não passa fome, o capitalismo até parece um jogo: cada pessoa pode sonhar com acumular o máximo de dinheiro. Por viver nesta expectativa, nesta esperança de que o sistema o beneficie, mantém-no. Claro que é um jogo viciado onde só esporadicamente alguém tem sorte – este tema are muitas portas para discutir, como a relevância, e até existência, do mérito.

Além disso, apesar das nossas capacidades ainda muito por desvendar pela neurociência, nós temos limitações: uma delas é percebermos números com muitas casas. Ora, isto afeta-nos a capacidade de percecionarmos as desigualdades. Quando pensamos num milhão ou num milhar de milhão («billion») sabemos que o segundo é bastante maior que o primeiro. Mas em quanto? Pensemos assim: um milhão de segundos corresponde a 11 dias e meio, enquanto um milhar de milhão de segundos são 32 anos! Por vezes, as palavras são muito mais do que vemos de relance e usamo-las sem pensar no que verdadeiramente representam.

Por fim, gostava de deixar aqui a referência a um comparador de riqueza do World Inequality Database [4]. Ele serve para explorarmos em que posição nos encontramos economicamente relativamente ao panorama geral ao nível do país, região e globo.

[1] https://www.pordata.pt/subtema/portugal/rendimentos-48

[2] https://run.unl.pt/bitstream/10362/92747/1/Estudo_Portugal_Talks_Absten_o_e_Participa_o_Eleitoral_em_Portugal_2019_1.pdf

[3] https://www.oxfam.org/en/press-releases/richest-1-bag-nearly-twice-much-wealth-rest-world-put-together-over-past-two-years

[4] https://wid.world/income-comparator/

2023_08_01_As Jornadas

Esta terça iniciam-se as Jornadas Mundiais da Juventude, evento católico que contará com a presença do Papa Francisco. As JMJ 2023 têm dado muito que falar desde o «Conseguimos, conseguimos, conseguimos, Portugal, Lisboa. Esperávamos, desejávamos, conseguimos. Vitória.» proferido por Marcelo Rebelo de Sousa em 2019. Segundo número do Expresso [1], publicados no passado domingo, conta-se com a presença de 1,2 milhões de peregrinos na capital portuguesa. De acordo com a mesma fonte, este evento deverá ter um custo de 160 milhões de euros, sendo metade suportado pela Igreja. Ou seja, 50% do financiamento deste evento advém de organismos públicos, a saber: 36 milhões pelo Governo, 35 milhões pela Câmara de Lisboa e 10 milhões pela de Loures.

Este investimento de 80 milhões de euros do dinheiro dos contribuintes será, provavelmente, o ponto mais sensível para a opinião pública, por diversas razões. Desde logo, tivemos a ação de Bordalo II [2], que estendeu um tapete de várias notas de 500€ gigantes, ao longo do palco onde o Papa realizará a missa. Esta ação pacífica, que não danificou qualquer preparativo, pautou pelo apelo simbólico às necessidades que o povo tem e são ignoradas. Olhe-se para o exemplo dos transportes: durante muito tempo tiveram os lisboetas de se aventurar em transportes públicos que eram latas de sardinhas, mas agora, com as JMJ, já haverá um reforço da operação – ou seja, havia meios, não havia interesse de se resolver o problema.

Outro ponto sensível será percebemos que Portugal é um Estado laico: não existe uma religião oficial, toda e qualquer pessoa é livre de expressar a sua fé. Como é possível então organismos públicos colocarem dinheiro num evento religioso? Uns diriam que, segundo os censos de 2021, 80% da população diz-se católica. Outros diriam que, na verdade, não se trata de apoiar um evento da Igreja, mas antes de um investimento que trará retorno económico para o país. A resposta à primeira parece-me muito tortuosa, não consigo encontrar grandes certezas que não tragam consequências perversas. Já a segunda questão, de cariz economicista, aquilo que afirma é não se olhar a meios para atingir os fins, o que, decerto, não fará qualquer sentido ser aplicado a um Estado.

O terceiro ponto consiste nas descobertas recentes sobre o encobrimento de abusos sexuais, como consta no relatório oficial apresentado este ano [3]. Uma problemática com uma grande carga emocional. Faltam muitas respostas, falta justiça ser feita. Como pode o governo ajudar uma instituição com isto em mãos a fazer um festival internacional?

Li outro dia um artigo do cantor de «Para os braços da minha mãe», Pedro Abrunhosa [4]. Ele faz-nos perceber que estas críticas não um ataque ao cristianismo, mas antes a quem o deturpa. Aconselho a leitura aos mais devotos que se ofenderam com Bordalo II.

[1] https://expresso.pt/sociedade/jornada-mundial-da-juventude/2023-07-30-JMJ-conheca-os-principais-numeros-em-torno-da-vinda-do-Papa-Francisco-a-Portugal-97cb37b5

[2] https://www.publico.pt/2023/07/27/p3/noticia/habemus-pasta-bordalo-ii-invade-altarpalco-jornada-mundial-juventude-desenrola-tapete-notas-500-euros-2058428

[3] https://www.cnpdpcj.gov.pt/documents/10182/14804/Comiss%C3%A3o+Independente+Estudo+Abusos+Sexuais+Crian%C3%A7as+Igreja+Cat%C3%B3lica+Portuguesa_RELAT%C3%93RIO+FINAL_Sum%C3%A1rio+Executivo/39f039a4-c4a4-4ae2-9ce2-908b762ca10d

[4] https://www.publico.pt/2023/07/29/opiniao/opiniao/bordalo-ii-tapetes-vergonha-estadios-euro-2004-ja-2058573

2023_07_25_Os nossos hermanos

No passado domingo ocorreram as legislativas espanholas. Estas eleições foram convocadas no final de meio, depois do resultado obtido nas locais (câmaras municipais e comunidades autónomas), tendo-se adiantado o sufrágio que só deveria ter ocorrido no final deste ano. Que se tenha em consideração que, desde 2019, Espanha é governada por uma coligação PSOE-Unidas Podemos, que junta no governo o seu «PS» e uma coligação de esquerda. O governo ao longo dos anos tem sofrido um enorme desgaste pelas discussões internas, pela definição da agenda governativa. O descontentamento do eleitorado tornou-se expressivo no dia 28 de maio deste ano, com pesadas derrotas para o centro-esquerda e esquerda espanholas nas locais.

Com um PP («PSD») a esfregar as mãos, sedento de poder, considerando possível um governo com a extrema-direita, a decisão de antecipar as eleições foi uma surpresa. No entanto, Sánchez já provou ser um tubarão político: desde 2014 que lidera o PSOE, tendo já enfrentado pesadas derrotas e, no entanto, conseguiu permanecer nas suas posições, sobrevivendo a primárias internas e, a partir de 2018, mantendo-se à tona como primeiro-ministro. Claramente algo teria na manga. Uma explicação, que provavelmente será a melhor, é que apesar da votação dos espanhóis nas locais, uma aliança com a extrema-direita não é bem vista. Como no decorrer das locais temos a formação de governos com acordos PP-VOX, as pessoas têm presente essa recusa, algo que Sánchez quis instrumentalizar (aliás, tal como António Costa fez em 2022). O propósito ainda passou melhor pela campanha extremada que o VOX protagonizou e da qual Feijóo não se conseguiu distanciar, nem tendo participar no debate dos «grandes» (PSOE, PP, VOX e Sumar). O maior risco poderia vir dos partidos independentistas, que afastariam a possibilidade de maioria absoluta – se bem que claramente, à partida, já se sabia ser inalcançável. O PSOE precisa de uns parceiros fortes: assim surge o Sumar, uma espécie de sucessão do Unidas Podemos, liderado pela vice-primeira-ministra e ministra do trabalho, Yolanda Diaz – que, aliás, é uma das figuras políticas que gera mais simpatia. Se no início podia não ser evidente, durante a campanha ficou evidente a coordenação entre PSOE e Sumar. A grande fraqueza do Sumar corresponde às suas disputas internas, tendo a coligação sido formalizada no último minuto possível, fruto das conversações com o Podemos.

Os resultados corresponderam à estratégia de Sánchez, que se vê com mais uma oportunidade de formar governo, algo que provavelmente não aconteceria no final do ano por já haver um maior distanciamento PP-VOX. Vemos um cenário bipolarizado, algo que fez esbater a importância parlamentar dos partidos nacionalistas e independentistas. PP acabou com 33% e PSOE com 32%, virtualmente um resultado equivalente. VOX e Sumar acabaram ambos com 12%. Para haver uma maioria são necessários 176 deputados: PP-VOX tiveram 169 e PSOE-Sumar 153. Como não é expectável PP-VOX conseguirem aliados nacionalistas e independentistas, o caminho parece livre para Sánchez e os seus parceiros. O problema é que, tudo somado, fica a faltar uma só peça: o Junts, o partido do Puigdmont, centro-direita independentista catalã. Este partido é fulcral, no entanto já afirmar estar indisponível para apoiar a investidura. Se, pelo menos, não se abstiver, Espanha provavelmente ouvirá falar em eleições de novo em 6 meses.

Destas eleições fica o repto à união das esquerdas e a repulsa à presença de um partido com apoiantes a fazer a saudação nazi no governo. Fica também o riso de Ayuso, pronta a destronar Feijóo.

2023_07_18_O fruto proibido

No outro dia, fui convidado a responder a uma entrevista deste jornal sobre drogas sintéticas. Penso fazer sentido tentar explorar um pouco melhor as ideias enunciadas.

A visibilidade é fundamental para resolver problemas, mas muitas vezes as mudanças são apenas superficiais, sem abordar as raízes do problema. Isso é um grande desafio nos Açores, e além, devido à falta de reforma estrutural. Essa falta de mudança ocorre tanto aqui como no país inteiro, porque exigiria uma transformação nas bases do sistema, enfrentando, efetivamente, as desigualdades impostas por uma elite. Não se trata de alcançar uma igualdade absoluta de circunstâncias, mas de humanizar as desigualdades, garantindo condições de vida satisfatórias para todos e eliminando a exploração no trabalho e na discriminação de identidade. Esse projeto não tem como objetivo dizimar as elites que nos governam, mas sim esvaziar o seu poder. A problemática da droga, por várias vertentes (como económica ou moral), convém a um conjunto de oligarcas. Felizmente, temos acesso ao voto e, se desejarmos, podemos confrontar essas oligarquias e exigir que o poder político implemente essas mudanças. É necessário força e participação para enfrentar inimigos poderosos.

O consumo de drogas é generalizado e afeta diversos grupos demográficos. No caso das drogas sintéticas, devido ao seu custo mais baixo, o grupo mais afetado, como já foi estudado em outros lugares, provavelmente são pessoas com menos recursos económicos que as usam para satisfazer a sua dependência. Ela faz com que ignorem os danos causados por essas drogas, que, na verdade, são misturas com lixívia, combustível, inseticidas, entre outros.

Uruguai e Canadá são exemplos de países que legalizaram as drogas. Apesar de ser uma proposta contraintuitiva, o seu sucesso é evidente. Ao existir uma alternativa legal, as pessoas podem consumir produtos regulamentados e controlados pelo Estado. A redução do estigma em relação aos utilizadores permite eliminar tabus e discutir abertamente o assunto, seja em ambientes hospitalares ou em casa.

Se proibíssemos o álcool e o tabaco, o que aconteceria? Seria melhor termos pessoas com graves problemas devido ao consumo de uma bebida alcoólica que contém lixívia, sem nenhum controlo? Vamos deixar o moralismo de lado e focar em resolver o problema.

É importante lembrar que a legalização das drogas não significa uma promoção do consumo indiscriminado, mas sim uma abordagem realista para lidar com uma questão complexa. Ao legalizar e regular a venda dessas substâncias, é possível estabelecer limites de idade, fornecer educação sobre os riscos e oferecer tratamento e suporte adequados aos consumidores. Além disso, a legalização permite redirecionar recursos das atividades criminosas relacionadas ao tráfico de drogas para programas de prevenção e reabilitação.

No entanto, é importante ressaltar que a legalização por si só não resolve todos os problemas. É necessário um esforço conjunto para combater as causas subjacentes ao consumo de drogas, como a falta de oportunidades, a exclusão social e a falta de acesso a cuidados de saúde adequados. Isso requer investimentos em educação, programas de reintegração social e políticas públicas abrangentes que abordem as questões sociais e económicas que levam ao consumo de drogas.

Para lidar com os problemas existentes e alcançar soluções efetivas, é fundamental ter visibilidade e coragem para enfrentar os interesses estabelecidos.

2023_07_11_A importância dos avós

No dia 26 de julho celebra-se o Dia dos Avós. Hoje apetece-me antecipar essa homenagem falando sobre aquela que me parece ser a sua importância.

Os avós são figuras especiais nas nossas vidas, dotadas de um afeto único que transcende gerações. Eles desempenham um papel crucial na nossa formação, oferecendo amor incondicional, experiência de vida e uma visão de mundo enriquecida pelo passado. Muitas vezes os vemos como heróis, como modelos, mas eles não devem ser vistos como doutrinadores, antes como mananciais de informação.

Os nossos avós são frequentemente associados a um carinho e amor profundos. Eles conseguem distanciar-se do papel policial dos pais e estabelecer uma relação eminentemente acolhedora e descontraída com seus netos. Essa atmosfera calorosa proporciona um ambiente para o desenvolvimento emocional das crianças, fortalecendo os laços familiares, bem como a empatia.

Os avós podem ser vistos como figuras mais austeras, com expectativas em relação aos netos, desejando que sigam seus valores e princípios. Por vezes questionamo-nos se conseguimos vir a satisfazer os nossos avós, afinal, o mundo muda e as verdades de antes não são as de agora. Prefiro considerar, como em geral, que aquilo que alguém espera de nós é o nosso melhor, à nossa forma.

Viver num meio pequeno, semiurbano e rural, como Santa Maria, oferece uma etnografia rica em História e pobre nos materiais. Os avós tornam-se a nossa conexão com o passado, fornecendo relatos de como a vida era antes, especialmente dentro desse ambiente específico. As suas histórias levam-nos a uma viagem no tempo, permitindo-nos compreender melhor as nossas raízes e a evolução do mundo ao nosso redor.

A minha avó sempre me disse que nasci num berço de ouro. A sua experiência de dificuldades encaradas como banalidades, que, entretanto, foram sempre ultrapassadas, normalmente, tecnologicamente, levam-na a ser capaz de reconhecer essa mesma evolução por uma questão de continuidade temporal. Além do amor transmitido, os avós mostram-nos que o mundo está em constante mudança e evolução. Nada pode ser dado como garantido, tanto para o bem quanto para o mal. Sejamos capazes de fazer com essa informação o que melhor satisfizer a nossa consciência.

Aquilo que não devemos esquecer, até por respeito às vivências dos nossos avós, é o privilégio em que grande parte de nós se encontra. Mesmo parte dos menos afortunados de hoje se encontra numa melhor posição do que o mediano de ontem. Obviamente que esta conversa é muito mais complexa, em outras oportunidades já pude falar sobre ela, inclusive de um ponto de vista identitarista.

Uma das coisas mais fascinantes sobre os avós é a perceção de que o tempo histórico humano não é tão distante como imaginamos. A minha avó tem perfeitas memórias de pessoas que viveram a maior parte do seu tempo no século XIX. Claro que o tempo é algo que faz confusão aos nossos cérebros e que o tempo histórico é imenso, mas a História considerada contemporânea não está assim tão distante.

Os avós são uma verdadeira dádiva. A sua presença afetuosa e a sua experiência são oportunidades para se formarem boas memórias. Dos meus avós guardo valores como humildade e empatia. Nunca subestimemos o papel dos avós nas nossas vidas, eles são verdadeiros tesouros que devemos valorizar e honrar.

2023_07_04_O remédio da vida

Quando pensamos na Grécia Antiga, no âmbito da Filosofia, são os nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles que nos vêm à cabeça. A verdade é que esse período é muito mais rico, vai muito além das doutrinas destes brilhantes pensadores. Aquelas contemporâneas e procedentes à visão aristotélica são, até, guias sobre como pode um indivíduo viver a sua vida em tempos de crise, incerteza e relatividade.

Aquela que inicialmente mais me impactou foi a escola cética: não sendo uma doutrina, opõe-se a qualquer doutrina. Ou seja, num mundo com tantas verdades, onde cada um tenta reclamar a sua, onde não temos meios infalíveis de conhecer a verdade, passamos pela vida como quem vai contemplando as aparências. Não nos importa o que acontece, nem as respostas, porque tudo pode não passar de um sonho. Somos obrigados a guiar-nos pelas indicações dos sentidos, necessidades do corpo e as tradições e regras sociais para nos conseguirmos orientar nesta coisa que chamamos de realidade. A felicidade é assim atingida por rejeitarmos qualquer verdade. Conta-se que o fundador deste pensamento preferiu atirar-se a um rio a responder às questões que lhe estavam a fazer. Esta escola é muito interessante pela vertente aporética, por serem mestres na arte de encontrar erros na teoria do outro, por conseguirem colocar até os alicerces mais básicos em causa.

A linha que venceu historicamente, pela sua duração, foi o estoicismo. Nesta linha de pensamento, aquilo que nos compete é exercer o caminho que o Cosmos nos reservou. Devemos ser mestres da apatia, sermos indiferentes ao que nos acontece e agir como é suposto pela ordem natural. Conformemo-nos, que somos todos irmãos deste mundo a cumprir as nossas vidas.

No entanto, aquela que quero aqui trazer é uma outra: a escola epicurista. De início não dei muito valor ao que aprendia sobre eles, mas, um dia, enquanto regressava de umas explicações e me preparava para ir jantar na cantina, debaixo de calor e numa subida, ocorreu-me um raciocínio claramente epicurista e, desde aí, que me parece que, afinal, o seu pensamento faz mais sentido do que esperava.

Tal como o estoicismo, e ao contrário do ceticismo, trata-se de uma doutrina, mas com pouco desenvolvimento ao longo do tempo, mantendo-se sempre muito fiel ao seu fundador, Epicuro. O pensador olhava para o mundo e via o sofrimento como um grande mal que inquieta as pessoas. Ele queria atingir a aponia, a ausência de sofrimento. Para ele, isso bastava para lhe conferir a felicidade que os filósofos gregos tanto ambicionavam. Mas então o que é que provoca o sofrimento nas pessoas? Além dos obstáculos quotidianos, há o medo: medo da morte e dos deuses. Esta última questão religiosa talvez agora não nos faça muito sentido, mas realça a mestria do pensamento de Epicuro.

Para afastar esses dois medos, Epicuro elabora uma teoria sobre a natureza. Como conclusões dessa teoria temos que a morte é a dissipação dos átomos da alma, pelo que, sendo esta a responsável pelas sensações, é impossível a um ser sentir a própria morte, nem sequer havendo lugar à existência de vida após a morte. Também remete os deuses para um território entre mundos, ou seja, alheio a nós: eles são perfeitos, não precisam de nós, nem de se divertir connosco. Considero interessante afirmar-se que mais nenhuma questão natural importa, devendo só ser necessário encontrar uma resposta. Quando há mais, nem vale a pena escolher. A preocupação de Epicuro é só afastar estes medos, sendo a Física só um meio.

Então, chegamos ao famoso tetrafármaco, o remédio para vivermos sem medos: não sentimos a morte, os deuses não se importam connosco, é fácil atingir prazer e todo o sofrimento é finito.

Facilmente conseguimos atingir o prazer, satisfazendo as nossas necessidades básicas, mais nada sendo preciso. Há um hedonismo muito moderado aqui presente. 

O ideal do ser humano é viver escondido. Mas seria mesmo possível viver assim, sem ambição? Acredito que só falta um elemento da filosofia de Epicuro para responder corretamente: a amizade.

2023_06_27_Um paradigma para o associativismo

Recentemente tive a oportunidade de participar numa formação da Amnistia Internacional Portugal. No fim de semana que passei em Aveiro, aprendi sobre o funcionamento interno daquela organização histórica, pela voz dos próprios dirigentes. Aquilo que vi, foi um modelo para uma grande parte do associativismo – se ele fosse levado a sério por quem nos governa.

Antes de mais, penso ser necessário expor o que é isto da Amnistia Internacional, para se compreender a razão da sua organização. A Amnistia surgiu no início dos anos 60, pela mão de um advogado britânico, como um movimento que enviava, em massa, cartas a regimes para libertarem presos políticos – corre a história, até suportada no site internacional, que o movimento começou com um texto de opinião desse advogado sobre dois jovens portugueses que foram presos por fazerem um brinde à liberdade. Em pouco tempo, essa maratona de cartas passou a ser feita também por ativistas de outros países, internacionalizando-se esse movimento de amnistia dos prisioneiros de consciência – assim chegamos ao nome Amnistia Internacional. Além desta temática, adotaram também o combate à tortura e à pena de morte. A Amnistia tornou-se um bastião da defesa dos Direitos Humanos, contando com 10 milhões de ativistas, atualmente, e incontáveis casos de sucesso no seu histórico.

A grande força da Amnistia é a sua investigação. A organização é vista como uma entidade imparcial, com especialistas profissionalizados em investigar as denúncias que, de todo o mundo, chegam a dar conta de abusos e problemas. Ainda hoje se mantem a maratona de cartas, escolhendo-se anualmente vários casos globais emblemáticos de indivíduos perseguidos pelo seu pensamento, a par de muitas outras iniciativas. Claro que parte crucial do processo é o financiamento vir de indivíduos e não de grandes empresas, Estados,…

Em cada país, a organização tem uma secção que se rege como associação, segundo as leis desse país. Nós temos a Amnistia Internacional Portugal (amnistia.pt). Tanto a organização internacional como as secções nacionais são estruturadas com a mesma lógica: são governadas por voluntários e geridas por profissionais. Ou seja, as direções são eleitas de entre todos os membros do movimento e têm como função o estabelecimento da estratégia do movimento. É a implementação desse plano estratégico que, sendo uma atividade de gestão, é exercida por profissionais. Os voluntários colocam os objetivos e os profissionais cumprem-nos. O expoente deste sistema é a figura do diretor-executivo: uma personalidade contratada que dá a cara, que serve como porta-voz. É o responsável por toda a atividade, por traçar um caminho para se atingir os objetivos e gerir a equipa.

Ora, a verdade é que isto não é assim tão atípico, muito pelo contrário: as associações, com fundos para isso, contratam os seus próprios profissionais para prosseguirem com a sua atividade. Aquilo que me parece paradigmático é a seriedade com que esta fronteira é estabelecida. Reconhece-se que a governança tem de ser democrática e isenta, mas que esses voluntários têm tempo reduzido, devendo a concretização dos planos ser feita pelos técnicos, que vão atualizando a direção sobre os avanços. Reconhecer que as pessoas têm vida além da associação e que uma associação precisa de pessoas a tempo inteiro, sem comprometer a sua democraticidade.

São precisos recursos financeiros para suportar os custos com recursos humanos, mas não basta abrir os cordões: as próprias direções têm de trabalhar na sua mentalidade e dar liberdade aos funcionários, dentro do necessário.

Claro que este esquema funciona bem em associações com uma veia mais tecnocrática, sem uma marcada vertente ideológica. Mesmo a Amnistia, tendo trabalho político, é uma entidade que só advoga o bom senso.

2023_06_13_Qual o papel dos pais II

Na semana passada tentei falar um pouco da questão da parentalidade, tendo em mente a enorme diversidade de famílias que existem. Fiquei na questão que me parece particularmente interessante: o momento em que a parentalidade enquanto exercício quotidiano se esbate, em que o filho tem a sua independência estudando ou trabalhando noutro local. O que acontece quando o filho sai do ninho?

Estou em crer que a preocupação de um pai e de uma mãe que, não só nunca se anula, como se mantém relativamente constante independentemente da idade do filho. Os pais veem-se como uma rede de segurança. A diferença encontra-se na participação dos progenitores na vida dos filhos: em grande parte a preocupação é amortecida pelo acompanhamento diário, pela presença, enquanto quando se sai perde-se essa ligação tão direta.

É um marco significativo tanto para os jovens quanto para os pais, repleto de desafios e emoções contraditórias. Enquanto os filhos anseiam pela liberdade e autossuficiência, os pais sentem uma mistura de orgulho, preocupação e a necessidade de manter sua presença protetora. Nesse momento delicado, a comunicação se torna crucial, embora nem sempre seja fácil alcançar a compreensão mútua.

Os filhos, com o coração cheio de sonhos e expectativas, enfrentam o mundo com entusiasmo e determinação. Procuram conquistar a sua independência, construir as suas vidas e trilhar os seus próprios caminhos. A aventura de morar longe dos pais, assumir responsabilidades e tomar decisões importantes é emocionante, mas também traz consigo uma série de desafios. A falta de experiência e a pressão para se adaptarem a uma nova realidade podem gerar ansiedade e incertezas. No entanto, essa jornada de autodescoberta é fundamental para o crescimento pessoal e a construção de uma identidade sólida.

Por outro lado, os pais enfrentam um turbilhão de emoções contraditórias. Sentem orgulho ao verem seus filhos prontos para enfrentar o mundo, mas também são invadidos pela preocupação e o desejo de protegê-los de qualquer perigo ou dificuldade. A separação física traz consigo um sentimento de perda, pois os pais precisam aprender a lidar com a ausência quotidiana dos seus filhos. No entanto, eles reconhecem a importância de permitir que eles sigam seu próprio caminho, confiando nas bases sólidas que foram transmitidas ao longo dos anos.

Nesse momento de transição, a comunicação entre pais e filhos é essencial, mas nem sempre é fácil. As expectativas podem divergir, e cada parte pode ter visões distintas sobre a melhor forma de enfrentar os desafios. Os filhos podem desejar liberdade absoluta e independência total, enquanto os pais podem manifestar preocupações e sugerir cautela. Essas perspetivas opostas podem gerar tensões e mal-entendidos.

É importante que ambas as partes compreendam as intenções benevolentes umas das outras. Os filhos devem reconhecer que os pais agem com base no amor e na preocupação genuína, enquanto os pais precisam entender que os seus filhos estão numa fase crucial de desenvolvimento pessoal. A empatia, o respeito e a abertura ao diálogo são fundamentais para superar os desafios comunicativos.

Os pais podem encontrar maneiras de manter sua presença na vida dos filhos, mesmo que fisicamente distantes. Podem oferecer apoio emocional, orientação e encorajamento, estando disponíveis para ouvir e compartilhar suas experiências. Ao mesmo tempo, os filhos devem expressar seus sentimentos, expectativas e planos com sinceridade, envolvendo os pais no seu caminho e garantindo que eles se sintam valorizados e parte do processo de transição.


2023_06_13_Qual o papel dos pais?

A parentalidade é uma atividade essencial para a nossa comunidade. Naturalmente, temos a família como a unidade básica, a estrutura social mais radical da comunidade, abaixo disso, só indivíduos. É nessa estrutura que se dá a socialização primária, ainda antes de haver um Estado a educar através da escolaridade obrigatória. Grande parte do que somos radica do nosso contexto familiar, quer seja pela ordem genética, quer seja pela vertente cultural de socialização. Não obstante, o exercício da parentalidade, algo tão basilar e quotidiano, é motivo de escorrer palavras pelas secções de auto-ajuda. Os pais têm orgulho da sua forma de educar, consideram-na sempre a melhor possível, levando a que haja tantas formas de educar uma criança como pais no mundo. Fica evidente que teoricamente a parentalidade é um conceito muito bem definido socialmente, mas na prática há uma enorme diversidade e até conflito de posições.

 

Antes de tentar explorar melhor o papel dos pais, notar que uso esse conceito para falar de quem acompanha quotidianamente o crescimento da criança. São várias as alterações que temos vindo a ver com o objetivo de alargar os vários tipos de família (alterações legais, uma vez que a família tem um reflexo jurídico, já que desde sempre existiram famílias que não se enquadram na definição tradicional). Talvez o primeiro grande passo no alargamento seja a adoção, ou seja, a família não ter de ter uma relação genética. Outros passos são o reconhecimento de famílias monoparentais, mudando os números. Também podemos adicionar aqui a possibilidade de casais homossexuais constituírem família, entre outras circunstâncias. O ponto é que a parentalidade varia não só na forma, como nos agentes, havendo uma tendência progressiva para ir alargando as possibilidades de se constituir família - numa ótica de inclusão e não de substituição.

 

Então, qual o papel dos pais? Preparar para o mundo. Suportar os filhos até estes conseguirem assegurar a sua independência. O mundo natural parece reger-se assim e nós, com as muitas variações e modificações históricas pela qualidade de vida, parecemos manter. Numa primeira fase, educa-se a criança a comportar-se em sociedade. Na seguinte, serve-se de ninho na aprendizagem sobre o mundo. Depois, são uma bengala no lançamento para o mundo.

 

Os pais são, portanto, uma figura de referência. Por vezes distanciamo-nos do seu exemplo, noutras aproximamo-nos. Com base nos seus princípios e valores, veem essa dinâmica dos filhos com melhores ou piores olhos. O objetivo será ver o filho tornar-se uma pessoa que age com base nesses valores. De forma geral, e apesar da subjetividade, esse objetivo é de ser decente. De aproveitar as oportunidades que foram dadas com dignidade e respeito. O lugar do filho é fazer o melhor que pode com os recursos que lhe são facultados - recursos como educação, alimentação, alojamento, livros, brinquedos, formação musical, desportiva,... Tendo em mente que não faz sentido insistir em recursos não essenciais que não correspondem ao interesse da criança.

 

Talvez uma das questões mais prementes seja a comunicação: sobre que temas versam as conversas entre pais e filhos? Com o tempo, chegamos a um ponto em que sabemos as conversas a evitar, não por mal, mas por desinteresse ou evitar conflito. Por uma questão de harmonia, cada família tem os seus próprios rituais.

 

Isto leva-nos ao momento em que se inicia a independência: onde há uma reformulação na parentalidade. Vários pais adotam estratégias diferentes, sendo o objetivo o de apoiar o filho e manter a sua presença, até os pais serem os que precisam do apoio. Para a semana retomo o raciocínio.

2023_06_06_Quando a música é serviço público

Podia vir aqui falar de muitas coisas. Podia falar do ridículo que é um governo abrir exceções em questões de proteção ambiental afirmando a primazia das tradições culturais – constituindo um perigoso precedente; podia falar na invenção das viagens no tempo que António Ventura anunciou quando disse «capacidade de ir ao futuro ver como está a ocorrer e voltar ao presente»; podia falar de tudo e mais alguma coisa, mas hoje falo da Bárbara Tinoco. Só agora ouvi as músicas que a artista lançou há um mês (do álbum Bichinho) e estou viciado.

Manifesto que já antes deste álbum gostava da sonoridade de Tinoco. O seu ultrarromantismo lírico e melódico seria capaz de que fazer corar Almeida Garrett. No entanto aquilo que pretendo aqui trazer é outra dimensão: o impacto social da música que é ouvida por milhões. Bárbara Tinoco é uma estrela em ascensão que enche arenas e, mesmo ainda estando no início da carreira, decidiu abrir caminho na denúncia de problemáticas sociais na sua música. Os seus versos são uma crónica das suas experiências, tendo afastado receios de mostrar uma realidade politizável. Na música «Linha de Sintra» podemos ouvir «E homem do metro / A tocar-se a olhar pra mim», «Aprendi a rezar / Com medo de ser violada», «Só não tenho fé / Porque amar não é pecado / Acho estranho que seja com isso / Que o Papa está preocupado» e até um ético «Tive um namorado / Em cada canto da linha / Voltava sempre pra casa sozinha». Estes versos expõem uma sociedade que se encosta no conforto do seu patriarcado. Bárbara Tinoco, mantendo a sua identidade musical, fazendo uso do seu talento com as palavras, a sua naturalidade e fluidez, leva aos ouvidos dos fãs este desabafo destemido.

Aquilo que me parece é que Bárbara Tinoco se juntou a uma nova vaga de artistas, que reinventaram a música de intervenção portuguesa. Uma geração que, pelo pop, tendo um grande público, não tem medo de se expressar sobre assuntos que podem ser vistos como tendo uma dimensão política.

Ivandro foi o artista português mais ouvido em Portugal em 2022 no Spotify. Esta ano participou no Festival da Canção com «Povo», uma música onde afirma «Comprar uma casa e construir um lar, / De onde venho o povo ainda sofre / Mas todos sonham encontrar essa paz». Temos um artista dos tops a abordar racismo, colonialismo e pobreza. Isto tem poder. Anteriormente já tivemos Milhanas, com Agir, e Fado Bicha, entre outros, a trazer temas importantíssimos ao Festival. O segundo classificado deste ano, Edmundo, termina a sua música com o verso «As luzes não me deixam ver / Se é uma festa ou uma luta de poder».

Este movimento não começou agora, já tendo, por exemplo, na Capicua uma grande representante: «Eu combato o patriarcado / É esse o meu predicado / E só fica prejudicado / Quem fica do lado errado». Carolina Deslandes tem sido uma voz muito presente nos media para falar de igualdade de género, saúde mental, entre outros assuntos. Sofia Tavares também tem usado da sua exposição, principalmente nas redes sociais, para fazer passar esse tipo de mensagens.

Cada vez mais vemos artistas a permitirem-se expressar na sua música e além dela. Isto não tem de ser visto como mais ou menos ético, mas de certo que é um importantíssimo instrumento na consciencialização social.

Uma boa música não tem de ser vazia de conteúdo que não sejam dimensões amorosas – e mesmo através dessas se podem abordar muitas temáticas sociais.

Em jeito de conclusão, dizer que, talvez, a maior contribuição de Bárbara Tinoco, o maior fruto do seu romantismo, seja ao nível lexical: a introdução do verbo «utopiar».


2023_05_30_E depois das banheiras?

Outro dia estava a tomar banho e a pensar no conforto que é estar numa banheira a lavar-me. Uma esmagadora maioria de nós já têm esta comodidade, algo que em meados do século passado os meus avós não achavam falta. Temos pessoas, hoje ainda, que gostariam muito de ter uma divisão da casa com acesso à água e onde existisse uma banheira.

O meu foco não é tanto o privilégio, não obstante, penso que é sempre pertinente referi-lo para termos consciência de como a nossa vida é incomparavelmente melhor ao que já foi no passado, mas lembrando que muita gente, na nossa e noutras geografias, espera ainda por sentir grande parte dessas melhorias - que se note que as alterações climáticas constituem, provavelmente, o pior momento na História em que esta questão do progresso deverá ser colocada em causa, ainda neste século.

O que me importa aqui é mesmo a banheira. Ou melhor, a evolução que ela representa. De um alguidar com água aquecida num fogão, uma realidade muito comum a uma geração de distância, passamos a um espaço na casa de banho onde podemos, felizes da vida, molhar tudo o que está em volta com a precisa temperatura que queremos. Tendo uma pequena evolução em mente, o instinto é perguntar: e depois das banheiras? O que vão inventar que melhorará as condições em que nos lavamos, cumprindo a nossa higiene?

O interesse nesta minha pergunta aparece quando me apercebo que não consigo conceber uma melhoria, mas ela provavelmente, existe. Isto aplica-se a tantos mais exemplos, sendo, por exemplo, por esta razão que as atividades humanas tendem à especialização. O futuro reserva-nos um conjunto de "mordomias" que hoje até se nos podem parecer desnecessárias.

E é aqui que me aparece um segundo ponto: "A máquina do tempo" de H. G. Wells.  Neste livro inaugural das viagens no tempo, até mais do que a questão de desigualdade, de divisão social, me parece muito interessante a própria forma como a evolução humana é perspectivada ficcionalmente a uma distância de oitocentos mil anos.

Basicamente o argumento será: em algum ponto, os poderosos decidiram reivindicar a si a superfície terrestre, renegando os trabalhadores para o subsolo. Como os da superfície tinham o que precisavam, explorando os do subsolo, e não tinham qualquer contacto com as técnicas como as suas necessidades eram satisfeitas. Isto levou a aqueles que detinham o poder pudessem viver felizes e em harmonia, apesar de terem visto o seu físico a perder força e a sua inteligência a mingar, por não precisarem de nenhuma destas faculdades.

Ou seja, ao mesmo tempo que vivemos numa sociedade que olha com entusiasmo para novos modelos de todo o tipo de equipamentos, fascinada pela tecnologia, há também uma tendência para não conseguirmos interpretar a realidade no seu todo. A facilidade de conseguirmos ter algo parece constituir um bem em si mesmo, sendo desejável, até, nem complicar - no limite, os outros complicam por nós e partilham os frutos.

Em concreto, num mundo com tanta informação é uma urgência a educação providenciar as várias literacias, que sirvam de: ferramenta pela busca de informação fidedigna, bem como para desconstruir qualquer informação que nos aparecer, de forma a se conseguir a informação mais correta possível. Estas literacias relacionam-se, por exemplo, num combate a fake news, mas também à leitura de rótulos nos mantimentos, ou a bases de conhecimento científico.

Mais do que qualquer paternalismo, é dar o poder às pessoas para conseguirem sair das redes de manipulação em que são constantemente imbuídas.

É isto que as banheiras fazem.


2023_05_23_Vivemos todos num sistema

Não são raras as vezes em que nos deparamos com situações frustrantes no nosso quotidiano. Ainda há umas semanas estava a tentar ter o reembolso, enquanto estudante deslocado, sobre uma viagem da SATA num balcão dos CTT. Estava eu com toda a confiança a mostrar os documentos normais, quando a funcionária afirma que, por ter alterado os voos, tinha de ter uma declaração especial. Esta alteração ocorreu, porque o avião se atrasou e tive de pernoitar em escala; como não foi decisão minha e a rota se manteve, nem achei ser preciso nada a mais. Logo de seguida, fiquei trinta minutos, praticamente certos, à espera que fosse atendido no call center da SATA para conseguir o que precisava e voltar aos CTT. Ao fim de quinze minutos tinha o tão desejo papel a sair para o meu email – chegaria passado umas horas. O resto da história? Tentei já por três vezes ir aos CTT, mas estavam sempre cheios. Em breve hei de conseguir.

O que me importa retirar desta história é o impulso que tive em dois momentos: a vontade de reclamar com a funcionária e com o funcionário, quando a primeira me disse que não podia receber o reembolso e com o segundo depois de ter estado meia hora à espera de ser atendido (o suficiente para passar em todos os corredores do centro comercial Brasília, na Boavista - Porto). Apesar do forte sentimento, consegui controlar-me: a senhora só estava a seguir um protocolo que nem foi ela que fez e o senhor devia estar aflito com uma série de chamadas sempre a chegar e pouca gente para atender. Ao fim e ao cabo, nenhum daqueles funcionários tem qualquer interesse em dificultar-me a vida, cumprem regras. O meu problema não era com eles, mas com um sistema burocrático que me faz perder horas para conseguir um direito e que promove a exploração, valorizando o lucro acima de qualquer preocupação com os recursos humanos. A frustração com o sistema leva a que se queira descarregar em pessoas – nas erradas.

Muito provavelmente aqueles funcionários nem me queriam estar a aturar, por já estarem há horas a aturar pessoas que vêm com uns quantos problemas, aos quais nem sempre é possível dar resposta. Há dias em que podemos não estar a 100% e temos de ir trabalhar, levando com o que nos aparecer à frente. Referente à mesma viagem, enquanto passava na segurança do aeroporto, um homem lembrou-se de resmungar com os seguranças à minha frente. Era um domingo de tarde, havia duas passadeiras de segurança, mas só uma funcionava e com três ou quatro funcionários. A fila prosseguia lentamente. O homem estava a pegar nos seus pertences mesmo junto da saída da máquina com radiação, apesar da mesa metálica imediatamente no fim da passadeira estar livre. Por isso mesmo, uma funcionária pediu gentilmente para o senhor avançar. Eu apreciei particularmente o gesto, por ser o passageiro imediatamente a seguir. Eis senão quando o homem começa a insinuar que está a ser tratado como « um porco», a apressá-lo quando a culpa era deles por não abrirem outra passadeira. Os ânimos exaltaram-se, tendo-se dissipado quando o senhor saiu. Ora vejamos: aquele número de funcionários era impraticável para ter duas passadeiras, aquelas pessoas estavam na tarde de um domingo de Páscoa enfiadas no aeroporto a trabalhar. Porque carga de água o senhor acha que é tão importante ao ponto de os trabalhadores pensarem «Ah! Vamos fazer de tudo para chateá-lo, porque efetivamente não temos mais nada que fazer».

Estou convencido que a maior parte dos conflitos advêm da incompreensão. Tentemos ter empatia, respirar, e perguntar o porquê de as coisas serem como são. O que precisamos é de política, não de estereótipos e insultos a quem trabalha – até porque nós também trabalhamos.

2023_05_16_Será que tudo pode ser pensado cientificamente?

Ao vivermos a nossa vida deparamo-nos com diversos aspetos que geram discórdia, onde aquela que é a nossa visão não corresponde à visão que outros têm. Nesses momentos cada uma das nossas personalidades acaba por ter respostas diferentes. Mas e se tudo forem factos? Vamos por partes.

Na escola, em Filosofia, aprendemos que existem dois tipos de juízos, isto é, dois tipos de frases declarativas: juízos de facto e juízos de valor. Os de facto são aqueles que podem ser verdadeiros ou falsos, como «Esta mesa é castanha», ou «Os gatos têm bigodes», ou «Está a chover». Por outro lado, juízos de valor não podem ser vistos como verdadeiros ou falsos por dependerem dos princípios, valores, de cada pessoa, como «Esta mesa é mesmo bonita», ou «O Cristianismo é a melhor religião». Desta forma, temos juízos que descrevem a realidade, de facto, e aqueles que a avaliam, de valor. Por esta razão é que só se fala de verdade/falsidade naqueles de facto.

O meio por excelência de lidar com a verdade é por via da ciência. A sua proeminência dá-se por utilizar um método que permite retirar conclusões sofisticadas e rigorosas. Há lugar para uma observação atenta, uma tentativa de interpretação que nos leva a crer numa teoria. Pensamos: se esta teoria estiver certa, o que devemos observar se fizermos uma experiência com estas condições controladas? Com a verificação do previsto e a repetição do procedimento várias vezes e por várias pessoas, chega-se ao conhecimento científico. Isto, de uma forma muito linear e simplista, penso que resume no essencial aquilo que transversalmente é feito. 

Quando se pensa em ciência pensamos em dois grandes grupos: as naturais e exatas por um lado e as sociais por outro. Estas últimas muitas vezes colocadas em questão por os resultados terem uma margem de erro maior, dependendo muito da imprevisibilidade humana. O meu primeiro ponto é de que além destas, temos muitas outras, temos todas as especializações que existem. Cada área tem princípios, conhecimentos associados, em constante melhoramento metodológico. Não será um enólogo uma potencial fonte de conhecimento científico? Talvez se torne mais complicado fazer esta análise quando falamos de arte. Vejamos essa questão em específico.

Quando alguém afirma uma opinião sobre uma determinada obra, facilmente podemos afirmar «gostos não se discutem» e avançar com a nossa vida. Afinal, como podem duas pessoas diferentes considerar as mesmas coisas belas? Por outro lado, lembremo-nos que ao longo da História o que não faltou e falta são reconhecidos cientistas com divergências nas respetivas áreas de estudo. Porque relativizamos essa questão? Porque consideramos que a teoria adotada é a que melhor se aproxima à realidade. No caso da arte, a aproximação que nós ambicionaríamos seria ao belo, o que não nos parece propriamente ajudar. Contudo, podemos dar um passo atrás e pensar sobre o que será uma obra de qualidade e nesse caso já podemos discutir a possibilidade dos artistas e de quem estuda a arte de ter uma palavra, sendo especialistas no que concerne às técnicas e até evolução desse campo. Mesmo na arte, conseguimos ter especialistas que avançam com conhecimento científico.

Qual é o nosso problema com o belo? A definição. Então se alguém tentar definir belo, nem que seja com um conjunto de casos particulares, já seremos capazes de perceber, ou melhor, prever, o que essa pessoa considerará belo, apesar da nossa noção ser diferente.

O propósito deste amontoado de palavras é justamente frisar: o importante quando falamos é que significado damos às palavras que usamos.

2023_05_09_Regiões e freguesias

Um assunto que de vez em quando regressa à agenda mediática corresponde à regionalização: a constituição de zonas no continente com um estatuto político-administrativo, à semelhança das regiões autónomas. Subunidades – como Norte, Centro e Sul – que teriam estruturas eleitas. Muitas vezes se aponta a regionalização como forma de desenvolvimento das comunidades numa ótica de proximidade, no entanto também há quem argumente que esta questão poderá ser resolvida sem serem precisas novas formas de poder: através da descentralização, adoção de medidas que visam uma distribuição do poder central por vários locais. Este tema surgiu-me recentemente pela mão de dois eventos distintos: uma discussão na cantina com um liberal e uma aula com um sociólogo reputado. Como se pode ver, seria impensável não ficar a remoer no assunto.

Desde logo, olhar para o que existe: o mais perto de regionalização que temos são as regiões autónomas e o mais perto de proximidade que temos são as freguesias. Em relação às regiões autónomas, é inegável perceber a evolução positiva que os arquipélagos tiveram por terem estruturas com autoridade política e dotadas de orçamento. Os problemas sem visibilidade não são discutidos, quanto mais resolvidos. Quanto mais distante for o epicentro do poder, mais difícil se torna de ter visibilidade. Claro que a autonomia das regiões se explica por razões geográficas, não obstante é um caso empírico desta realidade no caso português.

Já a questão das freguesias parece-me paradigmática da forma como podemos/devemos olhar para o assunto: as freguesias têm justificação para existirem? À papo-seco seria óbvio afirmar positivamente, contudo olhemos para a forma de funcionamento da freguesia: uma assembleia de freguesia aprova um orçamento que a junta executa. Até aqui, tudo muito semelhante ao funcionamento de tudo o resto, então perguntemos: como se financiam as freguesias? Podemos elencar aqui todas as fontes legais, mas, empiricamente, facilmente observamos que o trabalho de uma Junta fica refém das delegações de competências. A Câmara Municipal estabelece um protocolo com a Junta onde atribui um certo valor para a concretização de certo propósito. Isto leva a que a freguesia se assemelhe mais a um braço da Câmara Municipal onde vamos buscar licenças e declarações. Estruturas burocráticas com ação política limitada (que se note que podemos pensar na política como arte de estabelecer prioridades – onde e quando investir o dinheiro público).

Isto não parece muito positivo. Não seria mais prático elegermos diretamente um presidente da junta que administraria a burocracia e tivesse poder reivindicativo, nomeadamente na Assembleia Municipal? Parece o passo lógico perante esta realidade. Então porque é esta questão existencial tão importante para se falar de regionalização/descentralização?

Desde logo, porque nos faz perceber que as estruturas têm de ter manobra política para poderem funcionar corretamente. Temos de ter sempre em mente as competências de cada nível de organização, bem como a sua forma de financiamento. Garantir que se uma entidade é administrada em função de escrutínio eleitoral, então os eleitos têm de conseguir executar o seu programa (desde que enquadrado nas competências).

Na regionalização é importante não só transferir competências do governo central para as regiões, mas também refletir sobre aqueles de todos os níveis. É necessário que haja uma consistência sem sobreposições ou ambiguidades. No fundo, pensar na regionalização é pensar na radicalização democrática.

2023_05_02_A amizade é um espaço vazio

Algo importante nas nossas vidas é a vivência em comunidade, queremos sentir-nos incluídos. Aliás, precisamos de nos sentir incluídos. Há uma validação social que, quer queiramos, quer não, desempenha um papel importante na nossa autoestima. Uma peça fundamental deste sistema é, portanto, a amizade. Uma vida sem amigos será, provavelmente, uma vida tendencionalmente infeliz. O contrário não nos é intuitivo, sendo que mesmo a solidão romantizada dos génios da História está associada a uma angústia. Hoje passo por aqui para deixar uma pergunta: o que é a amizade?

Bem, em bom rigor, é um papel em branco onde escrevemos o que quisermos. Há tantas formas de amizade, uma mesma pessoa vê amigos de forma diferente. Ao fim e ao cabo, amizade é o que quisermos que ela seja, sendo que estas darão certo se as interpretações dos dois lados forem semelhantes. De resto, de filósofos a sociólogos, passando por psicólogos, já se fez escorrer muita tinta. Em última instância, podemos adotar uma perspetiva cognitivista e culpar as hormonas.

Aquilo que me parece óbvio é que a amizade tem de passar pela fraternidade, um sentimento de proximidade, que vai além da empatia. Quando nós pensamos em qualquer ser humano, a fraternidade também deve ser evidente, uma vez que é nosso semelhante, ou seja, podemos tentar imaginar o que sente, reconhecer a visão, que é o mesmo que dizer ter empatia, pelo que a amizade tem de ser o aprofundamento dessa perspetiva.

Parece-me que a característica maior seja a lealdade – que se note que esta lealdade não advém de uma hierarquia, não é imposta, é mútua e voluntariamente estabelecida por duas pessoas. Ser leal a alguém é não só olhar para o outro como um igual, mas também valorar o outro. Aceitamos ceder parte da nossa conduta ao outro, o que é o mesmo que dizer que damos parte de nós ao outro e vice-versa.

Claro que as amizades não são todas iguais: as diferenças surgem das diferentes formas e intensidades de lealdade. Diferentes formas na medida em que o contexto em que conhecemos e interagimos com a pessoa faz valorar diferentes traços, sendo o respeito que a ela temos que gera a lealdade. Diferentes intensidades, tendo em conta a confiança gerada.

A mais forte das amizades será aquela que tiver a maior intimidade emocional e confiança máxima. Muito bonito por escrito, mas claramente difícil de medir empiricamente.

O passo depois disto é pensar na questão amorosa: esta máxima amizade será necessariamente um caso de amor? Aquilo que me parece é que amor e amizade são um e um só, na medida em que a intensidade do amor varia tal como a amizade. À partida, o nosso parceiro será com quem temos a maior amizade, no entanto não significa que não possam existir amigos com quem sentimos a mesma intimidade. Parece-me natural questionar se será assim tão descabido falar-se da possibilidade de se ter mais de um parceiro.

Se a nossa sociedade vê com naturalidade a possibilidade de se casar várias vezes ao longo da vida, então reconhece que é possível uma pessoa sentir essa lealdade, com tudo o que acarreta, por várias pessoas. O que impede de isso acontecer simultaneamente? As relações que estabelecemos são dinâmicas, ao longo do tempo vamos criando laços, quebrando outros, aumentando e diminuindo,… Há uma tentativa castradora de tentar conferir estabilidade a um processo que não a tem.  Se somos melhores quando estamos com quem nos estimula, imagina-se a felicidade e produtividade que não se está a perder hoje.

No fim de contas, a única coisa que interessa é na minha lápide constar: pessoa ridiculamente chata, mas presente onde e quando era preciso.


2023_04_25_A democracia não é imparcial

Um dos assuntos que nos últimos anos tem dado que discutir e tem feito escorrer tinta na
academia prende-se com a ascensão da extrema-direita. Pelo globo vê-se um conjunto de
personalidades que pela demagogia e mentira têm chegado ao poder, influenciam-no ou
beliscam-no. Trump, em 2016, foi o estrondo que levou o Ocidente, nomeadamente a Europa, a
perceber os perigos a que estaria sujeito: as arrogantes elites políticas centristas e burocráticas
cavaram a sua própria sepultura. Claro que o cenário não é tão pessimista como este início
trágico dita, a verdade é que temos vários exemplos destes oportunistas a serem expulsos do
poder, tendo o povo impedido a sua reeleição. Não obstante, eles ainda não se foram embora. É
de máxima urgência termos em mente o 25 de abril. Mais do que qualquer outra data festiva, é
esta que nos marca enquanto nação que rejeita a opressão e caminha fraternamente rumo a um
Estado justo.

A este ponto será importante perceber o problema associado à extrema-direita. Do ponto de
vista ideológico, aquilo que a carateriza é o seu conservadorismo, sob a forma de um
nacionalismo recheado de valores concretos sobre o que consideram ser a família e uma conduta
ética. Desta forma, facilmente se compreende como os movimentos deste tipo verbalizam
mensagens xenófobas e racistas, bem como colocam o feminismo na mira. Toda e qualquer
liberdade pessoal deve ser passada a pente fino, para estar de acordo com a identidade que
julgam ser a correta. Que se note que os expoentes máximos desta visão do mundo, os fascismos,
não estão temporalmente muito longe de nós: Alemanha Nazi, Itália Fascista e, claro, o Estado
Novo. Mas, se sabemos dos horrores que podem advir daqui, como é possível vermos o
surgimento e ganho de popularidade de líderes de extrema-direita?

Desde logo, estes movimentos ganham tração pela força da demagogia: como não têm qualquer
problema em espalhar o ódio, facilmente se adaptam para passar mensagens «sem papas na
língua» com nas quais as pessoas, frustradas com a política, acreditam. «Eles são todos iguais»,
«Tudo corruptos», «Não fazem nenhum», vociferam elas sobre toda uma classe política
desacreditada. «Isto está no estado que está e ainda vêm para aqui os imigrantes roubar-nos o
emprego» afirmam, depois de já terem captado a atenção dos abstencionistas, de forma a
encontrar um bode expiatório: este passo é importante para estimular o lado emocional, criando
uma unidade contra um certo grupo. Os imigrantes, refugiados, minorias étnicas são as que mais
sofrem com estes discursos que vociferam «subsidiodependência». Obviamente que os dados e
estatísticas são completamente enviesados ou simplesmente falsos. Está aqui uma caraterística
importante dos movimentos que enfrentamos hoje: aproveitam-se da falta de literacia dos
media, da falta de algum pensamento crítico sobre a informação que nos é dada e simplesmente
inventam. Criam mundos onde parece que vamos ser esfaqueados ao virar da esquina, apesar
de sermos dos países mais seguros do mundo. As fake news (notícias falsas) tiveram um aumento
exponencial por esta via.

O que pode a democracia fazer para combater estes movimentos que facilmente podem levar a
guinadas autoritárias? Devemos ser tolerantes com intolerantes? A democracia não devia ser
imparcial?

Em primeiro lugar: a democracia não deve, nem pode, temer vozes dissonantes sobre a sua
própria organização. É obrigação da democracia debater formas de se melhorar: o objetivo é a
sua radicalização, o aprofundamento progressivo dos valores democráticos. As alterações
constitucionais não devem ser temidas, são necessárias. Não obstante, uma democracia deve
punir o discurso de ódio.

Em segundo lugar: a democracia tem obrigação de ter um sistema educativo de qualidade. Dar
as ferramentas para se formarem cidadãos orientados pelos princípios democráticos, livres e
com espírito crítico.

Esta é a herança de abril.

2023_04_18_A raiz disto tudo: o Estado

No artigo da semana passada referi cinco casos, em cinco países com democracias desenvolvidas, de situações que não fazem qualquer sentido em 2023 serem discutidas da forma que o são. Ainda por cima, nas instituições democráticas. No final, como que para provocar nem que fossem uns nanossegundos de reflexão, atirei para cima da mesa uma perspetiva sobre o Estado. Hoje vou tentar explicar mais rigorosamente o raciocínio. Desde logo, temos um conjunto de perguntas que nos devem servir de percurso: o que é um Estado? como se origina um Estado? como deve atuar?

Se formos ao dicionário Priberam, temos o Estado como o governo político do povo constituído em nação. Ou seja, uma nação funciona como uma comunidade: um conjunto de pessoas que partilham um território e uma identidade – línguas, tradições,… Quando esta comunidade ganha independência política, quando se autogoverna, temos o Estado. Parece simples: um governo, um povo e um território fazem o Estado. Claro está que podemos colocar muitas questões a essa visão. O que importa historicamente é perceber que o Estado surge numa ofensiva ao poder absoluto, ao feudalismo, utilizando uma lei base a que qualquer cidadão está submetido independentemente da sua condição e estabelecendo um conjunto de instituições que distribuem os poderes (executivo, legislativo e judicial).

Uma questão óbvia será a legitimidade política do Estado: ele foi-nos imposto? temos algo a dizer? porque nos temos de submeter a ele? Em última instância, o Estado não é mais do que um jogo de crianças, onde a imaginação é a protagonista. Pode-se afirmar que o ser humano tem em si uma ambição social, concretiza-se na presença do outro, pelo que só a vida em comunidade o pode satisfazer, tal como Aristóteles famosamente afirma: o ser humano é um animal político. O pensador olha para a Humanidade sua conhecida e nota nas famílias uma unidade básica, que naturalmente se associou formando aldeias e estas, associando-se, em Cidades-Estado. Há aqui uma espécie de evolução natural. Também podemos olhar para outros pensadores como Hobbes que vêm no ser humano um animal egoísta, com uma natureza belicista, aquilo que queremos é satisfazer os nossos interesses, pelo que há um estado natural de conflito. A solução é a criação de um Estado, na medida em que «assinamos» um contrato onde cedemos parte da nossa liberdade e subjugam-nos à legislação, a troco de segurança, de um estado de paz.

Parece-me que outra resposta é capaz de combinar alguns elementos que já mencionei: nós temos necessidades para serem cumpridas. Precisamos de alimentos, abrigos,… é através de uma multiplicação de mãos que conseguimos tornar mais eficiente a supressão dessas necessidades. Praticamente todos os nomes coletivos de animais apontam nessa direção. A dimensão simbólica, a criatividade e atribuição de significado, gerou o desejo de se viver além de sobreviver. Então, à medida que o tempo passa, constatamos a produção de artigos que já não são bens de primeira necessidade, a formação da cultura, a própria criação do dinheiro. Como já éramos muitos, havia mãos disponíveis para além do essencial de outrora. Em pequenos aglomerados não seria difícil distribuir os bens, mas e agora? Quando a desigualdade, pelas mais variadas formas e razões, se foi tornando uma constante. A essência do Estado deve ser assegurar que existe um abastecimento dos bens necessários e distribuí-los. É esta distribuição que, dependendo de como é feita, facilmente leva à exploração (somos obrigados a dar e a aceitar, sem que as nossas necessidades sejam satisfeitas). São muitos os percursos que podemos continuar a partir daqui.

2023_04_11_Macaquinhos, coriscos e tarelo ou O progresso a levar nas ventas

Em 2017 li um livro que me impactou particularmente: Utopia para realistas de Rutger Bregman. Estava eu no Faial a visitar parte da minha família quando o comprei e abri: «Comecemos com uma breve lição de História: No passado, tudo era pior. Ao longo de 99 por cento da História do Mundo, 99 por cento da Humanidade era pobre, faminta, suja, imbecil, doente e repugnante.» Este início, sem dúvida, impactante e recheado de fontes científicas, leva-nos a perceber que há esperança para a resolução dos problemas que identificamos à nossa volta. Claro está que não podemos deixar-nos acomodar, tapando os olhos ou indo para as redes sociais comentar a atualidade e mais o que se aprouver. O que me levou a escrever este artigo foi a leitura de uma notícia sobre os EUA, sendo que aproveitei para fazer uma súmula de outros acontecimentos políticos, completamente tresloucados, que me parecem um ataque completo ao progresso até aqui alcançado – cada um com a sua respetiva fonte. Que se note que cada um destes exemplos ocorre em países que ficam bem classificados no índex da Freedom House [1].

[2] Desde logo temos os EUA, palco já habitual dos atentados ao bom senso, onde no final de fevereiro o NYT noticiou um aumento assustador (68%) do trabalho infantil – em grande parte através da exploração de imigrantes desacompanhados de progenitores. Como se não bastasse vários estados estão a aumentar as horas permitidas de trabalho para trabalhadores jovens e alguns a aumentar o número de áreas em que podem contratá-los. Estas mudanças são feitas através da reversão de regulamentação sobre o trabalho infantil.

[3] Sunak, PM do Reino Unido, apresentou nova legislação sobre imigração para combatê-la. Fê-lo com o slogan «Stop the boats» («Parem os barcos»), numa clara ilustração da dura política que pretendem aplicar. Que se note que o Governo está disposto a sair da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como forma de lhe dar seguimento.

[4] Em França temos um presidente que prefere aumentar a idade de reforma em dois anos, ao invés de aumentar impostos em grandes fortunas – não fosse ele um ex-banqueiro.

[5] No Brasil, no Dia da Mulher, um deputado decidiu divulgar informação falsa no púlpito e adotar um discurso antifeminista e transfóbico. De peruca em punho, Nikolas Ferreira vai ao Congresso dos Deputados afirmar o papel da mulher como mera máquina de reprodução. O país tem assistido ao surgimento, tal como nos Estados Unidos, de leis contra pessoas LGBT+.

[6] Por cá, temos o Chega a avançar uma revisão constitucional que permita a prisão perpétua e a castração química.

Podíamos falar de muita coisa, mas penso que o ponto essencial a questionar será: qual é o papel do Estado? Vejo-o como o escudo sobre toda e qualquer forma de exploração, o garante de liberdade individual. Cabe ao Estado organizar o trabalho de tal forma que permita uma justa redistribuição da riqueza. Para a semana regresso a este raciocínio.

[1] https://freedomhouse.org/explore-the-map?type=fiw&year=2023

[2] https://www.theguardian.com/us-news/2023/feb/11/us-child-labor-laws-violations

[3] https://www.publico.pt/2023/02/05/mundo/noticia/reino-unido-admite-deixar-convencao-europeia-direitos-humanos-2037698

[4] https://www.theguardian.com/world/2023/mar/24/why-macrons-pension-reforms-have-stoked-so-much-anger-in-france-protests

[5] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/brasil-tem-um-novo-projeto-de-lei-antitrans-por-dia-e-efeito-nikolas-preocupa.shtml  

[6] https://www.dn.pt/politica/constituicao-o-que-querem-mudar-os-partidos-em-dez-areas-15586298.html 

2023_04_04_A felicidade faz-se de nãos

Será que as coisas são óbvias? Nós, enquanto seres que atribuem significados, complicamos a realidade? Parece haver, por vezes, uma tensão entre o sentido comum e as correntes filosóficas. A mobilização de jargão erudito para descrever a realidade versus as expressões idiomáticas. A descrição das aparências versus o rigor das palavras. A ciência aparece como uma metodologia de chegar perto da verdade (as ciências naturais e exatas parecem-nos exemplo de grande sucesso). Talvez um dos encantos da ciência seja, de vez em quanto, mostrar que o nosso sentido comum nos induz em erro. Sentimo-nos desafiadoramente atacados, como quando percecionamos ilusões de ótica. Que se note que muitas vezes o sentido comum é munido de slogans contraditórios de forma a podermos aplicar conformo nos dá mais jeito. Aquilo que gostava de fazer aqui hoje era justamente tentar provocar aquilo que a aparência no diz sobre a felicidade.

Antes de avançar, na semana passada discutiu-se em contexto de aula a escola cética (fim da Grécia Clássica), que, por acidente, descobriu a tranquilidade como aquilo que nos dá prazer. Já Aristóteles colocava na felicidade aquela que é a finalidade da ação humana (através de uma ética pautada pela moderação). Estas noções de não perturbação e de «no meio é que está a virtude» são perspetivas muito típicas naquela geografia e época. Achei, contudo, curioso o apontamento que o professor fez: a agitação, em detrimento da tranquilidade, é algo que, aos nossos olhos, até tem algum benefício. Com esta observação em mente fiquei a refletir.

O resultado parte de um velho ditado do sentido comum: só quando se perde algo, se dá por falta dela. O meu ponto é que esta frase que nos é tão óbvia em certos casos, se aplica não só pelo valor que damos a algo, mas também a forma como vemos o algo, partindo da nossa mente. A nossa felicidade depende de sabermos que existe infelicidade (e termos, pelo menos, contactado minimamente com ela). Então, é preciso afirmar a infelicidade para se, separando o trigo do  joio, perceber onde está a felicidade, valorizando-a. Desta forma, aquilo que percebemos é que a constatação da infelicidade é crucial na busca da felicidade. Essa constatação é, aliás, uma espécie de método.

Seguindo esta raciocínio, é totalmente possível a pessoa mais feliz do mundo ser, ao mesmo tempo, aquela que mais reclama. Penso ser este o ponto mais engraçado e que me levou a fazer aquele primeiro parágrafo tortuoso. Se a pessoa sabe que existe infelicidade, mas em si só constata felicidade, então é feliz. Alguém privilegiado, no sentido de não ter qualquer necessidade por satisfazer, mas não entenda que poderia acontecer o contrário, dificilmente será alguém feliz. Esta questão de privilégio é importante e devia esmiuçá-la um pouco mais, não obstante, penso que o principal passou.

Recuperando o raciocínio, é também possível que quem mais reclame seja a pessoa mais otimista do mundo. Quando alguém identifica que algo está mal tem duas visões: ou o problema vai existir sempre ou é resolvível. Ora, se a pessoa adotar esta segunda visão, temos que para se ser otimista é necessário considerar que para qualquer problema, existe uma solução, se o problema não tivesse sio identificado, nem haveria essa discussão.

Convém, claro, esclarecer o que quero dizer com reclamar: constatar que algo está mal com humildade intelectual. Esta segunda parte é crucial, uma vez que os dogmas funcionam como palas. Vamos abraçar a felicidade da dialética e fechar os comentários ressabiados das redes sociais.

2023_03_28_Quando a cabeça não tem juízo, o Pessoa é que paga

Ora, outro dia voltei a deparar-me com justas críticas à inaptidão, com que saímos da escolaridade obrigatória relativamente à interação com as entidades governamentais, como a utilização do Portal das Finanças ou da Segurança Social. Há um acumular de responsabilidades que nos vão aparecendo progressivamente à medida que vamos ultrapassando as etapas onde parece que somos deixados por nossa conta. Até aqui, tudo bem. O meu problema com as críticas vem quando continuam a sua formulação atacando os conteúdos lecionados: para quê equações? Para quê aprender Pessoa? Enfim, vamos por partes.

Desde logo, há que perceber que o ser humano é um animal social, tendendo para uma vivência em comunidade (quer seja diretamente, quer seja por conveniência). Percebemos que é na união que temos mais frutos, mais acumulação de riqueza, então inventamos a repartição de tarefas e assim se formaram as profissões. O problema é: precisamos de organização, de garantir um mecanismo estável para a sobrevivência dessa comunidade. Então institucionalizamos, legislamos,… Ou seja, criamos entidades abstratas, mas às quais reconhecemos autoridade sobre as suas competências. O aprofundamento democrático e do Estado Social levam inevitavelmente ao aparecimento de burocracia. Podemos argumentar que vivemos em Estados, muitas vezes, excessivamente burocráticos e até se podiam apontar as razões mais ou menos perversas na base disso. O que importa é que é sempre necessário um mínimo de burocracia, sendo que é com a acumulação das responsabilidades que nos deparamos com ela.

Uma consequência desta lógica é a necessidade do cidadão conseguir orientar-se pela informação. Para isso é necessário existirem fontes, como sites (intuitivos) funcionários públicos bem informados, mas também educação de partida sobre o assunto. Na escolaridade obrigatória deve haver a preocupação de se introduzir aos aspetos práticos da vivência comunitária. Desde logo, perceber no que o Estado assenta (Constituição) e como funcionam as instituições. Numa segunda fase, a introdução a responsabilidades transversais, como as relacionadas a impostos, a vínculos laborais, bem como aos serviços públicos. Obviamente que não se pode pedir um ensino de direito, não se pode mencionar todos os casos, mas transmitir as noções base e indicar onde se deve dirigir em última instância para ter uma resposta. Isto facilmente seria feito em meia hora por semana de Cidadania no secundário. Para termos a cereja no topo do bolo: um fomento de um conjunto de literacias no ensino básico em cidadania – esta última parte está no papel, mas parece ficar por concretizar.

Esta literacia do que é ser cidadão, do que é ser estudante, trabalhador, pai, empresário, doente, contribuinte,… é fundamental para garantir que todos temos o melhor usufruto das ferramentas da nossa comunidade.

Voltando à educação. Da mesma forma que é importante saber como nos movimentar no sistema, também é importante ver além do sistema. Não é suposto formatar robôs. Não queremos pessoas que nascem, procriam, pagam impostos e morrem, sem sentirem o mínimo de autorrealização. Então temos de dar ferramentas de pensamento. Uma importantíssima é a da língua. Perceber como falamos. Aumentar vocabulário. Pensamos como falamos, que se tenha isso em mente. A literatura, mais do que capricho nacionalista, é o modo de mostrar como o indivíduo pode dominar a língua. Eu até acho que no 9º ano se devia dar a Alice no País das Maravilhas como leitura em inglês – em vez de serem só micro-textos artificiais. Novas línguas são novas formas de pensar.

Relativamente a outras disciplinas: saber como funciona a combustão evita um incêndio, saber derivar poupa dinheiro,…


2023_03_21_O regresso às jangadas

Outro dia aprendi uma curiosidade muito engraçada: os primeiros habitantes de Madagáscar, a ilha a este do sul africano, foi primeiro habitada por povos do Índico e não de África, apesar da ilha se encontrar a cerca de 450km deste continente (quase a distância do Corvo a São Miguel). É muito impactante notar que foram pessoas que estavam a mais de 5500km aquelas que realizaram o feito (e com mero recurso a canoas, tendo ocorrido em meados do primeiro milénio). Acontece que eram essas pessoas aquelas que estavam habituadas a dominar as artes marítimas por viverem em arquipélagos com inúmeras ilhas. Os povos de África, com um continente tão grande por explorar, não sentiram necessidade de se aventurarem no mar. Perguntemos então: abdicariam os pioneiros madagascarenses de deter o domínio das suas canos? Seria possível conceberem um mundo onde não pudessem controlar aquelas que eram as suas pontes entre ilhas?

Na espuma destes dias surge uma crise política, mero artifício, um cálculo eleitoral dos autofágicos. Passando atrás do alarido vai o processo de privatização da SATA (um brinde da IL, que obrigou o governo a abrir o processo e agora distancia-se pela não execução do acordo). Aquilo que se pretende é, portanto, tornar a SATA uma companhia aérea da esfera privada (algo dá falado pelo PS e que nestes últimos meses tem ganho forma). O que implica a privatização da SATA? A gestão deixa de ser feita a partir do domínio do executivo açoriano, sendo uma entidade empresarial privada a responsável, respeitando certos preceitos acordados. Existe, portanto, regulação. No entanto, não existe nenhuma obrigação além daquela prevista, pelo que a esmagadora maioria das decisões não têm de ter em conta o interesse público (como um governo deve ter). Que se note que nenhum privado iria querer ser um simples gerente a receber ordens, se investe é para ter a palavra. Outra consequência é o monopólio instalado: em vez de ter só uma empresa pública a operar, temos só uma empresa privada a operar.

Se o problema deste processo a este ponto não é óbvio, coloco-o claramente: é inconcebível que, num arquipélago onde nem existe transporte de passageiros por via marítima ao longo de todo o ano, se venha retirar das pessoas aquele que é o seu meio de transporte. Temos mar que nos separa e querem privatizar as canoas que detemos. «Ah, mas o sistema atual não funciona, até porque quando é público tudo funciona mal». O problema não está em quem é o domínio, mas em como é gerido. As decisões de um setor estratégico devem ser tomadas por uma entidade mandatada pela população e é sua responsabilidade adequar o serviço às necessidades que existem. «E se essas escolhas derem prejuízo?». Quando há boas decisões, tomadas por pessaos competentes, que foram feitas para as pessoas, aplicadas num setor tão fundamental como a mobilidade é para os açorianos, o prejuízo é um investimento no bem-estar. Algum humano seria capaz de dizer que a saúde deve ser um negócio e não a salvaguarda do bem-estar? Alguém seria capaz de afirmar que a educação que uma criança deve ter depende da carteira dos pais?

Já nos tiraram o navio no verão, não podemos deixar que nos tirem o poder sobre a nossa própria mobilidade alienando a SATA.

Como se não bastasse esta discussão fundamental, temos ainda uma incerteza: o que acontece à dívida de 300 000 000€ que a Azores Airlines tem em relação à SATA. Um presente dos contribuintes?

Não consigo acabar este artigo sem a referência à última estrofe de um poema muito conhecido de Saramago, publicado num dos seus cadernos: «E, já agora, privatize-se também / a puta que os pariu a todos.»

2023_03_14_Os Óscares açorianos

No passado domingo, quando já era quase segunda, começou a cerimónia da Academia que premeia os melhores desenvolvimentos cinematográficos do ano. Pela passadeira vermelha passam aqueles que tomam por missão de vida fazer cultura, oferecendo-nos momentos de lazer, mas também aprendizagem e reflexão. Da noite fica o desgosto daquele que foi a primeira indicação portuguesa a um Óscar não se ter convertido num vencedor – se continuarmos a ter esse mesmo desgosto nos próximos anos, estaremos nós muito bem.

Por cá, o plenário da semana passada constituiu um longo filme, cuja sequela está por vir, mas não sei se é guardada com ansiedade. Dado o drama em que os Açores estão mergulhados desde 2020, parece-me fazer sentir atribuir alguns Óscares.

Desde logo, um belo Óscar de maquilhagem para a Iniciativa Liberal que, a um ano e meio de eleições, percebe na alhada que se enfiou e se tenta distanciar. Uma verdadeira operação de cosmética. Sabemos que o Governo Regional está em maus lençóis quando a IL rompe um acordo com ele, mesmo apesar de duas das suas principais reivindicações estarem a ser cumpridas: endividamento 0 e privatização da SATA. Com sorte, o Governo ganha juízo e deixa cair ambas.

Que se note que a IL já se prepara para um novo Óscar: o da melhor Fotografia. Se é verdade que eles agora se estão a tentar por apresentáveis, nos próximos tempos andarão, ilha a ilha, a garantir que ficam bem na fotografia. Nunca desdenhar um falso sorriso amarelo: a IL em 2020 fez História com uma demonstração matemática, aplicada à demografia: é possível eleger concorrendo apenas em São Miguel e Terceira – é normal a confiança, até se ouve o tilintar das garrafas de champanhe a serem armazenadas. Deverão apostar com mais força na Terceira para tentar eleger sugando o CDS, ou pelo menos garantir a compensação caso elejam em São Miguel, e a concorrer a todos os círculos para ter lugar nos debates frente-a-frente. O melhor de tudo? A IL não pode apresentar uma moção de censura por ser uma representação e não grupo parlamentar. Vai se a ver e, no final disto tudo, são os paladinos da estabilidade. Ou será que são uma real ameaça à sobrevivência de Bolieiro?

O Óscar de melhor ator secundário vai diretamente para Carlos Furtado. Alguém tinha de ser o primeiro a dar o grito, mas o segundo grito ser logo a seguir coloca em causa se este último existiria sem o primeiro. Claro que dizem que sim, até pelo historial de críticas, mas parece que Furtado estava a desejar mesmo uma companhia que o impedisse de ficar sozinho a ameaçar uma estabilidade que, a existir, corresponde a um elefante em cima de uma bola. Mas não nos enganemos: quando o governo pode cair por um deputado, todo o ator secundário pode virar principal.

O Óscar de melhor argumento vai claramente para o Chega. Pacheco e Ventura eram claros candidatos ao de melhores atores pela forma como dizem o que dizem sem se desmanchar a rir na cara das pessoas, mas, a este ponto, as suas atuações estão completamente esgotadas. Então vem a força política que mais vezes rompeu o acordo e voltou a cozê-lo por sessão legislativa, agora acusar outros de instabilidade e conspiração? O número de ziguezagues deste enredo já atingiu o limite: a partir daqui é mesmo desligar a televisão e voltar ao mundo real, dos reais problemas.

Por fim, um Óscar de melhor guarda-roupa para Bolieiro: no Dia da Mulher vestiu a sua melhor personagem ativista para afirmar, com todo o orgulho, que é tão feminista que até concede a uma mulher a magnífica oportunidade de ser secretária regional. A cada dia, Bolieiro arranja forma de demonstrar a sua falta de noção.

2023_03_07_Os grilhões da cama

Mais uma vez me vejo a recorrer à minha experiência do dia-a-dia. Há sempre o receio do leitor não se rever nessa vivência, mas penso ser um risco baixo. Escrevo este artigo num domingo. Demitiu-se o secretário regional da saúde e, entretanto, já preencheram a vaga, mas isso não me motiva a escrever. Aliás, o que me motiva a escrever as palavras que se segue é justamente o nada, a ausência de coisa. Ora vejamos. No dia anterior o Festival da Canção acabou pouco depois da meia-noite e ainda me pus a acabar de ver um filme. Presumivelmente acordaria mais tarde, mais do que num dia de aulas, de certeza. Acontece que só acordei propriamente já passavam das treze (são raríssimas as ocasiões em que isso aconteceu). Sendo domingo e como estava a gostar demasiado da minha cama, continuo enroscado ainda um bom bocado, até considerar boa ideia improvisar um almoço. Como, evidentemente, na cama e por lá fico durante grande parte da tarde. Esse tempo foi passado, essencialmente, em redes sociais a receber informação. Acabei por fazer algumas limpezas superficiais e voltar para o conforto da manta. Foi só depois de ter desencantado jantar que tive uma reunião de umas poucas horas e acabei as limpezas. Entretanto aqui estou. Desinteressante, hein?

Esta dia pachorrento, na verdade, será visto como o dia ideal de alguém: um tempo de descanso, onde se valoriza o calor e conforto como forma de recarregar baterias, algo ainda melhor na companhia de alguém para fazer conchinha. Se pegarmos em qualquer trabalhador, principalmente que não esteja em teletrabalho, provavelmente adorará um dia destes. Se pegarmos em qualquer pessoa que luta diariamente para sobreviver, este dia é um luxo de valor incalculável, um Euromilhões. No entanto, chego ao final deste dia vazio e não estou satisfeito. Sou ingrato pelo meu privilégio de poder ter um dia destes? Como estudante, não terei eu também um grande desgaste de energia ao longo da semana? Não seria normal ficar satisfeito com a possibilidade de ficar quieto?

Bem, a verdade é que algo me parece sussurrar que devia ter feito algo: estudar mais, limpar mais, adiantar artigos, ler, ver filmes,… o mínimo que pudesse ser chamado produtivo, fosse estudo, doméstico ou cultural. Encher o tempo, basicamente. O que não me deixou aproveitar o descanso foi esta efervescência contemporânea que nos leva a achar necessário estar sempre a fazer algo. Descanso é visto como preguiça. A verdade é que sem ele damos em malucos, mais, damos em zombies que vivem como animais máquina.

Enquanto escrevo estas palavras à luz do bom senso, sei que há em mim ponta de preguiça. Vejo o conforto da minha cama e pergunto-me como pode um jovem de 21 anos querer tanto estar sempre nela enfiado. Já anteriormente abordei esta assunto. Nós temos um problema enquanto sociedade, esgotamos as pessoas. Não sou só eu. E tenho sorte de ser este o meu problema e não de me ter calhado a fome. Contudo suspeito que este sintoma seja também preocupante de um sistema doente. Um sistema que nos faz ver o buraco que há em nós e nos atira à exploração como forma de o preencher.

O sentimento de vazio que há em nós até pode ser preenchido em certa parte pelo trabalho, mas pela sua utilidade. Por o nosso esforço numa fatia razoável de tempo ter sido investido numa riqueza comum, sentimo-nos parte de um organismo maior e há uma realização pessoal. As outras faces da realização veem com o tempo de qualidade: família, cultura, lazer, projetos pessoais,…


2023_02_28_A rir e a brincar se dizem verdades


Chegou ao fim uma das épocas do ano mais apreciadas pelos açorianos: o carnaval. Como se não bastasse o Entrudo, faz-se questão de ir criando expectativas com as festas anteriores, como o dia das amigas, ora não fosse o melhor da festa esperar por ela. Por todas as ilhas encontramos as suas especificidades, umas que valorizam mais, outras menos. Talvez as celebrações mais icónicas sejam as da ilha mãe deste jornal. Não obstante, abordarei a questão a partir da minha ilha, Santa Maria, para evitar cometer erros por ignorância.

Carnaval que é Carnaval em Santa Maria tem danças. São elas das Casas de Povo, entidades,… o que importa é que temos um grupo de pessoas vestidas tematicamente que ensaiam uma coreografia e canta acompanhados de música (por vezes, ao vivo). Por vezes as músicas são covers, outras originais, mas a letra é sempre invenção do grupo da dança. É uma letra satírica, que alude sempre à famosa mensagem do «é Carnaval, ninguém leva a mal», nem que seja no fim, na despedida. Há grupos que optam por já passar certas mensagens através da música, outros preferem fixar um refrão que vai sendo interrompido sempre que alguém da dança avança para declarar, normalmente, uma quadra. Um curiosidade interessante é serem justamente as quadras, através de uma rima cruzada, as mais habituais para se contruírem o portefólio humorístico. Desde parágrafo se nota que as danças são semelhantes na sua estrutura, diferindo na temática e alguns aspetos práticos. Claro que no que concerne ao material satírico não é raro algumas sobreposições, mas já lá vamos.

Além das danças, costuma haver algumas «brincadeiras», como são chamadas. Trata-se de peças de teatro cómicas concebidas no seio de um grupo de amigos e que acabam por ver a luz do dia. Muitas vezes são utilizados assessórios que exigiram muito tempo e dedicação (as danças, por vezes, também adotam isso, como enfeitar carros). Uma das brincadeiras deste ano tinha uma nave espacial que devia medir pelo menos três metros, por exemplo. Além de outros acessórios mais modestos, mas também trabalhosos.

Existe efetivamente um valor cultural e de entretenimento associado ao Carnaval, que se torna, por um lado, no reflexo artístico do senso comum e, por outro lado, uma altura em que as pessoas parecem ter o direito a rir. É um clima de alegria, de um espírito coletivo, quando mais não seja, pela compreensão transversal das piadas e anedotas que foram sendo ditas e feitas.

Existe, aliás, um outro aspeto que me fascina particularmente no Carnaval: à noite deitarmo-nos e ficarmos a remoer no que foi dito, tentando perceber a fronteira entre a sátira e a realidade. Há um espírito crítico e reflexivo que surge nesta altura e se esconde no resto do ano. Apesar de que com gargalhadas, coloca-se em praça pública os principais anseios de um povo. Parece-me uma imagem realmente poderosa.

Cabe, portanto, a quem governa perceber duas coisas: é uma honra ser mencionado e é imperioso atuar sobre o assunto. Para alguém publicamente estar à vontade para mencionar x ou y, mesmo que nesse contexto, é preciso considerar-se próximo desse x ou y, e, para, pelo menos, a maioria da população entender a referência, tem de ser considerado alguém com importância. Por outro lado, é importante sabermos rir de nós, percebermos onde provavelmente estamos certos e errados, estando sempre abertos para ouvir quem está a ser representado. O Carnaval é a altura ideal.

É mesmo real, a rir e a brincar se pode dizer a verdade.


2023_02_21_Um dia, lado a lado

Às vezes somos confrontados com decisões sobre a permanência num determinado caminho. Temos de olhar para o que foi feito, relembrar o objetivo, e avançar pelo mais adequado. Recentemente vi-me a ter de tomar reavaliar o meu percurso. Talvez por vivermos numa sociedade e termos de ter uma utilidade, é impensável hoje não começarmos a pensar minimamente a longo prazo, se estudar, o que estudar, onde trabalhar,… Esse longo prazo, apesar de bem-intencionado, é, aliás, o motivo de parte do aumento relativo a depressões e ansiedade. Não obstante, hoje a história que quero contar é outra: a de que um jovem teve de colocar a esperança em stand by.

 Concretizando aquilo que escrevo: em janeiro decidi deixar a presidência da Associação Juvenil de Santa Maria e a coordenação do Bloco de Esquerda em Santa Maria. À maioria dos leitores não importarão muito estas questões, por isso aquilo que me parece pertinente é expor as razões gerais que me levaram a tomar essas decisões (com a neutralidade e humildade possíveis).

Desde logo, é necessário perceber que a esmagadora maioria das pessoas com um papel político ou associativo fazem-nos sem qualquer rendimento associado. Nunca, em qualquer das atividade que desempenhei ganhei qualquer coisa sem ser trabalho. Aliás, por vezes até se chegou a gastar para se ir limando algumas pontas. É, portanto, muito injusto afirmar que as pessoas que abdicam do seu tempo pessoal para esse tipo de trabalho comunitário o fazem por interesses e benefícios. Quaisquer receitas que se arrecadem são esticadas ao máximo para os seus propósitos, sendo impensável (e bastante fácil de notar) qualquer desvio de fundos. Sobre o caso político particularmente, há um desgaste pessoal de imagem pro bono, muito mais evidente que alguns casos associativos, pelo que a afirmação «todos os políticos são iguais» é igualmente repugnante.

O facto de vivermos na sociedade que vivemos, com já várias vezes descrevi, leva a que poucos tenham disponibilidade temporal e mental para dar um passo em frente. Há ciclo de desinteresse e impossibilidade que coloca estas atividades numa espiral decadente. Menos investimento, maiores constrangimentos, menos visibilidade, menos interesse, menos participação,… Esta questão aparece com maior evidência no associativismo, mas na política vê-se claramente um desligamento por verdades fabricadas e falta de esperança sobre o cenário político. Vai-se a ver e, no final do dia, ninguém se quer chatear nem dar a cara. Então as pessoas que avançam, além dos grandes constrangimentos que têm, ainda têm a sobrecarga de uma reduzida equipa.

Como se esta conjunção não fosse suficiente, há uma cultura de escárnio de dirigentes associativos e políticos por parte de uma fração das pessoas que, mesmo sendo minoritária, torna-se ruidosa no meio do silêncio dos restantes. As pessoas nunca estão satisfeitas, assim o exige a essência humano (e isto também vale para quem está ao leme). Isso é saudável: levam-nos à utopia, à procura pela perfeição que nos leva à superação, a almejarmos conseguir fazer melhor. Agora, há uma clara linha que separa essa ambição saudável de uma crítica destrutiva, uma conversa de café que serve somente para mentes tacanhas justificarem a sua inação. Dizia Platão: o maior castigo é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos.

Se afastarmos quem sacrifica o seu tempo, quem ficará? Que futuro? Que comunidade? Quem fica, por mais quanto tempo? Quem saiu, voltará? Eu retomarei mal a minha esperança reapareça, o que provavelmente vai acontecer com a consciencialização da minha geração.

2023_02_14_Há lugar para o diálogo? Fará sentido?

Há algum tempo estava eu na cama, de noite, e, naqueles acessos filosóficos próprios da madrugada, interrogava-me sobre como seria correto realizar o debate intergeracional. Rapidamente a questão evoluiu para as fundações de um sistema político ideal. Cheguei àquilo que intuitivamente chamei atomização demográfica das estruturas de poder. Bem, presumo que este não tenha sido o parágrafo mais simpático que escrevi, não obstante, penso que fará sentido expor o raciocínio, como exercício de reflexão.

Desde logo, como o pensamento humano não é o mais lógico, vou já moldar o raciocínio, como me parece mais correto e percetível.

Desde logo, a questão de abertura: é frutífero o debate intergeracional? O meu primeiro instinto é concordar. Parece-me que um movimento hegemónico, que aborda as lutas e agendas de uma forma holista, é o que um movimento político democrático bem-sucedido representa. Agora, isto poderá ser uma utopia. Consideremos o seguinte: é 2023 e eu tenho 21 anos, sendo que o meu pai tem 51. Os nossos interesses são semelhantes? É 1980 e a Maria tem 21 anos. Ela e eu temos a mesma agenda? É 2050 e eu tenho 48 anos. Esse eu do futuro tem a mesma agenda do eu do presente? Bem, aquilo que acontece é perceber que as divisões geracionais que existem são perenes, uma vez que os jovens vão envelhecendo e alterando a sua agenda. Os nossos interesses são pontos uma linha do tempo. Existe, claro, uma incompreensão por parte do outro sobre os interesses de cada um, pelo simples facto de não viver a realidade da mesma forma. Em vez de idade podíamos falar de género ou religião. Estas colisões de interesses e identidades são grandes entraves para o debate – mas também são o que torna a realidade rica e interessante.

Em última instância, chegamos à conclusão de que o poder tem de ser reproduzido para cada um dos grupos.  Um governo de jovens para jovens ou de mulheres para mulheres ou de católicos para católicos, por exemplo. Era como se cada um desses grupos tivesse um «país». Na verdade, viver no mesmo espaço seria um caos burocrático – questiono-me até que ponto o sistema atual não é mais próximo do que afirmo, do que aquilo que penso. Não obstante, se as divisões demográficas forem por idades, temos o problema de o envelhecimento existir. Se for por género, precisamos de passaportes para garantir a continuidade da espécie. Há outra problema: quantos predicados devem ser tidos em cota: seria governo de jovens ou governo de mulheres ou governo de jovens e mulheres, por exemplo?

Esta visão é, obviamente, uma caricatura. Se a levarmos minimamente a sério, não podemos falar pela rama como fiz. Qualquer das formas, por estarmos a falar de dividir o exercício de poder sobre um grupo de pessoas, baseando na identidade de segmentos da população, o meu cérebro decidiu chamar atomização demográfica das estruturas de poder. O interessante é perceber que esta visão pode descrever um outro regime político, não tanto por partir a população de uma forma que não fazemos, mas porque vão ter de existir relações entre territórios de índole muito mais próxima, do que a fria diplomacia em que o nosso globo está.

Há algo que aqui ainda não abordei, mas que orienta a ação humana: os valores. Apesar de haver um fosse geracional, mais conceptual que material, há uma ligação de valores histórica. Será que podemos falar de grandes alterações de paradigma que colocam até essa ligação em causa? Talvez, mas não tem de ser necessariamente o momento presente. Parece-me que o que importa são duas coisas: garantir o respeito mútuo, aceitando o progressismo da juventude e a experiência dos que a têm.

2023_02_07_Considerações sobre o acesso ao ensino superior

Anteriormente, nos artigos de 10 e 17 de janeiro, debrucei-me sobre a questão – em duas perspetivas distintas -, no entanto, parece-me que ainda existem mais pontos a discutir, mesmo sendo eles, à primeira vista, gerais e não uma temática exclusivamente açoriana. Digo à primeira vista, porque facilmente podia andar a fazer associações, mas não é esse o meu ponto.

O que ficou por abordar? A questão central: o método utilizado para o acesso ao ensino superior. Como poderá saber o leitor, a candidatura gira em torno de notas: a média do secundário e as classificações dos exames nacionais. Cada curso estabelece a relação e os exames que são necessários: os exames podem valer 60%, 50%, 40%,… e podemos precisar de só Física e Química ou só Matemática, ou os dois juntos, ou três até! Quando os estudantes ordenam as suas opções vão aparecendo as notas de candidatura a cada curso, segundo essas condições (a plataforma escolhe os exames candidatos conforme a combinação que confere a melhor nota).

Desde logo, podemos perguntarmo-nos se basear a entrada no simples cálculo matemático é justo. Podemos olhar para outros países, como os Estudados Unidos são famosos por, e observar um método de seleção mais personalizado com cartas de motivação e recomendação, juntamente com um currículo. Podemos perguntarmo-nos se esse método não leca a que os jovens se desdobrem em atividades extracurriculares que não querem verdadeiramente fazer, para tentar entrar na faculdade, ou seja, perceber até que ponto querermos uma aproximação mais genuína de cada jovem, pode levar a uma perversidade na sua identidade e obstaculizar a sua individualidade. Claramente percebemos que é uma questão muito complexa. Aquilo que deve ser evidente é que a educação é crucial para qualquer sociedade, devendo ser um direito: quem quer estudar, deve conseguir fazer independentemente de qualquer condição pessoal – sim, eliminação das propinas, alojamento acessível e numeroso, anulação de emolumentos básicos,… entram aqui.

Resta-nos o sistema que temos. Aquilo que o Ministério da Ciência e Ensino Superior pretende é que os exames tenham um peso mínimo mais elevado, 50% salvo erro. Esta lógica faz sentido? Sempre vi os exames nacionais como uma responsabilidade das universidades atirada para o ensino público obrigatório: é óbvio que as instituições de ensino têm de ter critérios para definir quem fica com as vagas, pelo que cada uma podia fazer, por exemplo, uma prova para ordenar os estudantes. Não é uma realidade alheia à realidade. Não obstante, esta realidade que temos, de acordo com o sistema que temos, não me parece desadequada.

É claro que tem de ser possível averiguar as capacidades de uma pessoa para a área a que se candidata. Como o critério deve ser universal, é preciso partir de um ponto comum dos estudantes: aquilo que foi abordado no ensino obrigatório. Os exames nacionais serem feitos nas escolas é uma boa simbiose por serem garante que as provas se adequam às metas nacionais das disciplinas, igualdade de oportunidades para o acesso, e a escola pública fica com um instrumento de reflexão sobre o sucesso dos alunos nas áreas. Claro que a igualdade de oportunidades nunca é perfeita, por serem professores diferentes, não haver as mesmas condições em todas as escolas, além dos fatores pessoais. Também se acresce ao facto dos exames serem momentos isolados e de grande tensão, pelo que não revelam as reais capacidades.

Se a questão específica é importante, a geral também: convém que todo o desempenho seja valorizado, apesar de ser justificado o papel crucial dos exames em relação às especialidades.

2023_01_31_Quatro provocações à democracia

Apontar falhas tanto pode ser fácil como difícil. Idealmente, elas seriam acompanhadas de sugestões de resolução, não obstante, qualquer apontamento de falha colocado no tom certo serve para lhe dar visibilidade, abrindo caminho à resolução. Nada está livre de falhas. O nosso sistema político, a democracia, muito menos, sendo, no entanto, vista, famosamente, como o pior dos regimes à exceção de todos os outros. Debate é preciso sobre como limar arestas a um poder que é dado ao povo. Aqui deixo algumas questões que não me parecem particularmente abordadas e que considero interessantes.

Os temas do espaço público são uma combinação de agendas: pública, política e dos media. Ou seja, as questões prementes para as pessoas, políticos e comunicação social. Estas agendas influenciam-se, disputando um domínio do clima de opinião.

A questão que coloco é: podemos chamar democracia a um sistema onde a agenda pública pode ser subterrada por outras agendas? Ao fim e ao cabo, temos o ponto sobre a legitimidade de uma maioria: pode uma maioria submeter uma minoria a algo? Esta última pergunta já tem uma conotação mais ética; apesar de não conseguir ver a resposta claramente, parece-me que a questão de valores universais, como os direitos humanos, tem de ser chamada. Sobre a primeira questão que coloquei: talvez num falte aqui uma agenda, a dos especialistas. Para nos mantermos numa democracia, e não numa tecnocracia, teremos de fazer aqui algum contorcionismo. Talvez olharmos para nós próprios como um todo: racionabilidade e sensibilidade.

Depois do ataque ao alicerce etimológico, foco-me em como a democracia se defende das suas ameaças. Parte da proteção é feita pela aplicação da legislação, no entanto, pode haver ma corrosão ideológica. Muito trabalho de consciencialização sobre temas atuais e pertinentes, desde direitos humanos a alterações climáticas, é feito por entidades não governamentais: associações e coletivos. Pessoas que dão do seu tempo pro bono. Até que ponto é que o ativismo não devia ser profissionalizado? Assalariado? O princípio de se pagar a alguém para fazer algo é formar um compromisso com um trabalho e eliminar agendas que possam miná-lo.

Numa linha de raciocínio relacionada, muitas associações atualmente desempenham um papel que podia ser garantido por entidade públicas. Em vez das associações se verem gregas para contratar pessoal por não conseguirem criar condições dignas de emprego, ao ponto de poder ser uma oportunidade profissional, porque não termos mais funcionários públicos? As únicas associações que não faria sentido serem estatais são aquelas com cariz ideológico.

Retomando a democracia. É possível pensar noutro sistema? Penso ser extremamente difícil, já temos uma carga afetiva associada. Já temos ideias e conceitos definidos e valorados. Um novo sistema de raiz teria de ser obtido sem esse ruído, mas é impossível nós desfazermo-nos de informação como bem queremos e as crianças mão crescem sozinhas. Mesmo que pudéssemos ter um experimento onde temos várias colónias isoladas de humanos sem experiências prévias, veríamos regimes muito distintos a serem feitos ao longo do tempo.

A melhor forma de pensar num novo sistema deverá ser pelo estudo de todas as sociedades que já existiram e existem. Perceber elementos comuns e extraordinários, tentar conjuga-los – provavelmente com modelos estatísticos e métodos computacionais.

Como uma última provocação: não seria suposto abraçarmos o animal que há em nós e construir algo fisicamente orgânico?

2023_01_24_A profecia autorrealizada

Tenho muitos temas na linha para serem concretizados em artigos, mas há sempre qualquer coisa que altera os planos. Hoje culpo as conversas que ouço aqui e ali, pela mudança temática. Penso ser muito pertinente falar de um conceito importante em Psicologia: profecia autorrealizada.

Segundo este efeito, a profecia autorrealizada, o sujeito tem uma determinada crença, que pode ser falsa, sobre outra pessoa. Como ele está convencido que aquilo está certo, ele vai agir partindo desse princípio. A outra pessoa terá a sua ação condicionada pela forma como o sujeito lhe dirige, pelo que a sua resposta pode ir de encontro às expectativas geradas. Ora, neste caso, o sujeito confirma a sua crença como verdadeira, apesar de ser falsa. Confuso, certo? Na verdade, é bastante simples e um exemplo concreto ajuda. Essencialmente, a profecia autorrealizada é a nossa busca por confirmar aquilo em que acreditamos, fechando os olhos para tudo aquilo que nos contrarie.

Um exemplo interessante é pensarmos numa sala de aula dividida em dois grupos aleatoriamente constituídos: A e B. A essa turma é atribuído um professor completamente alheio. Ora, alguém com o mínimo de confiança afirma ao docente que os alunos A terão bons resultados, apesar de não apresentar qualquer justificação. Portanto, o professor não sabe nada sobre os alunos, mas tem aquela ideia mental sobre A. No final do ano averigua-se que o grupo A conseguiu melhores resultados, mas nós sabemos que não havia qualquer razão para isso, uma vez que os grupos foram aleatórios. Coincidência? Podemos não estar cientes disso, mas muitas coisas se passam na nossa cabeça e como o mundo tem muita informação, nós socorremo-nos inconscientemente de atalhos. Esta ideia da nossa crença influenciar efetivamente a realidade para confirmarmos a crença é conhecido também como efeito Pigmalião.

Não obstante, podemos abordar a profecia de uma forma mais passiva. Se eu meter na minha cabeça que o meu parceiro me anda a trair, vou tentar provar isso. A minha atenção só vai ser colocada em possíveis pistas, mesmo que forçadas. Eu posso estar completamente errado, mas o meu cérebro fabrica uma narrativa. Nós vemos aquilo que queremos ver (não necessariamente por ser aquilo que queremos, mas o que traz consistência mental). Isto tem um enorme impacto em preconceitos. Se eu me convenço que os imigrantes africanos são violentos, vou tentar prová-lo. Se surgir a notícia de um esfaqueamento por alguém dessa etnia digo «pois claro!», mas ignoro todas as notícias de eventos violentos que não envolveram esse grupo. Vai-se a ver e só cerca de 7% dos prisioneiros em Portugal são imigrantes africanos (e 15% imigrantes).

Há aqui um efeito brutal político que se espelha na discriminação e isolamento de grupos sociais, mas também na criação de climas de opinião. A profecia autorrealizada também se aplica à consideração que todos os políticos são corruptos, de que são todos igualmente maus. Estas profecias minam a nossa democracia com base na abstenção.

Preocupa-me que este efeito se aplique especialmente pela negativa, levando a que se deturpe as ações de partidos e políticos, e incentive a conversa de café do bota-abaixo. Rótulos injustificados são atirados a cuspo.

Numa dimensão pessoa, a profecia tem um impacto enorme na autoestima: "É impossível não acabarmos sendo da forma que os outros acreditam que somos.” (Gabriel García Márquez).

petergasparamaral@gmail.com

2023_01_17_Contingente: porquê, como e além

E continuamos com a discussão sobre o contingente. Apesar de já a ter abordado na semana passada, penso ser pertinente retomar o fio e tentar uma abordagem diferente, de forma a contribuir para a reflexão.

Existem atualmente 5 contingentes especiais, totalizando 20,5% das vagas da 1ª fase: candidatos oriundos dos Açores, da Madeira, emigrantes portugueses, militares e com deficiência. Estes mecanismos pretendem, portanto, ativar uma discriminação positiva para certos grupos demográficos. Obviamente que a cada um corresponde uma justificação. Como temos valores associados, há duas questões: faz sentido existir e qual a medida justa?

Uma vez que a proposta em cima da mesa reduz o contingente, ao invés de o eliminar, entende-se que quem nos governa considera que o contingente continua a fazer sentido. A questão está na medida em utilizar, pelo que se considera pertinente reduzir o contingente açoriano, tal como o madeirense, dos atuais 3,5% para 2%. É interessante notar que o coro de críticas que se fez sentir, nomeadamente de políticos, exigia explicações, sem elencar contra-argumentos propriamente ditos.

Esta percentagem deve ser vista e refletir o quê? Deverão as vagas disponíveis serem proporcionais à população das ilhas? Nesse caso, o valor deveria ser 2,3% [INE] - muito mais perto do proposto do que o que existia. O valor deve assegurar uma vaga por curso? Duas? Tendo em conta que, em média, existem 40 vagas por curso [DGES], esses valores seriam, respetivamente, 2,5% e 5%. Dever-se-ia trazer ao barulho algum outro indicador? Eu diria, na minha opinião que vale o que vale, que 2,5% seria um valor justo à luz dos dados que apresentei.

Quanto à primeira questão: o contingente justifica-se. Os Açores, tal como acontece com a Madeira, não possuem as possibilidades de terem uma variedade de cursos, como no continente se pode ter. Aquilo que o contingente garante é que em cada curso pode haver, pelo menos, um açoriano. Isto é importante, porque permite à região formar alguém numa área que não possui, sendo uma mais-valia para o desenvolvimento do arquipélago. Trata-se de uma questão de coesão territorial, sendo que há regras: os estudantes açorianos devem dar primazia à academia açoriana e qualquer estudante continental pode acionar a preferência regional para a sua zona de residência. Há mecanismos para garantir a maior justiça possível no processo.

Então porque é que o assunto se torna tão polémico? Há uma razão natural: é visto como uma restrição de liberdade. Os açorianos sentem os calos apertados, os continentais sentem-se discriminados. Um processo psicológico, portanto, sendo associado à identidade a aprofundado pela autonomia institucional. Outro ponto importantíssimo é que quando falamos de acesso ao ensino superior em Portugal, falamos de notas. É contraintuitivo separarmos os assuntos na nossa cabeça e então acabamos a falar de injustiça numa construção que não existe (apesar de podermos traçar relações, claro, tal como fiz no artigo da semana passada). O último aspeto que identifico é a existência de problemas para os estudantes açorianos, e não só, muito mais evidentes no quotidiano: o alojamento e as viagens.

Falarmos de contingentes, quando, infelizmente, ainda nem todos os estudantes conseguem reunir os meios financeiros para estudarem parece ridículo, apesar de serem assuntos separados. É urgente termos mais residências universitárias. Os açorianos já contam com algum apoio nas viagens, tendo um teto de 99€, mas há colegas continentais a também precisarem de uma mão neste assunto.

2023_01_10_As contingências dos açorianos na faculdade

Com as notícias sobre a alteração ao acesso ao ensino superior convém perceber do que estamos a falar e do que precisamos efetivamente. Desde logo convém ter em mente que os açorianos têm uma discriminação positiva através de uma «quota».

Como tem funcionado o acesso: os alunos chegam ao final do 12 e submetem numa plataforma digital um código que contém a informação da média do secundário e dos resultados de cada exame nacional que realizou. O estudante coloca por ordem até seis opções de cursos que pretende frequentar. Tendo em conta o peso relativo exames/média que cada curso pede, para cada opção existe uma nota associada. Os estudantes vão sendo ordenados tendo em conta esses valores sendo distribuídos pelas vagas dos cursos. Há aqui um passo intermédio que é pertinente abordar: enquanto está a fazer a candidatura, o aluno pode usar a preferência regional e contingentes. Quando o candidato pretende ficar na sua área de residência, pode ativar a preferência regional, colocando obrigatoriamente em primeiros lugares as opções nessa área. Para certas categorias demográficas existem umas «quotas»: os contingentes. É aqui que se vai basear a nossa discussão. Cada curso dispõe de uma percentagem de vagas para estudantes açorianos (tal como um x para madeirenses, y para militares e z para pessoas portadoras de deficiência). Assim sendo, um estudante açoriano pode optar por concorrer com contingente e, nesse caso, irá concorrer só com açorianos para ter aquelas n vagas – há regras: se o curso em questão existir na Universidade dos Açores, esta opção tem de estar em primeiro lugar.

Ora, com o anúncio de algumas alterações ao acesso ao ensino superior, tem-se em mira diminuir a percentagem de vagas do contingente açoriano, passando de 3,5% para 2%. Fará isto sentido? Fará sentido, desde logo, o contingente?

O contingente é um mecanismo para garantir a presença de um grupo demográfico no curso. Se a um curso, pelo menos, um açoriano se candidata e usa o contingente, então esse curso receberá, pelo menos, um açoriano. Há, claramente, uma discriminação positiva. Temos de ter em mente que a Academia açoriana não consegue oferecer toda a variedade de cursos que existem e podem ser encontrados no continente. Pelo princípio da coesão territorial fará sentido a existência deste contingente. Mas pergunto-me se o foco deste raciocínio não estará mal colocado. O problema dos estudantes açorianos para frequentarem o ensino superior no continente está em conseguir ser colocado ou nos custos extra? O problema são as notas ou as despesas de alojamento e viagens?

O contingente terá sido criado num contexto muito diferente do nosso. Temos um sistema regional de ensino, mas submetido aos objetivos programáticos nacionais. Qualquer aluno açoriano está, hoje, em pé de igualdade com alguém que fez o seu ensino no continente. Não existe uma desigualdade de oportunidades como já houve. Continuar a afirmar a necessidade de os açorianos precisarem de um empurrão nas notas é alimentar um estigma.

Hoje é habitual ver nestes contingentes alunos com notas inferiores ao último colocado do geral. Não porque os açorianos não conseguem melhor, mas porque se trata de um número muito reduzido de candidatos. Não quero com isto dizer que alunos com notas mais baixas não possam ter sucesso (atribuir mais peso aos exames nacionais demonstrarão alguma razão nisto, visto o seu caráter mais específico).

Os açorianos não estão em situação de desigualdade, pessoas com carências económicas sim.

2022_12_20_O que os sonhos nos dizem

Hoje faço aquilo que condeno: falo sobre aquilo que não sei. Baseio qualquer crença que se possa aqui constatar em mera especulação. No entanto, não o faço por mero exercício estético (disso muito pouco tem), faço-o para passar duas mensagens.

Outro dia uma amiga veio pedir a minha opinião sobre um sonho que teve. Fez-me lembrar um sonho que eu próprio tive e me gerou alguma confusão. Claro que um pedido dos outros gera maior ação da nossa parte que um pedido de nós próprios. Pus-me a pensar: como é que uma situação hostil de dia se reverte num diálogo pacífico no sonho?

Ao pensar sobre este tema dos sonhos, pareceu-me que a dimensão relativa é mais importante que a absoluta. Enquanto estamos acordados a viver as nossas vidas estamos a levar constantemente com estímulos e sensações. Pensamos e sentidos, sendo isto também armazenado como informação. A estas etapas chamo de absoluto. A relatividade advém de relacionarmos as informações entre si temporalmente. Isto faz sentido na medida em que enquanto dormimos podemos considerar que é a subconsciência (aquilo que está por detrás da nossa consciência e da qual temos reduzido acesso acordados) aquela que coordena os sonhos (claro que tudo isto é cientificamente discutível). A subconsciência é a derivada da consciência, tal como a aceleração é da velocidade.  

No famoso livro «Dragões de Éden» de Carl Sagan temos um percurso sobre a inteligência humana: desde a evolução do cérebro até os anos 70 até por onde o futuro passará. É muito batida a evolução do cérebro dos diversos seres a partir de um tronco comum. Quase que podíamos ver esta questão por blocos. Um conjunto de seres desenvolve o seu cérebro a ponto de ter o bloco A. Outro conjunto desenvolve o A e ainda acrescenta o bloco B e um terceiro grupo desenvolve primeiro o A, depois o B e ainda acrescenta um C. Este último grupo é dito aquele mais evoluído, não obstante, contém elementos presentes nos seres menos desenvolvidos, aquilo que acontece é «adicionar inteligência». Aquilo a que chamamos o Bloco A consiste no complexo R (esta teoria proposta por Paul MacLean). Esta base presente nos seres com cérebros é responsável por instintos de sobrevivência. Se tivesse de adivinhar, diria que estes instintos à noite se manifestam nas situações de perigo ou necessidades que muitas vezes sozinhos. Diria também que é a complicada relação destes instintos que nos são tão intrínsecos e a linguagem natural com que os nossos cérebros desenvolvidos utilizam que produzem uma disputa de dois modos de ação e resulta em sonhos sobrenaturais e fantasiosos.

O meu objetivo não é só fazer o leitor refletir sobre os seus sonhos e conhecer-se melhor. É nesta teia de palavras perceber que falámos de psicologia, biologia, neurociência, física, matemática… Não é possível compreendermos uma realidade à luz de uma única área do saber. É importantíssimo investir na investigação de especialidade, tal como em projetivos cooperativos de vários campos. É aí que vai residir o nosso futuro.

Não só me parece que para conhecermos um objeto temos de o ver sob várias áreas, como também parece que é dessa teia de conhecimentos que devemos olhar para o nosso comportamento. As leias naturais orientação pelo princípio da ação, mínima, do menor esforço. O objetivo é haver estabilidade. Porque não termos uma ética baseada nas leis da física, por exemplo? O desafio está em percebermos a realidade como uma união de conhecimento e percebermos como nos enquadramos nela.

2023_01_03_A nossa preguiça natural e o ódio

Não obstante aos festejos, estes últimos dias, tal como os que se seguem, foram passados a olhar para a época de exames que se avizinha. Naturalmente que a maioria do meu pensamento acaba por ser formatado pela quantidade de informação que estou assimilar. Enquanto via Psicologia Social ocorreu-me uma possível explicação para o ódio (e além disso), que me parece plausível olhando para Filosofia Antiga e Filosofia do Conhecimento. Bem sei que assim colocado, este texto não parece muito apelativo, mas pode ter umas conclusões giras para pensar, ou, pelo menos, pode ser encarado como mero exercício refletivo de início de ano – a quem escolher esta última via, aconselho a tentar encontrar falácias, quer formais, quer informais.

Nós, pessoas, queremos respostas: somos curiosos por natureza. Quando aprendemos algo contraintuitivo, o nosso cérebro rejubila. Como é que seres tais têm, muitas vezes, tamanhas dificuldades em estudar? Como é que tanta gente afirma não gostar da escola? Podia-se afirmar que é uma questão de gosto temático, de dizer que gostamos de aprender sobre aquilo que gostamos. Decerto que esta deve ser uma condição a ter em conta, mas nós conseguimos encontrar coisas interessantes em praticamente tudo. O ensino obrigatório é uma coleção de informação sobre muitas áreas, sendo um conhecimento eminentemente superficial. Aquilo que me parece ser a primeira chave para esta questão é o nosso comportamento perante algo que não entendemos: desligamos. Até nos podemos esforçar um pouco para perceber, mas a nossa tendência é fugir. Isto faz sentido: nós, tal como ditam as leis da Física, queremos estabilidade, sendo que ter algo que faz despender muita energia (ainda por cima sem uma motivação musculada), é um atentado a esse desejo. Temos uma tendência natural a largar o que não percebemos.

Por uns momentos naquilo que melhor compreendemos: aquilo em tocamos. As realidades materiais são por nós facilmente assimiláveis. Uma lista de instruções, como plantar algo, fazer operações aritméticas com rochas, funcionamento de órgãos através da sua manipulação,… Na escola aquilo que acontece muitas vezes é abordarmos temas (importantes, não digo o contrário) que são essencialmente abstratas. Ora, nós evoluímos de forma a assimilar o abstrato na medida do raciocínio, mas esta manipulação requer muita energia quando não temos conceito e imagens bem definidas em mente. Todos os campos do conhecimento evoluem naturalmente para esta abstração, complicam-se à medida que o nosso edifício do conhecimento cresce. Sobre o ensino, o importante é manter todo o conhecimento que é possível de o fazer, mais material possível, mais perto do nosso quotidiano.

Esta questão da abstração adiciona novas hipóteses às discussões. Nestas últimas décadas temos literatura muitíssimo desenvolvida sobre estudos feministas, queer, raciais,… Naturalmente, a estranheza que falei se pode manifestar. Se também tivermos em mente que não perceber algo nos constrange e odiamos ser confrontados com os nossos limites, temo aqui a semente de um sentimento negativo, sedento de uma associação.

Quando pegamos nestes últimos ingredientes e adicionamos o nosso sentido de superioridade latente, temos uma teoria para a origem das nossas aversões (muito incompleta, não incluindo se quer as questões sociais e culturais).

Assim se pode explicar como alguém discriminado, pode ser também discriminador, bem como o alento populista das teorias da conspiração. Paciência e persistência são as chaves.

petergasparamara@gmail.com

2022_12_27_Somos todos crescidos

Tenho 20 anos, daqui a um mês passo a 21, o que sei eu? Às vezes olho para trás e fico a pensar como é que um fedelho de 14 anos se lembra de ir ter com o Secretário Regional da Educação e Cultura para expor a sua perspetiva em relação à escola e ao ensino. Será que essa criatura em início de adolescência tem algo pertinente a dizer? Fez algum sentido essa pessoa ser cabeça de lista de uma ilha à Assembleia Regional e à Câmara Municipal com 18 e 19 anos, respetivamente? Esta é a forma particular da questão: será que cada um de nós tem mesmo algo a dizer?

Bem, eu acredito que sim. Não o respondo movido por vaidade, por ter estas letras imprensas num jornal. Eu acredito que cada um de nós tem uma voz e que deve fazer-se ouvir pelos mecanismos que mais fazem sentido, de acordo com as circunstâncias. Acho que a conversa de café faz sentido, em termos gerais, tudo aquilo que gera reflexão tem potencial para ser profícuo. O que é preciso é ter argumentos minimamente assentes para defender as teses e não simplesmente disseminar teorias da conspiração ou encontrar bodes expiatórios. Agora, se temos uma opinião fundamentada (desde que não tentemos ensinar a missa ao Papa), expô-la nas conversas do dia a dia parece a coisa mais óbvia do mundo e está casada com a liberdade.

Isto leva-me para aquilo que move na escrita deste artigo: o assumir das posições. Se temos uma opinião e a estamos a colocar em cima da mesa, então devemos assumi-la. Não ficar completamente agarrado e inflexível, mas não tentar omitir aquele que se acha ser objetável. A reflexão é um percurso dialético, faz-se com duas vozes que se vão colocando perguntas na esperança de encontrar uma resposta final. Uma opinião é uma espécie de função: um mecanismo que tem uma determinada forma, tem uma determinada ação, onde colocamos algo e nos sai uma conclusão. Uma espécie de se algo, então aquilo. Colocamos factos para retirar factos. É natural termos de ajustar a máquina.

A minha experiência de vida é tão reduzida e eu consigo olhar para trás e perceber que disse e acreditei em coisas muito estúpidas. Num tempo de vida humano, a constância da mudança é ainda mais gritante. Mark Twain, pelo menos na minha cabeça, está muito ligado a esta noção de mudança de opinião. Muitas foram as pessoas ao longo do tempo que afirmaram que só os acéfalos não mudam a sua opinião. Estamos sempre à procura da verdade, resta-nos assumir uma humildade intelectual que nos permita manter uma mente aberta. Não há vergonha em mudar. Em Física Térmica aprendi que em sistemas reversíveis (que podem ser revertidos) temos mudanças infinitesimais de fases. Quer isto dizer que o sistema vai mudando de uma forma muito consistente. Pensemos nos recipientes onde fazemos gelo: se os deixarmos com gelo em cima de uma mesa, lentamente, em cada parcela vai aparecendo água e, se os voltarmos a colocar no congelador, lentamente, vai-se formando gelo. É curioso que também aprendemos que a entropia aumenta, metaforicamente falando, podemos dizer que há medida que o tempo avança aumenta o caos, a quantidade de informação. Interessante, não?

Que se note que isto tudo veio do facto de uma peça no Telejornal do dia de Natal ter dito «estrutura» ao invés de «empresa privada de defesa» sobre a operação da Edisoft na base da ESA em Santa Maria (Edisoft integra o Thales, que lucra com a guerra, e é de onde veio o atual presidente da PT Space) – talvez inconscientemente. Que se assumam os interesses em cima da mesa e se valorize a reflexão: eu apoio a ciência como um setor estratégico público, e vocês?

2022_12_13_Cultura precisa-se

«Cultura é o sistema de ideias vivas que cada época possui. Melhor: o sistema de ideias das quais o tempo vive» (Ortega e Gasset). A cultura é um termo de uma abrangência imensa, estica-se desde a herança que temos de quem nos precedeu, às formas de produzir arte com que nos deliciamos, mas também é um conjunto de protocolos. Aplicamos esta palavra de muitas formas e todas elas comunicam entre si: esta noção de revelar o génio humano. Cultura vem do latim colere, que significa cuidar, crescer, cultivar,… Artefactos, normas morais, danças, músicas, filmes, séries, os géneros e toda a diversidade com que se diversificam, são o testemunho de que o Homem é capaz de criar o seu próprio mundo. É nesta cultivação que se tem de apostar quando temos por objetivo formar uma sociedade voltada para a proeminência do pensamento.

Disciplinas com História, Filosofia, Psicologia,… levam-nos a visitar tempos e espaços com pessoas que norteavam a vida de formas muito diferentes entre si, justamente por terem uma cultura diferente. É importante percebermos que cultura moral, comportamental, está claramente ligada à cultura artística. Um filme pode fazer tanto ou mais trabalho político que um discurso do José Bolieiro. Se as disciplinas que elenquei são testemunhos daquilo que foi produzido, foquemo-nos numa que é produtora: Português. Mesmo ignorando a questão de ser uma língua e esta desde logo condicionar brutalmente a cultura, a verdade é que é na componente da Educação Literária que o jovem tem a possibilidade de exercitar o seu pensamento, mesmo sobre as palavras que outros escreveram! Por momentos pensemos num poema de Fernando Pessoa: nós podemos analisá-lo de várias formas, com vários sentidos, tanto quanta a nossa imaginação e argumentação poderem. Muitas vezes encara-se esta componente como memorização quando ela devia conter em si tudo, menos barreiras.

Porquê esta verborreia cultural? A 29 de novembro a DRC publicou um vídeo, fazendo um paralelo à «Casa de Papel», em que tentava incentivar os açorianos a visitarem os seus museus. O vídeo é magnífico, não haja dúvidas, mas é preciso mais: é preciso investimento. É triste 2023 ser o ano em que o orçamento regional para a cultura é o mais baixo da sua história democrática (um corte de 27,3% em relação ao ano passado).

Não quero, contudo, desvalorizar o trabalho dos funcionários de museus, centros, teatros, arquivos,… sob esta tutela: tem sido feito um esforço muito meritório. Faltam duas coisas: diálogo e chegar às ilhas mais periféricas.  

Temos vários espaços de produção e mostra cultural públicos, a esmagadora maioria a trabalhar perfeitamente, que podiam comunicar entre si para enriquecer os seus planos de atividades. Da mesma forma, deve haver um esforço público no sentido de abordar agentes culturais independentes e dar-lhes condições de chegar mais longe. São Miguel, Terceira, Faial e Pico, assim que me lembre de exemplos concretos, têm entidades já muito bem estabelecidas, parte delas marcadamente irreverentes, que, além da óbvia questão financeira, devem merecer uma atenção maior. Vamos valorizar o nosso património infraestrutural, material e humano entrelaçando-o!

Não obstante, este trabalho deve ser levado até às ilhas mais pequenas. Deve haver pelo menos uma valência que permita exposições, cinema, teatro, concertos,… com qualidade em cada ilha e deve ser usado o esforço da teia mencionada para lhes dar uso e incentivar às dinâmicas locais.

Ter sempre em atenção que as mentalidades não mudam da noite para o dia.

2022_12_06_A necessidade de lambermos o mundo

Há já algumas semanas que tenho dado explicações de várias disciplinas, entre elas o inglês. Como decerto sabem, esta língua é ensinada nas escolas portuguesas praticamente desde o momento em que lá pomos as crianças. Durante o tempo em que estava a aprender inglês não gostava particularmente de o fazer, não percebia a importância daquilo que fazia. Com o passar do tempo no ensino obrigatório a justificação que melhor encontrei era de que esta língua permitia uma base comum de comunicação com pessoas de outros países, sendo particularmente importante em áreas como a ciência. Hoje, olhando para aquilo que me rodeia, para o curso de filosofia onde estou, para as explicações que dou, percebo que a linguagem propriamente dita tem um valor incalculável.

Porque devemos então aprender línguas estrangeiras? Pelo mesmo motivo que devemos saber dominar a nossa. A língua, mais do que aquilo que usamos para comunicar, é a nossa forma de pensar. A língua controla-nos. Na licenciatura anterior em que estive tive um professor horrível mas, e odeio dar-lhe razão, numa coisa estava certo: um aluno de física que não é capaz de atribuir designações aquilo que está a fazer, fórmulas ou métodos, pensa mal mesmo que o resultado esteja certo (O conteúdo foi este, embora dito de uma forma mais rude). Neste caso a verdade é que esta atribuição de substantivos permite a criação de esquemas mentais que se relacionam entre si e de onde logicamente se obtém uma resposta.

No livro, muitas vezes utilizado pelos liberais para atacar correntes de esquerda, o 1984, George Orwell constrói um conceito que me ajudou a perceber esta importância da linguagem: a novilíngua. O argumento é simples, o estado autoritário cria uma nova língua, mais simples por sinal, que é tão básica que constrange o pensamento de quem a usa. Em meu nome dou um exemplo: no português, tal como nas outras ramificações latinas, nós conjugamos os verbos em vários tempos e modos. Tanto é normal ouvirmos a frase “Eu comi uma maçã”, como “Eu como uma maçã” ou também como “Vou comer uma maçã”. Ora, já se eu disser “Eu comer maçã”, estamos diante uma frase dolorosa para os nossos ouvidos. Pois imaginemos que nesta nova língua não conjugávamos os verbos e portanto estaríamos diante deste caso. Eu poderia muito bem utilizá-lo e, a ideia que passa, é que eu realmente tenho uma relação entre o ato de comer e uma maçã mas nunca saberei como é que essa relação se processa, como acontece nos casos em português que citei antes. Esta é uma simplificação da linguagem que nos elimina a noção de tempo. Este último exemplo relaciona-se com as regras da língua, a sintaxe. No entanto também podemos ver uma nova língua no prisma dos significados, ou seja, da semântica. Neste campo, ironia das ironias, são os liberais aqueles que nos dão os melhores exemplos: Recentemente temos vindo a assistir à utilização do vocábulo “colaborador” em vez de “trabalhador”. Esta mudança, aparentemente inofensiva, prejudica na verdade o trabalhador porque lhe retira a noção mais básica daquilo que um trabalhador faz: o trabalho. Estas mudanças não são ao calhas porque a partir do momento em que nós nos esquecemos que existe uma diversidade de profissões que tem objetivos fundamentais, com competências estruturadas, com direitos assentes, mais fácil é tratarmos essas pessoas como mera mercadoria.

As línguas estrangeiras permitem saborear a realidade de formas únicas e impossíveis na nossa. Pensarmos livremente.

2022_11_29_Nascer cansado

Na sexta-feira passada fui a uma loja comprar um relógio. Ao meu lado estava uma senhora idosa que olho para a funcionária e exclamou: estou cansada! Logo a seguir acrescentou: mas alguns novos também já nascem cansados! Claramente tinha de responder, virei-me a concordar: eu posso testemunhar! Ficámos, então, a falar dos seus netos, um dos quais está a estudar na mesma faculdade que eu tinha e nesse mesmo dia teve uma frequência. O problema? Nem a senhora, nem eu estávamos a gozar. Este é um mundo que, mais do que ser ele próprio exaustivo, foi feito para nos esgotar.

Em casa, já depois desse episódio, fiquei a pensar no assunto e relacionei-o com aquilo que senti a minha semana toda: uma preguiça imensa. Digo preguiça e não cansaço, porque, por algum motivo, faltava motivação. Estou a fazer aquilo que gosto, estudar, sendo um trabalho muito especial, porque é flexível e com responsabilidades muito mais abstratas, apesar de existentes, do que a de um trabalhador. É por esta flexibilidade, aliada ao poderio da juventude, que estes anos são considerados os melhores das nossas vidas. Então como é que nos melhore anos das nossas vidas nos sentamos no sofá, pomo-nos a lamentar e a tentar entrar numa realidade paralela através de livros, séries e filmes, esquecendo a nossa própria existência (salvaguardando, talvez, somente as emoções)? Em primeiro lugar, o nosso privilégio. Tivéssemos nascido noutro local e nem sonharíamos com esta possibilidade. Mas isto é claramente um cansaço para com a nossa vida que é extremamente preocupante. Em jovens entre 15 e 34 anos, o suicídio é a segunda causa de morte, tanto em Portugal, como na Europa. Em média, a cada dia que passa 3 pessoas decidem por termo à sua vida em Portugal. Estes são dados que a Ordem dos Psicólogos lançou em 2021 e que são o expoente máximo daquilo que vos trago.

De onde vem este cansaço e como será possível nascer assim? Vivemos num mundo que pega nas pessoas e os mergulha em trabalho. Mergulha em publicidade. Mergulha em valores autodestrutivos, como a competitividade. O nosso sistema tem como propósito produzir riqueza para a acumular e não para distribuir. Agora, desde que nascemos, colocam-nos na cabeça a necessidade de nos vendermos das mais variadas formas se quisermos alimentar a nossa família.

Mais do que tudo, sentimos a necessidade de vender o nosso tempo. Horas extraordinárias se não forem feitas é porque os trabalhadores são preguiçosos. Mesmo nos casos mais flagrantes a comunidade mostra-se o pior dos inimigos quando olha de lados os médicos do SNS, quando muitas vezes estes quase que abdicam da sua vida privada para manter um direito humano funcional. A forma como nos enterraram estas noções fazem-nos olhar de lado para aqueles que são nossos irmãos. Somos educados a duvidar de toda a gente, porque todos são potenciais concorrentes, neste sistema onde a competitividade, uma suposta meritocracia, impera. A produtividade tornou-se um mantra e um perseguidor.

E mesmo quando temos algum tempo para nós, aquilo que nos ensinam é para arranjarmos um passatempo. Leitores e leitoras, a língua importa: dizermos passatempos e não aproveita-tempos ou hora-de-prazer não será por acaso. Algo está muito errado quando sortudos seres dotados de vida como nós, querem simplesmente deixar o tempo correr, sem o aproveitar.

Tendo abordado questões relacionadas com suicídio considero importante aqui deixar o conselho que se condira mais importante: pedir ajuda. Linhas como o 112 ou 808 24 24 24 (linha do SNS) dão apoio. Todas as vidas são preciosas.

2022_11_22_A ruína do que aí vem

Podem-me desde já chamar de dramático, aceito-o completamente, mas isso não significa que o drama não se concretize. Infelizmente, cada vez se olha para o mundo e se nota indícios de um retrocesso, apesar de estarmos no melhor ponto da História, até agora, em relação à esmagadora maioria dos parâmetros. Hoje venho falar-vos da eleição para uma Associação de Estudantes. Sim, a minha enunciação do inferno na Terra vem de uma eleição para uma Associação de Estudantes.

Cena do crime: Porto, 2022. Fui aluno de Física durante dois anos, tendo andado na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) durante esse período e cultivado a esmagadora maioria das amizades que tenho. Apesar de estar na faculdade que com a FCUP partilha a estrada, a FLUP, ainda continuo com muita informação sobre o que vem acontecendo nessa minha antiga faculdade. Ora, como é habitual, nesta altura do ano temos as eleições para as associações de estudantes, sendo que na FCUP normalmente temos listas únicas (tal como acaba por se alastrar para eleições de órgãos da faculdade onde se elege estudantes). No entanto, este ano deu-se o caso de haver duas listas candidatas, o que não acontecia há cerca de 4 anos. Ou seja, uma lista de continuidade, mantendo pessoas que já estavam na atual e a orientação programática, e uma de estudantes que decidiram criar uma alternativa.

Desde logo se teve uma grande mudança a dinâmica de campanha, havendo uma maior notoriedade do processo eleitoral. A lista de «oposição» sabia desde logo que tinha um trabalho de afirmação a fazer, apostando em posts informativos, pelo menos um abaixo-assinado sobre assuntos que dizem respeito ao quotidiano dos estudantes, marcando presença durante certos intervalos nos vários departamentos,… A lista de continuidade ficou presa à sua lógica de apresentar pessoas e tirar fotografias com uma moldura física, numa lógica de campanha de lista única. Ambas tinham evidentemente um plano eleitoral. A principal reivindicação da lista oponente em relação à continuidade era a Associação ter um papel mais ativo na representação e defesa dos estudantes, tomando posições sobre propinas, habitação, estudantes internacionais,… Sobre estes temas tinham uma visão específica e não uma frase genérica.

Aquele que foi o ponto catastrófico para a minha esperança no mundo ocorreu no debate: o candidato a presidente da lista de continuidade, confrontado com a posição feminista da lista oponente, afirma que é «tanto afeminista como amachista». A situação chegou-me por um tweet do elemento da lista contrária, mas há cerca de 50 testemunhas e a situação já foi mais que confirmada. Esta afirmação dele foi já em jeito de desculpa por antes se ter dito não feminista.

Há aqui dois grandes problemas: por um lado, a ignorância sobre um tema que supostamente se dá nas escolas; por outro, a tentativa de ter uma neutralidade extrema.

Feminismo é a busca pela igualdade de direitos entre todas as pessoas. Ponto.

A neutralidade é diferente de parcialidade. Estamos a falar de um direito humano, a igualdade de género, reconhecido na nossa Constituição e mesmo nos estatutos da AEFCUP. As listas não tinham de falar de feminismo, mas se falaram, não há desculpa para não se afirmarem como tal. Como é que esta lista reagiria num caso de discriminação?

Isto é a raiz. As pessoas que vão ser os mestres e doutores de amanhã, preferem a via da negligência. Hoje são afeministas. Amanhã aestudantes, depois aAssociação de estudantes. Quando notarmos, somos uma aSociedade.

2022_11_08_Mover a montanha para a esquerda (2)

Nota prévia: no artigo da semana passada há uma gralha, tal como o leitor decerto notou. A democracia dos gregos antigos era uma democracia direta e não representativa.

Do último artigo inferimos: a pluralidade é uma força que promove o debate e nos leva a ter em consideração diferentes caminhos de ação, sendo um pilar que é necessário aprofundar em qualquer democracia. Também percebemos que esta dimensão nas democracias representativas, como a nossa, se faz através do voto, que resulta numa assembleia com vários partidos políticos – garantes de várias correntes de opinião. O sistema é o mais proporcional possível utilizando-se, por exemplo, o índice de Gallagher para averiguar a diferença entre representação do voto popular e dos mandatos eleitos, sendo que vários países fizeram reformas no sistema de forma a se obter um resultado inferior a 5 (como a Canadá). O círculo de compensação açoriano tem esta função. Em 2020, o índice de Gallagher foi de 4.74.

Esta proporcionalidade numa assembleia importa para o trabalho legislativo, chegar a consensos sobre matérias, mas também ao executivo, para haver um apoio parlamentar à sua atuação. O ponto crucial é que a existência de vários partidos não se justifica só numa assembleia, mas também no governo. Como disse: a menos que um partido tenha 100% dos votos, ele não está de acordo com grande parte da população. Na europa é extremamente comum haver coligações quer pré, quer pós-eleitorais, sendo o exercício de governação também um local de constante debate interno. Que se desengane o mais entranhado português: este debate não é propriamente gerador de instabilidade é, isso sim, a garantia de que há um diálogo entre correntes políticas diferentes que representam segmentos da população e no seu todo representam a maioria que foi declarada em voto.

Foquemo-nos nos Açores: o voto popular está francamente bem representado na assembleia, sendo que estamos longe de ter uma realidade bipartidária, apesar de termos claramente dois partidos que são os maiores da nossa democracia, sendo um centrão que detém sempre a esmagadora maioria do voto. Mesmo que em ilhas pequenas não consigamos eleger alguém do partido em que votámos, esse voto continua a valer e tem o seu reflexo no círculo de compensação. Em 2020, só cerca de 3% das pessoas votaram num partido que não foi eleito. Temos atualmente 8 formações políticas na assembleia.

As açorianas e os açorianos podem votar em quem melhor se reveem para a sua assembleia regional. Quem apela a um voto estratégico, um voto «útil», não conhece a realidade eleitoral açoriana.

É preciso termos mais pessoas a dar mais força a partidos que não ao PSD ou PS. A atual coligação é um exemplo, tal como foi a Geringonça, de como é possível termos soluções plurais. O problema da formação deste governo nos Açores é estar dependente da extrema-direita, algo que em vários países europeus foi sempre evitado, criando-se cordões sanitário.

Infelizmente, esta maioria de direita não tem conseguido responder às problemática açorianas. Continuamos uma região na cauda do país e da europa. Mas que se desengane quem lê estas palavras: a solução não é um voto útil no PS e voltar à estagnação em que estávamos. A solução está em votar forças à esquerda que obriguem ao PS formar um governo plural e progressista. Precisamos de forças externas, partidos políticos, à esquerda do PS com mais força para mover esta montanha para a esquerda. Tudo depende do teu boletim de voto.

2022_11_08_Mover a montanha para a esquerda (1)

Na Grécia Antiga, temos a tentativa de implementação de um novo regime: a democracia. Hote, ao imaginarmos aqueles tempos, temos uma visão extremamente romantizada de toda a situação. Muitos problemas que enfrentamos, como a abstenção, não são nenhuma novidade histórica (sendo importante ter em mente o regime grego assemelhava-me mais a uma democracia representativa, onde nas assembleias cada pessoa podia participar, sendo escolhidas por sorteio centenas de pessoas que ficam encarregues das tarefas administrativas).

Para quê trazer isto para aqui? Acho extremamente curioso como muito autores em vez de usarem democracia, usaram isegoria. Para os gregos, a sua liberdade era a participação política, era a possibilidade de se expressarem sobre o rumo da sua cidade, da sua pólis. A isegoria, o direito de igualdade no acesso à palavra, era, portanto, a essência da democracia. Isonomia e isocracia eram outras caraterísticas importantes: igualdade perante a lei e igualdade no acesso ao poder. Que se note que, como a pólis era vista como o garante da liberdade que falámos, os cidadãos sentiam a necessidade, um dever, de trabalhar em prol da comunidade – um sentimento que por estes dias nos parece faltar (sendo a consequência de um sistema falido e não um problema pessoal que assola os portugueses como uma epidemia).

Todos estes valores constam da nossa democracia, apesar das diferenças institucionais. A pluralidade é, assim, uma caraterística do debate na praça pública. Uma democracia representativa que o seja verdadeiramente tem de ter uma lei eleitoral que consiga assegurar essas diferenças de opiniões nos órgãos institucionais em proporção com o seu apoio na sociedade em geral. Aqui se nota que se alguém se abstém já está a furar o esquema, a menos que essa pessoa não tenha rigorosa opinião nenhuma (o que duvido ser possível).

Em Portugal, a opção que se toma é a votação com um impacto proporcional na eleição de mandatos para cada formação política, sendo que, num esforço de aumentar a proximidade às populações, o território português seja dividido em círculos eleitorais, sendo dentro de cada um que essa mesma operação de distribuição proporcional ocorre. Um voto nos Açores, só tem repercussão na distribuição de mandatos, que correspondem justamente a essa região. Um eleitor que vota na Terceira não tem maneira de influenciar as eleições legislativas em Lisboa, por exemplo.

Temos a assembleia. Agora é tempo de termos o poder executivo. Quer o governo da república, quer os governos regionais são indigitados quer pelo Presidente da República, quer pelo representante da República, em função da dinâmica que força que temos na assembleia. Toma posse, o partido ou coligação que conseguir assegurar estabilidade, ou seja, tenha uma maioria.

Portanto, a discussão de diferentes pontos de vista é vital para a democracia, sendo que através do voto as instituições têm as representações proporcionais dessas perspetivas. É da força de cada uma dessas posições que se chega a um governo.

Esta volta ao bilhar grande foi dada para refletirmos sobre aquilo que entendemos sobre os partidos nos governos: eles resultam de uma proporcionalidade de opiniões. A menos que um partido no governo tenha 100% dos votos, ele não representa todos os eleitores. É muito legítimo termos outros partidos, quer no governo, quer em apoio parlamentar, que influenciem a governação. Melhor. É necessário que esses partidos existam. Uma diversidade não só na oposição como no governo. Isto é o quotidiano europeu.

2022_11_01_Muito por fazer

O que não faltam estes dias são letras nos ecrãs e tinta nos jornais sobre as eleições presidenciais brasileiras. Normalmente, tento fazer deste espaço uma bolsa de oxigénio para fugir às sensações do momento, voltando a elas depois, mas hoje será diferente. Escrevo estas palavras na madrugada de segunda, ainda sem ter havido uma reação do atual presidente Bolsonaro.

Lula ganhou. 50,90% contra 40,10%. Foi uma vitória renhida. Aliás, alem do grande interesse político, esta eleição trouxe ao de cima marcos para a História do Brasil democrático: a corrida presidencial mais renhia, a 2ª volta com mais votantes que a primeira, a não reeleição de um incumbente, a eleição de um ex-presidente e o terceiro mandato presidencial de um político brasileiro. A tradição do vencedor ser o vencedor em Minas Gerais continua intacta. O mapa mantém-se, um Nordeste trabalhista e um Sul conservador.

Estes marcos são testemunhos de umas eleições em que muito esteve em jogo: o futuro de uma das maiores democracias mundiais. O exemplo dado em 2017, uma deriva em busca de ideais autoritários para conferir estabilidade a um país desiludido e desunido, seria continuado? Trump foi empurrado, Bolsonaro também. Le Pen continua a não chegar ao poder, mas Meloni conseguiu e os «Democratas Suecos» têm um governo na sua mão. Vivemos num tempo conflituoso. Parece que a memória traumatizante do ódio do século passado se foi e estamos dispostos a aceitar a normalização da extrema-direita. Se é verdade que se tem conseguido retirar protofascistas do poder, também é verdade que alguns já lá chegaram antes e continuam a chegar como agora disse. A existência de algum é um a mais e o tempo que esteve no poder, foi tempo a mais.

Vivemos em tempos politicamente conturbados por estas incursões da retórica autoritária, mas não nos enganemos: esta agitação é uma consequência das crises que enfrentamos. Quando todos os dias nos entra pelos olhos a instabilidade aquilo que mais queremos é justamente a estabilidade. Historicamente está mais que visto: sempre que se sente instabilidade, os adeptos de políticas autoritárias crescem. Por isso mesmo, não admira que haja quem tente fazer engenharia social para inventar crises onde não existem. Quantas vezes não ouvimos uns certos políticos da nossa praça afirmarem que Portugal é um país inseguro, quando somos um dos mais seguros do mundo? Há que ter cuidado e estar atentos a estes movimentos que depressa passam das palavras às imagens e, dominando uma comunicação social sensacionalista, somos levados a crer que algo que não é, é.

Não obstante ao alerta que fiz, a verdade é que nos encontramos já mergulhados em crises que nada têm de artificiais. É necessário haver a humildade de se formar frentes democráticas quando tal se justifique, como pautar por não ceder um milímetro de terreno a quem nos quer retirar a liberdade. Quando, para tentar aumentar a vantagem sobre o adversário, adotamos posições dele, então ele pode ficar de fora, mas a sua mensagem ganha. Lula ao ter dito ser pessoalmente contra o aborto, abdicou da defesa dos direitos humanos, que já há mais de 30 anos defendeu honravelmente.

Lula enfrenta um parlamento e um país divididos. Terá de chegar a compromissos que provavelmente ficaram àquem do que deveria ser feito. Não obstante, antes a governação ao centro que se avizinha a uma agenda antidemocrática progressiva.

Permitam-me só acabar com esta nota: tudo no mundo influencia tudo. Portugal também tinha muito em jogo nestas eleições. E ganhou.

2022_10_18_A ciência morreu

Ainda outro dia ouvi uma frase que me ficou a marinar no cérebro: a ciência morreu. A ciência morreu? Como? Não está em cada criança o sonho de ser cientista? Não estamos nós rodeados de tecnologia e cada vez a superar-nos sobre aquilo que é feito a uma velocidade vertiginosa? Bem, a verdade é que se a ciência não morreu, para lá caminha. Ainda nesta semana, no Público, revisitei esta discussão ao ler um trabalho de auscultação [https://www.publico.pt/2023167].

Quando pensamos na ciência, vem-nos à mente questões que tentam inferir o funcionamento do mundo que nos rodeia e até de nós mesmos. Pensamos em áreas do saber como matemática, biologia, física, história, sociologia, psicologia,… O Universo é dividido em especializações que comunicam entre si. A ciência é a aplicação de um método sobre aquilo que queremos investigar. No fim do dia, concluímos algo (nem que seja que a nossa hipótese está errada). Isto tudo parece tão linear, como é possível estar a morrer?

Bem, a ciência é motivada pelo amor ao conhecimento, à vontade constante de aprender e, com base nisso, poder melhorar a nossa qualidade de vida muitas vezes. É inegável o impacto que a tecnologia, herdeira da ciência, tem no nosso bem-estar. O ponto é que isto sai caro. Precisamos de pessoas, precisamos de equipamentos,… Uma parte considerável da investigação em Portugal é feita por docentes universitários, ou seja, através de uma sobrecarga de quem ensina. É praticamente impossível ser simplesmente investigador no nosso país, porque não existe um financiamento sério e consistente para a ciência. Só cerca de 8% das candidaturas apresentadas à Fundação da Ciência e Tecnologia foram aceites.

Nos nossos dias, quem pretende investigar quase que é obrigado a ir para uma empresa, onde fica refém de interesses económicos. Foram incontáveis as vezes na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto que eu ouvi as mais variadas pessoas a engendrarem o mesmo plano de ação. Os professores apoiam, porque sabem que o mundo académico é muito limitado e o financiamento público à investigação é uma lotaria.

É por isto mesmo que a ciência morreu: o dinheiro público e privado não são a mesma coisa. Um rege-se por aquilo que é mais útil para as pessoas, o outro é a aposta de uma elite no seu enriquecimento. O domínio do capital privado na ciência destrói as pontes de cooperação tradicionais no meio académico, trazendo a urgência de ser o primeiro a atingir as metas, para se atingir o lucro. A investigação norteia-se por ele e não pelo acumular coerente de conhecimento. Estamos a desperdiçar mentes brilhantes a resolver questões que nos parecem úteis agora, como melhorar os nossos equipamentos digitais, mas ignoramos que elas podiam ser um investimento a longo prazo, que nos desse a chave para revoluções tecnológicas. Falo em tecnologia por ser, provavelmente, a forma mais intuitiva de ver esta situação para quem não se encontra no meio científico.

É desolador ver que a ciência, o modelo da utopia, onde a cooperação e fraternidade imperam pelo bem comum, se transformar cada vez mais num simples meio utilizado como convém, quando convém, onde convém, durante convém para alguns obterem lucro.

No entanto, tem de haver sempre esperança. A pandemia demonstrou o domínio que operadores privados têm sobre a nossa saúde, demonstrou a importância da cooperação. Num período ainda maior, as alterações climáticas têm demonstrado o mesmo. Que haja bom senso na cabeça de quem nos comanda e se valoriza quem de direito.

2022_10_11_Para nos defendermos dos burlões das palavras

Existe uma área do conhecimento que se chama lógica. Ela permite-nos estudar os argumentos de um discurso, percebendo se ele faz sentido, ou não. A lógica é, portanto, o pior pesadelo daquelas pessoas que abusam das palavras para nos tentar enganar ou passar ideias falaciosas.

Permitam-me tentar trazer aqui alguns aspetos básicos da lógica.

Desde logo, tenhamos em mente que um argumento é composto por premissas e uma conclusão. As premissas são frases declarativas, que, encadeadas, justificam a conclusão a que se chega. A própria conclusão é uma frase. Como é intuitivo, a todas as frases declarativas podemos atribuir a verdade ou falsidade. A relva é verde é verdadeiro, as baleias são pássaros é falso, por exemplo. Assim sendo, é possível avaliar cada premissa e a sua conclusão quanto à sua verdade.

Perfeito, então se todas as premissas forem verdadeiras temos uma conclusão verdadeira, certo? Errado. Eu posso dizer que todos os pássaros são mortais e que o Manuel é mortal, mas isso não significa que o Manuel é um pássaro (pode ser qualquer ser vivo). Para um argumento ser correto, ou seja, ser um bom argumento cuja conclusão é inquestionável, não só precisa de ter as premissas todas como verdadeiras, como necessita de ser válido.

Ora, existe um critério que afirma que a verdade da conclusão nunca pode ser pior do que a das premissas. Isto significa que se tivermos diante de nós um argumento com as premissas todas verdadeiras, mas conclusão falsa, ele é indubitavelmente inválido. Todas as outras combinações nada nos dizem sobre validade. É guiado por esta noção que nos podemos orientar, mas a este ponto já percebemos que é necessário um pouco de esforço para examinar um argumento. Provavelmente teremos de o escrever.

A validade não é intuitiva, porque ela só se ocupa com a forma do argumento e não o conteúdo. Um argumento também não é correto só por ser válido. Só a verdade das premissas conjugadas com a validade nos dá um argumento correto.

Olhando para o nosso argumento temos de pensar: se eu assumir que as premissas são todas verdadeiras (mesmo que sejam falsas, vamos fingir), será que a conclusão que eu retiro pode ser falsa? Se conseguirmos pensar numa realidade em que isso aconteça, então é inválido. Ainda no argumento visto há umas linhas, percebemos que o Manuel podia ser cão, tornando a conclusão falsa, apesar da verdade das premissas. A este método chamamos contra-exemplo.

Outra forma de ação é o contra-argumento. A ideia é simples: vamos pegar no esquema do argumento e trocar os sujeitos e os predicados para algo que efetivamente nos vai parecer ridículo. Por exemplo, vou arranjar um contra-argumento para o exemplo do Manuel: Todos os açorianos comem Mulatas; a Joana come Mulatas; logo a Joana é açoriana. Como muito bem sabemos, há muitos continentais que adoram comer as nossas Mulatas e não é por isso que se tornam açorianos.

Às vezes é mais fácil de pensar nestes argumentos como conjuntos. Esta premissa cria este conjunto, esta premissa cria este conjunto, e depois vemos se se intersetam, comparamos com onde a conclusão fica,…

Outro aspeto, provavelmente mais intuitivo de avaliar o discurso é através da identificação de falácias. Há algumas formais, mas as mais conhecidas pelo público e aquelas que mais facilmente conseguem ser identificadas são as informais. A ad hominem, por exemplo, é a mais famosa, sendo ao argumento um ataque ao orador e não às suas ideias. Uma abordagem a este tema poderá ficar para um outro artigo.

2022_10_04_A preguiça dos tempos modernos

No passado domingo decorreram as eleições no Brasil. Como quero olhar melhor para os resultados e tenho de escrever este artigo até ao final desse dia, vou deixar para uma próxima oportunidade essa discussão.

Hoje falo de preguiça.

É muito fácil sentarmo-nos no sofá e simplesmente não querer fazer mais nada. Acordamos e só querermos ficar no calor da cama. Mas será isso natural? Sendo nós um milagre cósmico, um fruto de probabilidades quase nulas, não deveríamos estar felizes por estar vivos? Eu não tenho dúvidas de que a esmagadora maioria de nós se sentiria jubilante por poder celebrar a vida. O que nos prende?

Antes de prosseguir com a resposta, que se note que esta figura expressiva do sofá aplica-se à nossa realidade, ainda assim com exceções, mas está longe de poder ser literalmente aplicada a uma fatia enorme da população. Todos os problemas de que podemos aqui dizer que nos afligem são uma fração daqueles que afligem pessoas que vivem naquilo que gostamos de chamar terceiro mundo para nos sentirmos melhor. Também não nos podemos esquecer que dentro de Portugal há um «terceiro mundo». Perceber que há sempre caminho para melhorar, que cada um de nós tem os seus privilégios e azares de nascimento, que todas as lutas enquanto temáticas e obstáculos do quotidiano são transversais no globo, com as suas respetivas especificidades, é importantíssimo para qualquer debate. Termos consciência de onde partimos, de que somos todos muito parecidos uns com os outros e só procuramos a felicidade.

Posto isto, de onde vem esta preguiça? Noutras palavras: de onde vem este cansaço? De onde vem aquilo a que os ressabiados ou exploradores são capazes de qualificar como «não ter vontade de trabalhar»?

De um sistema que se baseia na desigualdade: a busca pela acumulação de riqueza onde, para um ganhar, outro tem de perder. Que se note que acumular riqueza não tem de ser ficar milionário, pode ser simplesmente garantir a sobrevivência de uma família. Somos posto em competição direta entre nós, ao invés de uma cooperação que nos permita viver bem e em harmonia numa comunidade unida.

E para quê? Salário mínimo? Tenho um amigo que diz: para salário mínimo, mínimo esforço. Não terá ele razão até certa parte? É fácil os empregadores queixarem-se da produtividade, mas explorar os trabalhadores, levando-os aos seus limites a troco de remunerações precárias não conduzirá a um esgotamento que inviabiliza a produtividade que tanto ambicionam? Percebo as carências e necessidades de muitos empresários, mas elas não podem servir de justificação para manter um sistema que humilha quem trabalha.

É interessante notar que este cansaço não se aplica só a trabalhadores. É a criança que vem da escola sobrecarregada de trabalhos para casa, é o estudante universitário com o peso de uma carreira de sucesso aos seus ombros, é o pensionista que conta os tostões,… Todas as pessoas sentem uma pressão sobre si em muito superior à pressão atmosférica. Qual a gravidade que nos prende a este sistema?

Vivemos num estado que nos permite mostrar descontentamento e escolher as nossas lideranças. Sejamos capazes de mostrar que exigimos um sistema melhor. Todos temos os nossos problemas, mas se cada um apoiar o outro, de forma mútua, então a nossa voz individual ganha mais força. Uma mão lava a outra. É nesse movimento transversal de fraternidade, onde as lutas se unem que conseguiremos viver fora deste cansaço, que só beneficia quem nos quer quietos num canto quando estamos no nosso tempo livre.

2022_09_27_Nas costas dos outros vês as tuas

Que se subverta a expressão popular e se afirme: nas urnas dos outros se vêm as nossas! Se o interesse pela política nacional anda pelas ruas da amargura, aquele pelo que se passa nos outros países, ainda pior. No passado domingo realizaram-se eleições em Itália. Mas porque carga de água nos interessam as eleições noutro país?

Desde logo, a Itália, neste caso, integra a União Europeia, elegendo deputados para o Parlamento Europeu, sugerindo um comissário europeu e, claro, tendo assento no Conselho Europeu. A orientação política do próximo primeiro-ministro italiano poderá ter uma influência de não subestimar nas medidas europeias, sendo os portugueses igualmente afetados. Ainda por cima em tempos de sucessivas crises, não nos podemos dar ao luxo de fazer de moucos.

Por outro lado, não deixa de ser interessante olhar para outros países como casos de estudo daquilo que pode acontecer nas nossas casas. Que assuntos despertam mais interesse? Que movimentos políticos ganham tração? Está um discurso populista vazio a ser bem-sucedido? Qual é o impacto que a campanha e os meios em que é feita têm nos resultados eleitorais?

No momento em que escrevo este artigo é praticamente certo que a coligação de direita italiana governará a Itália. Pior. O partido mais votado é o Irmãos de Itália, liderado por Giorgina Meloni, sendo a sua dirigente aquela escolhida pela plataforma eleitoral para primeira-ministra. Espera-se que este seja o governo mais à direita desde Mussolini, sendo o partido herdeiro da tradição fascista.

Não é de ignorar o facto de vermos uma abstenção a subir 10%, tornando estas eleições naquelas menos participadas. As pessoas, ocupadas em consegui viver as próprias vidas, garantindo o sustento para as suas famílias apesar das crises, não vêm na política uma forma de melhorar o seu quotidiano e simplesmente decidem ignorar o seu contributo democrático. Com um eleitorado desmobilizado, mais fácil é ganhar as eleições galvanizando um setor da população. Os italianos já demonstraram ser politicamente voláteis, ficando mais uma vez à mostra a facilidade com que confiam em políticos populistas com um discurso vazio.

O sistema eleitoral italiano vive em duas dimensões: a eleição por círculos uninominais e a eleição proporcional. Em ambas, as coligações saem valorizadas. Infelizmente, nem com as demonstrações de apoio à coligação italiana ou ao Irmãos de Itália, os liberais de Calenda ou os populistas de Conte foram capazes de se aliar à coligação de centro-esquerda. Com uma alternativa antifascista fragmentada e em disputa, a mobilização do seu possível eleitorado acabou por ficar a meio gás.

Que estas eleições sirvam de lição, mais uma vez, que, por vezes, é necessário fazer um esforço conjunto, mesmo que inclua engolir sapos, para termos um futuro mais digno. Não nos esqueçamos que Itália é um palco da crise dos refugiados. Não é por um partido ter uma mulher à sua frente, que não é fascista: os Direitos Humanos não estão assegurados. Estamos a falar de assuntos essenciais.

Ao mesmo tempo que vemos as implicações europeias destas eleições, tenhamos consciência das eleições a retirar: é preciso uma mobilização máxima nas urnas e um sentido de unidade para enfrentar aqueles que se aproveitam do sofrimento alheio para a sua agenda pessoal. Que se note que os mais desfavorecidos, por norma, acabam por não votar, estão preocupados em sobreviver, temos de chegar também a eles, enquanto garantimos o bem-estar da classe média.

2022_09_20_Um emaranhado de simbolismo e vida

Num mundo tão grande, com tanta gente, temos uma infinidade de coisas a melhorar. São milhares de milhões de vidas, de quotidianos diferentes, cada um com os seus problemas. São lutas individuais que temos de ter em conta. Quando percebermos que é possível entreajudarmo-nos, todas as lutas serão mais fáceis. Mas quais são as coisas que cada um valora?

Uso coisas da forma mais geral possível. Podemos falar de bens materiais: aquele pano bordado pela nossa avó, aquela santa em cima da cabeceira, uma aliança no dedo, uma nota de dinheiro. A literalmente todo o objeto podemos atribuir valor, sendo essa uma caraterística humana: uma dimensão simbólica capaz de associar ideias a algo físico. Como tentei mostrar na enumeração, essa valoração pode ter uma natureza sentimental, tal como pode ser uma convenção como o dinheiro que usamos, sendo, portanto, o nosso quotidiano uma série de simbolismos. Se fossemos visitados por extraterrestres provavelmente a esmagadora maioria destas coisas passariam despercebidas.

Podes adicionar a esta conversa a valoração dos atos: os beijos, os abraços, o ceder a passagem, o vestir um casaco de alguém, um punho fechado no ar. Existem convenções como as saudações, mas também ações que se têm com um determinado objetivo. Não tenho qualquer autoridade na matéria, mas parece-me que quanto mais pequenos são os atos e subconscientemente os fazemos, os tornamos mais puros em intenções.

As coisas mais insignificantes têm sentido para alguém, nem que seja uma pessoa. Isso tem tanto de bom como de mau. Tanto podemos fazer alguém se sentir bem, como mal. Muitas vezes as relações interpessoais baseiam-se em valorar algo: seja um gosto em comum ou uma forma de agir. Sejamos românticos por umas linhas e pensamos na linguagem do amor: podemos expressá-lo passando tempo de qualidade, dando ofertas, através do toque, da entreajuda ou de palavras afetuosas. Uns de nós valoramos mais algumas destas coisas que outras e isso depois tem impacto numa relação: se duas pessoas tiverem linguagens distintas, terão de fazer um esforço de comunicação muito maior. Claro está que podemos aplicar a qualquer relação interpessoal, aplicando outros níveis de intensidade e expectativas.

De que interessa esta conversa da valoração das coisas? Trata-se de estabelecer prioridades e a política é a arte de estabelecer prioridades. Nós valoramos causas. Temáticas. Problemas. Temos de perceber aquilo que valoramos para perceber quem somos e para o onde queremos ir. Temos de perceber que a valoração é relativista, sendo altamente individual, em muito influenciada pela cultura. Não podemos esperar que sejamos todos iguais, e ainda bem que assim não o é: temos a oportunidade de enriquecer o nosso debate com várias perspetivas e aceder a problemáticas que ficam escondidas em minorias, mas também em maiorias enfraquecidas.

Parece-me interessante notar que esta caraterística de valorar as coisas é maior quanto mais novos somos, vive-se tudo mais intensamente. Desde um desgosto amoroso a sair à rua para festejar o 25 de abril, tudo é mais vivo, provavelmente motivado por uma sede de viver própria de quem quer experimentar o máximo que pode enquanto pode. É fácil de motivar os jovens para fazer algo. O movimento ambientalista demonstrou que os meios de manifestação fora do sistema (e.g. fora de partidos políticos) podem ser fortes. Temos de canalizar isso para as nossas instituições democráticas.

Mas primeiro, temos de saber o que valoramos na nossa vida e respeitar as valorações dos outros.

2022_09_13_Mais do que ver, observar

Todos já ouvimos o ditado: nem tudo o que parece, é. Não é por se esculpir uma maçã em forma de gato, que se está diante de um gato. Não é por termos alguém a sorrir atrás de um balcão, que temos um trabalhador feliz.

Nós somos seres sociais e de hábitos. Orientamo-nos por uma rede que conhecemos bem e num quotidiano bem definido. Como temos um objetivo muito bem definido desde nascença, a estabilidade, preocupamo-nos com tudo o que possa afetar isso e acabamos por olhar de uma forma leviana para o que realmente nos rodeia.

Paremos, olhemos e questionemos:

Como valoramos o que nos rodeia? Conseguimos colocar números nas coisas? O sistema em que vivemos diz-nos que quase tudo se pode converter em números seguidos de euros, libras, dólares, etc. Tendemos a considerar que quanto mais dinheiro damos por algo, melhor servidos estamos e, como tal, vivemos com o objetivo de obter estabilidade financeira na esperança de levar uma vida desafogada. Aqui, desde logo, temos duas questões a explorar: as coisas e o trabalho.

Vejamos a primeira perspetiva. Valerá a pena o esforço tentar obter os bens de maior valor? Será isso uma marca de sucesso? (O sucesso é, tal como o idealizamos, algo assim tão importante?) Não serão os objetos mais caros uma tentativa frustrada de nos sentirmos especiais, uma vez que possuímos algo menos comum? O dinheiro é, portanto, uma forma de quantizarmos a nossa singularidade?

Isto leva-nos à segunda questão, a do trabalho. A nossa singularidade aumenta quanto mais dinheiro temos (se às questões anteriores respondermos afirmativamente). Logo, podemos concluir que se é através do trabalho que recebemos dinheiro, quanto maior for o salário, mais relevante será o trabalho. Isto é verdade? Comparemos então um banqueiro com um indivíduo que recolhe o lixo. Como, nitidamente, o banqueiro ganha mais, pela nossa lógica, é evidente que é mais importante que o funcionário do lixo. Vamos ao «story time» de hoje:

Em 1968 quem recolhia o lixo na cidade de Nova Iorque decidiu entrar em greve. Em 1970, na Irlanda, os banqueiros decidiram fazer greve. A primeira greve levou a um estado de emergência na cidade e acabou ao fim de nove dias (de forma bem-sucedida para os funcionários). A segunda greve durou seis meses e ainda assim o crescimento da economia manteve-se estável. As pessoas com menor salário foram as que provaram a sua importância.

Vivemos num sistema que privilegia empregos que se resumem a transferir riqueza em vez de a criar. Quantos gestores financeiros e corretores de ações precisamos? Quantas mentes brilhantes são empurradas para trabalhos com menor relevância comunitária só porque podem ter maior benefício económico? Existem muitas pessoas que consideram o seu trabalho dispensável e isto tem de motivar preocupação. Não estaremos nós a desperdiçar recursos humanos que poderiam ser melhor distribuídos e serem mais úteis? Estou convencido que sim, mas para fazermos isso temos de abolir este sistema do lucro em que vivemos.

Pretendemos viver num mundo onde desprezamos os trabalhadores essenciais e romantizamos os acumuladores de riqueza? Queremos mesmo ser escravos de cifrões e abdicar de aproveitarmos a nossa vida? Este é um problema político.

Que se desengane o leitor: eu não tenho todas as respostas. O que precisamos é de reflexão. O nosso futuro político depende disto. O nosso sistema tem de ser melhorado: mãos à obra.

2022_09_06_Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar

António Variações deixou um esplêndido legado musical que todos sabemos reconhecer. Entre o reportório encontra-se Muda de vida, uma música que nos apela a refletir sobre se estamos bem onde estamos, sobre a necessidade de mudança. É uma ode ao otimismo e, apesar de a podermos acusar de ingenuidade, é uma excelente forma de ver a vida.

Por vezes é preciso fazer decisões que contrariam o que antes se fez ou defendia. Sobre as posições, Mark Twain dizia que só os estúpidos não mudam de opiniões ao longo da vida; sobre atitudes, o Variações diz que a vida não tem de ser um castigo. Não deixa de ser frustrante olhar para trás e ver que o tempo foi investido nalgo posteriormente abandonado, provavelmente forças e energias foram movidas. Não obstante, faz parte do processo de crescimento e autodescoberta essa mudança, é a forma de sabermos o que melhor que encaixa para nós, a forma como podemos ser mais úteis para a sociedade. Se chegarmos ao fim e pudermos dizer que estamos felizes, então já falou a pena. Temos de aproveitar o facto de estarmos em Portugal e na Europa. Apesar das desigualdades também aqui se sentirem, de muita gente ter direitos básicos ameaçados, temos uma faixa considerável da nossa população cujos problemas não são se quer comparáveis àqueles que afetam o designado terceiro mundo.

Recentemente eu próprio passei por um processo que evoca esta mudança: a alteração de licenciatura. No semestre passado, do meu segundo ano de Física, tive um aproveitamento académico precário, pela primeira vez reprovei a cadeiras. Foi este insucesso que me fez meditar sobre aquilo que estava a fazer. Aí me apercebi que, apesar de gostar das temáticas e simpatizar com ter um papel a dizer que estava diplomado em Física, a verdade é que isso podia não ser suficiente. E não é. Como estava a conseguir ter aprovação, apesar de todo os sobre esforço e o que de negativo podia advir, simplesmente engolia e continuava. Uma espécie de lei de inércia: é preciso aplicar uma força externa para mudar o movimento.

Ao pensar sobre o assunto acabei por resolver, no último dia possível, tomar a decisão de me candidatar ao concurso nacional de acesso ao ensino superior, já que era o meu último ano em que podia usar os exames que fiz no 12. Agora, para quem realizou os exames a partir de 2022, inclusive, tem uma validade de 4 anos. Fiz todo o processo nesse dia e submeti.

Daquilo que andei a cogitar, cheguei à conclusão que Filosofia seria a melhor opção. Era o curso que considerava de sonho, mas que não fui porque ou achava que não tinha saída, ou que era menos prestigioso, por algum motivo, que Física. Neste momento, tenho os dois argumentos desmontados e, por isso, sinto-me seguro da decisão. A necessidade de olharmos para o ensino superior exclusivamente como um trampolim para termos estabilidade financeira, tornando a nossa busca limitada àquilo que consideramos que facilita a nossa entrada no mercado de trabalho, pode sair-nos cara.

Evidentemente que nem todos nós nos podemos por a saltitar de cursos, existem encargos financeiros, são mais anos de estudo. Temos de ter isto em conta. Mas um esforço maior agora, para termos uma carreira laboral que nos sejas mais satisfatória pode compensar e muito. No meio de toda estas minhas questões, percebi que muitos amigos meus, ou amigos de amigos, acabaram por mudar de curso ou demorar mais tempo a acabar um. É normal não termos uma trajetória no ensino superior linear.

2022_08_30_Informação gratuita e universal, por favor

Felizmente, vivemos num mundo que, nem que seja no papel, reconheceu a importância de definir direitos humanos. Deste esforço internacional, no artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, resultou o reforço da importância de dois pontos. Permitam-me que os cite: Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito; A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

A Constituição da República Portuguesa, tal como a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, asseguram as mesmas noções expressas pelas Nações Unidas de forma muito semelhante. Há uma necessidade de libertar informação para o público, de forma a formar mentes ricas e com espírito crítico. Esse consumo de informação faz-se através de inúmeros meios, não sendo só do domínio da educação formal, da escola. Os livros ou produções de multimédia são excelentes fontes que têm de ser bem conjugadas com os direitos de autor (sendo que devemos ter como objetivo a cultura acessível a todos). A investigação científica é outro fator importantíssimo de se ter em conta e que, infelizmente, se encontra dispersa ou necessita de pagamento para ser acedida.

É preciso valorizar projetos como edições do Arquivo dos Açores que se encontram digitalizadas e acessíveis (https://biblioteca.uac.pt/pt-pt/recursos-arquivo-acores), sendo que ainda falta fazer o mesmo para os tomos mais recentes. Apostar em tornar os documentos públicos. Apoiar institutos açorianos de investigação como o Gaspar Frutuoso, ou o IVAR de forma a tornarem acessível a sua produção científica.

Tendo em conta a riqueza que se encontra na memória coletiva e individual dos açorianos, de termos vários autores açorianos a publicar as suas memórias, mas também relatos com valor histórico. Seria de interesse público agregar toda essa informação numa plataforma digital, de acesso gratuito e universal.

Aproveitar essa plataforma digital para relacionar os documentos do arquivo, produção científica e imprensa, com critérios temporais, seria uma mais-valia para os Açores.

Os Açores promoverem a acumulação de conhecimento sobre si, de açorianos para açorianos, facilita em muito o acesso aos dados, a valorização e fixação de especialistas,… Há um ano e pouco, fui introduzido a um novo conceito: Nissologia. Trata-se do estudo das ilhas, um campo multifacetado que aborda assuntos muito díspares para caraterizar massas territoriais que podem possuir caraterísticas tão distintas como um arquipélago (se olhássemos de relance para as Flores e para a Graciosa, quase não diríamos que pertencem ao mesmo).

É preciso estarmos informados para podermos tomar as melhores decisões, trata-se de algo lógico e do pensamento comum. Mais do que moderação, aquilo que precisamos é de ponderação. Desta forma, é fulcral haver fontes rigorosas de conhecimento acessíveis a todos. Temos de ter em mente a importância de libertarmos a cultura e investigação para o domínio público.

2022_08_23_Saudações aos nómadas digitais

Com o passar do tempo, a par de avanços científicos e tecnológicos, assistimos ao surgimento de novas profissões, novas condições de trabalho. A exponencial digitalização do quotidiano já permite a trabalhadores desempenharem as suas competências a partir da sua casa. A pandemia foi o empurrão que faltava para popularizar esta forma de trabalho. Na verdade, nem tem de ser a partir de casa. Pode ser de qualquer lado, desde que haja acesso à internet. Assim surgem os nómadas digitais: um conjunto de pessoas que só precisa de WiFi e computador para trabalhar, sendo, regra geral, bem remunerados.

Os nómadas digitais são pessoas que escolhem ir variando de sítio, como melhor lhes convém. Porque não trabalhar num sítio com uma praia à frente? Não se trata de turismo, mas está lá perto. Cada vez mais destino se preparam e promovem como locais que podem acolher com condições estes trabalhadores. A Madeira, por exemplo, já dispõe de infraestrutura que permite espaços com excelentes acessibilidades digitais, para onde as pessoas podem escolher trabalhar enquanto se encontram na ilha. Este projeto madeirense, que conta com o apoio do Governo Regional, conta com estadias que variam entre um e seis meses.

Para conseguirmos ser um polo agregador desses trabalhadores podemos estabelecer uma rede de cooperação entre alojamentos, restaurantes, agentes turísticos, locais de partilha de espaços de trabalho,… Toda uma panóplia de pacotes já podem ser pré-feitos. Desta forma, existe uma dinâmica na economia local além da sazonalidade que marca grande parte do turismo nos Açores, bem como há o estímulo de uma atividade cultural mais intensa e continuada.

Enquanto investigava para escrever este artigo, descobri que a autarquia da Ribeira Grande lançou estes dias um espaço online a promover o município neste contexto (https://www.digitalnomadsrg.pt/). Segundo me apercebi, apesar de ainda faltar informação sobre que restaurantes e alojamentos, a ideia é estes oferecerem descontos. Esta plataforma serve como promoção do destino e ferramenta de comunicação para auxiliar no estabelecimento dos nómadas.

Também o Governo Regional se pronunciou sobre o assunto em junho de 2021, tendo a, então, Secretária Regional Susete Amaro dado a conhecer a intenção de celebração de um protocolo entre a Região e a Madeira. Em maio deste ano, o PS avançou com uma proposta na Assembleia Regional, depois de quase um ano sem resultados visíveis.

Consigo imaginar este projeto também como uma forma de reabilitação de infraestrutura, como a Estação LORAN em Santa Maria: um conjunto de edifícios muito degradados com valor histórico e localizados numa zona mais isolada e turisticamente apetecível para quem busca um ambiente mais rural.

Não obstante a toda a vertente cor-de-rosa do projeto, convém também abordar a questão do próprio teletrabalho, ressalvando a necessidade de uma legislação clara, que permita regular a fronteira entre o trabalho e o prazer, de forma a não cair da exploração abusiva do trabalhador. Sobre esta matéria, Portugal foi um país pioneiro em 2021, aprovando a proposta que garante o «direito ao descanso», ou seja, impede o empregador de contactar fora do horário de trabalho sem motivo maior. Esta alteração consta no Código de Trabalho que até essa altura não previa a realização do teletrabalho. Houve um cuidado para garantir a privacidade ou os direitos sindicais, mas ainda faltam alguns passos, como garantir o subsídio de refeição.

2022_08_16_Não olhem para eles

No passado dia 4 de agosto, Mário Ferreira tornou-se o primeiro português no espaço. A bordo da Blue Origin realizou uma viagem de quase 11 minutos, dos quais 3 foram passados em gravidade zero. Mário Ferreira é, portanto, um herói nacional. Só que não.

Desde o final dos anos noventa que o turismo espacial deixou de ser só um sonho da ficção científico e saltou das páginas dos livros para a nossa realidade. Em 2001, Dennis Tito tornou-se o primeiro turista espacial, desembolsando 20 milhões de dólares. Desde esse momento o número de empresas que apareceram a apresentarem pacotes para viagens ao espaço aumentou extraordinariamente. Mário Ferreira pagou mais de 200 mil euros, um valor 100 vezes mais barato do que o primeiro voo, mas ainda assim muito distante das possibilidades da esmagadora maioria das pessoas.

Muito se fala na democratização do espaço. Do sonho que é todos nós podermos aceder a informação de satélites, de lançarmos os nossos equipamentos, de existir turismo espacial, até mesmo de podermos explorar novos mundos. Olhar para recursos geológicos raros na Terra e lançar instrumentos que os explorem e tragam de fora é um objetivo traçado, por exemplo. Estamos a falar de olhar para o espaço como local pronto a ser explorado, sendo esta uma nova corrida ao espaço que, ao invés de opor nações, opõem indivíduos. É uma competição entre mim e o meu vizinho. É eu conseguir ter um hectare da Lua.

Esta é uma visão totalmente oposta àquilo que devemos esperar sobre o desenvolvimento da exploração espacial: um esforço internacional científico em prol de uma exploração sustentável, num cenário onde o espaço sideral é encardo como um meio de desenvolvimento da espécie humana e não como um local de transações económicas onde se delimitam fronteiras e se açambarcam recursos que a todos nos fazem falta.

Temos de olhar para o espaço como uma forma de todos nos entendermos, independentemente da religião ou nacionalidade. Juntos, num esforço de sobrevivência coletiva e progresso. Temos na ESA o esforço de uma sinergia de quase três dezenas de nações. Que se juntam a sinergias internacionais que juntam, por exemplo, a NASA. Trata-se da Terra, como um todo, a tentar explorar o que está pra além de nós, sem barreiras. Onde somos todos nós a liderar uma expedição científica, onde somos todos nós a delinear o futuro da espécie humana.

A democratização do espaço tal como ela hoje é discutida não passa de um disfarce neoliberal sobre a forma como vemos a expensão espacial. Trata-se da replicação do homem sobre o homem que experienciamos na Terra, para o Espaço. Cabe, portanto, a nós, ao povo, mostrar que queremos uma sociedade onde a equidade é valorizada, onde afirmamos que não existem fronteiras no espaço, que o devemos usar como um bem coletivo, como um esforço internacional.

Mário Ferreira é o exemplo de como alguém que sem qualquer propósito científico ou técnico, simplesmente por ter dinheiro, consegue aquilo que pretende. Chamam-lhe de democratização, mas só é democrático para quem tem dinheiro. Esta noção replica-se um pouco por cada área do nosso quotidiano. Temos de abrir os olhos e perceber que há um melhor futuro do que aquele que nos parece. Esta noção só nos leva a uma conclusão: taxem os mais ricos!

Se é para os Açores terem um papel no futuro da exploração espacial, que saibam escolher estar do lado das pessoas.

2022_08_09_A nossa riqueza

Às vezes a realidade é capaz de superar a ficção e o que parece impossível, acontece. Há uns dias descobri que existem pessoas que realmente leem os meus textos de opinião e, pasme-se, gostam minimamente. Estava eu a ver a cascata do Aveiro, na Maia, em Santa Maria e aproximou-se um emigrante da nossa família. Entre as típicas conversas sobre parentescos, o senhor Manuel pergunta se eram relacionados com o Pedro Amaral. Como ele disse que lia estes textos, logo lhe pedi desculpa pelo dinheiro que tinha gastado, mas ele não parecia particularmente arrependido. Ficámos a falar um pouco e então aquele homem que soma 72 verões expôs a sua visão sobre o aproveitamento turístico dos Açores.

O caso é muito simples: nós acabamos por ficarmos a agarrados a certos bastiões, tipos populares de turismo, como o balnear ou o de natureza. Olhamos para as nossas ilhas e vemos algo que facilmente toda a gente vês, as nossas praias, por exemplo, as nossas piscinas, as nossas possas. Esta é a nossa riqueza. Olhando um pouco mais atentamente vemos os trilhos, desvendamos caminhos por entre a nossa natureza, mostrando a fauna e flora açorianas. Essa também é a nossa riqueza. Mas também temos as jamantas, os priolos,… São também a nossa riqueza. São níveis que damos em direção a uma maior singularidade dos Açores. O ponto que este emigrante defendia, era a necessidade de olharmos para as nossas ilhas, percebermos o que é único aqui e tentar promover de forma sustentável, oferecendo bons motivos para nos visitarem ao invés de outros locais. Este é um conceito que evidentemente parece óbvio, no entanto às vezes permanecemos naquilo que se considera estável, no que consideramos garantido e confortável. Sabemos que praia vende, por exemplo. Um cozido das Furnas já podia parecer uma ideia duvidosa, se não soubéssemos o que sabemos hoje sobre o seu sucesso.

Ao fim e ao cabo, esta noção de busca pelas nossas riquezas, daquelas que nos ligam a outros pontos geográficos, àquelas que nos distinguem singularmente, é algo que deve ser transversal a qualquer área e não só à vertente turística. A nossa comunidade depende de recursos geológicos e biológicos, desde a construção à comida, com incursões na medicina e no entretenimento. Percebermos com o que contamos é de extrema importância para nós próprios. Podermos pegar na nossa matérias-primas e trabalhá-las constitui um trunfo que nos confere um elevado poder sobre o nosso conhecimento, inovação e desafogo económico. Nós temos uma autonomia político-administrativa que nos dá uma margem de manobra assinalável sobre a forma como podemos gerir aquilo com que nos deparamos no nosso território.

A este último parágrafo podíamos abrir uma exceção que não é mero pormenor, o nosso mar. Continua a ser necessária uma revisão à Lei do Mar que dê o poder inequívoco sobre este temas aos Açores.

Grande parte deste trabalho de descobrirmos aquilo que a nossa terra nos reserva, sejam algas, sejam tubarões-baleia, corresponde a um árduo labor científico. É importantíssimo termos uma academia açoriana enrobustecida para dar esta resposta. Muitos desafios se adensam por sermos um arquipélago, sendo o capital um recurso limitado. Contudo, este é um esforço que dará frutos mais tarde. O nosso poder executivo deve ter um papel preponderante em criar sinergias neste sentido.

Se queremos que os Açores sejam o paraíso sustentável e rico que todos ambicionamos, é preciso sermos ousados e desvendar os segredos aqui escondidos.

2022_08_02_Agora que já se esqueceram do Faria e Castro

Numa democracia representativa, onde temos eleições para uma assembleia que garante o poder legislativo e de onde sai um governo que assegura o poder executivo, é normal temos quem apoie os governantes e quem lhes faça oposição. À oposição compete opinar sobre os documentos que vão a votação e apresentar alternativas construtivas que vão de encontro à sua própria agenda programática, mas também questionar as decisões que foram tomadas, servindo como fiscalização à atividade governativa.

Quando falamos de fiscalização, abordamos questões como as políticas que estão a ser seguidas, as consequências de delas resultam, quem beneficia e/ou é prejudicado, se existem interesses particulares à mistura, a competência das nomeações,…

Há um mês, no dia 30 de junho, o Bloco de Esquerda Açores assumiu o seu papel na oposição e denunciou as ligações do Subsecretário Regional da Presidência, Pedro Faria e Castro, à empresa de segurança da qual foi sócio e que tem realizado contratos com entidades públicas, o Governo Regional, mas também Câmaras Municipais alaranjadas. Esta denuncia foi acompanhada por toda a documentação comprovativa, tendo a comunicação social validade os factos. Aqui transcrevo as informações tal elas foram comunicadas pelo BE:

Pedro Faria e Castro deteve uma quota relevante na empresa TRUST Lda. até maio de 2022 e durante o período em que desempenhou funções de Subsecretário Regional.

A empresa Trust Lda. foi, durante esse período, selecionada para prestação de serviços por diversas entidades públicas através de vários contratos por ajuste direto no valor global de 460 mil euros, incluindo 6 contratos diretamente com departamentos do Governo Regional no valor de 304 mil euros, o que representa 55% dos contratos públicos firmados pela empresa desde que o Subsecretário Regional tomou posse como membro do governo até ter vendido a sua quota na empresa.

A situação em questão é efetivamente legal, contudo a matéria da legalidade, sendo importante, não é a mais relevante neste caso, mas sim a falta de ética e o conflito de interesses.

Que se note que na mesma altura em que tomou posse como membro do governo, que renunciou à gerência da empresa e que terá suspendido direitos societários, o Sr. Subsecretário Regional da Presidência aumentou a sua quota de capital na empresa Trust Lda. de 60 para 83 mil euros, quota essa que viria a alienar em maio de 2022.

A alienação da quota foi, portanto, completamente tardia. Desta forma, tudo aquilo que Faria e Castro afirmou sobre o caso não atenua as questões de princípio envolvidas. Durante praticamente dois anos houve um claro conflito de interesses.

Em relação a esta situação, quem tanto prometeu uma mudança no cenário de tráfico de influências, quem afirmou que queria acabar com a clientela, quem até queria reduzir os cargos políticos, quem advogava transparência, o atual Presidente do Governo Regional, decide fechar os olhos e manter a confiança no Subsecretário. Nada de novo, nem de especialmente surpreendente, atendendo ao facto de ao longo do tempo ter provado que essas promessas não passavam de palavras vãs. Nem o CH pediu qualquer demissão ao governo que suporta.

Um estudo recente nos Estados Unidos da América afirma que 42,4% dos norte-americanos prefere um líder forte, do que uma democracia. Nos EUA. Como se chega a este ponto? Com situações como estas que só quebram ainda mais a confiança das pessoas. Que se valorize a transparência e por uma posição atenta e interventiva.

2022_07_26_São pessoas de carne e osso

Quando se abordam as questões ideológicas, a geografia da nossa identidade política, somos confrontados com referenciais baseados em certas dimensões, sendo que a bússola mais comum se baseia nos eixos económico e social. Olhando para o nosso quotidiano, a vertente económica parece ganhar uma clara vantagem em termos de importância. Ora, isto não é mais do que o reflexo de crescermos já num sistema bem definido.

O facto de nos ser dito desde a nossa infância que precisamos de um bom emprego para ter dinheiro e ter uma vida estável é sintomático do papel central que a moeda ocupa na nossa sociedade. O esforço que empenhamos, primeiro nos estudos e depois no trabalho, é para recebermos papel e metal. Queremos poder pagar a renda, a comida, as despesas de saúde e educação, queremos estabilidade para a nossa família. O conceito de economia torna-se sagrado. É, portanto, natural que olhemos para a política e se categorize o pensamento em função da perspetiva com que aborda a economia.

Não quer isto dizer, no entanto, que o eixo social não interesse. Se ao falarmos de economia, estamos a falar de bem-estar, também é certo que o abordamos por via das liberdades individuais. No nosso quotidiano é evidente a existência de uma componente ideológica social muito forte. Desde logo temos a igualdade de oportunidades minada por preconceitos que levam a discriminações. A desigualdade de género ainda é um fenómeno bastante evidente, resultado de uma sociedade que tem em si enraizada a imagem de uma mulher recatada. Em Portugal, as mulheres ganham, em média, cerca de menos 11% que os homens, segundo dados de 2020. Mais de metade da população portuguesa são mulheres. Se olharmos para a Pordata, vemos que desde que eles têm dados, 1960, que este facto mantém a sua verdade. Num país constituído maioritariamente por mulheres, estas ainda são discriminadas. Mas não só. Num país maioritariamente constituído por mulheres, a violência doméstica faz dezenas de vítimas mortais todos os anos, resultando em horríveis feminicídios.

Os assuntos sociais são do nosso dia-a-dia e não dizem respeito só às minorias. A vertente social da ideologia política assegura as liberdades individuais, bem como os direitos. É ela que indica a nossa perspetiva sobre a igualdade dessas liberdades, sobre a moralidade de atos como o aborto ou relações entre pessoas do mesmo sexo. Estas temáticas ora dizem respeito a maiorias, ora a minorias. Todos nós estamos nelas inseridos. As questões da nossa privacidade, muito por via da segurança e defesa, estão intimamente relacionadas com esta vertente.

Na última semana temos assistido a um conjunto de artigos a marcar a agenda mediática portuguesa sobre as questões trans. Mais do que denunciar a transfobia, aquilo que quero alertar é para o caráter despersonalizante de como eles foram escritos. Falou-se de ideologias e causas como se elas não representassem pessoas. Agitam-se bandeiras sobre ideologia de género, como se não falássemos de pessoas de carne e osso que todos os dias veem a sua existência dificultada por uma sociedade que ainda não as conseguiu incluir dignamente.

É possível falarmos de aborto olhando simplesmente para um útero, sem pensar sequer na pessoa que o porta? É completamente desumano. Esta estratégia de pegarmos nas dores dos outros e trabalhá-las como melhor apraz a nossa agenda, ignorando por completo o sofrimento de pessoas reais é absolutamente repugnável e só merece o nosso desprezo.

Haja empatia!

2022_07_19_O nosso abre-olhos

Andamos nós pela nossa vida normalmente e a ignorar as crises que nos rodeiam. Crise climática? Crise social? O que é isso? Atravessamo-las há bastante tempo, com tantos avisos, tantas consequências visíveis e ainda mais consequências negativas por vir. Acabamos por ignorá-las, porque, em geral, somos privilegiados. Não vemos a pobreza logo ao lado da nossa porta. Não estamos propriamente a viver numa estufa. Mas quando falamos de covid, de guerra ou de sismos, aí sim já percebemos que existem consequências.

A pandemia fez-nos perceber que existem inimigos invisíveis. O mundo parou por algo que nós não conseguimos ver, mas vimos as nossas pessoas queridas a desaparecerem. Mais de vinte mil pessoas perderam a vida só em Portugal, mais de seis milhões no mundo. O vírus era inegável e as ações tiveram de ser tomadas. Alterou-se o quotidiano radicalmente para fazer frente a essa ameaça. Fomos capazes de mudar a forma como trabalhamos, como passamos o nosso tempo e, mais importante, fomos capazes de nos entreajudarmos nessa adaptação. Fomos capazes de ter um olhar empático. Quem não se comoveu com gestos simbólicos como aquele senhor a descer sozinho a Avenida da Liberdade no dia 25 de abril de 2020? Demonstra a nossa predisposição para nos solidarizarmos com o momento, para termos consciência da nossa própria vulnerabilidade.

Quando a pandemia parecia dar tréguas aparece uma mobilização bélica às portas da Europa. Parece o Universo a não querer dar-nos descanso. Mas a verdade é que não está na Ucrânia a única guerra neste mundo. Nós valorizamo-la porque está ao nosso lado. Porque crescemos a ouvir falar nas grandes potências mundiais. Rússia é um nome sonante e a Ucrânia é já aqui. Na prática, em que é que esta guerra nos afetou diretamente enquanto indivíduos? Agora aquilo que sentimos são os preços a subir. No entanto, a onda de solidariedade gerada para com os ucranianos foi esmagadora. E ainda bem. Reconhecemos que existem pessoas como nós fora da nossa comunidade e elas importam tanto como nós. Mas e então os sírios, por exemplo? Índia, Afeganistão, Paquistão, Egipto, Azerbaijão, Mianmar, Tailândia, Filipinas, Indonésia, Iémen, Nigéria, Burkina, Somália, Níger, Colômbia, são outros exemplos. Também são pessoas que estão a sofrer. Simplesmente elas não entram tão frequentemente no nosso telejornal.

Imaginemos que as partículas do ar fossem muito maiores, que as conseguíssemos ver. Vermos a cor do dióxido de carbono a aumentar. Vermos partículas a sufocar pessoas. Aí, sim, talvez, as alterações climáticas seriam algo crítico para nós. Ou então se fossemos morar para zonas afetadas. Se a nossa casa tivesse sido arrastada pelas águas, ou se tivesse sido engolida por movimentos de vertente. Os efeitos já existem, simplesmente ainda não chegaram a nós a toda a força. No entanto, não será sempre assim, teremos um litoral submerso, seca,…

São estes episódios que vivemos de entre ajuda e mudança que mostram que é possível nos unirmos e fazermos frente aos nossos obstáculos coletivos. Da mesma forma como lidamos com estas crises que nos entram pela casa dentro, que nos tocam enquanto indivíduos ou nas nossas emoções, da mesma forma como queremos que tudo corra bem em São Jorge, como queremos que os ucranianos tenham dignidade, precisamos de nos unir e exigir a resolução de problemáticas que requerem ações consideráveis. Temos de nos mobilizar contra as alterações climáticas. Contra a pobreza. Contra a exclusão. Juntos.

2022_07_12_A força de vontade

Se olharmos à nossa volta, percebemos que existe muito trabalho, muito empenho, muito esforço, empregue sem retorno financeiro ou uma compensação mínima. Muita gente despende do seu tempo para a comunidade, seja em entretenimento, voluntariado, ação cultural ou desportiva, defesa de causas, etc. Para isto é preciso realmente força de vontade.

Estamos sempre a reclamar dos jovens não se chegarem à frente para assumirem as rédeas ou, pelo menos, parte em movimentos ou entidades. Dizemos que eles não se importam com as tradições ou a comunidade. E este fenómeno pode ser generalizado, quando vemos essencialmente assembleias gerais das mais variadas entidades praticamente vazias. Poucas são as pessoas, em geral, que efetivamente avançam para algo.

Tendo este cenário em mente, é fácil pensar em como incentivos são possivelmente algo necessário a implementar e não falamos propriamente de implicações pessoais: as pessoas são egoístas, mas não assim tanto. Se houver condições decentes para termos os movimentos oleados, todas as tarefas ficam mais fáceis. Se os órgãos executivos apoiarem financeiramente, logisticamente, burocraticamente as associações, clubes, IPSSs,… devidamente, teremos um trabalho muito facilitado no que toca a desenvolver as competências a que se propuseram e, como tal, permitirá gerar uma fluidez na ação, trazendo e entusiasmando cada vez mais pessoas. Claro que um esforço estatal destes implica sempre um cuidado rigoroso na fiscalização para evitar benefícios pessoais e garantir justiça na distribuição das ajudas.

Não obstante, a verdade é que muita desta gente acaba não só por trabalhar de graça, como ainda cede o seu tempo. Por isso, faz sentido haver pequenos benefícios pessoais, algo que assegure a possibilidade das pessoas poderem conciliar as suas responsabilidades e competências laborais com o trabalho desenvolvido em regime de voluntariado. É assim que surgem, por exemplo, as épocas especiais.

Infelizmente, por vezes, vemos as pessoas em geral a denegrirem estas pequenas ajudas, associando-as a privilégios. E se é compreensível o argumento de que alguns beneficiários se aproveitam das artimanhas legais, a verdade é que a maioria parte dessas pessoas trabalha em prol da comunidade e é por isso que os tem. Existem estatutos como de dirigente associativo ou estudante-atleta justamente para garantir que a tal conciliação consiga tomar lugar de forma suave, atendendo às caraterísticas específicas da área em questão.

Um caso que escapa ao voluntariado, mas cujos benefícios são semelhantes, corresponde ao trabalho em part-time enquanto se estuda. Foi criado o estatuto de trabalhador-estudante, justamente para garantir que pessoas que necessitam de trabalhar para pagar os seus estudos que o possam fazer sem serem prejudicados pelo tempo alocado ao trabalho.

É, portanto, uma grande falha moral criticar quem realmente tenta fazer algo, quem escontra força de vontade de se chegar em frente. Trata-se, aliás, de uma invejo injustificada, uma vez que é completamente possível qualquer pessoa ter acesso a esse tipo de estatutos: basta fazer algo. Obviamente que numa sociedade como a nossa que as pessoas são sugadas pelo trabalho, pouco tempo resta para outras atividades, mas, regra geral, são as mais desocupadas que atiram mais postas de pescada.

Que se valorize a força de vontade, a cooperação e a fraternidade, em vez de soundbites ocos. Infelizmente, o nosso sistema tal como está, promove a conversa de tasca.

2022_07_05_ABC do ensino superior

Hoje trago aqui, de novo, a visão de um universitário: de um estudante mariense deslocado no Porto no seu segundo ano de Física. Na semana passada, perto esteve a possibilidade de regressar aos Açores antes da época de recurso, por sentir que de pouco valeria tentar.

No ensino superior temos os cursos constituídos por cadeiras, tal como no ensino obrigatório, sendo que estas disciplinas, chamadas unidades curriculares, assumem diversas formas: podem ser tidas em salas de aula, em laboratórios, em salas de informática, em plataformas onlines,… Sendo que cada unidade curricular pode estar subdividida em modalidades como aulas teóricas e teórico-práticas ou laboratoriais. Tudo isto decorre das especificidades do tema abordado em cada uma. No curso de Física, por exemplo, grande parte das cadeiras têm um caráter mais teórico, então cada uma está divida em aulas para dar matéria e aulas para fazer exercícios. Desde já, por toda esta diversidade nas questões pedagógicas, podemos inferir como o ensino superior se configura mais complexo do que o elementar (o que nada tem de revelar sobre a sua qualidade necessariamente).

Obviamente que no meio de toda esta diversidade em termos de lecionação de aulas, temos todo um mundo de métodos de avaliação. Os docentes têm a possibilidade elementar de só realizar um exame, justamente na época de exames que decorre no final de cada semestre, como pode optar por indo fazer testes, chamadas frequências, ou trabalhos, ou fichas no final de cada aula, ou relatórios,… Eu tive uma cadeira de laboratórios cuja avaliação dependia de: relatórios semanais, havendo um com maior peso, um relatório específico e uma atividade individual em laboratório. Isto só para uma cadeira. Desta forma, temos avaliação ao longo do semestre e/ou na época de exames. Se envolver a primeira opção, chamamo-la de contínua.

Tal como no ensino obrigatório a avaliação é o centro do sistema, configurando um forte fator de pressão sobre os estudantes. Somos confrontados com uma quantidade gigantesca de informação e, de algum modo, temos de conseguir memorizar ou manobrar. Diz o ditado que quem corre por gosto não cansa, mas a verdade é que entrei no meu curso por adorar Física e, no entanto, o cansaço faz-se mostrar. A minha experiência é comum a muitos outros. Não perdemos propriamente o gosto aos temas, no entanto temos de os esmiuçar de tal forma para termos um número numa pauta que acabamos desmotivados. Somos robôs a debitar informação.

Em regra, o ensino superior é sempre mais complicado e é um choque principalmente quando não temos métodos de estudo. Mesmo quem entra com notas bastante aceitáveis na universidade, acaba a batalhar por um 10. Nada é impossível e obviamente que com esforço e dedicação conseguimos atingir os nossos objetivos. Contudo, é impossível contornar o transtorno e frustração que esse embate nos traz.

Daquilo que tenho conhecimentos, nos cursos de matemática e de física existe uma quantidade preocupante de pessoas que acaba por sentir sintomas de ansiedade e depressão. Eu próprio já senti necessidade de recorrer aos serviços do gabinete psicológico da faculdade. Existem taxas de reprovação e de desistências elevadas.

Muitas vezes, com o objetivo de preservar a sanidade, opta-se por acrescentar um ano ao curso, de forma a aliviar o trabalho por semestre. É bom termos a noção de que de nada serve termos um diploma se estivermos completamente esgotados. O tempo não volta atrás.

2022_06_28_Progresso em stand by

Constantemente nos dizemos que somos todos diferentes, tal como dizemos que somos todos iguais. Somos diferentes pela personalidade, pela genética, e iguais na conação, nas nossas necessidades e lugar numa comunidade. Como a única realidade que conhecemos é a nossa, aquela em que somos o seu centro, tendemos a avaliar tudo o resto através do nosso umbigo.

Esta perspetiva autocentrada é, portanto, algo natural já que não nos é possível mudar de posição, quer corpo, personalidade, ou vida para experienciar a realidade de forma diferente. Resta a capacidade de nos tentarmos compreender, através da empatia. Não temos a obrigação de ajudar toda a gente, mas podemos ser sensíveis ao ponto de não fazer pior. Não temos de tomar as dores dos outros, mas pelo menos reconhecê-las. Todos procuramos a felicidade e, independentemente de qualquer circunstância ou personalidade, todos temos os nossos problemas.

Cada pessoa que vemos na rua sente tal como nós, vive tal como nós. É confrontada diariamente com expectativas, com obstáculos. Eles não nos doem, porque não são nossos, mas, da mesma forma que os nossos nos magoam, magoam outros. Nunca sabemos o que alguém está a passar. É fácil pensarmos como em determinados momentos somos a pessoa mais infeliz do mundo: mesmo que pela negativa, esta é uma valorização pessoal que surge justamente por vermos em nós o centro do universo.

Obviamente que nem sempre a empatia existe. Desvalorizamos a fraternidade. E quando damos por nós, estamos sozinhos nas nossas lutas. Sim, causas políticas estão aqui incluídas.

Ainda há uns dias aquilo que parece impensável aconteceu: o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América anulou a decisão do Roe vs Wade, um caso jurídico de 1973 que assegurava o direito ao aborto, segundo a vontade da grávida. Quando por todo o globo aquilo que se veem são passos para maximizar a liberdade e assegurar os direitos das mulheres, que são direitos humanos, temos a suporta terra da liberdade, o suposto farol da democracia, a recuar meio século.

O Supremo Tribunal é composto por nove juízes, sendo que só três são mulheres. Trata-se de um terço. Só uma mulher votou favoravelmente à revogação do direito ao aborto. Existe um peso de homens conservadores que torna qualquer atentado ao progresso possível: o casamento homossexual ou a contraceção virão a seguir como um dos juízes deu a entender? Isto acontece justamente porque estas pessoas claramente têm uma falta de empatia estrondosa, são movidos por uma agenda opressora, que, ou por medo do progresso ou por necessidade de dominação, parece estar cada vez mais acentuada e radicalizada após quatro anos de Trump.

É grave percebermos que há mulheres norte-americanos hoje com menos direitos do que as suas avós. É assustador percebermos que nada está garantido. Se hoje fechamos os olhos, porque não temos útero, quando acordamos amanhã é à nossa porta que estão, há de chegar a nossa vez, mais cedo ou mais tarde.

Existe uma defesa pelos direitos humanos, pela democracia, que tem de ser feita todos os dias. Cabe a todos nós tomar uma posição, quer seja institucional (cuja unidade básica é o voto), quer nas ruas, nas petições. Não podemos desprezar os problemas dos outros por não os termos, quanto mais não seja, porque também temos os nossos e vamos precisar de ajuda.

2022_06_21_Que se fale de sexo

No nosso dia a dia somos confrontados com todo um conjunto de preconceitos e tabus, enquanto vemos ou pensamos, nem que seja inconscientemente. Para o bem e para o mal temos uma matéria cultural em nós que faz parte da nossa identidade, sendo o reflexo da sociedade em que estamos inseridos. Ou seja, se vivermos numa sociedade estruturalmente racista e machista, notaremos em nós traços discriminatórios, nem que seja numa análise mais crítica e rigorosa, como na forma como simpatizamos com desconhecidos. E sim: um gay é também um homofóbico em desconstrução, por exemplo.

Desta forma, temos na nossa cabeça uma programação que nos faz evitar temas para fugir do desconforto. Uma temática que sofre extremamente com tabus é toda aquela envolta na sexualidade. Falarmos à luz do dia sobre sexo é tão desconfortável como ir comprar preservativos. Isto é obviamente um problema: contraceção, orientação sexual, identidade de género, saúde menstrual, doenças sexualmente transmissíveis, abusos sexuais, regulamentação da prostituição; são tudo temas empurrados para debaixo do tapete, não havendo qualquer visibilidade.

Torna-se, pois, complicado legislar sobre estas matérias, tendo em conta o receio da opinião pública, sendo evitados para evitar polémicas. Felizmente há várias forças políticas com menos correntes no pensamento e receios eleitorais que foram capazes de abrir caminho para hoje termos regulamentação sobre assuntos que nos dizem respeito a todos.

Além destes assuntos tão sérios como são as questões de saúde ou matérias criminais, como os abusos sexuais, existe um lado igualmente importante que está a ser igualmente evitado: o simples prazer.

Mesmo quando não o queremos ver ou pensar: nós somos animais. Olhar para um gato ou um humano tem muito de semelhante no seu comportamento: desde os seus tiques, às suas necessidades. Um olhar curioso, um sobressalto assustado, uma postura traquina, um bocejo, a fome, a carência, o instinto materno, a necessidade de dominação. E claro: a necessidade sexual. Os animais são até mais puros no que a isso concerne, já que a nossa vantagem evolutiva está essencialmente na possibilidade de pensarmos racionalmente de forma complexa, sendo que esta vantagem faz com que peguemos em tudo aquilo que nos dá prazer e amplifique de forma que da necessidade de por comida na boca, acabamos a falar de estrelas Michelin e que da nossa necessidade de reproduzir a espécie acabamos a falar de dildos.

E esses prazeres fazem-nos sentir bem. Melhoram o nosso estado de espírito, estreitam relações. A vantagem de vivermos em comunidade é a possibilidade de viver em vez da simples sobrevivência. Foi a exploração do homem pelo homem, que nos levou a esquecer que o trabalho é uma forma de cada um ser útil à comunidade, havendo uma cedência de tempo e esforço de cada indivíduo para o coletivo ter os bens e riqueza necessários para satisfazer as necessidades de todos.

Vivemos numa sociedade que satura de trabalho, muitas vezes trabalho que transfere riqueza em vez de criar, constituindo um desperdício de recursos, que só permite aumentar fossos entre pessoas. Essa saturação não nos permite aproveitar os prazeres da vida, remetendo o trabalhador a um estatuto de máquina, com a preocupação constante de ter comida na mesa para a família. Precisamos de prazer na nossa vida. Precisamos de tempo para falarmos de pénis e vaginas. É urgente ser feliz.

2022_06_14_E voltou o mês do orgulho

Chegou junho e, como tal, o mês do orgulho LGBT+. Aproveito este espaço ara republicar um texto que me parece tão pertinente agora como antes. Este mês foi instituído como forma de promover a visibilidade da defesa da igualdade de direitos para toda e qualquer pessoa independentemente da sua orientação sexual e da sua identidade de género. Nesta altura há que saber topar o oportunismo.

Esta é uma altura do ano que serve para consciencializar e sensibilizar para a diferença e mostrar aos diferentes que existe um espaço para eles. Até porque, no fundo, acabamos por ser todos iguais. Pelo menos todos ambicionamos o mesmo: a aceitação.

Ser LGBT+ nas ilhas não é tipicamente fácil. Existem dois problemas principais: os estereótipos que se vão perpetuando e a imprevisibilidade. Por um lado, crescemos em escolas onde é normal ouvir crianças a chamar a outras de «gay» com um intuito pejorativo e, por outra, a existência de poucos exemplos de pessoas comuns abertamente LGBT+ que possam demonstrar ser possível viver a vida verdadeiramente e em segurança.

Vivemos em meios pequenos, por isso mesmo ser marginalizado é fácil. Ser olhado de lado é algo com que se pode contar, até pelo conservadorismo que ainda existe. Quer isto dizer que os Açores são homofóbicos? Não necessariamente. Só ainda não existiram pessoas LGBT+s suficientes a serem-no abertamente de forma a perceber-se a reação e a criarem-se modelos que permitam mostrar aos jovens LGBT+s que aqui podem ter um futuro e aos menos jovens LGBT+s que, finalmente, se podem sentir completos nas suas ilhas. Quero com isto afirmar que todos os LGBT+s das ilhas devem pegar num megafone e irem para as ruas? Nada disso. Cada um vive como quer. Ninguém deve sentir-se obrigado a expôr-se, mas também ninguém se deve sentir obrigado a esconder-se. O objetivo é simples: a reação a casais homossexuais ser a mesma dos casais heterossexuais, o direito à indiferença. A possibilidade de ser demonstrado afeto em público. Mas é necessário alguns darem esse passo para desbravarem caminho.

Foi com esse espírito que, no aniversário da revolta de Stonewall de há dois anos, fiz eu próprio a minha saída do armário. Nós existimos e não somos poucos. Simplesmente estamos contidos nos nossos círculos pessoais mais íntimos por não sabermos se a nossa comunidade nos aceita. Como alguém politicamente ativo sinto-me com a missão de tomar uma posição e afirmar que efetivamente existe um lugar para nós que é, justamente o lugar de qualquer outro.

Ainda existe muito por fazer, principalmente em termos de mentalidades e, por isso mesmo, têm lugar as marchas. Que se note que a agenda mediática e política não é marcada por um só assunto: é possível trabalhar sobre várias temáticas ao mesmo tempo. Não queremos ter destaque e ter mais direitos que alguém, mas antes afirmar que existimos. É muito fácil afirmar-se que não existe homofobia num local, mas se nesse local não existirem pessoas abertamente LGBT+ como se pode inferir isso? Com que base? As marchas servem para consciencializar pessoas não-LGBT+, mas têm a importante missão de dizer a pessoas LGBT+ que não estão sozinhas.

Trabalhemos para construir um mundo onde ninguém tem de afirmar a sua sexualidade, mas simplesmente vivê-la. Onde é tão normal e fácil ser LGBT+ como é ser heterossexual e cisgénero. Não estarão todos os problemas da humanidade resolvidos, mas sempre podemos riscar um. E é tão atingível essa realidade mais colorida, unida e feliz: basta todos querermos.

2022_06_07_Haja ânimo

Olhamos para o nosso quotidiano e facilmente identificamos uma onda de descontentamento e desvalorização. Ao nosso redor impera darmos por garantidas pessoas, objetos, regalias, facilmente vemos críticas negativas a ações, tomadas de posição, decisões de qualquer índole. As redes sociais são a demonstração de como é fácil depreciar.

Numa comunidade é preciso termos consciência do que está mal, mas também do que está bem. Corrigir o mal, melhorar o bem sempre que possível. Apontar o que se tem de corrigir, mas saudar os bons paradigmas. O reforço positivo é importante, trata-se de um feedback que pode ajudar a perceber a melhor forma de se fazer algo, como também se traduz numa motivação extra para se fazer esse algo, principalmente se o sujeito nada tinha a ganhar ao fazê-lo.

Não percebo de onde vem a nossa dificuldade em expressar elogios. Talvez inseguranças pessoais? Achar que elogiar algo externo é um rebaixamento pessoal não faz sentido. A verdade é que das elogias é mais desconfortável do que fazer críticas. Parece existir uma competição interiorizada, o que não é estranho já que a nossa sociedade está orientada para ela. Na escola olha-se às, nos empregos olha-se aos salários, tenta-se continuamente seriar e medir pessoas. Então, no meio disto, acabamos por nos sentir vulneráveis com reconhecer o sucesso de alguém.

Focados nesta temática podemos falar de muitas áreas: valorizar quem nos rodeia, elogiar o trabalho, as ações, as ideias, as conquistas, as ações e decisões tomadas.

É provavelmente no mundo da política que mais facilmente assistimos ao fenómeno da crítica, seja ela construtiva ou não (infelizmente na maioria das vezes parece imperar a crítica vazia e desnorteada). Facilmente colocamos na borda do prato as decisões que nos parecem descabidas, sendo muito menos provável vermos alguém a apoiar as medidas sem ser por clubismo. Elogiarmos boas decisões pode levar a que os nossos políticos percebem que existe apoio e vontade popular numa dada direção.

Não obstante, acho muito mais interessante olhar para esta ideia num contexto íntimo, nas nossas relações interpessoais. Numa conversa parece ser mais fácil criticar terceiros do que elogiá-los, lá está. Mas além disso há outra questão muito importante: valorizar quem está ao nosso lado. Será que aqueles que nos aturam, que demonstram interesse, que se preocupam e estão indubitavelmente presentes sabem que são por nós valorizados? Será que nós os valorizamos? Será que a lealdade, a empatia, a cedência e o compromisso são valores importantes?

Estou certo de que as pessoas são o pilar da nossa felicidade, que tudo gira em torno das relações interpessoais, quanto mais não seja porque enquanto comunidade dependemos uns dos outros, mas também porque queremos naturalmente a integração e aprovação. Por isso mesmo, é de extrema importância sermos capazes de filtrar as relações que nos são desvantajosas, mas também de agradecermos e retribuirmos a quem nos faz bem.

Palavras são simples de usar e podem fazer toda a diferença. No mínimo é um sorriso, no máximo é o estreitar de relações para uma causa comum. Ninguém muda o mundo sozinho, há que saber entrelaçar as mãos.

Temos de erguer a cabeça e encarar a realidade tal como ela é, nos seus tons quentes e frios, olhando para os seus altos e baixos. Haja ânimo!

2022_05_31_Haja esperança

Às vezes, uma pessoa nem imagina o que vai acontecer a seguir. Fomos mergulhados numa pandemia à lá ficção científica e agora temos uma guerra às portas da Europa que já se prolonga por meses. A História humana tem vários exemplos de períodos semelhantes, sendo que no século passado podemos encontrar aqueles que ainda estão na memória coletiva, apesar de se terem esbatido. Tivemos a peste espanhola e as guerras mundiais. Quando estamos neste mundo e vivemos em tempos tão decisivos, é preciso realmente ter esperança.

Que não se engane o leitor, esperança não é ficar sentado a rezar, é manter os objetivos debaixo do olho e motivar para os atingir.

Não é por estarmos no meio de algo que nos pareça confuso, complicado, fantástico ou sobrecarregados pela realidade, que não exista uma saída ao fundo do túnel. E uma que nos deixe melhor do que quando começámos. Não é por temos problemas que o tempo para, podemos olhar para o passado e traçar paralelismos, perceber o que pode eventualmente funcionar. Sendo que as crises exigem adaptações, mudança, é nelas que existe a necessidade de reformas estruturais. As crises são oportunidade de endireitar o sistema, pelo que devemos ser capazes de perceber quais as lições e as mudanças a conservar e explorar.

A pandemia trouxe um esforço acrescido na digitalização dos serviços, na facilitação do seu acesso através de um clique. Esta mudança, que era já uma tendência, foi estimulada como nunca o fora. Termos aulas à distância permitiu perceber que é possível diminuir as resmas de papel que se entregam aos alunos, incentivou à busca de novas ferramentas e novos métodos de ensino. Claro que também deixou um grande impacto negativo pedagogicamente falando, por isso é necessário separar o trigo do joio. Temos centenas de aulas gravadas pela televisão pública, por exemplo.

Mesmo procedimentos, como o pagamento das compras, agilizou-se com tecnologia contactless. Hoje saímos de casa só com o telemóvel e podemos fazer praticamente tudo aquilo que queremos.

Num momento de cedências e sacrifícios, mostrámos empatia e união, conseguindo passar através de uma pandemia sem paralelo em termos de dimensões. A nossa vida mudou.

Com uma guerra às portas da Europa e que nos faz pensar nas Guerras Mundiais, fomos capazes de demonstrar solidariedade. Existem tantos conflitos no mundo, tanta gente a sofrer, mas como não estão propriamente no nosso campo de visão, tendemos arrogantemente a ignorá-los. Não obstante, estes acontecimentos podem bem ser um ponto de partida para a reconfiguração de acordos internacionais. Uma nova União Europeia pode sair daqui, por exemplo. Esperemos que seja uma mais unida e democrática, comprometida com a segurança e bem-estar dos europeus. Este é também um teste para as Nações Unidades. Guterres é o homem do leme que vê um dos membros do Conselho de Segurança a invadir um país.

Olhamos para as redes sociais e vemos poderosos veículos de comunicação, que servem de megafones para inúmeras causas. Também olhamos para elas e vemos desinformação e manipulação. Um dos desafios da educação de hoje constitui dar ferramentas para se averiguar a veracidade da informação que se obtém. Estarmos bem-informados, pensarmos pela nossa cabeça e fazer aquilo que consideramos correto.

Temos nas nossas mãos um mundo complicado, crises que nos impactam. Precisamos de mudar estruturalmente, de forma ponderada e participativa. O envolvimento na comunidade é um estímulo à motivação coletiva e o motor da esperança.

2022_05_24_Um futuro sustentável

Em 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução com 17 objetivos para serem atingidos em 2030.

Para que serve um artigo-aula? Para expor algo tão bonito como a concordância internacional para tornar o nosso mundo um lugar melhor. Existe um guião para o desenvolvimento sustentável e é preciso lembrá-lo para que os nossos governantes olhem para ele e façam o melhor para o seguir.

De seguida elenco os vários objetivos, tendo sempre em mente que eles se desdobram em indicadores, por exemplo, um indicador do “Trabalho decente e crescimento económico” é “Sustentar o crescimento económico per capita de acordo com as circunstâncias nacionais e, em particular, um crescimento anual de pelo menos 7% do produto interno bruto [PIB] nos países menos desenvolvidos”.

1 - Erradicação da pobreza: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.

2 - Fome zero e agricultura sustentável: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.

3 - Saúde e bem-estar: assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.

4 - Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

5 - Igualdade de género: alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e meninas.

6 - Água limpa e saneamento: garantir disponibilidade e utilização sustentável da água e saneamento para todos.

7 - Energia limpa e acessível: garantir acesso à energia barata, confiável, sustentável e renovável para todos.

8 - Trabalho decente e crescimento económico: promover o crescimento económico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.

9 - Inovação infraestrutura: construir infraestrutura resiliente, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação.

10 - Redução das desigualdades: reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles.

11 - Cidades e comunidades sustentáveis: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

12 - Consumo e produção responsáveis: assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.

13 - Ação contra a mudança global do clima: tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos.

14 - Vida na água: conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

15 - Vida terrestre: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade.

16 - Paz, justiça e instituições eficazes: promover sociedades pacíficas e inclusivas a par do desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

17 - Parcerias e meios de implementação: fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

 

Existe um site onde se pode averiguar a evolução destes indicadores: https://sdg-tracker.org/, sendo que o site do relatório da ONU de 2021 também possui variadas estatísticas: https://unstats.un.org/sdgs/report/2021/.

Para saber mais sobre o assunto, pode vir aqui: https://ods.imvf.org/.

2022_05_17_As expectativas de uma sociedade

Vivemos numa cultura de expectativas. Elas são criadas pela nossa comunidade, sendo, de algum modo, interiorizadas e tornadas nosso património.

Vimos ao mundo e já temos um caminho idealizado: crescer, estudar, trabalhar, reformar. Tendo em conta que estamos inseridos numa comunidade, faz sentido que desde o início haja um local onde nos podemos inserir, ocupar o nosso espaço. Se queremos viver num coletivo, temos de fazer cedências e criar regras. Não obstante, essas expectativas devem refletir uma sociedade justa e que respeita a individualidade.

Atualmente, vivemos num sistema que continua a ser tóxico, uma vez que coloca entraves à tal justiça e individualidade. Felizmente, a tendência com o tempo é, regra geral, a melhoria, no entanto os retrocessos não são impossíveis e a velocidade da mudança depende de nós.

Olhamos para qualquer fase das nossas vidas e apercebemo-nos que a competição assume um papel central. Na escola ordenam-se pessoas e atribuem-se números o que nos faz, desde logo, habituar à ideia de seriação e meritocracia. Temos os olhos postos em nós para perceber o que fazer depois: enveredar no mundo do trabalho, onde se move pela chantagem do dinheiro, ou continuar os estudos, o que, por norma, é visto como mais prestigiante, adiando a entrada no mercado de trabalho, mas potencialmente aumentando o número que corresponde ao valor monetário do indivíduo.

Somos educados como meretrizes de números, que devem fazer sempre o melhor, não porque é o melhor para a comunidade, mas para receber o máximo possível. A cultura da ânsia pelo dinheiro é claramente justificada: no sistema em que vivemos é impossível viver dignamente sem o ter. Queremos o melhor possível para nós e para os nossos, nem que para isso tenhamos de passar uma vida num trabalho que não faz sentido. Há um equilíbrio entre trabalho e lazer que tem de ser melhor definido, tal como aquele entre um trabalho útil e um desnecessário.

Temos de ser capazes de educar para um desenvolvimento pessoal, onde cada um se permita ser, conhecer o que o rodeia e que valorize o esforço para o bem comum. Temos de deixar cair certas expectativas e preconceitos que só levam os jovens perderem-se do seu rumo: a universidade não tem de ser o caminho, não é preciso ganhar o máximo para ser feliz, querer trabalhar menos não é ser malandro, o salário ao final do mês não justifica tudo, as vidas não são perfeitas.

Quando formos capazes desta utopia teremos pessoas mais felizes e, por consequência, com uma maior disposição para trabalhar melhor.

Estas questões de expectativas agravam-se hoje em dia com o mundo digital. Por um lado, sentimos a pressão das redes sociais, por outro lado estamos ligados mais ligados ao trabalho. A possibilidade de termos um vislumbre das vidas alheias faz-nos questionar sobre as nossas, sendo as redes sociais um antro de fachadas, onde se instala uma competição de felicidade fingida. A facilidade de sermos contactados pelo trabalho, principalmente depois da normalização do teletrabalho, torna a fronteira com a vida pessoal mais ténue.

Precisamos de novas expectativas para a nossa sociedade, de nos valorizar pessoalmente e de deixar de nos medir pelos números ou pelos vizinhos.

2022_05_10_O valor das coisas

Há dias que não se faz ideia sobre o que se pode escrever. Há sempre o medo de ficarem para aqui palavras soltas sem jeito. Há a responsabilidade de trazer temas pertinentes e que acrescentem algo. Pessoalmente, acabo a pensar no meu dia e no que penso que pode ter valor. Penso nas atividades, nas conversas. Hoje fiquei a pensar sobre o valor das coisas.

Uso coisas da forma mais geral possível. Podemos falar de bens materiais: aquele pano bordado pela nossa avó, aquela santa em cima da cabeceira, uma aliança no dedo, uma nota de dinheiro. A literalmente todo o objeto podemos atribuir valor, sendo essa uma caraterística humana: uma dimensão simbólica capaz de associar ideias a algo físico. Como tentei mostrar na enumeração, essa valoração pode ter uma natureza sentimental, tal como pode ser uma convenção como o dinheiro que usamos, sendo, portanto, o nosso quotidiano uma série de simbolismos. Se fossemos visitados por extraterrestres provavelmente a esmagadora maioria destas coisas passariam despercebidas.

Podes adicionar a esta conversa a valoração dos atos: os beijos, os abraços, o ceder a passagem, o vestir um casaco de alguém, um punho fechado no ar. Existem convenções como as saudações, mas também ações que se têm com um determinado objetivo. Não tenho qualquer autoridade na matéria, mas parece-me que quanto mais pequenos são os atos e subconscientemente os fazemos, os tornamos mais puros em intenções.

As coisas mais insignificantes têm sentido para alguém, nem que seja uma pessoa. Isso tem tanto de bom como de mau. Tanto podemos fazer alguém se sentir bem, como mal. Muitas vezes as relações interpessoais baseiam-se em valorar algo: seja um gosto em comum ou uma forma de agir. Sejamos românticos por umas linhas e pensamos na linguagem do amor: podemos expressá-lo passando tempo de qualidade, dando ofertas, através do toque, da entreajuda ou de palavras afetuosas. Uns de nós valoramos mais algumas destas coisas que outras e isso depois tem impacto numa relação: se duas pessoas tiverem linguagens distintas, terão de fazer um esforço de comunicação muito maior. Claro está que podemos aplicar a qualquer relação interpessoal, aplicando outros níveis de intensidade e expectativas.

De que interessa esta conversa da valoração das coisas? Trata-se de estabelecer prioridades e a política é a arte de estabelecer prioridades. Nós valoramos causas. Temáticas. Problemas. Temos de perceber aquilo que valoramos para perceber quem somos e para o que queremos ir. Temos de perceber que a valoração é relativista, sendo altamente individual, em muito influenciada pela cultura. Não podemos esperar que sejamos todos iguais, e ainda bem que assim não o é: temos a oportunidade de enriquecer o nosso debate com várias perspetivas e aceder a problemáticas que ficam escondidas em minorias, mas também em maiorias enfraquecidas.

Parece-me interessante notar que esta caraterística de valorar as coisas é maior quanto mais novos somos, vive-se tudo mais intensamente. Desde um desgosto amoroso a sair à rua para festejar o 25 de abril, tudo é mais vivo, provavelmente motivado por uma sede de viver própria de quem quer experimentar o máximo que pode enquanto pode. É fácil de motivar os jovens para fazer algo. O movimento ambientalista demonstrou que os meios de manifestação fora do sistema (e.g. fora de partidos políticos) podem ser fortes. Temos de canalizar isso para as nossas instituições democráticas.

Mas primeiro, temos de saber o que valoramos na nossa vida.

2022_05_03_Os maios

Ao longo dos tempos vão sendo desenvolvidas tradições e hábitos que enriquecem as culturas. Os Açores não são, claro está, uma exceção: umas mais antigas, outras mais recentes, temos os nossos próprios costumes.

No passado domingo, dia 1 de maio, celebrou-se o Dia do Trabalhador, mas também o dia dos maios. A origem desta tradição não é necessariamente linear, estando ligada a lendas, mitologia e o mundo rural. Enganar o rei Herodes e assinalar o fim do tempo frio são hipóteses. Por todo o país se encontram vestígios desta tradição, se bem que no Algarve temos os típicos bonecos às portas das casas. Devem ter sido justamente os algarvios a trazer essa prática para os Açores. Neste dia, podemos apreciar os bonecos à escala humana acompanhados por quadras satíricas.

Não obstante ao quão bem soa esta imagem de criação artística, mas também de entretenimento e fraternidade na sua construção entre família e amigos, a verdade é que cada vez menos se vêm maios pelas ruas açorianas. Eu próprio, que só tenho 20 anos, lembro-me de em criança percorrer de carro as ruas marienses para apreciar os bonecos e o trabalho que está por trás, lembro-me de o passeio durar a tarde toda e ainda assim faltarem maios. A cada ano que passou, menos pessoas faziam os maios.

São várias as entidades que ao longo do tempo têm vindo a promover concursos para incentivar a continuidade desta tradição: Câmaras Municipais, como a da Lagoa, mas também entidades governamentais, como a Associação Juvenil, a AJISM, em Santa Maria.

Justamente pela experiência na AJISM, acompanhei de perto esta atividade em terras marienses. Só se inscreveram para concurso quatro pessoas. Quatro. Sendo que foram poucos mais aqueles que se deram ao trabalho de fazerem o maio sem se inscreverem. Santa Maria parece estar a atingir um mínimo nesta tradição.

Como sempre atualmente, podemos tentar culpar o covid. Tínhamos uma tradição já em decréscimo de adesão e com dois anos na ausência de incentivos, houve uma desmoralização. Estamos na fase de desconfinamento e se existe momento onde as pessoas deveriam estar sedentas de vida seria agora. Cada vez mais podemos fazer a nosso quotidiano segundo os padrões pré-pandemia. E, no entanto, aquilo que parece é haver uma certa inércia. Não obstante, este fenómeno ocorre em domínios já anteriormente em declínio, sendo que eventos como a Corrida 25 de abril (em Santa Maria) e, presumivelmente, as sopas de império conseguem manter e até aumentar, a sua participação.

Ou seja, há uma sede pelo convívio comunitário, como seria de esperar tendo em conta as medidas de proteção individual tomadas. No entanto, tudo aquilo que implique trabalho acaba posto de parte. Mais uma vez temos aqui o estrangulamento de uma atividade que enriquece a nossa vivência, porque temos uma vida orientada pela carreira profissional: se é isso que ocupa a nossa mente a maior parte do tempo, então é normal que no restante, se existir, se queira descansar. Num sistema capitalista como o nosso a questão profissional advém da necessidade de amontoar dinheiro para sobreviver e viver. Quando vemos o preço de tudo à nossa volta a aumentar, torna-se difícil pensar em mais algo do que, no mínimo, manter o padrão de vida.

Temos de conseguir enquanto comunidade equilibrar o trabalho com o entretenimento, de forma a vivermos numa sociedade funcional, mas também culta e rica. Quero voltar a passear numa Santa Maria cheia de maios, com as suas quadras afiadas.

2022_04_26_A nossa responsabilidade

Ontem celebrámos o 25 de abril e, portanto, torna-se impossível não mandar nenhum bitaite sobre isso. Trata-se de uma data incontornável no nosso país e, portanto, feriado nacional, no entanto, como qualquer feriado, acaba por ver o seu significado subterrado pela alegria de mais um dia de descanso.

Todos nós somos o produto de abril, na medida em que não nos sentimos limitados na nossa ação. Vivemos em liberdade. Apesar de estarmos sujeitos à legislação e ao julgamento público, a verdade é que existe uma indiscutível margem de manobra para sermos fiéis a nós próprios e fazermos o que entendemos.

As comemorações têm consistido essencialmente nos habituais e indispensáveis discursos na Assembleia da República, bem como na marcha que enche a artéria de Lisboa. Um pouco por todo o país se tenta assinalar a data com diferentes estratégias: exposições, concertos, competições, eventos desportivos,… Em alguns municípios temos os eleitos locais a terem igualmente tempo de antena, o que faz todo o sentido. Deve haver um esforço para conseguir conciliar a memória, a política e o entretenimento. 25 de abril deve ser um dia marcante do calendário. 

São 48 anos desde 25 de abril de 1974. Quanto mais tempo passa, menor é a memória sobre os eventos, sobre a vida pré-revolução. Quanto mais tempo passa, mais fácil é tomar a liberdade e a democracia como garantidas. Quanto mais tempo passa, novas gerações surgem a ouvir falar de um passado cada vez mais distante. Esse afastamento deve preocupar-nos, principalmente quando vemos movimentos extremistas conservados a surgirem em força no panorama político internacional, mas também nacional. Que se note que segundo estudos realizados, existe uma boa percentagem de jovens a dar força a este tipo de partidos de extrema-direita. Como a segunda guerra mundial está longe da Europa e o Estado Novo de nós, tendemos a esquecer as atrocidades vividas. Longe da vista, longe do coração. É, pois, imperativo, assinalarmos o 25 de abril de forma mais completa possível: tornando-o um dia aprazível, mas também de memória e educação.

É a nossa democracia quem agradece, é o garante de que os nossos netos poderão viver numa sociedade plural e justa.

Disciplinas como História e Filosofia ajudam-nos a perceber que existem realidades e perspetivas muito diferentes daquelas em que vivemos e pensamos, revela-nos a possibilidade de uma vida pior ou melhor. É uma missão da educação a preservação da democracia, que se faz não só através da pedagogia direta das aulas, mas também da proatividade dentro da comunidade, através das instituições, da participação nos processos eleitorais, sejam eles quais forem, uma vez que se regem pelo mesmo espírito democrático.

Não obstante, é tarefa também e cada um de nós preservar este património comum que é a liberdade. Cabe-nos ser parte ativa na nossa democracia, sendo que para isso temos, no mínimo, de fazer algo tão simples como votar. Votar é, aliás, uma justa homenagem a todos aqueles que lutaram por esse direito. Aquilo que não ajuda é um discurso pessimista sobre o mundo político, sejam políticos, partidos ou instituições. O que queremos passar entre gerações é o amor à democracia e não o ódio à política.

É urgente valorizar o dia 25 de abril, esperemos que as comemorações dos 50 anos tragam um renovado espírito de celebração e incentivem a uma maior mobilização.

2022_04_19_A aliança verde azul

Com as tréguas que a covid nos vai dando, torna-se possível ir retomando algumas atividades adiadas por anos. Na minha família temos a tradição de sair de Santa Maria pelo menos uma vez por ano para servirmos de turistas. Decidiu-se que este era o ano de sairmos, já que a última vez que o fizemos foi em 2019.

Assim sendo, aproveitámos a semana das férias da Páscoa para passar quatro dias em Madrid, um em Toledo e mais três em Peredo de Bemposta para visitar a minha madrinha. Como curiosidade fica o meu encontro com um terceirense em plena noite madrilena, que foi passada a ver uma procissão da Semana Santa. Há açorianos em todo o lado e o mundo, em alguns aspetos, é efetivamente pequeno.

No entanto, aquilo que pretendo aqui trazer fica do nosso lado da fronteira, no nosso interior continental. Estes três dias em Peredo de Bemposta fizeram-me recordar e conhecer a realidade vivida nesta aldeia de Trás-os-Montes, mas que se repete nos locais fora do litoral urbano.

De curva e contracurva parte-se do Porto, vai-se a Vila Real, Vila Flor e Mogadouro, sempre com o Douro à espreita. Aquilo que se vê pela janela é um mar de verde. Oliveiras e amendoeiras nos campos com imensos matos em redor. Existem as cidades, as vilas, as aldeias e os lugares. Quanto mais pequeno é a localidade, mais parece uma ilha. Não foi difícil ver no autocarro um navio a atravessar o oceano verde no meio de um arquipélago. Esta analogia só não parece mais natural, porque um certo senhor decidiu nem nos deixar a ver navios (agora deve ir de vela, vamos ver o que muda).

À medida que se avança, veem-se ruínas de obras que nem foram completadas, promessas adiadas, edifícios de entidades cuja função seria descentralizar competências e melhor defender os interesses do interior, mas que parecem existir para satisfazer as máquinas partidárias. Não nos é familiar?

Nesse arquipélago conhecem-se pessoas que se levantam às seis da manhã para trabalharem nas suas terras, apesar de passarem a semana a desempenhar outras funções liberais. Pessoas sem medo de meter as mãos na massa, com um sentido de união que as faz sorrir todos os dias aos seus vizinhos. A união que permite as atividades culturais, que serve de desenrasque quotidiano sempre que é preciso, que as faz defender causas comuns. Cada pessoa sabe que faz parte da comunidade. Pessoas honestas e genuínas. Não faz lembrar as gentes açorianas?

Quando são precisos cuidados de saúde mais especializados, é necessária uma aventura no mar verde. Quando alguém quer ir para o ensino superior: lá navega para outra margem.

Toda a gente elogia as suas paisagens, mas os seus problemas são empurrados para debaixo do tapete. Já parece mais semelhante?

A tão esperada regionalização é a oportunidade de haver meios descentralizados capazes de atender às necessidades específicas de cada região. Trata-se de um passo que já foi dado nas regiões autónomas logo em 1976.

Como açorianos, devemos estender a mão aos nossos irmãos que estão no mar verde, que enfrentam problemas tão semelhantes aos nossos e que anseiam a autonomia que nós já conquistámos. A ação política deve ser baseada na empatia e na hegemonia, somos uma massa plural que ambiciona um futuro melhor para todos.

2022_04_12_Ficção científica 

No dia 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin tornou-se o primeiro humano a chegar ao espaço, marcando um importante ponto a favor da União Soviética, na altura. Tendo por base este facto, a ONU decidiu declarar o dia 12 de abril como o Dia Internacional dos Voos Espaciais Tripulados. No Açores cada vez mais temos falado no setor aeroespacial e de como o nosso arquipélago se pode posicionar no futuro da exploração, mas é necessário também vermos como entendemos que esta atividade deve ser feita.

Quando pensamos em exploração espacial aquilo que nos vem à cabeça logo é a NASA. O seu orçamento facilmente se misturava com onda defesa, até porque historicamente a corrida ao espaço mais não foi do que uma competição pela supremacia do uso da órbita, sendo, aliás, a espionagem uma constante neste tema. A exploração espacial tem, portanto, vindo a ser vista numa perspectiva bélica. Não nos iludamos: isso também se vê nos Açores. Quem está a explorar as valências da ESA em Santa Maria é a Edisoft, uma empresa do grupo Thales cujo propósito é justamente de defesa. Por isso reafirmo: não basta discutirmos questões específicas sobre o setor,  é necessário acordar uma visão sobre o assunto.

Pessoalmente, acho que a exploração deve ser desprovida de qualquer propósito militar. Aquele que queremos é o avanço científico e o desenvolvimento tecnológico. Enquanto andarmos a apoiar ambições imperialistas ou uma individualização da investigação, então não chegamos a lado nenhum.

O espaço não deve ter fronteiras. Se há algo de que a ciência é composta é de cooperação. Redes de investigadores, diálogos, conferências, etc. Não interessa de onde és, vamos falar e tentar arranjar soluções para os nossos problemas. Ao colocarmos a defesa ao barulho, implicitamente estão a ser delineadas fronteiras sobre algo que é tão puro e intocado pela ganância humana.

A Agência Espacial Europeia vem de certa forma dar um empurrão a uma visão internacional, com foco na cooperação, em relação à exploração espacial. Como individualmente os países europeus não suportavam uma agência espacial impactante, decidiram juntar-se e formar uma.

O seu nome não é tão imponente, por enquanto, como o da NASA, mas cada vez mais tem se conseguido fazer notar.

Parcerias como o ESO, o observatório europeu do sul, que possui uma extensa rede de radiotelescópios no Chile e que é o destino de muitos investigadores na área, demonstram o sucesso que é quando os estados investem colectivamente na investigação pura e dura.

Depois existe outra questão que se soma: o aparecimento dos privados, levando as fronteiras as muros ínfimos numa lógica de competitividade que não deve reger o desenvolvimento científico. Estes privados são muitas vezes glorificados, no entanto a verdade é relativamente desapontante: apesar de usarem recursos seus, grande parte do seu financiamento é estatal. A introdução de jogadores privados no espaço é mais uma jogada de propanganda capitalista do que o verdadeiro progresso.

Que se note que a ONU possui um gabinete para os assuntos do espaço sideral. Existem acordos internacionais sobre o assunto. Os Açores têm de saber que posição querem defender.

Precisamos de perceber que a exploração espacial deixou de ser ficção científica e temos a obrigação de não repetir no espaço os erros que fizemos na Terra.

2022_04_05_As crises invisíveis

Andamos nós pela nossa vida normalmente e a ignorar as crises que nos rodeiam. Crise climática? Crise social? O que é isso? Atravessamo-las há bastante tempo, com tantos avisos, tantas consequências visíveis e ainda mais consequências negativas por vir. Acabamos por ignorá-las, porque, em geral, somos privilegiados. Não vemos a pobreza logo ao lado da nossa porta. Não estamos propriamente a viver numa estufa. Mas quando falamos de covid, de guerra ou de sismos, aí sim já percebemos que existem consequências.

A pandemia fez-nos perceber que existem inimigos invisíveis. O mundo parou por algo que nós não conseguimos ver, mas vimos as nossas pessoas queridas a desaparecerem. Mais de vinte mil pessoas perderam a vida só em Portugal, mais de seis milhões no mundo. O vírus era inegável e as ações tiveram de ser tomadas. Alterou-se o quotidiano radicalmente para fazer frente a essa ameaça. Fomos capazes de mudar a forma como trabalhamos, como passamos o nosso tempo e, mais importante, fomos capazes de nos entreajudarmos nessa adaptação. Fomos capazes de ter um olhar empático. Quem não se comoveu com gestos simbólicos como aquele senhor a descer sozinho a Avenida da Liberdade no dia 25 de abril de 2020? Demonstra a nossa predisposição para nos solidarizarmos com o momento, para termos consciência da nossa própria vulnerabilidade.

Quando a pandemia parecia das tréguas aparece uma mobilização bélica às portas da Europa. Parece o Universo a não querer dar-nos descanso. Mas a verdade é que não está na Ucrânia a única guerra neste mundo. Nós valorizamo-la porque está ao nosso lado. Porque crescemos a ouvir falar nas grandes potências mundiais. Rússia é um nome sonante e a Ucrânia é já aqui. Na prática, em que é que esta guerra nos afetou diretamente enquanto indivíduos? Agora aquilo que sentimos são os preços a subir. No entanto, a onda de solidariedade gerada para com os ucranianos foi esmagadora. E ainda bem. Reconhecemos que existem pessoas como nós fora da nossa comunidade e elas importam tanto como nós. Mas e então os sírios, por exemplo? Índia, Afeganistão, Paquistão, Egipto, Azerbaijão, Mianmar, Tailândia, Filipinas, Indonésia, Iémen, Nigéria, Burkina, Somália, Níger, Colômbia, são outros exemplos. Também são pessoas que estão a sofrer. Simplesmente elas não entram tão frequentemente no nosso telejornal.

Imaginemos que as partículas do ar fossem muito maiores, que as conseguíssemos ver. Vermos a cor do dióxido de carbono a aumentar. Vermos partículas a sufocar pessoas. Aí, sim, talvez, as alterações climáticas seriam algo crítico para nós. Ou então se fossemos morar para zonas afetadas. Se a nossa casa tivesse sido arrastada pelas águas, ou se tivesse sido engolida por movimentos de vertente. Os efeitos já existem, simplesmente ainda não chegaram a nós a toda a força. No entanto, não será sempre assim, teremos um litoral submerso, seca,…

São estes episódios que vivemos de entre ajuda e mudança que mostram que é possível nos unirmos e fazermos frente aos nossos obstáculos coletivos. Da mesma forma como lidamos com estas crises que nos entram pela casa dentro, que nos tocam enquanto indivíduos ou nas nossas emoções, da mesma forma como queremos que tudo corra bem em São Jorge, como queremos que os ucranianos tenham dignidade, precisamos de nos unir e exigir a resolução de problemáticas que requerem ações consideráveis. Temos de nos mobilizar contra as alterações climáticas. Contra a pobreza. Contra a exclusão. Juntos.

2022_03_29_Um berço da democracia

Na semana passada escrevi sobre a importância que estruturas como as Associações de Estudantes têm para o ensino dos valores democráticos e da vivência em comunidade. Hoje quero trazer a proposta de um novo órgão escolar que descrevi superficialmente anteriormente.

Em 2017 o Conselho Executivo da EBS Santa Maria avançou com a criação de uma Assembleia de Delegados e Subdelegados do Terceiro Ciclo e Secundário. Estava eu no décimo e a tentar descodificar o que ia sair dali. Trata-se de uma estrutura presente em cada vez mais escolas a título informal. É um conceito tão simples quanto o de juntar os representantes de turma que foram eleitos e falar-se sobre os assuntos da escola. Essa assembleia tem, portanto, o dobro do número de turmas que existem nos ciclos representados, sendo que no nosso caso decidimos também incluir os membros da direção da Associação de Estudantes.

Na primeiro reunião que se fez, decidiu-se sobre o funcionamento da Assembleia. A ideia era os alunos poderem refletir, sugerir e criticar os mais variados aspetos relacionados com o meio escolar, sendo que podiam contar com a resposta de um representante do Conselho Executivo, havendo assim uma ligação direta entre alunos e a liderança.

Eu acho que a Assembleia é muito mais do que mostrar que temos uma palavra, que perguntar é desejável, que quem está à frente das entidades não é imune a respostas. A Assembleia também deve servir para se valorizar a própria palavra. Quase mais do que a interação aluno-executivo, o debate aluno-aluno assume uma importância enorme, por mostrar que é através da pluralidade de visões que o debate acontece e cada um de nós é útil para esse debate, a partir do momento que temos uma perspetiva justificada. A presença de uma autoridade pode, até, inibir essa interação, até porque os alunos se sentem constrangidos a expor o seu raciocínio, ao contrário do que acontece entre pares.

Justamente com isso em mente tentei fazer com que a Assembleia fosse um local de reunião dos alunos, com um momento em que o representante do Executivo está presente, mas também com um momento onde só estão os alunos, devidamente moderados pela mesa eleita na primeira reunião. Existe aqui uma noção de independência, onde os alunos percebem as regras democráticas e as respeitam: a eleição da mesa, o debate, a votação, a perspetiva construtiva, o contacto com as autoridades,… É uma verdadeira lição da democracia.

Permitam-me partilhar um episódio que presenciei. Numa reunião um conjunto de alunos decidiu sugerir ao Executivo o afastamento de um cinzeiro de uma das entradas da escola. Algo tão simples quanto isto. Alguns dias depois o cinzeiro foi efetivamente movido. Esses e outros alunos ficaram tanto de surpreendidos como de motivados ao verem que a sua sugestão não foi ignorada. Esses jovens perceberam que vivem numa comunidade onde todos estamos interligados e todos importamos.

A minha opinião é, aliás, de que a Assembleia de Delegados e Subdelegados deve ser um órgão escolar com as competências de emissão de pareceres obrigatórios sobre documentos orientadores, como plano de atividades, além da discussão de ideias e interação com o Executivo. Trata-se de valorizar o papel dos estudantes na sua comunidade escolar, integrando-os naquela que é a realidade administrativa e familiarizando-os com o funcionamento da nossa bela democracia.

Na semana passada escrevi sobre a importância que estruturas como as Associações de Estudantes têm para o ensino dos valores democráticos e da vivência em comunidade. Hoje quero trazer a proposta de um novo órgão escolar que descrevi superficialmente anteriormente.

Em 2017 o Conselho Executivo da EBS Santa Maria avançou com a criação de uma Assembleia de Delegados e Subdelegados do Terceiro Ciclo e Secundário. Estava eu no décimo e a tentar descodificar o que ia sair dali. Trata-se de uma estrutura presente em cada vez mais escolas a título informal. É um conceito tão simples quanto o de juntar os representantes de turma que foram eleitos e falar-se sobre os assuntos da escola. Essa assembleia tem, portanto, o dobro do número de turmas que existem nos ciclos representados, sendo que no nosso caso decidimos também incluir os membros da direção da Associação de Estudantes.

Na primeiro reunião que se fez, decidiu-se sobre o funcionamento da Assembleia. A ideia era os alunos poderem refletir, sugerir e criticar os mais variados aspetos relacionados com o meio escolar, sendo que podiam contar com a resposta de um representante do Conselho Executivo, havendo assim uma ligação direta entre alunos e a liderança.

Eu acho que a Assembleia é muito mais do que mostrar que temos uma palavra, que perguntar é desejável, que quem está à frente das entidades não é imune a respostas. A Assembleia também deve servir para se valorizar a própria palavra. Quase mais do que a interação aluno-executivo, o debate aluno-aluno assume uma importância enorme, por mostrar que é através da pluralidade de visões que o debate acontece e cada um de nós é útil para esse debate, a partir do momento que temos uma perspetiva justificada. A presença de uma autoridade pode, até, inibir essa interação, até porque os alunos se sentem constrangidos a expor o seu raciocínio, ao contrário do que acontece entre pares.

Justamente com isso em mente tentei fazer com que a Assembleia fosse um local de reunião dos alunos, com um momento em que o representante do Executivo está presente, mas também com um momento onde só estão os alunos, devidamente moderados pela mesa eleita na primeira reunião. Existe aqui uma noção de independência, onde os alunos percebem as regras democráticas e as respeitam: a eleição da mesa, o debate, a votação, a perspetiva construtiva, o contacto com as autoridades,… É uma verdadeira lição da democracia.

Permitam-me partilhar um episódio que presenciei. Numa reunião um conjunto de alunos decidiu sugerir ao Executivo o afastamento de um cinzeiro de uma das entradas da escola. Algo tão simples quanto isto. Alguns dias depois o cinzeiro foi efetivamente movido. Esses e outros alunos ficaram tanto de surpreendidos como de motivados ao verem que a sua sugestão não foi ignorada. Esses jovens perceberam que vivem numa comunidade onde todos estamos interligados e todos importamos.

A minha opinião é, aliás, de que a Assembleia de Delegados e Subdelegados deve ser um órgão escolar com as competências de emissão de pareceres obrigatórios sobre documentos orientadores, como plano de atividades, além da discussão de ideias e interação com o Executivo. Trata-se de valorizar o papel dos estudantes na sua comunidade escolar, integrando-os naquela que é a realidade administrativa e familiarizando-os com o funcionamento da nossa bela democracia.

2022_03_22_Mais uma gota de dinamismo

Depois de um ano e meio sem Associação de Estudantes a Escola Básica e Secundária de Santa Maria voltou a contar com um conjunto de alunos empenhados em reativá-la. Depois de ter ficado 4 anos à frente desse grupo informal, é uma alegria poder ver uma nova energia a tomar conta do assunto.

No domingo passado contactou-me a nova presidente eleita, cheia de vontade de perceber como podia usar de melhor forma o espaço que agora tinha. Queria saber o que tínhamos deixado por fazer. Feliz e contente lhe enumerei por alto o trabalho desenvolvido. As tertúlias, as visitas, as atividades, os eventos, o ativismo,… Uma passagem pelas cronologias no antigo blog revelam centenas de pontos com toda a atividade que a Associação dinamizou.

Numa ilha pequena, onde só existe uma escola, a importância da comunidade escolar, nomeadamente da sua dinamização, é importantíssima. A escola é uma microcomunidade, nela encontramos uma miniatura de tudo o que existe na nossa comunidade. É, portanto, importantíssimo conseguirmos já estimular a proatividade, o espírito crítico, a atitude democrática, o respeito, se queremos que o futuro da nossa comunidade passe justamente por esses valores.

Vivendo num contexto pequeno (provavelmente só Ponta Delgada poderia ser daqui excluída) temos de conseguir valorizar o derrube de muros, de vedações entre a escola e a comunidade envolvente. Muitos dos jovens que não gostam da escola é por não perceberem o sentido que tem passarem 12 anos a aprenderem coisas que às vezes parecem tão aleatórias ou abstratas. A escola tem a função vital de garantir um melhor futuro do que o presente e para isso precisa de mostrar que tem um claro propósito de dar ferramentas às novas gerações e de preparação para uma vida em sociedade com direitos, deveres, alegrias, tristezas. Tem a importância de não ignorar assuntos como a saúde mental ou a educação sexual.

E quando isto parece falhar, nada melhor do que ter uma Associação de Estudantes que dá o seu máximo para preencher as lacunas e ajudar no possível a melhorar o que pode ser melhorado (que é sempre tudo). A Associação tem a particularidade de não somenos importância de ser a única entidade de alunos para alunos. Se queremos incentivar a uma cultura democrática, então as AEs são cruciais. E que se note que falo em Associações e não em comissões de festas.

A representação em órgãos como a Assembleia de Escola ou o Conselho Pedagógico também são obviamente importantíssimos, envolvendo os estudantes nos assuntos letivos e de administração escolar. No entanto, infelizmente, este trabalho acaba por ser invisível, não passando das paredes das salas de reuniões, sendo que facilmente os alunos se sentem intimidados por não estarem rodeados dos seus pares.

Aproveito para introduzir uma estrutura que existe em cada vez mais escolas e penso que pode ser muito melhor aproveitada: a assembleia de delegados e subdeledados. Cada turma elege um delegado e um subdelegado, sendo que estes têm assento numa assembleia com os seus pares, formando um órgão bastante plural que podia muito bem ter um caráter formal. Por um lado, temos a Associações, de alunos para alunos, onde democraticamente se exerce uma função executiva, por outro lado temos uma assembleia, de alunos para alunos, onde democraticamente se discutem os assuntos e se emitem pareceres.

Que se incentive à mobilização da nossa juventude! Boa sorte à nova Associação!


2022_03_15_Responder já ou não Heis a questão

Novos tempos trazem novos problemas. Ultimamente tenho pensado na forma como me relaciono com o telemóvel, ou mais concretamente, com as mensagens que recebo.

Sempre que tenho uma notificação de mensagem sinto uma necessidade em responder o mais rápido possível, mesmo se estiver ocupado. Sendo essa vontade tanto maior quanto mais próxima for a pessoa.

Presumo que sejam os jovens a sentir maioritariamente essa necessidade de ligação, justamente por termos sido nós já criados numa altura onde o mundo digital parece tanto ao mais real que a realidade.

Por vezes não sei se a necessidade de resposta é uma necessidade pessoal de atenção ou uma reação circunstancial, saber

Isto está obviamente relacionado com o facto de estarmos contactáveis 24 horas por dia. Um dos problemas do teletrabalho é justamente a quebra da barreira do horário, daí a importância da legislação sobre o direito do trabalhador não responder fora do horário laboral. É o direito a desligar. Esta questão cuja vertente laboral tem mais destaque, tem relevância também nos assuntos pessoais. Qual é o nosso espaço pessoal? O que é? Como podemos passar tempo sozinhos?

É legítimo estarmos online e não respondermos a mensagens que nos estão a ser mandadas? Ou estarmos a falar com mais de uma pessoa, deixando intervalos maiores de resposta?

No meio destas questões temos sempre dois lados: o nosso e o dos nossos interlocutores. A forma como falam connosco também nos afeta. Existe, portanto, uma gestão emocional associada a uma atividade tão simples e aparentemente inocente como trocar mensagens.

Podemos assumir uma postura mais ou menos óbvia de agir da forma mais natural possível: responder quando nos fizer sentido, enviar quando nos fizer sentido, etc. Mas desta forma podemos acabar por fazer aquilo não queremos que façam connosco. À partida quando enviamos uma mensagem é para obter uma resposta.

Não obstante, uma boa solução para quando não temos disponibilidade é simplesmente enviar um "respondo depois".

As pessoas claramente não são seres automatizados e robotizados. Nós sentimos e sentimos de forma diferente em cada dia. Não temos necessariamente a mesma resposta para o mesmo estímulo, é tudo sempre relativo e contextualizado. Por vezes, veja-se só, nem nós sabemos como nos sentimos ou porque nos sentimos como nos sentimos. Percebermos essa nossa vulnerabilidade e reconhece-la nos outros permite-nos inferir que as ações têm sempre consequências. Estamos constantemente a fazer escolhas e a tentar distribuir da melhor forma o conforto.

O facto de haver um mundo digital que nos interliga leva a que as relações sociais estejam sempre presentes e tragam estas escolhas para um plano constante no tempo. Existe uma espécie de ansiedade digital. Lidar com as pessoas, as suas particularidades, necessidades e personalidades, em articulação com a nossa é sempre um desafio, agora ainda o é mais.

A velha questão de nos por as nós ou os outros em primeiro plano é uma questão sempre presente, mais um equilíbrio que temos de atingir. Claramente que o problema com que comecei o texto está aqui representado.

Esta não é uma questão simples e eu falo como uma pessoa que por vezes não sabe como lidar com o equilíbrio entre o mundo digital e real, estas não são as melhores palavras, nem a melhor abordagem da questão, mas este é um assunto que acaba por vezes por ficar ignorado.

Não sei se quem acaba de ler o artigo fica com alguma ideia definida, isto acabou por ser um devaneio por escrito sobre algo que não considero um assunto menor.

2022_03_08_Povo pequenino

No passado sábado, dia 5, decorreu a primeira semifinal do Festival da Canção 2022. Tratou-se da primeira etapa rumo à final que se realiza dia 12 e de um sairá a quem irá representar Portugal na Eurovisão.

Cada vez mais assistimos a um Festival aberto a novas caras, tanto a comporem como a interpretarem, levando a que este seja um momento privilegiado para assistir a novos talentos e a artistas com alguma carreira feita, mas ainda sem um reconhecimento generalizado.

Nesta primeira semifinal concorreu um grupo que se inclui nesta última categoria de artistas que mencionei: Fado Bicha. Trata-se de uma dupla que usa a sonoridade do fado para expressar o seu ativismo. São um ícone LGBT, com uma preocupação com temas que vão muito além da orientação sexual ou identidade de género.

Apresentaram uma música com uma melodia que muito bem representa Portugal, fado, mas também um folk que facilmente chega a quem é do interior e, claro, das ilhas. Podiam muito bem apresentar uma obra justamente sobre questões LGBT, no entanto optaram por versar sobre aquele que é o nosso património comum: uma massa de gente honesta, pessoas trabalhadoras, pessoas de zonas rurais. Falam de uma revolução tão necessária e de como, mesmo passados tantos anos, ainda temos uma passado colonial às costas, com consequências tão atuais como o racismo estrutural.

É preciso coragem para subir a um palco da dimensão do Festival e falar de colonialismo, falar do povo que fica esquecido nos manuais de História e, a somar a tudo isto, apresentar-se numa clara afronta ao convencional sobre a expressão de género.

Gostos certamente não se discutem, mas esta atuação tinha um grande potencial para fazer um brilharete no palco Europeu.

Fado Bicha não passou à final, não chegará à Eurovisão. Não obstante, aqui fica a letra da Lila Tiago que tem tudo para nos fazer refletir:

Era o povo pequenino, pés descalços na geada

Era o povo pequenino, na cartilha da pancada

Era o povo pequenino, já puxava pela enxada

Era o povo pequenino, a chorar na tabuada

Morder os dentes, lamber os beiços

Molhar pão velho na caldeirada

Ai, povo pequenino

Pés na lama do destino

Ai, povo pequenino

Pés na lama do destino

Não te pesa o coração

Com o chumbo da lição

Não te pesa

Ai, povo pequenino

Tão humilde e cabotino

Ai, povo pequenino

Tão humilde, tão escarninho

Não te dói no coração

O estilhaço do canhão

Não te pesa

No mar, a boiar, são cravos

No fundo, há feitos escravos

Ai, quanto do teu sal

Ó, povo pequenino

Pobre povo pequenino

Ó, povo pequenino

Pobre povo pequenino

Não te pesa o coração

Tanto medo da canção

Tanto amor

Ao bastão

2022_03_01_Berço de ouro

Várias vezes foram aquelas em que ouvi a minha avó dizer que nasci num berço de ouro. Nada mais certo. Efetivamente aquilo que me rodeia são privilégios. Reconhecermos que somos beneficiados pelo sistema, não quer dizer que não o possamos contestar. Tal como não faz sentido analisarmos aquilo que nos rodeia, sem termos consciência de onde estamos.

Vivemos nos Açores. Infelizmente, são uma região com das mais altas taxas de pobreza. Não obstante, grande parte dos açorianos nunca se teve de propriamente preocupar com a possibilidade de passar fome. Temos um sistema de saúde onde qualquer pessoa pode ser atendida e intervencionada sem custos, bem como um ensino público universal. Nem tudo está bem, mas comparados com muitos pontos do nosso globo, estamos claramente em vantagem.

Tanto temos ouvido falar das notícias que nos chegam da Ucrânia, de um cenário de guerra inconcebível no século vinte e um. Desde a Segunda Guerra Mundial que a europa não tinha junto a si uma ameaça militar desta ordem. Que se note quem em muitos sítios ao redor do globo existem inúmeras guerras, no entanto, nós, europeus, tendemos a ignorá-las muitas vezes porque estão longe da nossa vista. Ver as imagens devastadoras de pessoas a terem de abandonar as suas casas, umas quantas destruídas mesmo, faz-nos valorizar a segurança que temos. Portugal é considerado um dos países mais pacíficos do mundo (apesar de haver quem tente passar a ideia contrária para extremar o campo político). Somos, enquanto país, privilegiados por isso. O mínimo que o Estado pode fazer é reafirmar as vezes que forem precisas a disponibilidade para receber refugiados.

Assumirmos o privilégio (tal como as limitações) é ter a capacidade de analisar a situação, sendo o primeiro passo para depois podermos tomar uma ação no sentido de harmonizar a nossa sociedade. E que se note que mais do que nunca, a nossa sociedade inclui cada pessoa à superfície da Terra. Temos formas de comunicação que nos permitem transmitir mensagens de forma instantânea para qualquer parte. As concentrações que existem em nome da paz são, por isso, um excelente exemplo de solidariedade. Em grande parte simbólico, sim, mas com uma mensagem muito forte.

Olharmos para Ucrânia e percebermos a paz em que vivemos não é para nos autopromovermos, mas sim para termos consciência da nossa riqueza e podermos tomar uma atitude para, agora que a valorizamos, podermos cuidar dela dentro das nossas fronteiras e fazer o possível ara que ela existe em todo o lado.

O mesmo argumento sucede em outras áreas. Quem vive economicamente desafogado deve ter consciência disso e defender os mais desfavorecidos, não com a inércia da caridade, mas através dos meios para influenciar as decisões políticas. Que se note que aqueles que menos têm são muitas vezes os mais explorados, ficando o seu pensamento limitado à sobrevivência diária. Parece paradoxal o facto de que muita gente marginalizada pelo sistema se abstenha nas eleições. É sintomático disto mesmo: quem mais tem a ganhar em mudar o sistema, é também quem mais impotência sente que tem. Temos de sair da nossa bolha e mostrar que as injustiças devem ser combatidas, que todos temos um lugar digno.

Nós vivemos todos numa comunidade, somos uma teia. A fraternidade e a solidariedade devem ser valores basilares. Fazermos o máximo possível para melhorar a vida de todos, incluindo a nossa.

2022_02_22_O consumo da cultura

Estamos cada vez mais próximos do Carnaval. Ao pensarmos nas danças e nos teatros, temos provavelmente um dos expoentes culturais açorianos, que faz o povo abraçar as manifestações culturais. Existem, claro, outros momentos, mas aproveita este para trazer à baila um tema muito importante: o consumo de cultura. Foi publicado um estudo encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian sobre as práticas culturais dos portugueses, tendo sido o período da recolha de dados no último trimestre de 2020, num universo de 2000 entrevistas.

Desde logo, nota-se que 61% dos inquiridos afirmou não ter lido um único livro em 2020, sendo que a leitura digital corresponde a uma fração diminuta da amostra.

Algo transversal às várias formas de consumo de cultura é o facto de se alguém tiver mais rendimentos e um maior grau académico, então a probabilidade de estar mais propenso a essas atividades é maior. Isto revela-nos desde logo o facto de que existe uma barreira económica que afasta uma faixa de portugueses das atividades culturais.

No entanto o custo por si só não constitui um problema. Ele está também presente na diminuta disponibilidade mental que a maioria dos portugueses tem para, findo o dia de trabalho, se dedicar a uma atividade cultural. Depois de se estar a trabalhar horas e horas, provavelmente, mais as tarefas domésticas, a exaustão toma o controlo. Imagine-se o exemplo de uma série: a pessoa tem os vários episódios acessíveis, por exemplo, em plataformas como a RTP Play, não teve custos além da internet, no entanto o que acontece muitas vezes é que aquela série acaba adiada, justamente porque a pessoa quer simplesmente descansar, contrair, algo extremamente leve.

Nos Açores existe ainda outra dificuldade: a dispersão geográfica com um mar a separar os rochedos. Quando falamos de atividades como teatros, dança,… sabemos que eles acabam por ser mais raros quanto mais pequena é a ilha. Eventualmente surgem esforços locais para dinamização artística, mas sem um hábito de consumo torna-se difícil essa implantação de grupos amadores. São necessários um investimento e uma vontade política que permitam valorizar a cultura.

Mas lá está: podemos andar aqui a inventar apoios, espetáculos, incentivos, divulgações,… mas se as pessoas continuarem a viver para trabalhar, se uma parte considerável das pessoas vive norteada pela necessidade de contar os tostões e chegar ao fim do mês com as dívidas controladas, então pouca será a disponibilidade para abarcar em atividades culturais que servem de entretimento. Muito menos se terá sucesso na formação de grupos amadores da prática artística.

No meio desta discussão não podemos duvidar da importância da cultura. De como isso justifica que este setor seja ele próprio uma fonte de empregabilidade, sendo esta muitas vezes precária. Temos de valorizar quem faz cultura, o amadorismo é uma prática importante, mas não nos podemos esquecer dos profissionais.

Permitam-me terminar com a RTP Play. Podem aceder através desta hiperligação: rtp.pt/play. Trata-se de um espaço onde se podem encontrar filmes, séries, noticiários, podcasts, teatros, entrevistas, documentários,… Material produzido pela RTP ou emitido e com direitos para temporariamente estar disponível online, nesse serviço que se chama streaming. Existem conteúdos de grande qualidade produzidos em Portugal e a RTP Play é, portanto, um serviço público, a custo zero, de grande interesse em ser explorado.

2022_02_15_Os nossos estudantes no ensino superior

Nestes últimos dias ouvimos falar sobre as questões do abandono escolar. Permitam-me deslocar um pouco o assunto e olhar para o ensino superior.

De acordo com os dados da Pordata, em 2020 13,1% dos açorianos tinham frequentado o ensino superior. Trata-se de um aumento na ordem dos 10% desde 1998, no entanto, este crescimento não faz com que os Açores deixem de ser a região do país com a percentagem mais baixa.

Ao olharmos para a Madeira percebemos que se trata da segunda região com o indicador mais baixo, levando a crer que aquilo que existe é também o não retorno dos jovens que saem das regiões autónomas para estudar.

Esta necessidade de conseguirmos fixar pessoas qualificadas tem de ir muito além da forma como se encara à primeira vista o problema: empreendedorismo ou estágios. Os dois levam à instabilidade. Mas além disso falta ver mais: ver além do emprego. Nós não vivemos para trabalhar. O trabalho é a forma de darmos algo à comunidade com o objetivo de usufruir dos frutos do trabalho de todos. Aquilo que queremos, estudantes açorianos no ensino superior, é trabalhar na nossa área, claro, mas também ter condições para viver bem: cuidados de saúde enrobustecidos, educação de qualidade, cultura diversificada e acessível, bons espaços públicos, boas vias de comunicação,… Até a inclusão social, o esforço de combate ao ódio de um local, assume especial relevância. E não estamos só a falar de fixar uma pessoa. Estamos a falar de constituir famílias.

Existe um potencial tremendo nos Açores em relação a diversas áreas de estudo, diversos setores económicos. É triste ver que os sucessivos Governos Regionais acabaram por fechar os olhos a tantas oportunidades, sendo o setor aeroespacial um exemplo de uma exceção que coloca os Açores no mapa, já com unidades de investigação a serem elogiadas. É possível criar emprego, é preciso é haver vontade política de cortar nas benesses dadas aos amigos e fazer verdadeiramente uma questão sobre o papel dos Açores.

Estando a questão do emprego arrumada, temos também a necessidade de ter serviços públicos de qualidade. A política faz-se de prioridades, e o bem-estar dos açorianos deve nortear o nosso Governo Regional.

A passagem pelo ensino superior é, provavelmente, na maioria dos casos esgotante e stressante. É um mundo novo, com injustiças, muito trabalho, muito esforço. Existem muitas incertezas e aquilo que queremos é alguma estabilidade. Nós queremos voltar para os Açores, mas para isso é preciso que haja real desenvolvimento.

Mas que se note que a baixa taxa de pessoas com ensino superior não se prende só com a questão do não retorno: estudar fora é caro. Felizmente existem vários apoios sociais, mas cada vez mais a habitação acaba por encarecer. Não há residências para todos. Não são poucos os que não conseguem continuar a estudar porque a família não consegue suportar esses custos.

Felizmente existem alguns esforços extra para melhorarem a situação, como bolsas, no entanto aquilo que precisamos são de respostas duradouras, como no caso da habitação. E o que precisos é também de discutir o papel das propinas, quando aquilo que queremos é uma sociedade onde a educação deve ser acessível a todos.

2022_02_08_Mais uma vez o rejuvenescimento

Já o disse antes e volto a reforçar: existe a necessidade de rejuvenescer os nossos quadros políticos açorianos. As legislativas de 30 de janeiro também o demonstram.

A nossa região é propensa à bipolarização proporcionalmente à proximidade das instituições eleitas aos cidadãos. Ou seja, uma maior dispersão de votos em europeias, por exemplo, e uma concentração em dois polos nas autárquicas. Nas regionais tende a existir a bipolarização, sendo as legislativas um estando intermédio, que vai mudando ao saber dos contextos nacional e regionais.

Não haja dúvidas do voto útil no PS e como isso levou a uma bipolarização também nos Açores. Que se note que não houve propriamente um voto útil à direita no PSD, como o PS beneficiou, aliás, CH e IL prosperaram no terreno, no entanto como se trata do segundo partido mais votado, a perceção de bipolarização mantém-se. Nos Açores este último aspeto ainda é mais perturbador, já que o PSD se candidatou coligado, senda esta análoga à que se encontra a governar os Açores.

Segundo os dados das sondagens, existem uma maior predisposição por parte dos jovens para votar em terceiros partidos, sendo o BE e a IL beneficiados por esse fator. Bipolarização provavelmente significa que existe uma grande abstenção jovem. Parece-me claro que se tratou da realidade. Várias são as razões que podem levar os jovens a não votar, mas algumas parecem-me cruciais.

A primeira é efetivamente não saberem como: muitos jovens açorianos são estudantes deslocados e apesar de termos acesso a um voto antecipado em mobilidade exemplar, a verdade é que essa informação ainda não está devidamente implantada. Cabe a cada um de nós, cidadãos, divulgá-la, até porque beneficia qualquer pessoa, uma vez que é de acesso universal.

No entanto a razão que me parece mais interessante de trazer aqui é a não identificação dos jovens com as candidaturas. Quando olhamos para as listas do PS e da AD (PSD/CDS/PPM), aquilo que vemos foi uma aposta em dinossauros, ficando fora de lugar elegível qualquer candidato que pudesse significar renovação. Isto acontece pelo cenário político regional atual (a terceira volta das regionais), mas também porque não temos quadros políticos açorianos jovens. Nem mesmo a JS ou a JSD conseguem esse feito, note-se a idade dos deputados que elegeram (e nem sempre foram eleitos).

Será que não há jovens competentes para poderem ganhar relevo? Custa-me a crer. Que se note que o que pretendo não é impor um limite de idade na política, mas sim tentar ir incluindo novas caras com novas ideias. Uma harmonia entre a experiência e a inovação, a ambição, a inquietação.

Provavelmente quando tivermos exemplos de jovens na política, seja possível que mais se interessem e façam o básico: votar. Agora, que se note que existem muitos jovens militantes, o problema é que muitas vezes acabaram lá por razões que não a identificação ideológica e deparamo-nos com o clubismo, que dá lugar à politiquice.

Nos Açores, temos muita politiquice que afasta não só os jovens, mas todos aqueles que querem ver os seus problemas resolvidos, mas não têm paciência para separar o trigo do joio. Temos de ser capazes de deixar novas pessoas poderem contribuir para o desenvolvimento da nossa região, precisamos de rejuvenescer os Açores.

2022_02_01_E tudo a rosa levou

Chegou-se ao final da noite eleitoral do passado domingo com uma maioria absoluta do PS, contrariando as sondagens que se foram dando a conhecer. A estratégia de António Costa foi arriscada, mas resultou: forçou eleições apresentando um orçamento precário, culpou os seus antigos parceiros pela instabilidade e pediu uma maioria inequívoca para conseguir tratar como bem lhe apetece dos fundos europeus.

A nível nacional assistimos a um enorme voto útil à esquerda, levando a que o PS engolisse o BE e a CDU, sendo que, aliás, estas duas forças perdem no total 20 deputados, entre eles rostos com grande visibilidade e importância, bem como o próprio PEV (está integrado na CDU a par do PCP). A narrativa de António Costa vingou, sendo que as sondagens mais recentes a demonstrar a possibilidade do regresso da direita ao poder, podem ter feito os eleitores apostarem no PS. BE e CDU precisam de parar para pensar e reorganizar.

À direita temos CH e IL claramente reforçados, beneficiando do desaparecimento do CDS, mas também pelo próprio sistema eleitoral. Como o CH ficou em terceiro em 14 círculos, foi o partido mais próximo de eleger por círculos de dimensão mais reduzida do que Porto e Lisboa. Aliás, é curioso notar algumas consequências do nosso sistema: o BE teve um melhor desempenho que a CDU a nível nacional, mas elege menos um deputado; o CDS teve um melhor desempenho que o Livre ou o PAN e ficará fora da assembleia.

Como temos uma maioria absoluta, nenhum partido da oposição terá especial peso, pelo que o medo de termos um CH a influenciar a governação está afastado. Pode ser que com mais deputados se consiga notar de forma mais evidente o culto do chefe, a demagogia e a falta de visão para o país do partido que incita ao ódio. Nós, açorianos, mais do que ninguém, sabemos que não podemos contar com a seriedade daquela bancada.

Aliás, olhemos para os Açores. Em quase tudo assistimos a um cenário muito semelhante ao nacional, pelo que as leituras regionais não parecem ser as mais adequadas. Não obstante, não julgo serem descartáveis. É interessante de notar que a AD não foi capaz de segurar os votos que PSD, CDS e PPM tiveram, isoladamente, em 2019. Só existiram 3 ilhas (e concelhos) onde o CH não foi a terceira força: Santa Maria, Faial e Corvo; Bloco de Esquerda nos dois primeiros e CDU no último. Que se note que a nível nacional o BE só se manteve como terceira força em 10 concelhos. Também nos Açores o CH e a IL parecem ter vindo para assentar, no entanto que se note que a nível nacional, estes partidos tiveram um crescimento significativo, mas que não chegou ao objetivo de Ventura dos 15%, nem tendo conseguido igualar os resultados do BE em 2009, 2015 ou 2019. O CH ganhou hoje uma representação em número igual à que a CDU tem atualmente.

É também interessante notar que a nova Assembleia da República tem menos mulheres e é menos diversa. Além disso, assistimos ao desaparecimento de duas forças políticas: PEV e CDS.

Esperemos que haja juízo e bom senso por parte do PS, se antes podiam empurrar os problemas para BE e PCP, agora a responsabilidade é inteiramente sua. Que a oposição saiba fazer o seu papel de fiscalizadora do governo, porque vamos precisar.

2022_01_25_O significado do nosso voto

Porque votamos num partido e não noutro? É realmente uma questão de grande importância que encerra em si o futuro da nossa democracia.

Quando votamos, fazê-lo de acordo com uma estratégia. O voto útil é provavelmente aquele que mais ouvimos falar e que corresponde ao desejo dos maiores partidos, ganhando mais projeção, até por se alicerçar na ideia de arco da governação, só entra no governo um conjunto muito restrito de partidos.

Interessa aos partidos desse arco da governação que achemos que só eles podem governar, que é praticamente impossível uma grande variação do sentido de voto entre eleições. Esta estratégia é intensificada em círculos eleitorais com menor representação na Assembleia da República, uma vez que, pelo Método de Hondt, se torna mais difícil a eleição de forças com menor expressão.

É, portanto, uma possível preocupação nossa o impacto que o voto tem no sentido de eleger deputados. No entanto, estrategicamente, nesses mesmos círculos pequenos, podemos decidir votar em forças que estatisticamente provavelmente não elegerão. Por estratégia porque o terceiro lugar importa. No Açores importa ainda mais porque temos uma democracia regional com atores políticos análogos aos nacionais e, portanto, vai haver uma leitura do resultado transposta para a nossa realidade. Por vezes, é importante não nos focarmos somente nos eleitos, mas garantir que as forças seguintes saem reforçadas de acordo com as nossas expectativas e não fiquem entregues à sorte.

No caso de partidos realmente pequenos o seu voto em círculos com poucos eleitos conta, por exemplo, para terem acesso a financiamento. Existe uma dimensão prática que não deve ser descartada, além da simbólica.

É claro que em grandes círculos a eleição de mais forças é possível e provável. Nesses casos é possível votarmos mais tranquilamente de acordo com o nosso coração, porque o voto útil não terá um impacto extraordinário, apesar de obviamente definir a partidarização do nosso cenário político. Nestes círculos votar em partidos médios, vá (só para distinguir daqueles que não passam de 1% ou 2%), é também uma decisão estratégica que pode muito bem definir se é o partido C ou D a eleger. Círculos como Leiria ou Faro têm uma dimensão propícia a que só um partido que não PS ou PSD eleja. Há uma perspetiva semelhante ao voto útil em escolher qual deles irá. Obviamente que passando para círculos cada vez com dimensão maior teremos as mesmas questões relacionadas com partidos cada vez com menor percentagem. Ou seja, justifica-se um voto de acordo com as crenças pessoais, porque muito provavelmente elas se irão encaixar num dos partidos que provavelmente consegue eleger.

Como nota final dar conta que 315 785 portugueses se inscreveram para o voto antecipado em mobilidade que descrevi na semana passada. Trata-se de um número muito inferior ao milhão e duzentos mil projetado pelo Governo, mas ainda superior ao das presidenciais, que revela um maior cuidado no interesse do voto (em comparação a 2019) e, portanto, se pode traduzir numa baixa da abstenção. Este último fator, a abstenção, será realmente um decisor importantíssimo, uma vez que o voto presencial de confinados pode ter um efeito não previsto.

No final do dia, aquilo que importa é que cada pessoa tem acesso a um voto que é por si escolhido, sendo absolutamente secreto. Cada um de nós tem a responsabilidade de votar para manter a democracia viva, funcional e plural.

2022_01_18_O voto antecipado

Pelos mais variados motivos, são muitos os portugueses que não se encontram disponíveis para votar no dia da eleição, 30 de janeiro, neste caso. Grande parte por não se encontrar no local onde está recenseado. Da necessidade de colmatar esta falha surge o voto antecipado em mobilidade. Não é novidade nenhuma. Já foi usado nas legislativas, regionais e europeias. No entanto, a desinformação por vezes persiste.

O que é o voto antecipado em mobilidade? É a oportunidade de qualquer eleitor poder votar num local à sua escolha no domingo da semana anterior às eleições, dia 23, deste caso. Sem qualquer condição ou requisito. Toda a gente, em todo o território.

Desde dia 16 e até dia 20 é possível fazer o pedido em votoantecipado.mai.gov.pt. Trata-se do simples preenchimento de um formulário online. Nada mais fácil. Nesse formulário é indicado em que concelho se pretende votar. Que se note que se pode votar antecipadamente no concelho de recenseamento. É também necessário perceber que se se faltar no dia 23 é ainda possível votar no dia 30, mas só no concelho onde está recenseado.

Uma questão que muitas vezes se levanta e que, infelizmente, Rui Rio e André Ventura exemplificaram, é se o facto de se votar num concelho de outro círculo eleitoral, se o voto passa a contar para o círculo onde se volta. Não. Um estudante deslocado açoriano que vote no Porto terá o privilégio de dizer que o seu voto andou de avião. Aliás, os primeiros votos a serem inseridos nas urnas no dia 30 são justamente aqueles que foram à distância. Existe todo um conjunto de cuidados a serem tidos para preservar o anonimato do voto. Ou seja, quem está na mesa de voto sabe quem votou, mas não sabe a que boletim corresponde.

 Se é estudante deslocado, se está a viajar, se está a noutro local em trabalho, … Se não consegue votar no dia 30 no seu concelho de recenseamento ou simplesmente preferir votar a 23, faça a inscrição no voto antecipado em mobilidade. Não perde direito nenhum e pode votar onde lhe der mais jeito, seja no concelho de residência, ou não.

Permitam-me concluir dando algumas informações sobre o sistema eleitoral.

Como foi mencionado o que existem são círculos eleitorais: Açores, Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Europa, Fora Europa,… Tendo em conta a população, cada círculo elege um conjunto de deputados. Os Açores, por exemplo, elegem 5. No total são eleitas 230 pessoas que constituem a Assembleia da República. Tendo em conta a composição partidária da assembleia e das possibilidades de acordos se não houver maioria absoluta, o Presidente da República indigita um Primeiro-Ministro.

Ou seja, nós temos um boletim de voto que serve para eleger os nossos representantes na Assembleia da República pelo círculo onde votamos. Sendo que estes deputados são escolhidos de acordo com um método de proporcionalidade denominado Método de Hondt. Basicamente pega-se nos votos de cada partido e vai-se dividindo por números naturais. Depois vê-se quais são as maiores razões, sendo estas em igual número ao de deputados a eleger.

Como nota final: existem outras formas de voto antecipado especialmente concebidas para certas situações como para presos ou doentes internados. Tendo em conta que o voto antecipado em mobilidade que descrevi serve para a esmagadora maioria das pessoas, decidi dar-lhe destaque.

Não há desculpas para não votar. Vote.


2022_01_11_Maquiavelices

Há quem diga que Maquiavel escreveu O Príncipe não só como um manual de instruções para um governante, mas também como a forma de dar às massas o conhecimento das formas como são moldadas. Acho que é interessante deixar aqui este apontamento de ciência política, que nos permite olhar com outros olhos para a realidade.

Desde logo, percebamos que Nicolau Maquiavel viveu num contexto politicamente conturbado, cheio de instabilidade, com ameaças militares e de revoltas à espreita, em Florença entre os séculos XV e XVI.

Segundo Maquiavel, que era político, um bom governante tinha de ter duas caraterísticas «fortuna» e «virtú». A primeira é a sorte: podemos ser muito bons, mas se estivermos no local errado, à hora errada, pouco conseguimos atingir. A segunda pretende-se com a virtude: um governante deve ser astuto e perspicaz.

É esta virtude que é a peça controversa na perspetiva de Maquiavel e que originou o adjetivo maquiavélico. Segundo ele, os fins justificam os meios. Nunca utilizou esta frase, mas reflete muito bem o seu pensamento. Basicamente aquilo que se afirma é que existe uma clara separação entre política e ética. A partir do momento em que para o bem comum é preciso cometer atrocidades e atitudes duvidosas, então que seja. Na altura não havia o conceito de Direitos Humanos, como o leitor pode imaginar. Se o governante tivesse de decidir entre ser amado ou temido, deve escolher esta última por implicar manter a ordem.

Mas então o que é que Maquiavel afirma que os governantes podem fazer? Essencialmente, tudo, porque estão acima de toda e qualquer lei. No entanto, existem várias técnicas que podem muito bem ser adaptadas pelos nossos políticos e até empresários, basicamente por quem está em cargos de liderança, mesmo que regulamentados.

Desde logo, afirma-se que quando o governante pratica o bem deve fazê-lo de forma prolongada, enquanto se tiver de fazer mal, deve fazê-lo de uma vez só. Trata-se de um jogo com a memória coletiva. O governante pode omitir informação, distorcê-la, manter o povo na ignorância. Pode voltar com a sua palavra atrás. Criar problemas para depois se apresentar como salvador. Fazer com que as pessoas considerem que são sempre culpadas pelos seus problemas.

No entanto, é interessante notar que Maquiavel considera que o povo é o elemento mais importante, já que sem ele não havia estado. São os tumultos populares os que destinam as mudanças de estado. O povo é a unidade mais leal ao governante. Se um político tem de escolher entre ter o apoio do povo ou dos poderosos, deve escolher o primeiro, porque os segundos só olham aos seus interesses próprios. Se é preciso confiar as tarefas militares em alguém, deve ser no povo e não nos mercenários, exatamente pelo mesmo motivo. Por isso mesmo, há uma necessidade de tentar satisfazer as massas e não só oprimir. Medidas populares como a distribuição de riqueza, duplamente vantajosa por diminuir o poder dos poderosos e satisfazer as massas.

Esta noção tanto gera ódio como amor. Já vários são os exemplos destas várias estratégias na nossa vida política. É preciso termos os nossos olhos abertos para conseguirmos interpretar a realidade e não nos deixarmos necessariamente enganar ou iludir. Confiemos nas lideranças, mas saibamos manter um espírito crítico.

 


2022_01_04_Era uma vez a Milhafrolândia

No meio do Atlântico Norte, entre os meridianos 25 e 31 e os paralelos 36 e 43, existem 8 ilhas e Pico, com mais alguns calhaus. Esta terra imaginária, habitada pelos mais diversos animais, tem um nome: Milhafrolândia.

É um começo de artigo algo insólito, reconheço, mas permitam-me esta experiência de escrita, que ninguém pretende ofender, só olhar para a realidade de uma forma mais leve.

Regressemos à Milhafrolândia. Sendo uma região insular, dotada de caraterísticas e necessidades muito próprias, ficou decidido que tinham direito à autonomia e à constituição de órgãos regionais com poderes legislativos e executivos. Trata-se de algo realmente importante para os milhafrolandeses, porque lhes permite melhor gerir o seu território democraticamente. Infelizmente, por vezes, existem macacadas.

 Apresentemos alguns dos nossos amigos animais com base na descrição das eleições que eles fizeram em 2020. Os milhafres tinham a mania de que mandavam em tudo, até porque as suas penas cobriam a maioria da assembleia há 24 anos, depois de terem retirado o poder às gaivotas. Depois de tanto tempo no poleiro, criaram-se vícios e o progresso em geral parecia estar estagnado. Eram precisos novos voos, mas os milhafres não percebiam isso.

Os milhafrolandeses cansaram-se e dividiram o voto, esgravatando essas eleições nos anais da História. Os milhafres ganharam, mas a sua plumagem já não chegou para uma maioria. Por outro lado, as gaivotas conseguiram aumentar o número de espécimes na assembleia. No entanto, não havia nenhuma gaiola com maioria. Era preciso olhar para os passarinhos que por lá andavam. As gaivotas foram falar com as garças-reais e com os melros conservadores. Entendendo-se entre si, decidiram tentar convencer os canários azulados e os estorninhos e, assim, conseguiram a tão desejada maioria. Na assembleia estavam ainda os pintassilgos vermelhos e um verdilhão que até achava piada ao galinheiro que se formou.

Um governo de coligação foi formado. Houve muitas bicadas dentro de cada gaiola, mas aquilo foi-se aguentando. Os milhafres não estavam habituados ao novo habitat político, mas lá tiveram de se resignar. Os pintassilgos já estavam habituados a estar na oposição, por isso estava tudo bem, o problema deles era verem aquelas aves todas satisfeitas a abraçar os estorninhos e os seus cantos mirabolantes.

O tempo foi passando e as gaiolas da coligação aparentavam estarem muito satisfeitas juntas, até decidiram concorrer juntas a vários ninhos locais. Correu-lhes relativamente bem. E agora querem voar até à Assembleia da República em coligação, de novo. Eles querem fazer lembrar uma gaivota antiga que foi um grande exemplo para a sua gaiola, mas todos sabemos que essa gaivota nunca teria aprovado um acordo com estorninhos.

No meio disto tudo, já houve polémica na alocação dos grãos europeus e desconfianças dentro do próprio governo e com as gaiolas que o apoiam. Parece que este galinheiro não vai chegar ao fim e quase se despenhou quando foi preciso aprovar o orçamento para este ano. Vamos ver.

Isto é tão mau, tão mau que só pode ser ficção. Mas, por vezes, a realidade pode superar a ficção. Por uma questão de tentar viver um pouco mais em paz com este mundo, acho que sempre que me reportar à atualidade política, vou fazê-lo por intermédio da Milhafrolândia.

2021_12_28_Resoluções de ano novo

Chegámos à reta final de 2021.

Um ano de contextos difíceis com desafios que muitos preferíamos nem ter ouvido falar. Temos várias crises para lidar. É preciso arrumar a casa.

Se queremos uma comunidade fraterna e forte, precisamos de enrobustecer a democracia. Por um lado, valorizar os movimentos sociais e associações, por outro, assegurar a sanidade das instituições, por vida do acesso à informação e da escolha dos decisores políticos. Se estas crises nos afetam a todos, então todos temos um papel a desempenhar.

O poder político tem de compreender que é necessário haver uma convergência de interesses, uma aproximação interseccional e intergeracional das problemáticas. À partida, essa diversidade deverá ser também visível nos locais de decisão. É o povo quem mais ordena, não as elites.

Nos Açores continuamos a assistir à sobreposição de interesses pessoais e partidários, àqueles que são os interesses das açorianas e açorianos. É óbvio que os governos têm uma linha ideológica, não é isso que critico, mas sim a politiquice envolvente. Na nossa região temos, por exemplo, o cargo de diretor regional. Trata-se de um papel muito semelhante, em termos comparativos, ao do secretário de estado no Governo da República. Qual é o problema? O secretário de estado é chamado a audições nas comissões parlamentares, enquanto que o diretor regional, apesar de ser nomeado politicamente, não é alvo dessa escrutinação. Ou se assume o cargo como tendo um cariz político ou técnico, não faz sentido estar entre os dois.

Temos a pandemia para lidar, com variantes que nos empurram o horizonte de um balão de oxigénio para cada vez mais longe, levando a um grande rombo em muitas famílias, com uma enorme incerteza sobre o seu futuro. Temos uma crise social que se agonizou com o risco de pobreza causado pelo contexto pandémico, mas também pelo conflito que se assiste entre a afirmação e aceitação da diferença e a rejeição da mudança. Temos uma crise climática que traz consigo catástrofes naturais que ceifam a vida de demasiadas pessoas. Ela está a bater-nos à porta. Não nos esqueçamos que somos uns ilhéus no meio do Atlântico Norte, somos especialmente vulneráveis.

2022 é o ano de resolvermos fazer frente a estas questões. Não apoiar mudanças de cosmética, mas sim alterações estruturais. Não vivemos num tempo de manutenção, mas de grandes convulsões que precisam de respostas. Temos de permanecer unidos. Respeitar a democracia. Temos de ter em mente que a melhor resposta não é necessariamente o caminho da moderação, o que interessa é a ponderação.

Um momento muito importante está já marcado para o início do ano: as legislativas a 30 de janeiro. Que ofereçamos uma prenda à democracia e nos mobilizemos para votar. Tenhamos como resolução de ano novo participar no que podemos para termos a comunidade com que sonhamos.

Permitam-me aproveitar estas linhas para agradecer ao Diário Insular que me brindou com este espaço que ocupo desde abril deste ano. É, sem dúvida, um motivo de alegria neste ano que agora finda. Espero que em 2022 consiga trazer pertinência e uma perspetiva que reflita o comum do pensamento da minha geração. Todos os comentários e sugestões são bem-vindos. 

2021_12_21_Regresso a casa

Na sexta-feira passada regressei aos Açores, pernoitando em São Miguel, chegando a Santa Maria no sábado. Eu, como tantos outros estudantes deslocados.

Ao ver as ilhas de avião vem aquela sensação especial: um regresso ao lar, ao conforto, àquilo que sempre conhecemos. Parte de nós vem numa missão de retiro para tentar passar aos exames que se avizinham, outros já vêm de férias.

Todos temos os Açores no coração, seja pela terra, seja pela família. Os momentos felizes que guardamos. No entanto, a pergunta que se impõe é se para cá voltamos para trabalhar. Era nisso que pensava enquanto o Q400 se aproximava de Santa Maria pelo sul, proporcionando uma vista que, não sendo rara, não é recorrente. Ver a sua zona plana cheia de casas, a Vila, acompanhada por uma pista que é testemunho de outros tempos, com os montes a encerrar uma realidade de esquecimento. São vários os raciocínios que nos podem ocorrer.

É óbvio que quero voltar para cá trabalhar. Mas haverá emprego? Existir existe, mas muitas vezes trata-se de soluções precárias. Quando falamos de pessoas qualificadas, esta situação agrava-se. Já para não falar de programas de estágios para os mais jovens, só os empurra para um futuro incerto, sem garantias em termos de direitos laborais. Os jovens não querem voltar as Açores sem condições de emprego digno.

Os Açores não podem viver como exportadores das suas gentes: é urgente conseguir meios para, pelo menos, dar oportunidade aos seus, e outros, jovens de voltar. A solução, em termos de empregabilidade, passo por se apostar em ramos emergentes, como os tecnológicos. Investimentos públicos não para criarem sinecuras, mas com o intuito de fortalecer a região, promovendo o emprego digno. Que se use a autonomia para reforçar a participação pública nos setores presentes no quotidiano dos açorianos, de forma a conseguir controlá-los. 

Mas que não se julgue que o emprego é condição suficiente. É preciso que condições ao nível de saúde e educação, por exemplo, sejam asseguradas. Ninguém quer ir para um sítio se souber que é necessário andar de ilha para ilha para conseguir uma consulta, principalmente, com listas de espera enormes. Ninguém quer ir para uma ilha onde os seus filhos estarão numa escola sem grandes condições infraestruturais, porque sabe que a atividade letiva pode estar comprometida. Estes dois exemplos são básicos. Depois existe a questão de cuidados comunitários, como aos idosos, principalmente estando nós a viver numa região que também está a envelhecer. Acresce o fator cultural. A vida é mais do que o trabalho. É necessário haver condições para o lazer e o entretenimento, uma programação capaz de abarcar o ano todo e não se cingir a uma sazonalidade turística. Felizmente já há muitos esforços neste sentido, mas precisam do apoio da tutela.

Existe também a dimensão das mentalidades, da perspetiva sobre os valores da nossa comunidade. Apesar de tudo, os Açores ainda estão mergulhados no conservadorismo, que se perpetua atrás de comunidades pequenas, onde a diferença ou é ostracizada ou é escondida. Temos de dar relevância às questões da inclusão e não discriminação.

Nós queremos voltar aos Açores, nós queremos dar continuidade a esta terra, mas precisamos que nos deem condições. Se se acharem incapazes de o fazer, deixem-nos tentar. Coloquem mais jovens ao leme, ouçam-nos.


2021_12_14_Que se lixe o currículo

Sabemos que vivemos numa sociedade disfuncional quando fazemos algo porque nos vai ser vantajoso e não porque é algo que deve ser feito ou queremos fazer.

Desde cedo que se ouve falar em currículos. Em como temos de resumir as nossas capacidades numas páginas para os empregadores poderem selecionar o melhor candidato. Até aqui tudo bem, mas a verdade é que esta ideia é por vezes levada longe de mais. Eu próprio cresci a achar que os nossos passatempos, como tocar piano ou praticar algum desporto, deviam ser incluídos nessas súmulas e seria isso a diferenciar os candidatos, qualquer que fosse o emprego em conta.

Mais tarde, por dentro das discussões que se iam tendo nos órgãos escolares, percebi que esse destaque dado aos currículos era algo a manter e a estimular. Nessa altura já percebia um pouco mais do assunto. É notório o esforço feito para os alunos se envolverem em atividades extracurriculares, principalmente quando elas estimulam o desenvolvimento pessoal e social. Mas de que serve fazer com que os alunos realizem essas atividades, quando a maioria verá nelas uma forma de subir notas ou um sacrifício necessário? Não existe desenvolvimento nesses casos.

Agora que estou num meio universitário vejo com muita mais clareza um dos grandes problemas que esta perspetiva de acumular tópicos no currículo de forma a impressionar futuros empregadores: só se olha para o próprio umbigo, desvirtuando-se o que é feito.

Pensemos no associativismo estudantil, na representação dos alunos em órgãos institucionais e cargos desta natureza. Uma parte das pessoas que desempenha essas posições, fá-lo pelo ornamento do seu CV. O que acontece? Associações reagem, são inerciais, e as representações estudantis são meramente corpo presente. Ah, mas e então quem elege essas pessoas não vê isso? Bem, se há algo que uma sociedade capitalista ensina é a competição. Quando se quer algo, por vezes, faz-se o que está ao alcance para se atingir o objetivo, mesmo que isso implique perder alguns princípios. Essa é a parte assustadora da competição, estarmos dispostos a atropelar os outros para proveito próprio.

Está mais do que visto que esta conversa toda veio justamente ter à discussão da perspetiva individualista que nos querem incutir. Até porque esta é uma questão central à qual temos de dar resposta. Não me revejo num modelo onde nos temos de vender o melhor possível para nos encaixarmos num canto a tentar obter aquilo que nos é dito ser a estabilidade. Precisamos de uma comunidade onde todos temos uma posição útil para os objetivos comuns, uma comunidade onde cada um é valorizado pelas suas capacidades e recompensado devidamente pelo seu trabalho.

Num mundo com tantas oportunidades não faz sentido afirmar como positivo tentarmos chegar a todas, mas sim percebermos quais são aquelas que mais nos satisfazem e somos melhores.

Vamos falar de currículos. Vamos falar de nos conhecermos e às nossas capacidades. Vamos falar de autossuperação. Mas falemos acima de tudo de valores e princípios. Da raiz, da motivação.

Podemos fazer as coisas porque queremos? Podemos viver de acordo com as nossas expectativas e não as de uma sociedade que nos quer transformar em fantoches?


2021_12_07_A aliança democrática

Parece que o Orçamento e Plano regionais para 2022 foram aprovados. Parece que afinal a crise política foi claramente exagerada. Parece que está tudo bem. Parece, mas nem tudo o que parece é.

O malabarismo que manteve este governo de pé é irrepetível. As tensões entre os parceiros parlamentares e a coligação estão mais do que visíveis, bem como o confronto entre o deputado independente e o CH.

Uma bela operação de charme é esta anunciada Aliança democrática. A coligação PSD, CDS e PPM tenta manter as aparências de uma família feliz, com a sua casa arrumada. Uma ação de marketing que pretende fazer recordar o tempo de Sá Carneiro. Estes três partidos até podem estar em uníssono na cena regional, mas não conseguem esconder o óbvio.

Quer seja por uma moção de censura ou pelo chumbo do orçamento e plano para 2023, este governo está condenado. Este próximo ano já será em tom de campanha eleitoral. Só não vamos às urnas agora, porque os ventos não dão grandes certezas a uma vitória da coligação. Nada que uma renovação governamental não resolva.

Esta renovação é, aliás, o primeiro passo a ser tomado. Num misto de cedência à IL e de limpar o Governo de figuras polémicas e secretários sem sucesso político (que até podem ser muito competentes em termos técnicos, mas que até agora só trouxeram desgostos), temos a possibilidade dos açorianos começarem a retomar a credibilidade neste governo. Com Bastos e Silva e Mota Borges fora, o ar até parece ficar mais respirável, mas não nos esqueçamos que os problemas não se resumem às pessoas: de nada serve colocar fantoches para continuar os mesmos vícios e o mesmo desnorte.

Teremos nas legislativas nacionais o reflexo da visão dos açorianos sobre o assunto, já que os resultados do círculo dos Açores deverão ser uma sondagem em termos relativos daquilo que se pode esperar de umas regionais. Obviamente que o PS tinha de cair na tentação de dar aos açorianos uma lista do sistema. Uma coligação a querer varrer o pó para debaixo de um tapete e um PS a expor os seus maiores vícios. Ou temos um voto útil em massa ou podemos ter uma surpresa eleitoral.

Não acredito que o CH tenha muito a ganhar nos Açores. Os açorianos já sabem, melhor do que ninguém, que se trata de um partido de oportunistas. No entanto, toda a encenação de novembro pode ter lavado um pouco a cara ao espetáculo.

Já a IL parece-me partir de um ponto mais interessante. Levou a sua avante com estrondo e estilo.

É extremamente improvável que um partido que não o PS ou a Aliança democrática elejam, no entanto estas flutuações nos «partidos pequenos» serão importantes para definir a dinâmica de uma assembleia regional onde o voto de cada deputado conta mais do que alguma vez contou.

Como me apetece fazer umas previsões, vou arriscar nas seguintes afirmações: quem sentir que votar na Aliança não acrescenta nada, dará o seu voto à Iniciativa Liberal; o CH pode muito bem ficar atrás da IL, sendo que o seu resultado vai depender muito mais da dinâmica nacional, do que da candidatura açoriana em si; à esquerda opta-se por novidades, sendo que a CDU não deverá conseguir sair do fundo e o Bloco deverá descer por força do panorama nacional. Quanto ao vencedor, ainda não consegui chegar a uma conclusão, até porque ainda falta conhecer o escolhido do PSD para enfrentar esta importante prova de vida.

2021_11_30_Anormalmente falando

Não me apetece falar da política regional neste momento, quando os ânimos acalmarem volto a ela.

Vou, então, expor aqui uma discussão que já tenho tido há umas semanas com o meu grupo de amigos. Estava na cantina com um e começámos a pensar na relação que existem entre os indivíduos e as conversas que costumam ter.

Concluímos que, obviamente, os assuntos estão relacionados com os gostos pessoais, e variam muito de pessoa para pessoa, mas que existem temas mais gerais que são predominantes. Esses temas têm justamente uma ligação direta com a cultura. Por consequência, esses temas baseiam-se muitas vezes em estereótipos: os homens falam de futebol, as mulheres de estética. Vale a pena parar aqui para afirmar que o problema dos estereótipos não é a sua pura existência, mas sim o cortar de asas que por norma impõem.

Para descrever esses assuntos usámos «normais». Ao início achávamos que as pessoas eram «normais» e por consequência, as conversas focavam-se nesses tópicos. No entanto, chegou-se à conclusão de que individualmente ninguém é «normal», até porque temos todos caraterísticas distintas. O que cada um tem é um potencial normal. Ou seja, certos traços de personalidade podem mais facilmente gerar os tópicos de conversa «normais». O que existe, portanto, são grupos «normais».

Percebemos que tópicos, como futebol, facilmente entram em conversas com homens, brancos, héteros e cis. Antes de mais: não, eu gosto muito deste grupo social, não o quero extinguir. Este é um exercício de amadorismo psicológico. Nesta linha de pensamento, estas caraterísticas são catalisadoras para o «potencial normal».

Qual é o interesse disto tudo? Bem, há vários. Desde logo, uma amiga encontrou um corolário importante: por norma, quem tem um «potencial normal» elevado não pensa que ele existe. Quer isto dizer que, por consequência, na maioria, são pessoas com baixo potencial a notar esta tendência. Faz sentido, justamente por não se enquadrarem nas conversas «normais», sentem a marginalização.

Óbvio que toda esta conversa parece demasiada forçada. Ao fim e ao cabo, estamos inseridos em vários grupos, sejam de amizade, trabalho, … Onde temos conversas de diferentes ordens. Dadas as nossas especificidades acabamos sempre por nos sentir deslocados mais cedo ou mais tarde.

Aqui a questão é perceber a tendência para onde flui um grupo não especializado num tópico. Neste ponto percebemos a importância dos temas «normais»: eles definem espaços de fala. Quem não se enquadra ou se ofusca, ou fica de fora. Chegamos a uma parte importantíssima: reconhecer que existem grupos privilegiados por inerência.

Percebemos que as nossas caraterísticas biológicas definem o nosso espaço de fala, justamente porque a nossa cultura assim está assente. Ou seja, a existência de temas «normais» de conversa não é uma problemática, longe disso, a questão acaba por ser quais são esses tópicos, ou quão diversos podem ser. Será que a esmagadora maioria das pessoas conseguem sentir-se representadas?

Também existe a possibilidade de isto não fazer o mínimo sentido ou de estar extremamente confuso. Qualquer que seja o cenário, a verdade é que pus o leitor a pensar sobre a forma como a nossa sociedade está construída e ao mesmo tempo consegui distraí-lo dos nossos dramas políticos. De nada.

2021_11_23_Invejosos

Dando bom uso ao princípio da continuidade territorial, os Açores quiseram juntar-se à festa de ter uma crise política. Costa assinou sentença do seu governo, quando recusou acordos em 2019. Bolieiro nunca deveria ter aceitado os acordos que fez, cedendo a uma sede de poder.

Apesar de não podermos afirmar que se previa longa vida ao Governo Regional, a verdade é que a sua possível queda neste momento está relacionada com a crise a nível nacional.

A partir do momento que a coligação aceitou depender da IL e do CH, tornou-se um alvo fácil dos seus caprichos. No caso do CH, temos uma novela regional que deu bons meses de entretenimento (para não dizer preocupação), que demonstra o que a sensação de poder faz a quem o usa para defender interesses pessoais e partidários. O PSD legitimou a governação com a extrema-direita, depois de muitas cambalhotas.

 Com as legislativas nacionais antecipadas a chegar os partidos agitam-se da forma que podem. O CH, sedento por poder, continua a tentar criar dramas para ter atenção. Uma forma de manipulação é, claro, usar o fantoche açoriano. Chantagear um PSD nacional com a queda de um governo do PSD Açores. É óbvio que o CH Açores não quer isso. Depois de um ano tão intenso, precisa de recuperar a credibilidade que tinha. Por isso mesmo dá jeito a José Pacheco dar a entender que a autonomia existe, afastando justamente essa ideia de fantoche e, por consequência, aprovando este orçamento.

Claro que o CH não podia aprovar os documentos sem mais nem menos. Faz as suas habituais e boçais reivindicações de prejudicar ainda mais aqueles que são marginalizados pelo sistema. Aproveitam uma brecha na classe média descontente e atacam os mais desfavorecidos e indefesos.

Mas não nos esqueçamos que a IL também ainda não fechou o seu voto. O GR já demonstrou, nesta proposta, uma aproximação às reivindicações dos liberais, apesar de nãos os satisfazer por completo. A acrescentar, pelos vistos, Carlos Furtado pode chumbar o orçamento se o Governo aceitar uma proposta do CH – e se basta somente mais um voto contra isto pode ser fatal.

Permitam-me deixar aqui esta informação que desconhecia, mas que pode ser útil para vermos em que situação estamos: um empate na Assembleia Regional leva a nova votação, sendo que se o empate persistir a proposta é rejeitada.

Neste momento existem 28 votos contra e 26 a favor. Nuno Barata, José Pacheco e Carlos Furtado são os fiéis da balança. Basta um votar contra que os documentos são chumbados. Basta um se abster que há empate. A situação não está bonita.

E onde está o Presidente da República? Não nos podemos esquecer que Marcelo Rebelo de Sousa é presidente de todos os portugueses, onde se incluem os açorianos. É ele quem tem o poder de dissolver a Assembleia Regional. Não houve qualquer problema em fazer chantagem com a esquerda parlamentar sobre a aprovação do Orçamento de Estado, mas sobre os Açores o que diz é que está confiante na passagem dos documentos. Portanto, se se tratar de um governo de direita, mesmo com os acordos de apoio parlamentar rasgados, a estabilidade é algo que surge naturalmente.

Marcelo é um estratego com uma visão privilegiada. De vez em quando decide parar de arbitrar para dar uns toques na bola. Açorianos, isto não está bonito, mas, mais cedo ou mais tarde, somos nós quem dita como isto se vai resolver.

2021_11_16_Onde falhámos

Vivemos num mundo recheado de crises. Se é verdade que a emoção não falta, é-o igualmente que seria simpático termos um momento de relaxe. Infelizmente não o temos, há muito a fazer, há um fosso de desigualdades.

A pobreza é uma problemática global e que facilmente se constata nos Açores. Paradoxalmente, é possível inferir uma acumulação de riqueza extraordinária. Algo de muito errado se passa.

A realidade de haver pessoas a pedir esmolas já não é estranha nos Açores. Trata-se do cúmulo da visibilidade da pobreza. Ninguém devia sequer passar pela necessidade de o fazer e é necessário ficar bem patente que a caridade não é a solução.

É óbvio que não posso chegar junto de uma pessoa sem-abrigo e dizer que não a vou ajudar por achar que uma ação individual não combate um problema que é tão profundo. Quem tenta sobreviver dificilmente se dá ao luxo de filosofar. A verdade é que toda a noção de caridade, muito encorajada pela visão cristã, incluindo as instituições a si associadas, o que faz é atirar para o cidadão comum a obrigação de «ajudar o próximo». Por muito romântica que esta ideia seja, a verdade é que acarreta um lado dramático: a manutenção da pobreza. Ela não desaparece, vai sendo amortizada aqui ou ali, atuando à posteriori.

Aquilo que precisamos é de vontade política. É de termos recursos que o poder executivo possa utilizar para conferir dignidade humana a todos os cidadãos. Cabe ao Estado incluir todas as pessoas no seu funcionamento, sem ostracizar nem marginalizar grupos sociais. Se queremos acabar com a pobreza, o que temos de fazer é exigir uma resposta firme por parte do poder político. Toda a lógica dos impostos serve para alimentar um Estado que se quer saudável, e nenhum se pode considerar são, quando existem pessoas a viver sem condições.

Que se note que a pobreza é um problema complexo, com raízes na sociedade capitalista em que estamos inseridos. A pobreza não é nada mais, nada menos do que a falta de dinheiro. O que acontece é que este sistema permite que haja pessoas a bater no fundo e a perder a dignidade. Um sistema que explora, vive do desespero. Ninguém escolhe ser pobre, nem ninguém escolhe continuar a ser pobre.

O ser humano é, claro está, um bicho complexo. O facto de não conseguir ter o suficiente para pagar uma renda ou, até, se alimentar faz com que surjam muitos mais problemas. Perder tudo e/ou estar sempre a fazer contas leva a uma tensão e stress contantes. Problemas psicológicos podem aparecer, como a depressão.  A tomada de decisões é afetada. Existe um estudo muito famoso que relaciona, mesmo, a pobreza com a perda de inteligência (https://scholar.harvard.edu/files/sendhil/files/976.full_.pdf). Trata-se de uma conclusão importantíssima: demonstra que continuar pobre não é uma escolha e que o mais provável é não se conseguir sair da pobreza sozinho.

Infelizmente, quem passa os dias a tentar sobreviver, não vai olhar a meios para o fazer, mesmo que isso inclua violar as regras do Estado que lhe virou as costas. Eu não sou autoridade nesta matéria, mas trata-se de um assunto demasiado importante para não ser falado.

Quando pensei sobre este tema estava na via pública, a testemunhar alguns exemplos de pessoas em dificuldades. Dei por mim algo emotivo, não porque veja em mim a reencarnação da Madre Teresa de Calcutá, mas porque me apercebi que as circunstâncias da existência me podiam empurrar para essa situação. Neste sistema, a esmagadora maioria não está imune.

2021_11_09_Postas de pescada

Estou farto do Orçamento. Estou farto da crise política. Estou farto. Como não me apetece ler mais opiniões sobre o assunto, não me vou voltar a enfiar no assunto. Acabei de escrever isto e pensei: mas sabemos do que estamos a falar?

Convenhamos: muita gente ou não tem o interesse ou não tem o tempo (infelizmente algo demasiado comum na nossa sociedade) para saber como funciona, com algum detalhe, a nossa democracia. De que serve andar-se a fazer considerações sobre o Orçamento de Estado se parte das pessoas não sabe bem o que é que se enquadra nele?

Estas palavras não correspondem, provavelmente, à situação de que lê este artigo, mas penso ser importante referi-lo. Formalmente nunca ninguém nos disse o que é um Orçamento de Estado. Muitas pessoas votarão no dia 30 de janeiro sem ter esse conhecimento. No entanto, até lá têm de engolir as notícias que lhes apresentaram sobre o assunto, várias vezes acompanhadas por análises onde as culpas são empurradas. O pior mal? Uma pessoa sem informação é alguém indefeso.

As grandes máquinas de propaganda partidárias encarregar-se-ão de fazer passar a sua mensagem, mesmo que não corresponda à verdade. As postas de pescada são atiradas para ver se colam.

Estamos diante de um contexto inédito na nossa democracia. Existem muitas variáveis para analisar, se quisermos fazer um estudo totalmente independente e isento. Como a esmagadora maioria dos portugueses não é paga para comentar política, cada um ficará confinado ao tempo que teve disponível para pensar sobre o assunto. A multiplicidade de perspetivas sobre o sucedido só se vai intensificar durante o mês de janeiro, não podemos contar com grande clarificação (talvez a divulgação de certos detalhes).

E aqui volto ao mesmo: cada um de nós tem de fazer a sua análise, mas não a podemos basear no ar. Temos de saber do que falamos. De que serve o PS dizer que o Bloco tinha propostas que não se enquadravam no Orçamento se não sabemos se isso é verdade? De que serves os partidos à esquerda afirmarem que havia alternativas à dissolução da Assembleia da República se não sei se é verdade?

Claro está que não podemos na escolaridade obrigatória andar a falar de tudo e mais alguma coisa. Não acho que deva existir um acréscimo de carga horária para se abordar estes assuntos. Acho que se deve perder o medo (talvez até preconceito) de os abordar. Já antes o disse e repito: em Cidadania existe uma parte do programa para falar no assunto.

Perceber em traços gerais como funciona o nosso Estado, como são organizadas as eleições, quais as competências de cada órgão e qual o papel que cada um de nós pode ter é essencial. Saber que existe um documento legal base para a nossa sociedade: a Constituição. Acima de tudo: saber onde encontrar a informação.

Deixo aqui uns sites que me parecem interessantes:

Comissão nacional de eleições: https://www.cne.pt/

Assembleia da República: https://www.parlamento.pt/

Um esforço no sentido da literacia política: https://www.os230.pt/democracia-101/

A nossa Constituição (neste site pode encontrar toda a legislação, basta pesquisar): https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-aprovacao-constituicao/1976-34520775

Num mundo onde é impossível saber tudo, que saibamos o básico e tenhamos os instrumentos para pesquisar mais a fundo, se for necessário. Ninguém se deve contentar com as postas de pescada que os outros deitam, pensemos por nós próprios. Sejamos nós próprios nas urnas.

2021_11_02_Um óscar para Costa e Marcelo

Este último mês de outubro saciou a sede dos portugueses por drama, tendo a nossa cena política sido substituída pela 7ª temporada de House of Cards.

Marcelo queria estabilidade e Costa queria convergência à esquerda, foi assim que a novela começou. Por esta bela atuação, ambos merecem um Óscar.

O nosso Presidente da República, sob o mote da estabilidade, decidiu condicionar a Assembleia da República, através da chantagem de eleições antecipadas, caso a proposta de Orçamento de Estado fosse chumbada. Marcelo sabe que existem outras soluções, que é possível o Governo apresentar novo documento, por exemplo.

O nosso Primeiro-Ministro passa o ano inteiro colado à direita para as várias votações na Assembleia da República, mas quando chega a altura do Orçamento de Estado decide olhar para a esquerda como parceira, para depois poder afirmar que Portugal tem um governo à esquerda.

A crise política em que estamos foi, portanto, fabricada pela astúcia de Marcelo e pela arrogância de Costa.

Se o orçamento fosse aprovado, Marcelo reivindicaria a tal estabilidade que tenta ser a sua imagem de marca, se fosse reprovado convocava eleições, onde o seu partido, PSD, podia recuperar algum ânimo depois das autárquicas, tendo em contas algumas vitórias simbólicas, como a de Lisboa, que podem indicar algum desgaste da máquina política do PS (principalmente por se tratar de centros urbanos).

António Costa apresentou um Orçamento insuficiente para fazer face à crise pandémica, social, económica e climática que enfrentamos. Como já disse antes: este é o único momento em que o governo decide encerrar o diálogo com os parlamentares de direita e pedir a aprovação à esquerda. BE e PCP são, portanto, os agentes mais importantes para a aprovação do orçamento. O Bloco já havia votado contra o último orçamento, mas acabou aprovado com as abstenções do PCP, PEV, PAN e deputadas não-inscritas.

Posto o documento em cima da mesa, começas as negociações. O Bloco, num esforço para evitar uma crise, reduz as suas reivindicações a 9 pontos essenciais nas áreas da saúde e direitos laborais. Parte dessas reivindicações eram sobre a lei laboral e não matéria do orçamento, mas como o PS governa com a direita no resto do ano, esta foi a oportunidade de o Bloco fazer o PS e o governo resgatarem os direitos pré-troika. O Governo recusou todas, fazendo para algumas contrapropostas muito insuficientes. O mesmo se acabou por passar com o PCP, com a agravante de que parte das propostas que o fizeram abster para 2021 acabaram por não ter sido executadas, tendo o governo traído a sua confiança.

Estamos, portanto, diante de um cenário em que os partidos à esquerda abdicaram do seu programa eleitoral, reivindicando medidas elementares, com pouco impacto orçamental e que, ao fim e ao cabo, simplesmente colocavam os direitos laborais tal como eles já estiveram (e que foram, aliás, reivindicações do PS enquanto era oposição a Passos Coelho). Ou seja: este orçamento não foi aprovado porque o PS não o quis. Isto levanta a questão: foi António Costa ingénuo a abusar da confiança da esquerda, ou na verdade queria eleições antecipadas para tentar uma maioria absoluta?

Que se note, por fim, que em 2019 o Bloco quis ter um acordo escrito com o PS para garantir estabilidade durante os quatro anos da legislatura. O PS recusou. A Geringonça já morreu em 2019 e quem a matou foi o PS de António Costa.

2021_10_26_Dois tipos de pessoas

Todos nós somos diferentes, é certo, mas existem modos de agir semelhantes. Correndo o risco de cair num falso dilema, afirmo que temos essencialmente dois tipos de pessoas: quem vê o mundo como um conjunto de colisões e quem o vê como uma teia.

Na verdade, ambas me parecem legítimas, no entanto, uma afigura-se como a escolha mais sustentável para a nossa comunidade.

Quando falo em conjunto de colisões, é como se cada indivíduo vivesse em bolhas separadas que, por forças externas, acabam a colidir umas com as outras e a provocar relações. Isto acarreta uma grande consequência: cada pessoa é completamente independente de quem não conhece, «ninguém deve nada a ninguém».

Por outro lado, podemos ter a perspetiva de uma comunidade enquanto teia. Mesmo que não nos conheçamos, de alguma forma estamos relacionados com alguém, nem que seja pelo simples facto de fazer parte da mesma comunidade. Em termos científicos esta ideia está bem patente na genética: temos uma relação enquanto espécie. Ainda na ciência podemos falar no facto de sermos constituídos por unidades fundamentais da matéria que se encontram em todo o lado. Assim sendo o que nos distingue de uma rocha? De forma superficial, a resposta parece ser o mero acaso.

É justamente porque somos um acaso, que devemos ter em mente o papel da empatia. Não só com outras pessoas, mas também com que nos rodeia.

Uma visão individualista faz-nos esquecer que o outro é alguém como nós: dotado de pensamento e emoções. Aquelas regras do «não faças aos outros o que não queres que façam a ti» é o resultado de termos consciência disso. Ações tão básicas como agradecer um gesto de boa educação acaba por ser colocado em segundo grau. É claro que podemos delinear aqui um espectro no individualismo, mais uma vez, não quero incorrer no falso dilema.

Mas a verdade é que me parece que, atualmente, aceitar um panfleto, por exemplo, é quase uma ação de cariz político. Quem de entre os leitores já andou a distribuir flyers, ou recolher assinaturas? Dos que o fizeram, quais os que ignoram quando alguém na rua os abordam nesse contexto? É a empatia por experiência própria.

Estamos no meio de um tsunami: entre a crise climática, social, económica e pandémica. E estas são as que me lembro por saber que me afetam pessoalmente. Nós não as vamos ultrapassar sem cooperação. Não temos de concordar com todos, nem temos de ser todos iguais: temos de reconhecer que estamos no mesmo barco. Temos de reconhecer que existe um futuro possível onde cada ser humano pode viver com dignidade e em harmonia entre si e com o meio ambiente.

A parte boa de vivermos em democracia é não termos de esperar que os governantes tomem a ação. Somos nós quem os escolhe. Somos nós quem dita qual o rumo a tomar. E mesmo quando quem prometeu fazer algo não o faz, temos meios de pressão. Nunca tivemos um grau de comunicação interpessoal tão elevado. Com organização chegamos lá. O mote do «pensar global, agir local» pode ser uma bola de neve.

Mas esse movimento não chega longe se não virmos a nossa comunidade como uma teia. Se seguirmos em frente sem olhar para quem nos rodeia, só nos estamos a sabotar e às gerações futuras.

2021_10_19_Meus caros, nós existimos

Protagonizar duas campanhas eleitorais não é muito, mas já dá para perceber a dinâmica dos comentários que se geram. Durante todo o ano temos espaços de comentário, aliás, mas é na altura das eleições que se tornam mais evidentes, principalmente a nível local. E mais evidente se torna a invisibilidade que tentam conferir às campanhas que não são dos dois partidos do centrão. Mais uma vez, uma realidade muito visível a nível local, fora de grandes centros urbanos.

Posso dar o meu exemplo concreto: fui candidato do Bloco em 2020 e 2021. Em Santa Maria o comentário acontece por via da nossa rádio, o ASAS, onde existem dois indivíduos com capital político, um no PS e outro no PSD. Conseguiram fazer a proeza de nas regionais só mencionarem a candidatura do BE no comentário do rescaldo eleitoral. Mesmo assim preferiram rotulá-la sem a explorar – apesar de ter sido um resultado histórico, não só para o partido, mas também para todas as candidaturas que não as do arco da governação.

Nas autárquicas aconteceu quase o mesmo, apesar de haver alguma melhoria, com a exceção de que, pelo menos até agora, não foi feito nenhum episódio de rescaldo. Ou seja, a única referência às candidaturas do BE e da CDU foi feito como forma de criticar os moldes do debate da RTP Açores, pelo que nem sequer foram exploradas. Antes disso abordou-se ao leve o programa destes partidos, mas com um propósito claro de crítica. Entenderia facilmente tratar-se de uma questão de clubismo, mas as análises feitas ao PS e PSD, por ambos os comentadores, são feitas de forma equilibrada. No entanto, o nosso jornal local decidiu permitir um artigo de opinião que aborda todas as candidaturas com a tal postura equilibrada, o que é realmente de realçar como bom exemplo.

Isto leva-me a crer da existência de 3 pontos sobre quem faz o comentário político local: o interesse em manter o centrão; a formatação da opinião pública e a sobrevalorização da experiência.

O que realmente importa é preservar os interesses instalados. Pode haver mudanças nas clientelas, dependendo de quem ganha, mas mudar o sistema é impensável.

Existe uma clara diferença entre aquilo que se diz na rua e o que os comentadores decidem levar para o seu comentário. Têm todo o direito de dizerem o que entenderem sobre o que entenderem, mas se baseiam os seus argumentos muitas vezes na opinião pública, convém ser um pouco mais rigorosos. É impensável, por exemplo, que num sítio onde existe um candidato, ainda por cima com 18 anos, que tem uma reação em termos regionais e os comentadores locais simplesmente ignoraram.

É óbvio que é impossível mudar mentalidades a ouvir alguém embrenhado no sistema. A comunicação social deve ser capaz de ver além dos dinossauros políticos, de forma a conseguir ter um espaço de comentário mais plural e real.

Presumo que as caraterísticas que aqui vejo possam ser transversais ao resto das realidades e por isso o relato em termos gerais. Este é meramente um alerta de que, a nível local, temos de ter em atenção a existência de uma tentativa de formatação da opinião pública e que aos órgãos de comunicação social cabe a responsabilidade de a moderarem e adequarem ao princípio da pluralidade.

2021_10_12_Até os mudos têm voz

Não, caro leitor, não enlouqueci. Até os mudos têm voz, até os mudos têm uma presença democrática. As eleições podem ter acontecido há duas semanas, mas a democracia não parou. Não é só em atos eleitorais que todos nos fazemos ouvir, é em todos os dias do ano. É por isso que nos podemos orgulhar de afirmar que ainda vivemos num estado democrático.

Nada satisfaz mais os interesses instalados do que a ilusão de que nós, cidadãos comuns, não temos qualquer poder além do voto (e nesse caso, nada os satisfaz mais do que a abstenção). História e Filosofia são importantes, uma no básico ou no secundário, para demonstrar as ferramentas que temos, se bem que de forma indireta.  Em Cidadania existe o domínio das «Instituições e Participação Democrática», mas será que é devidamente lecionado? Por agora temos voz, mas se ninguém nos disser que temos os instrumentos, num futuro o que hoje chamamos de democracia pode desabar.

Como podemos acusar os jovens de desinteresse se nem lhes é sequer ensinado como votar? Que legitimidade há? Os poderes instalados agradecem.

Quais são, então, essas ferramentas? Existem algumas óbvias (como o voto ou a própria participação em órgãos de soberania), mas mesmo no nosso quotidiano temos acesso a toda uma gama de instrumentos que acabamos por não usar na sua plenitude. A Internet é, provavelmente, o maior exemplo. Através da presença online é possível contactar com entidades, instituições, órgão, etc competentes nas mais variadas áreas para propor sugestões, deixar críticas e questionar. É possível criar e subscrever petições. É possível aceder a um conjunto de informação enciclopédica, onde se inclui a organização das entidades e as suas regras. Com persistência na pesquisa e filtros de rigor, é possível encontrar resposta para quase qualquer questão.

O associativismo e o voluntariado são outros instrumentos poderosos. Só por si são-no porque sendo pilares da comunidade precisam de atenção (e a participação tornam-nos mais visíveis). Por outro lado, qualquer que seja a área ou causa, tem sempre uma competência política associada. São formas, portante, de pressionar e alertar os agentes políticos para esses temas. Os próprios sindicatos são, claro, outro exemplo, com uma índole claramente reivindicativa.

Atitudes como manifestações e greves são outra forma evidente de ter uma ação democrática. São o expoente da ideia de que sem visibilidade os problemas não são resolvidos.

É necessário ter em atenção que os órgãos políticos permitem público e, alguns até, participação. As assembleias municipais e de freguesia, por exemplo, têm um período de auscultação ao público previsto no período antes da ordem do dia. Algumas reuniões da Câmara Municipal podem ter esse espaço. Mais uma vez: o contacte de entidades executivas pode ser importante: seja a Junta, a Câmara, uma Direção, uma Secretaria, um Ministério,…

Tudo o que fazemos é política, temos de parar de achar que se trata de algo alheio, algo sujo. Se recusarmos o nosso poder é que se torna sujo, porque fica nas mãos de uns poucos, que guerreiam por interesses próprios.

Por um lado temos de assumir a nossa postura de cidadãos e por outro temos de deixar cair os preconceitos sobre os candidatos e titulares de cargos públicos: nós podemos ser um deles.

2021_10_05_Os votos fora da urna

Este é o momento em que começo a fazer as malas para voltar ao Porto: agarrar de novo a vida de estudante universitário. Devo fazer parte das últimas fornadas a regressar ao ensino superior, já que para muitos estudantes o ano letivo já começou em setembro. Volta a distância e alguns obstáculos, mas em setembro tivemos a degustação de um grande entrave: a impossibilidade de votar.

A casmurrice de continuar com um voto antecipado antiquado e burocrático, mesmo depois do sucesso das regionais e presidenciais, aliado ao calendário destas eleições impossibilitaram muitos estudantes deslocados de votar.

Antes de mais, contexto: para um estudante deslocado votar (se não estivesse no concelho de recenseamento no dia 26) precisava de fazer um requerimento até dia 6 de setembro e depois votava entre 13 e 16 no concelho onde estuda. Existem dois problemas aqui: no dia 6 as universidades, por norma, nem inscrições abriram, por isso não é possível ter uma certidão para comprovar a frequência. Algumas Câmaras Municipais estavam a recursar os certificados do ano anterior e, por isso, tanto eu como um amigo da Praia da Vitória andámos a chatear a CNE com a situação. Algum tempo depois surgiu a solução: aumentar a burocracia para além do certificado do ano passado haver uma declaração de honra.

O outro problema é que muitos estudantes dia 26 não estão no seu concelho, mas entre 13 e 16 estão, ou seja, não podem votar. Este é um problema que no continente, dependendo da localidade, pode ser atenuado pela oferta de transportes terrestres, mas para quem vive nas ilhas torna-se difícil estar a suportar custos de uma centena de euros para ir votar.

Depois existe a questão de quem entrou pela primeira vez no ensino superior. Com a incerteza relativa ao local onde ficarão, e que só foi publicado o fim de semana das eleições, torna-se obviamente impossível até dia 6 de setembro comunicar o concelho de estudo e, muito menos, lá estar entre 13 e 16.

Apesar de todas estas limitações, tivemos a ideia de em Santa Maria propor uma facilitação no processo de requerimento: a possibilidade de o fazer através de um formulário online. Não elimina a burocracia, mas tendo em conta a margem de manobra legal, evitaria a pessoa ter de escrever um email ou carta, só tendo de colocar os dados e anexar os documentos necessários. Antes de fazer a proposta publicamente informei-me junto das entidades competentes. Falei com uma jurista do SGMAI que prontamente me disse tal ser possível. Infelizmente logo de seguida me liga a informar que, afinal, o superior hierárquico não aprova. Apesar da legislação ter abertura para isso, a própria tutela insiste em complicar a vida a quem quer votar.

Toda esta situação poderia eventualmente ser atenuada com a adoção do método de voto em mobilidade antecipado, como nas regionais e presidenciais, sendo que haveria a permissão de uma segunda impressão dos boletins para suprimir as necessidades dessas mesas de voto. Aparentemente, a logística tão complicada que Cabrita alegou, poderia ser contornada se houvesse vontade.

Há jovens a querer votar e a serem impedidos. Há jovens a chatear a CNE e SGMAI com questões e propostas. Havia a possibilidade de se reduzir a abstenção, tal como aconteceu nas regionais de forma transversal. Faltou vontade e não foi a dos jovens, como se quer fazer crer.

2021_09_28_A grande deceção

Escrevo estas linhas no avançar da noite que sucedeu ao longo dia difícil de 26. Em Vila do Porto tivemos o nosso segundo melhor resultado, mas perdemos a nossa representação municipal por uma margem de 26 votos.

É duro sermos os protagonistas de uma candidatura que viu as suas expectativas defraudadas, não só por razões pessoais, mas também porque foram meses de um esforço coletivo. Uma candidatura faz-se com uma equipa dedicada e com muita motivação. Uma derrota é a desmobilização desse movimento.

Fizemos o melhor que podíamos de acordo com o contexto, demos o melhor de nós. Estamos de consciência tranquila. Não só pela campanha como pelos 4 anos em que o Paulo Sanona representou o Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal de Vila do Porto.

O que custa nesta perda é justamente sentir que os marienses não valorizaram o esforço titânico de um deputado próximo das pessoas, a fazer as questões pertinentes, a levantar os temas importantes, a desdobrar-se em comissões e, além de tudo isso, a ser uma oposição construtiva. Estes 4 anos falam por si e demonstram o quão injusta uma eleição pode ser.

Os marienses, tal como muitos açorianos, foram norteados pelo voto útil. Preferiram o marasmo à mudança. Decidiram desvalorizar uma alternativa que crescia e inquietava os instalados, para premiarem aqueles que até podem deixar o município melhor, mas não têm a coragem e ousadia para o desenvolver verdadeiramente.

São mais quatro nos de politiquices, de algumas marionetas. A política mariense que nas regionais de 2020 era promissora em inquietação provou-se sol de pouca dura. Havia a oportunidade de dar poder à mudança e descartou-se essa opção.

Falando na juventude. É também nossa culpa, dos jovens, esta estagnação. Deixámos as gerações que nos meteram neste buraco escolher sozinhas um futuro que é nosso. Não posso deixar de afirmar que também havia muitos jovens que queriam votar, mas que as restrições do voto antecipado impediram de o fazer.

Houve um claro preconceito relacionado com a minha idade enquanto candidato, não o podemos negar. Pode ter sido um fator, em menor escala, desmobilizar. Criticamos os jovens por não se envolverem, mas quando avançam dão-lhes umas pancadas nas costas e pedem-lhes para esperar uns anos.

A saída do Bloco dos órgãos autárquicos de Santa Maria é um duro golpe para mim, para o Sanona, para quem esteve do nosso lado, mas acima de tudo, para a política mariense.

Mas se o destino do Bloco mariense parece fatídico, que se desengane quem lê este desabafo. Nós sempre soubemos que escolhemos o caminho difícil, conhecemos os riscos. Este é momento de parar e pensar. Não nos declaramos mortos. Muito pelo contrário. Nunca tivemos uma campanha tão viva e apoiada.

Pessoalmente, posso estar a questionar-me se afinal Santa Maria era a ilha que pensava ser, se os marienses realmente reconhecem o meu valor e trabalho, mas uma coisa é certa: este movimento ainda tem muito para dar. Porque o amor à ilha é maior do que um fracasso. Porque a falta de ação desta geração não pode hipotecar o futuro dos nossos filhos e netos. De nós, jovens, filhos e netos, que ainda neste século temos de lidar com crises profundas e degenerativas.

Marienses, nós não merecíamos isto.

2021_09_21_A arte de bem deseducar

O artigo que se segue é uma adaptação de um de mesmo nome por mim publicado em janeiro de 2019 [https://tinyurl.com/8ks4kppr].


Não deixa de ser paradoxal e enigmático o facto de olharmos para o pensamento próprio como o salvador da Humanidade, no entanto, na altura própria para o desenvolvermos, é obstaculizado. Poderão, e com toda a razão, argumentar que na nossa escola estão a ser dados os conhecimentos e mecanismos para tal construção que é autónoma. Não duvido. O mal está em tudo o que é dito, mas não praticado. «Faz o que eu digo e não faças o que eu faço» é expressão que não pode assentar em nenhuma instituição de ensino. Os valores fundamentais para uma sociedade melhor são constantemente cilindrados.


Onde está a liberdade, solidariedade e fraternidade de um sistema tão ortodoxo? Os que já se esqueceram de como era ser jovem vão discordar. Já passaram, às tantas, já nem querem saber. E nem querem saber os próprios pais, não porque não se preocupam com os filhos e o seu futuro, mas porque também foram vítimas desta deturpação de valores. Como pode o sistema ser ortodoxo se existem tantos caminhos, modelos, programas, projetos diferentes nas nossas escolas? Muito simples: baseiam-se todos no mesmo – burocracia. A burocracia é um dos piores males que nos afetam: é ela quem monta a avaliação, é ela quem desvia a atenção do professor do aluno para as atas, é ela quem faz esbarrar pensadores livres numa parede com um buraco minúsculo.


Desvendemos o pior lado da burocracia: a avaliação. Um processo esgotante, entediante, injusto e desnecessário. Tanto papel e recurso intelectual é movido por uma folha que testa a memória de um indivíduo. Para quê?

 

Numa sociedade onde a informação está cada vez mais disponível (e vulnerável) não será mais adequado uma preocupação em orientar os alunos para a busca e tratamento da informação pretendida através de um processo consciente e racional na ambição pelo rigor? O conhecimento já existe, é impraticável um indivíduo retê-lo na sua totalidade, logo a competência essencial é selecioná-lo.

 

A memorização de informação é importante, mas não pode ser tudo.


Devemos memorizar sorridentes e contentes com a curiosidade de uma criança a informação que nos é ditada, porque no fim temos de preencher um papel com ela. Porque no fim temos de ter a melhor nota. Porque no fim temos de entrar para a melhor universidade. Porque no fim temos de ter o melhor emprego. Porque no fim temos de morrer felizes com o esgotamento que sempre acatámos.

 

Somos jovens, a idade da honestidade, sinceridade, do dinamismo intelectual e de um desejo radical de conseguir sempre fazer melhor. Não é a restringir os nossos interesses e tempo que nos vão fazer estarmos felizes a aprender. Esta realidade assusta-me. Os jovens não estão felizes a aprender. Não estamos. Todos os progressos foram feitos pela aprendizagem, aplicação e reciclagem de ideias. Ao retirarmos a vontade de aprender de seres humanos o resultado só pode ser o suicídio societário. O marasmo. A decadência.

 

Então, o que é aprender? É guardarmos em nós parte do espírito inocente da criança: a curiosidade. A curiosidade é caraterística nata de qualquer indivíduo. A escola tem é de a estimular. Quando é imposto um número sem fim de conteúdos – que são apresentados com fim único a avaliação e não o desenvolvimento pessoal – o processo deixa de ser pessoal e perde-se.

2021_09_14_O património humano

E as pessoas? Normalmente, quando se fala em preservar o património, só nos ocorre o imóvel. Faz sentido, afinal, de forma óbvia, é aquele que perdura ao longo do tempo. No entanto, como os leitores já perceberam, penso que existe toda uma riqueza por explorar: as pessoas.

O património imóvel existe porque alguém o construiu. Desde quem trabalhou as rochas nas pedreiras, a quem mandou executar a obra, houve pessoas envolvidas. Importa percebê-las, como viviam, quais os receios, qual o entretenimento, quais os ritos,… Claramente que as pessoas são um produto da cultura, mas também a produzem e, portanto, cada geração é única. Temos de saber usar esta informação.

Podemos não ser iguais a quem nos antecedeu, mas podemos aprender com eles. Perceber onde podem ter errado e quais os seus pontos positivos. Até aqui o que afirmo é algo que me parece bastante consensual: trata-se do propósito prático da História.

Por esta razão penso ser tão importante esforçarmo-nos por investigar sobre as pessoas, no geral e individualmente, quando necessário. Percebermos como pensavam. Biografarmos personalidades marcantes. Temos esta vantagem enorme de poder escrever. Somos capazes de produzir conhecimento que pode durar milhares de anos. Usemos esse poder da escrita.

Por isso mesmo acho que temos de apoiar e colaborar com quem se dedica, muitas vezes por sua exclusiva iniciativa, sem retorno, em descobrir e relatar histórias que fazem parte do nosso ADN enquanto conterrâneos. Construir locais, digitais, de preferência, que sirvam de arquivos para esse trabalho de investigação. Fóruns eficientes para se discutir conhecimento. Alargar a análises sobre contextos ou outros objetos de estudo como o tal património imóvel. Ao fim e ao cabo, uma Wikipedia, mas a nossa Wikipedia, com recursos para assegurar a qualidade do que é publicado.

Quantos não são, até, os estudos académicos, maioritariamente teses, que ficam na gaveta e que poderiam ser extremamente importantes para conhecermos a nossa ilha? Há uns meses aprendi a palavra nissologia: enquanto insulares temos de nos estudar a nós próprios, para não ficarmos dependentes somente daquilo que o centralismo dita.

Que fique aqui a nota de que o olhar para a História não deve servir para passar paninhos quentes, nem para estimular egos. Ao se olhar para o passado temos de perceber que aquelas pessoas também tinham falhas. Que houve erros.

Existe algo tão interessante, mas que não me havia passado na cabeça até recentemente: nós temos a possibilidade de ter testemunhos hoje que remontam há mais de 100 anos. A minha avó, por exemplo, com 82 anos, tem memória de pessoas que nasceram no século XIX. Se batermos nas portas certas, podemos ter fontes de informação de valor inestimável. Qualquer cidadão pode ter na sua memória informação importante. Não é preciso ser uma pessoa conceituada, com estudos ou popular. E é justamente aí que está a beleza disto: todos fazemos parte deste mundo, todos temos a nossa importância.

Admito que este artigo saiu algo confuso, trata-se de um tema que tenho de explorar melhor. No meio disto tudo o que importa? Valorizar as pessoas. As que já viveram e as que vivem.

2021_09_07_Entusiasmo, alguém

Em 1995, Mário Viegas afirmou: faltam vozes apaixonadas na política. Não podia estar mais de acordo. Sem motivação não vamos a lado nenhum.

Mas não pode ser uma motivação qualquer: não podemos aqui incluir interesses pessoais ou partidários. A paixão é pela coisa pública, pela defesa das pessoas, pelo progresso da comunidade, pelo arregaçar das mangas e, obviamente, pelo meio de trabalho. A milhas conseguimos compreender a postura de quem nos quer representar.

Permitam-me fazer uma nota pessoal: desde que cheguei à conclusão que podia ser um agente político ativo, quer pela personalidade, pelo partido e pelo gosto, sempre me vi num papel legislativo. Não me imaginava, portanto, numa Câmara. Algo mudou, claramente. Ao aprofundar o tema e perceber o alcance do poder local, vislumbrei toda uma gama de possibilidade que penso ter condições para colocar em prática. Não me foi, portanto, difícil aceitar o convite do Bloco. Esta reflexão leva-me a perceber que esta motivação, a paixão, é dinâmica e, como tal, pode mudar – sendo, provavelmente, também uma variável.

Como estamos, então, em termos de paixão pela política nos Açores? Podemos restringir essa questão para o poder local e olhar para os debates transmitidos na RTP Açores. Nesses painéis conseguimos ter toda uma gama de motivação.

Temos aqueles que verdadeiramente ambicionam o cargo a que se candidatam, fazem a pesquisa, falam apaixonadamente e quase conseguimos ver o que estão a dizer.

Existem os que ou não evidenciam o entusiasmo, ou não se sentem totalmente confortáveis com o papel a desempenhar, mas que possuem uma competência inquestionável.

Depois há quem tenha sido a última opção ou a única e que com mais ou menos competência, acabam por estar a marcar presença. Pode realmente haver uma vontade, no entanto dificilmente chega a quem vê e ouve.

Ainda existem, claro, aqueles que estão a fazer um frete. São pessoas motivadas só por interesses partidários, que claramente foram empurradas ou para cobrir um buraco ou para tentar resgatar uma Câmara. Não duvido da competência de algumas dessas pessoas, mas um individuo sem motivação própria para ocupar um cargo, será que fará o melhor trabalho?

Precisamos de paixão genuína na política, caso contrário entramos na tecnocracia e na insípida administração. Somos pessoas, humanos, as nossas ações políticas não podem ser tomadas só com a razão, quando temos um coração. É necessário um equilíbrio. Isto leva-nos justamente à palavra essencial: empatia.

Só quem tem paixão, emana entusiasmo, é capaz de ter empatia. Estar disposto a ouvir o outro. Costuma-se dizer que quem corre por gosto não cansa. Ora aí está. Se estivermos totalmente motivados para algo, então conseguiremos estar abertos para darmos o melhor de nós, com humildade e persistência.

Agora, por vezes precisamos que a paixão se sobreponha ligeiramente à razão: precisamos de tomar riscos. Por vezes, neles residem possíveis grandes conquistas. É óbvio que quando falamos em riscos, também falamos de possíveis fracassos. Um fracasso na política pode significar uma derrota eleitoral. Não admira que o centrão odeie arriscar.

Nestas autárquicas, em vários concelhos açorianos, sinto que veremos a paixão valorizada. Mesmo que seja uma minoria, estou certo que um dia chegaremos ao cenário em que no panorama político tenhamos uma esmagadora onda de entusiasmo.

2021_08_31_A segunda volta

Várias vezes se disse que estas autárquicas estão a ser consideradas uma segunda volta das regionais do ano passado. A realidade é justamente essa.

A direita açoriana, depois das regionais, qual manta de retalhos, desesperada, coseu-se à força para formar governo, legitimando, até, a extrema-direita. É exatamente por saberem que essa solução é forçada que tentam justificá-la a todo o custo. É por isso mesmo que os partidos da coligação se uniram para enfrentar estas autárquicas.

Em 2021 temos 8 coligações PPD/PSD.CDS-PP.PPM a concorrer às Câmara Municipais açorianas. Sendo que onde o PPD/PSD concorre isolado, nem CDS-PP, nem PPM apresentam candidatos. Existem, até, apoios informais, incluindo indicação de representantes do PPM e CDS-PP nas listas do PPD/PSD, onde estes não concorrem em coligação. Em 2017 houve 1 coligação deste tipo e não continha o PPM. Trata-se de uma grande mudança.

Que não se julgue que esta mudança vem porque agora estes partidos comunicam entre si. A minha estranheza é justamente porque estas coligações são extremamente frequentes de norte a sul do país, só os Açores é que pareciam destoar. Até nas legislativas de 2015, em todos os distritos continentais foi acolhida a PàF, nos Açores não. O PPD/PSD concorreu isolado, sendo um dos adversários, até, uma coligação: CDS-PP.PPM.

Portanto, não nos podemos iludir: o fenómeno de coligações formais e informais que estamos a ver agora não é inocente. É uma estratégia para validar a constituição do atual executivo.

Que se note que nada tenho contra o facto de sermos governados pela coligação no poder: o meu problema está no processo que levou a essa solução e à inclusão do CHEGA, partido abertamente promotor de ódio, nos acordos.

Quer queiramos, quer não, estas autárquicas vão ser analisadas como sendo a segunda volta das regionais 2020. Se faz sentido? Nem um pouco. Trata-se de realidades completamente diferentes. Os objetos destas duas eleições têm competências distintas, apesar de haver alguma sobreposição. A própria forma do voto é diferente: agora somos confrontados com três boletins de voto (Câmara Municipal, Assembleia Municipal e Assembleias de Freguesia) ao invés de um das regionais (Assembleia Legislativa Regional).

Não obstante, estou curioso para ver os resultados desta manta de retalhos: será que vai funcionar? As pessoas já provaram que fazem uma clara distinção entre os vários órgãos. O fator candidato conta muito por via da proximidade. Será que a direita unida vale mais do que a direita dividida? Será que as pessoas irão penalizar ou beneficiar em função da jogada da coligação, com claros interesses partidários?

No dia 26 de setembro saberemos se o plano funcionou. Se os dramas locais do vai ou não haver coligação compensaram. Em Santa Maria várias pessoas de valor do PPD/PSD demitiram-se dos órgãos que ocupavam e recusaram-se a recandidatar. Foi um duro golpe para quem via a necessidade de rejuvenescer e revitalizar o partido. Escorreram as publicações do PPM a afirmar a sua independência e, no final de contas, acabam a integrar informalmente as listas. Avanços e recuos foram dados com perdas pelo caminho.

Que 26 de setembro nos esclareça sobre como os açorianos e as açorianas veem o oportunismo: votando em quem verdadeiramente acreditam, sem cair na necessidade de legitimar algo que nem está em discussão.

 


2021_08_24_Aprender a viver

Vivemos numa sociedade apressada. Mesmo em Santa Maria, um quase-paraíso, se nota uma ansiedade. Temos de, enquanto comunidade, perceber se é mesmo este o caminho que queremos.

Vivemos para trabalhar. Todos os nossos horários giram em volta disso. Não me interpretem mal, se queremos viver em comunidade existe a necessidade de todos contribuirmos como podemos e, por isso mesmo, existe o trabalho. No entanto, nós não fomos capazes de gerir o trabalho da melhor forma, a impor uma regulação que permita às pessoas respirar.

O facto de ocuparmos a nossa cabeça prioritariamente com o trabalho leva a que acabemos por não saber viver, quer isto dizer, gerir o tempo dito livre que temos. É óbvio que não acontece com toda a gente, mas esta má gestão, por causa de uma necessidade imediata de autossatisfação leva aos vícios, sendo o alcoolismo, provavelmente, o seu expoente maior no nosso país, região e ilha. Não só estamos a falar de autodestruição, como também da potenciação de outros flagelos sociais como a violência doméstica.

Com o progresso tecnológico isto é ainda mais gritante, porque as fronteiras do nosso trabalho parece que se esvaneceram. Levamos para casa as preocupações e até algumas tarefas, mesmo já tendo trabalhado as horas diárias estipuladas. Existe a possibilidade de uma comunicação permanente. É necessário o direito a desligar. A ter um descanso que o seja efetivamente.

Não é de estranhar que a saúde mental seja um tema tão importante na atualidade: esta ansiedade faz-nos mal.

Por isso mesmo precisamos de trazer para cima da mesa a discussão de 4 dias de trabalho, da redução de horas de trabalho diárias, implementar o direito ao descanso, etc. Só assim conseguimos regular e proteger as pessoas.

A Utopia, de Thomas Moore, apresenta-nos uma ilha onde os cidadãos trabalham 3 horas de manhã e 3 horas à tarde, sendo o resto do tempo dedicado ao que bem entenderem. A cultura, o entretenimento, o desporto, são alguns exemplos de áreas às quais as pessoas escolhiam dedicar-se. Cuidarem de si, serem felizes. Esta é, aliás, uma estratégia aplicada por várias empresas, justamente por saberem que um trabalhador contente é um trabalhador produtivo.

Em Portugal subsiste o a ideia de que são necessários dias longos para trabalhar e quem disser o contrário é porque é malandro. Não faz sentido. Este é um sintoma deste sistema capitalista. Somos meras peças usadas para uma elite obter lucro, a ela não interessa o nosso estado psicológico e até físico.

Agora, até pelo que disse antes, é necessário encaminharmos as pessoas para um preenchimento saudável dos seus tempos livres. O voluntariado e as associações são uma peça fundamental aqui. Atualmente, é com sacrifício e persistência que muitas continuam em funcionamento. É preciso conseguir esticar muito o tempo. E há muita gente que nem o pode fazer.

Se queremos uma comunidade que funcione com base na fraternidade, que promova o convívio, onde a cultura é valorizada, a prática desportiva estimulada e na qual se vivi e não se sobrevive, então é necessário repensar o trabalho. Deixar de o ver como sendo a criação de riqueza para ser um contributo para a comunidade. É preciso aprender a viver.

2021_08_17_O navio importa!

Na semana passada fomos brindados com uma verdadeira surpresa por parte do nosso Governo Regional: o fim da ligação marítima sazonal de transporte de passageiros e veículos entre os grupos do arquipélago, bem como entre as ilhas do oriental.

Como mariense, naturalmente, fiquei indignado com esta resolução. Não se trata de casmurrice, bairrismo ou resistência à mudança: trata-se de defender um serviço fundamental. Nesta altura a discussão não devia ser sobre haver navio, mas sim sobre ser um serviço permanente.

Ao falarmos neste transporte sazonal, não nos referimos só a passageiros, mas também ao transporte de viaturas, que permitem, até, o escoamento de produtos.

O aumento das ligações aéreas é uma vantagem inegável para o acesso às ilhas, no entanto não substitui o transporte marítimo. Existe toda uma logística que, através do navio, se torna muito mais acessível financeiramente e praticamente. Não sou eu que o digo. São as nossas associações, são os nossos produtores. Se queremos defender a nossa cultura, o nosso desporto, o nosso entretenimento, as nossas culturas, os nossos produtos, então temos de nos colocar do lado de quem o faz.

É também por isso mesmo que esta resolução é um erro: não contou com a audição, pelo menos divulgada, aos principais visados. As entidades foram apanhadas de surpresa.

Que ninguém diga que pelo facto de em 2020 e 2021 não ter havido navio, nos próximos anos também pode não haver. Atravessamos uma pandemia. Prevê-se que no próximo verão as restrições já estejam levantadas. Obviamente que teve de haver uma adaptação, entrando aqui também o reforço da SATA, mas esta é uma situação excecional.

Podem perguntar: e esse transporte funcionava bem, servia da melhor forma os interesses dos marienses? Não, havia muita margem para melhorar, no entanto não é por algo poder estar mal, que se vai acabar. Temos é de melhorar.

Feito o choque, veio o Governo Regional afirmar que afinal até pode haver alternativa: «quer recorrendo a operadores privados, quer através da utilização dos recursos próprios da Região». Ou seja, é provável que haja investimento privado ao barulho.

Nós vivemos num arquipélago, é mais do que evidente que o transporte marítimo é um setor estratégico e deve ser público. É preciso parar de pensar que tudo tem de dar lucro. Setores estratégicos são para servir as pessoas!

 

Deste episódio espera-se 3 pontos:

 

1) Haja um serviço público de transporte marítimo (e estudar a hipótese de ser anual).

2)     Que o Governo regional perceba que deve ouvir os parceiros sociais e quem é afetado pelas suas propostas, conferindo transparência, solidez e democraticidade às suas resoluções.

3) Que todo este assunto não seja na verdade um bluff, mero show off, para, numa complexa artimanha política, se tentar angariar mais votos.

 

Pode o leitor estranhar que eu ande para aqui a dizer que o próprio Governo Regional queria gerar esta polémica. Pensemos: as ilhas diretamente afetadas pela inexistência das rotas que havia em anos anteriores são as Flores, o Faial, a Terceira, São Miguel e Santa Maria. Três destas ilhas tem Câmara exclusivamente socialistas e numa delas esse número é metade (São Miguel). Não me admirava que esta fosse uma jogada para, nas vésperas das eleições autárquicas, vir o Governo armado em salvador – de uma crise que ele próprio gerou.

No final disto tudo, o que realmente importa é que haja um serviço público de transportes marítimos, que possa responder às reais necessidades das nossas.

2021_08_10_Viva às associações

Mais uma vez, a realidade que melhor conheço é a de Santa Maria, mas penso que se trata de algo transversal: as associações são entidades de extrema importância para a comunidade.

Existem várias formas de atuar para melhorar uma comunidade: através das entidades governamentais, das organizações não governamentais (como as associações) e com ações individuais. Apesar destas últimas serem importantes é quando unimos esforços que conseguimos aumentar a probabilidade de atingir com sucesso objetivos mais substanciais. Entidades governamentais fortes são importantes para assegurarem serviços públicos de qualidade e as associações permitem a defesa de causas, uma atuação especializada por pessoas independentes e realizar ações localizadas.

As associações são, portanto, uma ferramenta para a construção da democracia. Indivíduos sem qualquer interesse pessoal ou económico abdicam de parte da sua vida pessoal para o projeto. Esta descrição tem tanto de romântica, como de causa para muita gente recusar participar. Acabamos por muitas vezes ter sempre as mesmas pessoas a suportarem as associações. Isto não é só desgastante para elas, como leva a que a associação não consiga rejuvenescer, com um novo ciclo, com novas ideias. Uma falta de pessoas implica a possível extinção dessa associação – e existem muitas com provas dadas que se encontram à beira deste desfecho.

Já me adiantei um pouco. Afinal, qual é o papel em concreto da associação? Existem muitas áreas de intervenção que podem ser tomadas. Desde eventos culturais, atividades desportivas, preservação de espaços, defesa de causas, formações, entre tantas outras ações, as associações são entidades independentes dotadas de autonomia para desenvolverem a sua atividade. Qualquer um se pode juntar, qualquer um pode contribuir. Existe, como tal, a possibilidade de se atuar no terreno, com um grande contacto com as pessoas e de forma bastante aberta, tendo em conta a universalidade da possibilidade de ser associado. Desta forma, estas entidades obrigatoriamente têm de ser tidas em conta, pelo menos, na auscultação sobre processos que digam respeito à sua área de trabalho.

Além desta importância para deliberações, o poder político deve olhar para as associações como parceiras. Existe muito trabalho bem feito, provas dadas de excelência e qualidade. No entanto, obviamente, as entidades sem fins lucrativos precisam de apoio para se desenvolverem. Tem de haver abertura para de financiar e ajudar no possível estas entidades. É óbvio que com critérios, com provas, mas tem de haver confiança para o fazer.

Termos o poder executivo a delegar, de certa forma, responsabilidades às associações, não é afirmar a sua incompetência, mas antes dar o poder às pessoas. Reconhecer e valorizar o trabalho de quem dá tanto e bem à sua terra sem nada pedir em troca.

Que se engane quem pensa que pretendo afirmar aqui que só o poder político tem responsabilidades em manter as associações a funcionar. Retomando o dito antes: só com uma mobilização nestes projetos é possível termos debate interno, novas ideias, voluntários e, claro, a continuidade. As associações são um instrumento de democracia direta, participativa, não as desvalorizemos e saibamos reconhecer o trabalho dos que as mantêm vivas.

 


2021_08_03_Um erro diplomático

Há umas semanas escrevi sobre a importância do conflito no debate político. Na altura não percebi a consequência óbvia que isso trazia: é necessária militância.

Por diversas vezes disse que o importante não era necessariamente trazer aderentes para o partido, mas sim chamar independentes para se juntarem à discussão. Não entro em rutura com esta afirmação, mas reconheço que deve ser melhorada. Penso que sempre que disse esta frase foi por ter medo de que as pessoas fugissem por não quererem rótulos. Isto diz mais sobre o contexto do que sobre mim, infelizmente. Está na altura de deitarmos por terra as amarras do julgamento popular, que é cultural, e orgulharmo-nos de fazer política, de querermos o melhor paras as nossas terras. Que caiam os estereótipos do que é ser político, porque hoje sabemos que todos o podemos ser!

Vivemos numa democracia representativa que funciona através de métodos de proporcionalidade, pelo que os partidos políticos assumem a vital relevância de servirem de meios de representação. É neles que é suposto debater e contruir rumos, diferenciando a visão dos diferentes projetos.

Assim sendo, é necessário que haja pessoas dentro desses partidos para que a alternativa se afigure. Ou seja: pessoas com visões próximas juntam-se e formam os partidos, os eleitores, individualmente, decidem qual o projeto que consideram melhor e daqui sai a representação que temos nos órgãos eleitos.

Nunca esquecer que a democracia também deve existir dentro dos partidos. As pessoas que compõem o projeto têm o direito de decidir quem comanda o projeto. É por isso que as direções partidárias têm credibilidade nas escolhas dos candidatos às eleições. Essas mesmas direções foram o resultado de escolhas internas que são acompanhadas por um programa. É justamente por essa razão que, neste contexto, as primárias não são necessariamente uma solução. Compete a quem, a nível local, regional ou nacional, foi mandatado o dever de agir e fazer valer o programa com o qual foi eleito, disso fazendo parte a escolha das pessoas para as listas. É óbvio que a lista como um todo deve ser aprovada por todos os aderentes da zona respetiva, mas a sua proposta parte da direção.

Claro é que só quem é filiado num partido tem o direto de eleger e ser eleito dentre dele, pelo que daqui se infere a importância da adesão.

Não quero com isto afirmar que os independentes estão mal (e com independentes refiro-me não a pessoas alheadas da política, mas sim a cidadãos politicamente ativos, mas sem filiação partidária). É necessário pessoas com algum distanciamento para trazerem uma visão diferente e uma perspetiva de quem está de fora. Todas as opiniões contam.

A este ponto penso que é importante clarificar algo: fazer política é este envolvimento e debate, mas não se resume a isso. A maior parte das pessoas que estão num partido não querem necessariamente estar nos seus órgãos. Existem muitos aderentes cujo trabalho é de formiga, no sentido em que é praticamente anónimo e importante: falar com pessoas, ajudar a organizar eventos, passar mensagens para a sociedade em geral,…

No final de contas, o que interessa acima de tudo é a militância: envolvermo-nos naquilo em que acreditamos. No entanto, não descuremos o papel da adesão: só com pessoas nos partidos podemos assegurar uma democracia verdadeiramente representativa, onde existem reais alternativas.

2021_07_27_A violência de um ano letivo

Anteriormente, já falei sobre os estudantes deslocados, mas não aprofundei aquela que foi a experiência de passar um ano em pandemia, que afetou, aliás, todos os estudantes. Vou tentar fazer isso agora. Como só sou uma pessoa, só tenho uma perspetiva, que é de alguém que acabou agora o 1º ano da Licenciatura em Física na Faculdade de Ciências na Universidade do Porto, mas penso que muitos aspetos são transversais.

O ano letivo 2020/2021 foi o primeiro realizado inteiramente em tempos de pandemia. Desse facto resultam vários obstáculos que em muito podem ter comprometido o sucesso académico.

Desde logo as aulas foram lecionadas num regime misto, ou seja, aquelas que são de natureza teórica foram tidas à distância e as restantes, teórico-práticas ou práticas, foram presenciais. Isto levou a que muita gente não conseguisse acompanhar a componente teórica. Penso que foi especialmente dramático para quem entrou pela primeira vez no ensino superior, uma vez que não estando habituados a métodos de estudo mais intenso, isso levou a que ficássemos perdidos e desorientados.

O meu primeiro semestre foi salvo porque, apesar da concentração escassear nas teóricas, nas presenciais era possível trabalhar os conteúdos e colocar as dúvidas de forma fluída.

Mesmo tendo obtido sucesso no primeiro semestre, a realidade do segundo não se apresentou fácil. Além de ainda não ter afinado o método de estudo, apareceram cadeiras mais trabalhosas, que requereram muito do tempo disponível. Bem podem dizer que uma boa gestão do tempo seria a salvação. E efetivamente é, no entanto logo no início desse semestre fomos confinados e mandados para as nossas casas. De fevereiro a abril todas as aulas que tive, independentemente da sua natureza, foram à distância.

Se nas teóricas já não me conseguia concentrar, muito pior foi naquelas que são planeadas para serem dadas presencialmente. O meu primeiro semestre foi salvo por algo que só existiu no último mês do segundo. Basicamente, isto fez com que a pouca motivação e esforço que se herdou do primeiro semestre fosse desaproveitado por uma ainda maior desorientação.

Não quer isto dizer que não existem estudantes que retiraram vantagens do ensino à distância, mas a minha experiência e de muitos que me rodeiam, afirma o contrário. Temos de saber preservar as partes boas de uma comunicação facilitada, mas reconhecendo o desgaste psicológico que acarreta.

Além da vertente académica, temos de ter em atenção que a pandemia significou uma mobilidade muito restrita. Eu saía do quarto para ir à faculdade, à cantina e às compras, essencialmente. Os momentos de convívio sempre controlados. Todos nós fizemos sacrifícios e abdicámos de coisas que gostávamos, sendo que os estudantes não foram exceção. Mais uma vez, penso que isto foi mais intenso para alunos do 1º ano: caímos de para-quedas e sem a possibilidade de nos integrarmos, podendo ter levado a que houvesse um sentimento de solidão.

É certo que sabemos que no ensino superior nos temos de desenrascar por nós próprios, mas este ano fizemos mais que isso. Todos os estudantes, em especial do 1º ano, que tenham chegado ao fim de 2020/2021 e decidido continuar no ensino superior já estão de parabéns.

2021_07_20_Nós e o centro

Há uns dias aprendi uma palavra nova: agonística. Trata-se duma noção de conflito relacionada com a existência de adversários. Adversários e não inimigos. Uma diferença muito importante, afirmando a legitimidade da existência das pessoas do outro lado da barricada.

Em democracia, esta noção é de extrema importância. Temos de reconhecer no outro a possibilidade de uma divergência de opinião. Um movimento democrático que se preze valoriza a sua pluralidade. Um sistema democrático baseia-se na igualdade e na liberdade. Muito podíamos dizer a partir daqui, no entanto vou tentar focar-me na questão conflitiva.

Só quando temos duas perspetivas diferentes podemos fazer uma opção e selecionar a melhor alternativa. Uma democracia representativa, assente em partidos políticos, tem como pressuposto a existência de vários projetos distintos para comunidade, sendo que é da discussão entre eles que se afirmam as suas diferenças. O que acontece atualmente é que vivemos numa democracia desvirtuada, em parte, desse conflito, da agonística.

A Assembleia Regional, tal como a Assembleia da República, tem sido, ao longo da História, marcada por uma supremacia do centrão. O tempo fez com que PS e PSD se tornassem quase indistinguíveis, formando uma supermaioria de centro e levando a que a democracia se tornasse numa sucessão de processos eleitorais com uma perspetiva tecnocrata ao comando.

É natural que vendo um cenário onde não existe um verdadeiro debate de vias de ação, mas sim um artifício de ofensas partidárias, as pessoas se afastem da política. É necessário reverter esse processo de jogo ao centro e voltar a trazer à política verdadeiras alternativas. Elas já existem, sim, mas precisamos da confiança dos eleitores, novamente.

As pessoas são entidades individuais únicas, encerrando em si toda uma diversidade de ser e estar. Elas estão longe de ser representadas pelo centro. Não precisamos de ser neutros, precisamos de progredir. A moderação não é necessariamente o caminho, mas sim a ponderação.

Um caminho a ser tomado é, por exemplo, a via à esquerda. No entanto, se queremos um verdadeiro envolvimento popular temos de contruir essa alternativa junto das pessoas.

Existem vários movimentos e lutas que são políticas e despartidarizadas. Falamos de feminismo, LGBT+, antirracismo, mas também da cultura, ciência, porque em todas as áreas há, na verdade, uma dimensão política. Temos de conseguir chegar a essas pessoas e trazê-las para o campo político.

Só com um movimento transversal é possível criar não só uma alternativa, mas aquela que melhor se ajusta à vida das pessoas tendo em conta as suas especificidades. Muitas vezes é afirmado que movimentos de esquerda reduzem a pluralidade. A realidade é outra: um movimento verdadeiramente de esquerda valoriza a diferença, justamente por ser uma soma de partes com um objetivo comum.

Quando conseguirmos construir esta dinâmica política, teremos conseguido trazer a agonística ao de cima, porque além de haver uma verdadeira alternativa diferenciadora existe um envolvimento popular que aproximou os eleitores dos seus direitos de cidadania e permitiu que uma nova esperança no aprofundamento da democracia fosse possível. Funcionamos por reações em cadeia. Um contacto presencial boca a boca, mas também num registo digital de partilha. Está ao nosso alcance a construção de uma verdadeira democracia.

2021_07_13_Hipocrisias de um sistema

Existe algum sistema que aceita, e até promova, dizer-se uma coisa e fazer-se outra? Pois, parece que é o nosso dia a dia. Permitam-me pegar no exemplo do Mês do Orgulho.

Como já antes abordei, o Mês do Orgulho é um importante período de visibilidade. Por isso mesmo se realizam uma série de atividades e eventos, como são exemplos as marchas. É, portanto, de salutar que várias entidades, muitas delas privadas, se juntem à causa nesse esforço comum de tornar a nossa sociedade mais inclusiva. Onde está o problema, então?

Desde logo temos de ter noção que o movimento pela igualdade de direitos ara pessoas LGBT+ teve uma maior alavancagem nos anos 60. Na manhã do dia 28 de junho de 1969 aquela que seria uma uma rusga policial corriqueira a um bar gay acabou por ser um ponto de viragem na História dos direitos humanos: os clientes, atingindo o ponto de ebulição, revoltaram-se contra o abuso policial e a multidão que se amontoava junto do Stonewall Inn acabou por se envolver nos confrontos. Uma série de incidentes levaram a que aquela rusga fugisse ao controlo da polícia, tendo resultado em tumultos que duraram dias.

A revolta de Stonewall, como ficou para a História, expandiu a revolução sexual, adicionando-lhe o movimento da Libertação Gay. Até então o movimento LGBT, tímido, defendia um ativismo gradual e pedagógico - no entanto, sem resultados observáveis. A libertação veio trazer o modo de vida do «como se»: os indivíduos agem da forma como iriam agir se vivessem num mundo onde as suas causas saíram vitoriosas. Nesta caso, tratou-se de se ser abertamente LGBT, quer isto dizer, agir como se não houvesse problema em duas pessoas do mesmo sexo demonstrarem gestos de carinho em público, como beijarem-se ou darem as mãos, saírem do armário para a sua família e amigos, viverem com o parceiro, etc. Basicamente, pessoas LGBT passaram a fazer, publicamente, o mesmo que os casais heterossexuais. Apesar de hoje conseguirmos imaginar isso a acontecer, a verdade dos anos 70 era muito diferente.

É óbvio que o apoio escasseava. Foi só mais tarde, quando direitos começaram a ser conquistados, que as empresas viram uma possibilidade de fazer negócio: tornar o Orgulho numa marca. Foi com este amor ao lucro que vimos e vemos muitas empresas, grandes e pequenas, a fazer doações, vender artigos e assumir como suas as cores da bandeira LGBT+.

Como se já não fosse suficiente este aproveitamento oportunista, ainda existe a tal questão da hipocrisia: as empresas só tomam atitudes a favor da comunidade LGBT+ onde lhes dá jeito e quando lhes dá jeito.

Por um lado, várias empresas adotam a causa no dia 1 de junho e logo a deixam no dia 1 de julho, sendo que esse tipo de marketing só se dá em países que reconhecem os direitos LGBT+. As marcas não se atrevem a tomar esse tipo de atitudes onde sabem que domina um poder conservador. A acrescentar, temos várias das grandes empresas, que aparentam defender as causas, a fazer doações para políticos abertamente homofóbicos e transfóbicos, como é o caso da AT&T.

Queremos mesmo viver num sistema desprovido de empatia e sensibilidade? Precisamos de valorizar as pessoas e não o dinheiro. Não sejamos cegos ao ponto de dar mais valor a um papel do que a uma vida.

2021_07_06_Agora que já passou o mês do orgulho

Na passada quarta-feira chegou ao fim o mês de junho e, como tal, o mês do orgulho LGBT+. Este mês foi instituído como forma de promover a visibilidade da defesa da igualdade de direitos para toda e qualquer pessoa independentemente da sua orientação sexual e da sua identidade de género.

Esta é uma altura do ano que serve para consciencializar e sensibilizar para a diferença e mostrar aos diferentes que existe um espaço para eles. Até porque, no fundo, acabamos por ser todos iguais. Pelo menos todos ambicionamos o mesmo: a aceitação.

Ser LGBT+ nas ilhas não é tipicamente fácil. Existem dois problemas principais: os estereótipos que se vão perpetuando e a imprevisibilidade. Por um lado, crescemos em escolas onde é normal ouvir crianças a chamar a outras de «gay» com um intuito pejorativo e, por outra, a existência de poucos exemplos de pessoas comuns abertamente LGBT+ que possam demonstrar ser possível viver a vida verdadeiramente e em segurança.

Vivemos em meios pequenos, por isso mesmo ser marginalizado é fácil. Ser olhado de lado é algo com que se pode contar, até pelo conservadorismo que ainda existe. Quer isto dizer que os Açores são homofóbicos? Não necessariamente. Só ainda não existiram pessoas LGBT+s suficientes a serem-no abertamente de forma a perceber-se a reação e a criarem-se modelos que permitam mostrar aos jovens LGBT+s que aqui podem ter um futuro e aos menos jovens LGBT+s que, finalmente, se podem sentir completos nas suas ilhas. Quero com isto afirmar que todos os LGBT+s das ilhas devem pegar num megafone e irem para as ruas? Nada disso. Cada um vive como quer. Ninguém deve sentir-se obrigado a expôr-se, mas também ninguém se deve sentir obrigado a esconder-se. O objetivo é simples: a reação a casais homossexuais ser a mesma dos casais heterossexuais, o direito à indiferença. A possibilidade de ser demonstrado afeto em público. Mas é necessário alguns darem esse passo para desbravarem caminho.

Foi com esse espírito que, no aniversário da revolta de Stonewall do ano passado, fiz eu próprio a minha saída do armário. Nós existimos e não somos poucos. Simplesmente estamos contidos nos nossos círculos pessoais mais íntimos por não sabermos se a nossa comunidade nos aceita. Como alguém politicamente ativo sinto-me com a missão de tomar uma posição e afirmar que efetivamente existe um lugar para nós que é, justamente o lugar de qualquer outro.

Ainda existe muito por fazer, principalmente em termos de mentalidades e, por isso mesmo, têm lugar as marchas. Que se note que a agenda mediática e política não é marcada por um só assunto: é possível trabalhar sobre várias temáticas ao mesmo tempo. Não queremos ter destaque e ter mais direitos que alguém, mas antes afirmar que existimos. É muito fácil afirmar-se que não existe homofobia num local, mas se nesse local não existirem pessoas abertamente LGBT+ como se pode inferir isso? Com que base? As marchas servem para consciencializar pessoas não-LGBT+, mas têm a importante missão de dizer a pessoas LGBT+ que não estão sozinhas.

Trabalhemos para construir um mundo onde ninguém tem de afirmar a sua sexualidade, mas simplesmente vivê-la. Onde é tão normal e fácil ser LGBT+ como é ser heterossexual e cisgénero. Não estarão todos os problemas da humanidade resolvidos, mas sempre podemos riscar um. E é tão atingível essa realidade mais colorida, unida e feliz: basta todos querermos.

2021_06_29_Apelo à ousadia

Estamos no final de junho. Apesar das autárquicas não estarem marcadas, já se começa a sentir a pressão de ir elaborando os programas eleitorais e construir as listas de candidatos. Está, portanto, na altura de nós, cidadãos filiados e independentes, pessoas de qualquer ideologia, nos chegarmos à frente.

É fácil irmos para os cafés falarmos mal do que se passa. É fácil protestarmos com os nossos botões. No entanto vivemos numa democracia representativa, onde existem assembleias constituídas para se refletir sobre os assuntos, apresentar várias perspetivas e tomar decisões em relação às suas soluções. Pessoas são livremente e universalmente eleitas para esses órgãos. Menosprezar este poder é um insulto ao 25 de abril e uma desconsideração perante todos os que sofreram para o obter.

Votar é o mínimo que qualquer cidadão que se preze deve fazer, no entanto permitam-me ir mais longe e retomar a linha inicial de pensamento: a participação ativa nas candidaturas.

            Olhar para os políticos locais e criticá-los por inação ou alheação deve ser acompanhado por uma vontade de fazer melhor e avançar. Em cada lista só há um cabeça-de-lista, mas existem mais candidatos e os lugares a preencher são de número superior a um. Que se arregace mangas e se arranje a ousadia.

            Que se note que não pretendo aqui afirmar que as pessoas não devem dar as suas opiniões, muito pelo contrário. Concordo muitas vezes com o que é dito. Por isso mesmo é frustrante ver que há ideias que são generalizadas, mas que não ganham força, porque esses alguéns não querem dar força ao movimento. Grandes desafios mais facilmente são ultrapassados com uma grande equipa.

            É também angustiante ver que os movimentos demagógicos e de extrema-direita conseguem angariar pessoas com mais facilidade do que aqueles com ideias sensatas. Isto tudo junto leva-me a crer que estamos, enquanto comunidade, a dar as coisas por garantidas. Não podemos. Da mesma forma que a democracia vem, vai-se.

            Deixem-me colocar aqui um poema de Miguel Torga, intitulado Dies Irae:

«Apetece cantar, mas ninguém canta.

Apetece chorar, mas ninguém chora.

Um fantasma levanta

A mão do medo sobre a nossa hora.


Apetece gritar, mas ninguém grita.

Apetece fugir, mas ninguém foge.

Um fantasma limita

Todo o futuro a este dia de hoje.


Apetece morrer, mas ninguém morre.

Apetece matar, mas ninguém mata.

Um fantasma percorre

Os motins onde a alma se arrebata.


Oh! maldição do tempo em que vivemos,

Sepultura de grades cinzeladas,

Que deixam ver a vida que não temos

E as angústias paradas!»

Se não queremos ser nós o sujeito poético destas quadras, tomemos uma ação! Quem tiver o mínimo de disponibilidade: nas autárquicas existem candidaturas de partidos políticos, de coligações e de grupos de cidadãos independentes, tentem se informar do que cada um defende e juntar-se ao processo. Estas eleições são esgotantes pelo elevado número de pessoas que movem e, principalmente para partidos mais pequenos, isso é um peso que em muito sobrecarrega as candidaturas. Até pode existir alguém para cabeça-de-lista, mas se mais ninguém quiser integrar a lista, então essa candidatura já era. A bem da pluralidade e da democracia: ganhe ousadia e aja!

2021_06_22_Ser estudante deslocado açoriano

Os problemas dos estudantes deslocados são intuitivos se despendermos algum tempo a raciocinar, mas nada como ser um estudante deslocado para os enunciar.

            Qualquer jovem que saia da sua ilha para estudar, quer seja para um polo da Universidade dos Açores, quer seja para fora da região, enfrenta um obstáculo particularmente relevante: a habitação. Trata-se de algo básico, mas que acarreta uma grande despesa. Daquela que é a realidade que conheço, no Porto, pago por um quarto o mesmo que alguém paga por um apartamento T2 em Santa Maria. As residências universitárias são a salvação de muitos estudantes. É preciso não esquecer que ainda neste tema temos os custos associados a água, luz e gás. Aquele que é o Prémio de Mérito de Ingresso no Ensino Superior do GRA acaba por ser uma ajuda de custos para esgotar nos primeiros meses nestas despesas.

            À habitação acrescem as despesas com a alimentação, que acabam por sair mais caro às famílias, e com o material pedagógico. Tendo em conta a nossa condição insular, ainda existe aqui um custo associado às viagens aéreas, onde, felizmente, já existe um tarifário próprio para estudantes. Não nos podemos esquecer ainda das propinas que tardam em voltar a ser abolidas.

            Com esta descrição o que quero dizer é simples: não é barato ter um jovem a estudar. Que se note que diz isto um privilegiado que não tem de ser trabalhador-estudante. Quantos são os jovens açorianos que poderão não ir para o ensino superior porque não têm condições financeiras? Permitam-me aproveitar o fim deste parágrafo para demonstrar o meu respeito por aquelas famílias que fazem um grande esforço para darem o melhor futuro possível aos seus filhos.

            Esta dimensão financeira é aquela que mais sobressai, no entanto existe uma abordagem social que deve ser tida em conta e que com a Covid se tornou mais premente.

            Os jovens açorianos, até pelo que já foi dito, não têm a possibilidade de voltar a casa com frequência, sendo que, na maioria dos casos, voltam durante as férias. Desta forma, ficam sozinhos, sem o conforto de casa durante meses num local desconhecido. Este novo contexto pode ser violento. É claro que a longo prazo podemos ver vantagens nesta independência quase forçada, mas a verdade é que os primeiros tempos podem custar.

            Para colmatar este isolamento, a solução pode passar pelo estabelecimento de amizades. Esta é uma estratégia sempre vencedora, independentemente do paradigma, no entanto não nos esqueçamos que a maioria dos estudantes consegue ir para casa aos fins-de-semana, enquanto os açorianos continuam deslocados. Esta realidade é ainda pior com a Covid, porque faz com que as saídas, de estudo ou lazer, sejam mais raras e impossibilita que haja uma verdadeira integração no meio académico, formando-se pequenas bolhas de estudantes que acabam por não ter a oportunidade de se conhecer entre si.

            A estas questões, por via da Covid, acresce um ano pedagógico atípico que submeteu todos os estudantes a uma necessidade de se adaptarem. Em especial durante os confinamentos, foram escassos os conteúdos que foram verdadeiramente aprendidos. Falo por experiência própria. O ensino online tem vantagens, mas promove uma muito maior desconcentração. Temos de saber usar as ferramentas digitais, mas com um ambiente físico associado.

            Depois de uma intensa época de exames estamos, estudantes açorianos, a regressar a casa para recarregar baterias e tentar sarar a nossa saúde mental.

2021_06_15_Tenho 19 anos e sou candidato

Há quase um mês lancei a minha candidatura à Câmara Municipal de Vila do Porto. Desde aí, muitas têm sido as reações. Naturalmente, umas pela positiva e outras nem tanto.

 

O ponto mais notado pela negativa tem sido a idade: a falta de experiência e o receio da falta de preparação pessoal, parecem ser as maiores preocupações. Vou tentar abordar estas duas.

 

Desde logo, que se note que existe uma clara contradição entre aquilo que se ouve sobre a participação política dos jovens. Quem já disse «os jovens estão desinteressados», também é capaz de dizer «os jovens não estão preparados», quando confrontado com uma candidatura jovem. Afinal, queremos ou não jovens candidatos? Estou certo de que quem usa esta retórica é quem faz parte dos instalados que estão bem com a atual situação, não querendo ver nenhuma alteração a ser feita. Estes receios não são para zelar pelo bem comum, mas sim para salvaguardar as suas posições pessoais.

 

Termos jovens candidatos é uma lufada de ar fresco quer pelas ideias novas, quer pelas novas formas de transmiti-las. A energia, dinâmica, ousadia e inquietação da juventude são, naturalmente, fonte de receio para os instalados. No entanto, e que se desengane o leitor, não defendo de forma alguma que tudo o que é dito pelos jovens é correto, nem que a experiência deva ser desvalorizada. Digo antes que os jovens, como qualquer outra faixa etária, não possuem uma ideologia comum, mas sim uma atitude, em geral, transversal. Afirmo antes que precisamos de encontrar um equilíbrio entre a ousadia e a experiência, para que consigamos avançar.

 

Por outro lado, temos a questão pessoal. Pessoalmente, como já protagonizei outra candidatura, sinto-me capaz de aguentar mais uma. Mas mesmo que fosse a minha primeira, como já foi a outra, só a ousadia e determinação para se chegar à frente, mesmo sabendo do cenário de bipolaridade que falei anteriormente, já demonstra a capacidade para enfrentar toda uma campanha desgastante e um processo burocrático que é capaz de colocar nervos à prova. Ninguém dá este passo sem pensar duas vezes. Quanto mais não seja para equacionar aquilo que se pode perder. Poderão existir represálias? Não são poucas as vezes que esta justificação surge.

 

No entanto, a esperança existe sempre. O apoio também é forte. Apoio quer daqueles que se reveem no nosso projeto, quer daqueles que ficam felizes por ver que a pluralidade democrática está bem assegurada por alternativas credíveis e consistentes.

 

Não nos podemos esquecer para que serve uma campanha. Não estamos aqui para dividir lugares em cargos públicos, mas sim apresentar propostas e uma visão que depois é avaliada pelos eleitores. Uma candidatura política é, antes de tudo, um conjunto de causas e visões. 

 

Dizer-se mais merecedor do voto por ser do partido x ou y, não faz sentido nenhum, mesmo sendo esse o partido do executivo ou de algum que já lá esteve. A democracia faz-se com as urnas a começarem vazias, para que todos os eleitores possam escolher a melhor solução entre todas as alternativas.

                              

         A mim, como a qualquer outro candidato, cabe a responsabilidade de expor a linha programática e aos eleitores cabe a decisão de escolher qual o projeto que merece a sua confiança.

2021_06_08_Um movimento transversal

Hoje mais do que nunca, quando olhamos à nossa volta, apercebemo-nos da nossa diversidade. Vivemos num mundo interligado, onde pessoas de diferentes origens e contextos se cruzam, onde ideias são capazes de atravessar o globo.

Este facto traz-nos a alegria de celebrar a pluralidade e a diferença, mas não nos esqueçamos do reverso da moeda: em momentos de mudança existe sempre uma resistência proporcional. Se é mais fácil conhecermos pessoas e comunicar, também o é espalhar o ódio.

Na luta pelo progresso social, onde se engloba a igualdade de género, a defesa das pessoas LGBT, o combate ao racismo e xenofobia, a liberdade religiosa ou a inclusão das pessoas portadoras de deficiência, vemos minorias e maiorias que são discriminadas e marginalizadas. No entanto, transversalmente a todos esses indivíduos existe algo que também os une: a sua exploração pela sociedade capitalista. O capitalismo está do lado do lucro. Se ele estiver na promoção da discriminação, assim será, se estiver na aceitação da diferença, assim será. Não somos todos explorados por igual, mas todos o somos.

Até aqui parece que estou a introduzir um pensamento dedutivo com uma conclusão extraordinária. Como não sou pessoa que gosta de desiludir, deixo já aqui o ponto chave: só com uma frente transversal a todos os movimentos que falei anteriormente, aos quais se junta quem com eles concorda, mesmo não sendo um visado direto, é que conseguiremos uma verdadeira mudança na sociedade.

As lutas não são independentes. Se entre si mais óbvia é a sua relação, pelo que já foi antes dito, a sua relação com o anticapitalismo é necessariamente igualmente estreita. Não falamos de fazer uma manta de retalhos de pessoas, mas de organizar um movimento capaz de pensar e tirar vantagem da sua diversidade.

Quando jovens opinam sobre políticas para idosos, quando gays falam sobre o aborto, quando marienses falam sobre a Terceira, temos não só uma troca empática de posições, como também uma perspetiva externa à temática. Todos os assuntos podem ser discutidos por todos, sem ser necessário desvalorizar os entendidos e quem está familiarizado com o assunto.

Em termos partidários, nós encontramos esta noção no Bloco de Esquerda, por exemplo. Contudo, desengane-se o leitor, não estou a afirmar isto em jeito de propaganda. Nem esta é uma caraterística única do Bloco, como deveria ser algo geral. A Iniciativa Liberal, antípodas económico das políticas bloquistas, possui um pensamento semelhante, não reconhecendo, no entanto, logicamente, a vertente anticapitalista.

Aquele que me parece ser um sinal óbvio dessa postura é a inexistência de juventude partidária. Porque precisam os jovens de ser segregados para uma plataforma à parte? Para uma plataforma onde podem ser reproduzidos os principais vícios que fazem muita gente descrer na política. O lugar dos jovens é no lugar dos outros todos, o espaço de discussão é de todos. Para falarmos sobre os assuntos não temos de ter respostas, ninguém sabe tudo, podemos ter perguntas.

O importante é que estejamos juntos e unidos, sem deixar ninguém para trás. Precisamos de dinamismo. Não puxemos cada um para seu lado. Vejamos o que nos une e façamos um esforço para constituir uma frente unida e forte!

2021_06_01_Uma esquerda para os Açores

No próximo sábado, dia 5, vai decorrer em São Miguel a VII Convenção Regional do Bloco de Esquerda Açores. Trata-se de mais um momento de discussão dentro do único partido parlamentar de esquerda.

Este é, portanto, um momento crucial para se refletir sobre o atual contexto político, marcado por uma mudança no poder executivo e um novo balanço de forças na Assembleia. Ser o singular representante institucional da esquerda açoriana é uma responsabilidade acrescida àquela que já é o peso de representar da melhor forma os interesses açorianos.

A esta convenção apresenta-se uma moção de orientação global, sendo subscrita, em primeiro lugar, pelo atual coordenador regional, António Lima. Este é, naturalmente, o documento orientador que será aprovado nesta reunião magna e norteará a ação bloquista durante os próximos dois anos.

Sob o mote «Combater as desigualdades, construir o caminho à esquerda», a moção apresenta os principais eixos programáticos a serem tidos em conta. Desde logo, um combate à crise gerada pela pandemia e que aumenta ainda mais as desigualdades existentes. Sendo já os Açores uma região extremamente desigual, este é um desafio que cada vez ficará mais urgente ultrapassar. Para isso precisamos de uma resposta que zele pela defesa do rendimento das famílias, da contribuição justa dos que mais ganham, de uma escola pública fortalecida, de um serviço regional de saúde robusto, … Esta é uma crise com muitas caras, que afeta muitas áreas. Temos de ter um plano a sério para enfrentá-la.

Não serão mercados financeiros desregulados nem privatizações que nos salvarão, mas antes um estado social transparente e justo a par de uma intervenção pública estratégica.

Uma região voltada para a ciência e tecnologia que aproveita e explora os seus próprios recursos de forma sustentável e responsável. Uma região que protege a sua natureza, almejando ser um baluarte da sustentabilidade ecológica. Uma região turística, mas que não se subjuga aos interesses do mercado, nem permite uma dependência económica deste setor.

Precisamos de uma região onde os trabalhadores são respeitados, onde os programas ocupacionais ou programas de estágios não são usados como formas de exploração. Onde os contratos precários são trocados pela estabilidade financeira tão necessária para o desenvolvimento de qualquer família e indivíduo. É urgente defender quem trabalha sem medo de fazer frente às elites económicas.

É necessário tornar os Açores uma região progressista, onde políticas feministas, LGBT+, antirracistas, antixenofóbicas e anticapacitistas sejam adotadas e valorizadas devidamente. Onde o patriarcado é substituído por uma sociedade justa, acabando com a vulnerabilidade que é infligida às mulheres e que leva várias vezes à violência doméstica. Só quando se dá visibilidade aos problemas se obtêm as soluções, precisamos de tirar os problemas sociais do armário!

Não esquecer, claro, o necessário aprofundamento da autonomia açoriana. Uma lei das finanças que proteja os interesses da região e uma lei do mar que consagre os Açores como o centro da decisão no que concerne à exploração dos seus recursos marinhos.

O Bloco foi e é pioneiro em muitas destas lutas. Mais que um partido, é um movimento popular em crescimento que se tornou, ao longo da última década, numa voz incontornável na defesa dos e das açorianas e açorianos. Aguardemos por esta convenção com expectativa, porque a cada dia que passa o Bloco torna-se cada vez mais essencial.

2021_05_25_Os_Acores_e_os_jovens

Os Açores possuem, muitas vezes, o título de região mais jovem do país. Sendo a juventude um poço de irreverência, a região devia-se orgulhar da intensa efervescência que possui fruto da irreverência, dinâmica e ousadia dos mais jovens. É claro para a maioria dos leitores que nem o orgulho se sente, nem essa energia existe.

 

Não obstante, já começam a existir certas bolhas onde é possível ver os jovens expressar-se, quer numa dimensão pessoal, cultural, associativa ou política. Até agora a juventude era empurrada para somente para o desporto ou para um campo musical muito selecto.

 

O que se passa, então, com a juventude açoriana para existir esta lacuna?

 

Apesar dos jovens serem o sujeito da pergunta anterior, a verdade é que muito pouco têm de culpa pelo seu apagamento. Afirmar que os jovens são desinteressados é um vinte avos da resposta.

 

Desde logo, temos de perceber que enquanto jovens temos pouca experiência de como funciona o mundo (e muitas vezes nem os graúdos têm) e, por isso mesmo, baseiam-se em exemplos. Os nossos limites são baseados nos limites de quem vemos. É quase o reforço vicariante de Bandura. Se não existirem exemplos, é natural que não haja ação. Neste caso, estamos a falar de gerações de inatividade que se perpetuam, ficando presas ao mínimo dos mínimos.

 

É claro que esta é, também, só uma outra fração da resposta. Felizmente, existem muitos espaços com grande atividade (em pelo menos alguma das dimensões). O que está a correr mal neles, então?

 

Já percebemos que os jovens são uma massa inercial: têm pensamento próprio, mas precisam de uma força externa para se movimentarem. Ter um exemplo faz com que nos sintamos com mais esperança no futuro, no entanto quanto maior a diferença de idades, menos impacto tem perante a juventude.

 

Algo que também não abona a favor destes casos é a ostracização das pessoas vistas como exemplos. Vermos pessoas com pensamento diferente e uma energia arrojada a serem  colocadas de lado, a serem desprezadas ou insultadas. Ter destaque público é algo que traz atenção e escrutínio, mas, nos Açores, na sua pior mesquinhez, isso acarreta acima de tudo uma interferência na vida privada. Qual o jovem que a ouvir isso continua motivado para construir algo? Alguns, mas não é suficiente.

 

O apagamento da pegada dos jovens nos Açores dá-se em grande parte, porque não se quer a mudança. É óbvio que a partir do momento em que haja um passo no sentido do futuro serão necessários novos quadros regionais para o sustentar. Isto assusta os grandes interesses e aqueles já instalados no cenário açoriano.

 

Existe, claro está, uma clara oposição entre o espírito jovem e os interesses instalados, que não pode ser considerado conflito porque temos os segundos já numa posição de vantagem a imobilizar os primeiros.

 

Que se desengane o leitor: nada está perdido. Muito pelo contrário. Podemos estar entorpecidos, mas os jovens têm uma energia que, quando se levantarem de forma transversal, teremos uma mudança de forças.

 

É urgente que os quadros regionais, e mesmo locais, comecem a dar uma maior importância à juventude sem cair na condescendência e no paternalismo. É necessário que a tocha comece a ser passada a outras pessoas, levando a um rejuvenescimento dos quadros. Ninguém nasce com experiência, é preciso aprender e só se aprende fazendo.

 

Jovens de toda a região, uni-vos!

2021_05_18_Empatia precisa se

Cada pessoa é uma pessoa. A única realidade que conhecemos minimamente bem é aquela que vemos pelos nossos olhos, sentimos na nossa pele e construímos no nosso cérebro. Por isso mesmo, muitas vezes sentimo-nos sós nos nossos pensamentos. Qual é o impacto político desta perceção?

            Quem nunca não ouviu numa conversa de café as frases «Pois, é, mas ninguém pensa assim» ou «Anda tudo com palas nos olhos»? Elas, normalmente, são ditas quando alguém está a criticar algum aspeto da nossa comunidade junto de outra pessoa. Não será irónico que elas sejam ditas num diálogo em que, normalmente, as duas partes concordam no tema? Afinal, se mais ninguém tem essa opinião como pode outra pessoa concordar? A verdade é que este pensamento é também altamente contraditório: diz-se que algo está mal, mas também não se faz nada, porque não vale a pena, ninguém vê o problema – que está, justamente, a ser exposto a um terceiro!

            Este raciocínio aborrece-me particularmente por soar a um atestado de burrice. Todos nós temos cabeça e sentidos. Todos percecionamos a realidade. A única diferença é o interesse e disponibilidade que depositamos em percebê-la e pensá-la. No entanto, é mais que lógico que num sistema em que as pessoas vivem para trabalhar, como é este em que estamos, muita gente não tem condições para o fazer. Não quer dizer que não vejam ou que não tenham capacidade para perceber, simplesmente não conseguem fazer tudo.

            Agora, também existem pessoas que conseguem reunir tempo suficiente para refletir. Muitos dos que têm o discurso vazio aparentam ter tempo e, como tal, deveriam, nem que seja a bem da sua consciência, decidir tomar uma postura construtiva e desencadear uma ação. Reclamar sem nada fazer não vale. Além desta tomada de atitude é necessário algo muito importante: empatia.

            De nada nos serve espalhar uma mensagem se não tivermos a capacidade de percebermos que ela pode ser melhorada. Voltando ao início: temos de ter consciência que somos uma pessoa, existem outras com outras experiências de vida, com outras sensibilidades. Precisamos de empatia para nos colocarmos na posição do outro, ter a humildade de ouvir e nunca partir do princípio que estamos em vantagem intelectual.

            Todos nós somos agentes de mudança, entidades políticas, temos de ter a responsabilidade de nos comportarmos como tal. Apesar dos cafés poderem ser importantes focos de reflexão, as questões resolvem-se muitas vezes fora deles. Cheguemo-nos em frente!

            Nos Açores, enquanto espaço pequeno e fragmentado, parece que tomarmos uma atitude é algo esgotante e quase arriscado, que se tomarmos posição ou partido (literalmente ou não) podemos ditar o nosso desemprego. Isto revela mais sobre a necessidade de renovação do cenário político açoriano do que dos açorianos. No entanto, e por experiência própria o digo, quando temos pessoas-exemplo que vencem o receio e avançam, existe uma injeção de esperança e motivação noutras pessoas. Uma espécie de efeito dominó que nos leva a agarrar essa ação, desenvolvê-la e continuá-la.

            Não sejamos o rabugento do café, mas sim o construtor empático.

2021_05_11_Parar e olhar

«Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.»

            Estes versos descontextualizados da Ode Triunfal de Fernando Pessoa lembram-me sempre a simplicidade que há no mundo. No nosso quotidiano estamos atarefados em completarmos as nossas obrigações, atingir expectativas e procurar o conforto. Nesta rotina de busca pela felicidade acabamos por não contemplar o que nos rodeia e, consequentemente, questionar sobre realidade onde estamos inseridos.

            Paremos, olhemos e questionemos:

            Como valoramos o que nos rodeia? Conseguimos colocar números nas coisas? O sistema em que vivemos diz-nos que quase tudo se pode converter em números seguidos de euros, libras, dólares, etc. Tendemos a considerar que quanto mais dinheiro damos por algo, melhor servidos estamos e, como tal, vivemos com o objetivo de obter estabilidade financeira na esperança de levar uma vida desafogada. Aqui, desde logo, temos duas questões a explorar: as coisas e o trabalho.

            Vejamos a primeira perspetiva. Valerá a pena o esforço tentar obter os bens de maior valor? Será isso uma marca de sucesso? (O sucesso é, tal como o idealizamos, algo assim tão importante?) Não serão os objetos mais caros uma tentativa frustrada de nos sentirmos especiais, uma vez que possuímos algo menos comum? O dinheiro é, portanto, uma forma de quantizarmos a nossa singularidade?

            Isto leva-nos à segunda questão, a do trabalho. A nossa singularidade aumenta quanto mais dinheiro temos (se às questões anteriores respondermos afirmativamente). Logo, podemos concluir que se é através do trabalho que recebemos dinheiro, quanto maior for o salário, mais relevante será o trabalho. Isto é verdade? Comparemos então um banqueiro com um indivíduo que recolhe o lixo. Como, nitidamente, o banqueiro ganha mais, pela nossa lógica, é evidente que é mais importante que o funcionário do lixo. Vamos ao «story time» de hoje:

            Em 1968 quem recolhia o lixo na cidade de Nova Iorque decidiu entrar em greve.  Em 1970, na Irlanda, os banqueiros decidiram fazer greve. A primeira greve levou a um estado de emergência na cidade e acabou ao fim de nove dias (de forma bem-sucedida para os funcionários). A segunda greve durou seis meses e ainda assim o crescimento da economia manteve-se estável. As pessoas com menor salário foram as que provaram a sua importância.

            Vivemos num sistema que privilegia empregos que se resumem a transferir riqueza em vez de a criar. Quantos gestores financeiros e corretores de ações precisamos? Quantas mentes brilhantes são empurradas para trabalhos com menor relevância comunitária só porque podem ter maior benefício económico? Existem muitas pessoas que consideram o seu trabalho dispensável e isto tem de motivar preocupação. Não estaremos nós a desperdiçar recursos humanos que poderiam ser melhor distribuídos e serem mais úteis? Estou convencido que sim, mas para fazermos isso temos de abolir este sistema do lucro em que vivemos.

            Pretendemos viver num mundo onde desprezamos os trabalhadores essenciais e romantizamos os acumuladores de riqueza? Queremos mesmo ser escravos de cifrões e abdicar de aproveitarmos a nossa vida? Este é um problema político.

Que se desengane o leitor: eu não tenho todas as respostas. O que precisamos é de reflexão. O nosso futuro político depende disto. O nosso sistema tem de ser melhorado: mãos à obra.

2021_05_04_Um determinista inconformado

Todos nós, mais tarde ou mais cedo, nos pusemos a filosofar. Muito pela mão do meu professor de Filosofia, acabei por pensar acerca das questões do livre-arbítrio e de como podemos enfrentar a nossa ignorância. Algo me pareceu inabalável: tudo poder ser conhecido.

            Existe uma corrente filosófica, a determinista, que afirma que a realidade é uma gigantesca rede de causas e efeitos e, como tal, é possível prever os eventos. Se soubermos que A leva a B, então quando acontece A podemos esperar que aconteça B – esta é a essência do pensamento determinista. As ciências naturais e exatas baseiam-se justamente no princípio de que o Universo se rege por um conjunto de leis que são universais e imutáveis.

            Sabemos calcular os efeitos da gravidade e modelá-los precisamente porque a sua aplicação é extensível a todo o espaço e em qualquer tempo. A previsão que usamos para a força gravítica na Terra é a mesma que usaríamos em Marte.

            Porque é que isto interessa? Significa que todos os problemas têm solução.

            A Fundação, da autoria de Isaac Asimov, revela-nos um conceito transformativo: a Psico-história. Hari Sheldon, o fictício inventor desta área de estudo, combinou a História, a Sociologia e a Matemática Estatística como forma de tentar descodificar o futuro. Ele baseava-se em duas máximas: a população em estudo devia ser numerosa e os indivíduos não deviam ter conhecimento dos resultados das previsões, sob pena de mudarem os resultados.

            Da mesma forma que tentamos prever o Universo, não conseguiremos prever o comportamento humano? Esta é realmente uma questão avassaladora.

            Provavelmente numa tentativa desesperada de tentar sentir algum poder perante a ignorância que tenho, creio sinceramente que é possível obtermos uma resposta a qualquer questão. A realidade, nem que seja num mundo macroscópico, é possível ser conhecida. Mas, nesse caso, porque é que ainda não temos esse domínio? Bem, não temos a ciência desenvolvida a esse ponto. Só uma porção muito reduzida das nossas questões tem resposta. Que se note que com «questões» refiro-me tanto a buracos, como erradicar a pobreza, encontrar as chaves ou a um regime político ideal.

            O leitor provavelmente está a pensar: isto de ser tudo previsível soa a destino, então quer dizer que mais vale estar quieto e ir ao sabor do vento? É justamente aqui que quero chegar. Não. O que esta perspetiva nos diz é que existe um futuro e ele baseia-se no que nós fazemos. Somos nós os agentes do «destino».

            O facto de sabermos que existe algo que ocorrerá absolutamente não nos deve fazer baixar a guarda, mas sim arregaçar as mangas e garantir que esse acontecimento é aquele que queremos.

            O facto de vivermos numa densa cadeia de causas e efeitos deve ser usada a nosso favor e servir para percebermos como funciona a realidade e como chegar às soluções das nossas questões. Da mesma forma que sabemos que 1+1=2 saberemos como resolver a crise climática. Curiosidade e persistência são os motores das nossas descobertas e precisamos de trazer isso para a política. Quando se fala em importar o espírito científico para a arena política, estamos a referir-nos a esta essência e não à construção de uma tecnocracia.

            Não nos podemos esquecer que as soluções surgem da ponderação e não necessariamente da moderação. Precisamos de inconformação perante o futuro.

2021_04_27_Um devaneio democrático

Qual é a relação que temos com os nossos representantes numa democracia representativa? Na última semana falei sobre a necessidade dos nossos representantes ouvirem. Hoje pretendo complementá-la abordando esta nova perspetiva: a forma como nós, cidadãos, encaramos os nossos políticos. Em novembro de 2018 andei a matutar sobre esta questão e acho pertinente deixar neste espaço essa mesma reflexão, tendo apenas feito uns ajustes linguísticos nos parágrafos originais que se seguem.

Hoje cheguei por volta das oito da manhã à escola para ter aula de física e química, no entanto, como não tinha nada para fazer, pus-me a andar em elípticas à frente dos laboratórios e, claro está, a refletir sobre a democracia. Após uma excelente rodada de voltas cheguei a uma conclusão:

 

Para uma democracia representativa ser saudável é necessário que se estabeleça, entre cidadãos e governantes, dois tipos de confiança: ideológica e humana; onde a primeira deve ser questionável e a segunda deve ser inabalável.

 

Após a nomeação do governo segundo as normas em vigor, os governantes seguem a sua linha de ação atendendo ao plano de governo apresentado em eleições, existindo um conjunto de propostas do conhecimento dos cidadãos que deverão ser aplicadas. Contudo, qualquer cidadão pode duvidar dos meios, e mesmo dos fins, que o governo pretende, tendo em conta que em democracia um valor fundamental é a pluralidade. Assim sendo, existe a construção de uma confiança, ou desconfiança, por parte do cidadão em relação à ação do governante, estando esta dependente de uma visão ideológica, logo, subjetiva. Daqui se infere a confiança ideológica.

 

Em relação ao governante, enquanto indivíduo, o cidadão pode considerá-lo não apto a realizar o seu trabalho devidamente, no entanto não deve considerar que o detentor do poder executivo não possui sentido de responsabilidade em relação à segurança dos cidadãos. É de extrema importância partir do princípio de que qualquer governante possui por fim último a salvaguarda dos interesses dos cidadãos (de acordo com a sua visão). Caso contrário seria mais adequado viver-se em anarquia, de forma a cada indivíduo governar-se a si próprio, dada a desconfiança no outro, evitando-se, assim, que alguém possua a responsabilidade de zelar pela segurança do todo. Considerar que o governante, por muito pouco ética que seja a sua conduta, possui por fim prejudicar os cidadãos constitui um clima insustentável para a atuação ideológica do governo (cujo programa foi democraticamente eleito). Logo, é necessário existir a confiança humana.

 

Apesar desta necessidade de estabilidade, o paradoxo da tolerância mantém-se, não devendo a sociedade ser tolerante com os intolerantes sob pena de perder a tolerância. Na mesma linha de pensamento, a falta de ética dos governantes é reprovável. Pura e simplesmente não é sustentável afirmar que alguém no poder executivo só defende os cidadãos quando se concorda ideologicamente com o mesmo, sendo esta uma ação de enorme perversidade por promover uma ofensiva à pluralidade, valor base da democracia.

 

Podemos ser críticos da ação do governo, mas não devemos duvidar das suas boas intenções sob pena de se violar a construção de uma sociedade fraterna.

 

Quando dei por mim estava uma mancha de pegadas, marcadas a água, no chão.

2021_04_20_A bipolaridade dos graúdos

Dia 25 de abril concretizam-se seis meses desde as eleições regionais e ainda nenhuma análise acerca da participação da juventude nelas foi feita. São os jovens desprezáveis para as contas ou inconvenientes?

Permitam-me usar estas linhas enquanto um aprendiz da vida com 18 anos que pretende descobrir-se a si e aos outros, encontrando o seu espaço nesta realidade e sendo útil para aquilo que é o bem comum. 

         Não são raras as vezes em que ouvimos afirmações do tipo: «os jovens não se interessam»; «os jovens nunca se chegam à frente» ou «esta geração só olha para ecrãs». Mas até que ponto são verdade? Até que ponto não existe um fundo de hipocrisia nestas afirmações?

         Analisemos este assunto em duas perspetivas: eleitores jovens e candidatos jovens, respetivamente.

         Nestas regionais tivemos mais 1 000 eleitores inscritos e 11 000 votantes do que em 2016. É interessante notar que existiram 3 500 pessoas a votar antecipadamente, o que corresponde a 1,5% dos inscritos e 3,4% dos votantes. Penso ser importante denotar estes factos, quando a descida da abstenção foi na ordem dos 4,5%. Ou seja, aqueles 1,5% de votos antecipados podem explicar esta descida. A isto acresce que: grande parte dos votos antecipados foram requeridos por jovens estudantes. Isto leva-nos a perguntar: os jovens não votavam simplesmente por desinteresse ou porque os mecanismos eram demasiado burocráticos? Este aumento do voto jovem (infelizmente sem estatísticas diretas que o comprovem) não deve passar despercebido e deve estar presente na nossa mente quando se fala na importância da agilização e facilitação do acesso ao voto.

         Existe, efetivamente, uma parte da população jovem alheia da causa pública, mas existe uma parcela, com expressividade, que demonstra interesse. A Greve Climática Estudantil é um claro exemplo disso. E o que ouvimos dizer sobre o assunto? São muito novos. Isso é justamente também aquilo que eu mesmo ouvi.

         Tive a honra de encabeçar um projeto político em Santa Maria nestas regionais. Com 18 anos, fui o cabeça-de-lista mais jovem e o segundo candidato com menor idade. Por isso mesmo tenho noção da perspetiva com que parte dos eleitores viram uma candidatura jovem.

         Existe, portanto, uma notória contradição entre a afirmação da necessidade de jovens nos quadros políticos e a crítica à inexistência de experiência como motor de desqualificação. Só um dos argumentos pode ser usado. Ao enveredar pelo primeiro temos de explorar a falta de rotatividade das pessoas e o envelhecimento de quem detém o poder. Em relação ao segundo, aquele a que pretendo dar destaque, temos a necessidade de perceber que a experiência só se cria quando se “deita as mãos à massa”. A partir do momento em que não permitem aos jovens ocupar lugares, então não é expectável que consigam ganhar experiência. Parece um claro paradoxo, não?

         É óbvio que só uma parte da população adulta incorre nestas incoerências, sendo muitas vezes, justamente, aquela que se sente ameaçada por gente com novas ideias, expectativas e motivações. A verdade é que contra as expectativas conseguimos, em Santa Maria, bater uma marca que remontava a 1984. Apesar de se fazerem notar as críticas, a verdade é que há esperança para rejuvenescermos o panorama político regional.

O futuro pertence aos jovens.

2021_04_13_Vamos aprender a ouvir

Aquilo que parece óbvio pode não o ser ou pode ser esquecido na prática. Por isso mesmo penso não ser redundante escrever este apelo.

            Ninguém sabe tudo nem ninguém vive tudo. Contudo, isto não quer dizer que não devemos comentar o que desconhecemos, mas sim que devemos ouvir primeiro quem tem conhecimento de causa. Temos, portanto, de aprender a ouvir.

            Ouvir entidades e pessoas deve fazer parte da check list de qualquer agente político quando pretende emitir uma posição sobre um assunto. Mais uma vez, parece óbvio, não é? Pois, mas por experiência própria digo que não o é. Quando estamos cheios de ideias e palpites (ou interesses, que podem ser bem-intencionados ou não, para dizer de outra forma), essa avaliação ponderada e passiva passa despercebida. Queremos levar em frente a nossa visão. Precisamos de pessoas pró-ativas, precisamos de pessoas com pensamento crítico, mas o contexto existe e tem de ser tido em conta. 

Nas últimas regionais tive a honra de encabeçar uma candidatura de ilha. Nessa aventura tive a oportunidade de construir um plano eleitoral que refletisse as nossas expectativas sobre a ilha. Estava (e estou) cheio de ideias, umas mais exequíveis que outras, que acabaram também, algumas, por ser acolhidas. O programa eleitoral refletiu, portanto, as posições das pessoas em torno da candidatura e daquelas que foram as conclusões de algumas reuniões que foram sendo feitas.

 

Quando começou a campanha, resolvemos visitar um conjunto de entidades que considerámos essenciais. Dessas reuniões saímos com mais propostas sobre os temas e com melhorias nas já existentes. Prioridades e experiência são fatores importantíssimos.

 

Para dar um exemplo concreto: há anos que a nossa escola se debate por um auditório (que chegou mesmo a ser orçamentado pelo executivo regional). Pessoalmente, estive nessa luta durante 4 anos, e obviamente que tinha de fazer parte do nosso programa. Ao reunir com a escola, percebemos que havia uma possível solução para relativizar o problema: aproveitar uma estrutura existente e melhorá-la. Apesar de considerarmos que isso não substitui a necessidade do auditório, percebemos que, no momento, isso seria o melhor a ser defendido, por ser um passo tomado na direção certa, ao lado de quem precisa.

 

Ninguém sabe tudo. Não é vergonha nenhuma pedir ajuda. Admitir que a nossa posição pode ser melhorada não é afirmar a nossa incompetência, mas reconhecer a nossa maturidade.

 

Não são raras as vezes que precisamos de desconstruir para construir. É justamente nesse princípio que se baseia o método socrático: no contexto da retórica, Sócrates fazia um diálogo com um outro participante numa dinâmica de perguntas e respostas. As perguntas do filósofo tinham o propósito de, em primeiro lugar, levar o outro a concluir que nada sabia ("Só sei que nada sei") e, por fim, que teria de partir em busca do conhecimento interior ("Conhece-te a ti mesmo"). Obviamente que este raciocínio era aplicado sobre questões conceptuais e não em relação à necessidade de se criar uma companhia de transportes inter-ilhas com submarinos. 

 

Mesmo assim, reivindico o essencial: ponderemos bem a nossa posição, reconhecendo as nossas restrições sobre a matéria e depois aventuremo-nos a perseguir a "verdade", junto de quem nos pode ajudar.

2021_04_06_Mais um treinador de bancada

A partir de hoje, a cada terça-feira, os terceirenses vão aturar mais um treinador de bancada, mas, desta vez, um mariense.

            É com grande gosto e sentido de responsabilidade que aceito e agradeço este desafio. Espero poder contribuir para uma maior pluralidade de pensamento e trazer a este jornal o olhar de alguém descomprometido com os interesses que podem existir na ilha. O facto de ser mariense tem como consequência a minha impossibilidade de expor situações específicas da ilha Terceira, por falta de conhecimento de causa, no entanto traz o benefício de uma voz com outras experiências, que vive noutro contexto. Que esta colaboração seja baseada numa partilha de humildade e racionalidade.

            Sendo eu, quase de certeza, um completo estranho para quem está a ler este artigo, penso ser de bom tom fazer uma pequena apresentação (e que aqui fique um pedido de desculpas pela possível falta de humildade que os parágrafos que se seguem podem demonstrar).

            Nasci em 2002, pelo que, fazendo as contas, tenho uns meros 19 anos. Durante toda a minha vida morei em Santa Maria, só tendo alterado essa realidade no final do ano passado, quando rumei ao Porto para estudar Física.

            Sou fruto de vários privilégios, como a minha avó diz, nasci em berço de ouro. É a ouvir os relatos dos ascendentes familiares e vendo as notícias que o percebo. Sou incapaz de fazer qualquer análise da realidade sem o mencionar, porque na minha experiência de vida não tive obstáculos que muitas pessoas tiveram ou têm.

            Para o meu crescimento contribuiu um apoio familiar muito forte e o entusiasmo de vários professores. Com o seu apoio tive a oportunidade de participar em várias atividades, competições e eventos que em muito me enriqueceram, na forma e no conteúdo.

            As legislativas de 2015 fizeram-me parar para observar o que me rodeava. Não sendo o meu cérebro uma máquina de grande distinção, só em 2017 cheguei à conclusão de que se queria algo, deveria arregaçar as mangas e fazer por isso. Se queria uma Associação de Estudantes interventiva, tinha de perder o medo e avançar. Se queria uma voz interventiva a favor dos alunos nos órgãos escolares, então tinha de perder a preguiça. De 2017 a 2020, com mais e menos fracassos e sucessos, erros e aprendizagens, movi-me pelo entusiasmo de quebrar a barreira entre a escola e a comunidade.

            Ao longo desse percurso apercebi-me da importância da política. Como cheguei a essa conclusão? Tudo é política. Por isso mesmo decidi aproximar-me do partido que melhor me representava: o Bloco de Esquerda. A partir das regionais de 2016 aventurei-me e em 2018 cheguei à comissão política regional. Durante quase dois anos estive em contacto com uma figura que muito admiro e a quem devo o início da minha atividade política: a Zuraida Soares. Em 2020 fui eleito coordenador daquela que é a primeira comissão coordenadora de ilha do Bloco em Santa Maria.

            (Em jeito de curiosidade, gostava de conseguir ter a possibilidade de saber se os leitores reviraram os olhos depois deste parágrafo partidário.)

            E agora aqui estou a mandar postas de pescada.

            É importante termos estes espaços de reflexão, que devem ser alargados a pessoas muito diferentes, sendo, obviamente, o fator idade aqui inserido. No entanto, a par da ponderação é necessário não esquecer que precisamos de sair da nossa bancada e aventurar-nos na realidade.