O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas
Deolindo Amorim
Centro Espírita Léon Denis
“Deolindo Amorim não precisa do meu prefácio. Nem de prefácio nenhum”. Tais as palavras incisivas com que o ilustre confrade Dr. Carlos Imbassahy iniciou a apresentação de outro livro do autor — “O Espiritismo e os Problemas Humanos”.
Depois disso, que poderei eu escrever prefaciando o novo trabalho de Amorim? Bem sei que, ao me cometer a incumbência honrosa, quis ele apenas realçar a velha amizade de vinte anos, da qual tanto me vanglorio, sem pretender que eu pudesse dizer desta obra tudo quanto devia.
Publicando agora “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas", Deolindo Amorim elaborou um oportuno e completo estudo comparativo de nossa doutrina com as outras correntes reencarnacionistas, como o Esoterismo, a Teosofia, a Rosacruz e a Umbanda. Conseguiu mostrar, sem rebuços, que, apesar do traço comum, que é a crença nas vidas sucessivas, essas doutrinas guardam fidelidade à sua origem oriental, permanecendo impregnadas das alegorias e simbolismos tão ao sabor das civilizações do outro hemisfério, enquanto que o Espiritismo não se deixou envolver por essas tendências místicas, preferindo harmonizar-se, desde o seu aparecimento, com o espírito científico que revolucionou o mundo ocidental nos dois últimos séculos e que se estende hoje, a passos largos, em direção ao Oriente.
Não será surpresa que algumas criaturas de nosso meio venham a discordar dos propósitos do autor deste livro, em sua tentativa bem sucedida de avivar as lindes que separam o Espiritismo de outras doutrinas espiritualistas, mostrando os contrastes que o diferenciam das escolas e religiões. Há quem se incline pelo silêncio comprometedor, evitando ressaltar essas distinções, a pretexto de que, se assim procedermos, estaremos agindo intolerantemente e menosprezando os que não seguem à risca os ditames da Codificação Kardeciana.
Vale aqui a transcrição da advertência contida quase ao final do Capítulo I deste livro:
"Todas as doutrinas organizadas têm o seu corpo de princípios, seus postulados, sua orientação. O Espiritualismo, em sua amplitude, é a matriz de muitas escolas, religiões e correntes filosóficas, mas a própria disciplina da inteligência exige que se dê a cada religião ou doutrina o seu lugar inconfundível. Espiritismo é Espiritismo; Teosofia é Teosofia; Ecletismo é Ecletismo. É melhor discernir do que confundir, pois é discernindo que se põe ordem nas ideias para procurar a verdade”.
A sinceridade do autor está aí manifesta; não escreveu uma obra de ataque ou de revide, nem ela resulta de alguma polêmica de que participasse. Serenamente, procura mostrar a inanidade e a inconveniência da afirmativa de que "tudo é a mesma coisa, tudo é Espiritismo”, muitas vezes sustentada pelos adeptos de uma generalização incabível e prejudicial.
Dentre as minudentes diferenciações que Deolindo Amorim trouxe à baila, pareceram-nos exatíssimas as que alinhou em relação à Umbanda, que, de todas aquelas doutrinas reencarnacionistas, é a que mais tem sido confundida com o Espiritismo no Brasil. Não ignoro que o debate acalorado de uns poucos anos atrás, pelo rádio, jornal, livro e tribuna, ainda está a repercutir. Mas, sem eiva de parcialidade, qualquer um poderá ver que o Espiritismo nada tem a ver com as cerimônias litúrgicas e rituais de certas práticas mediúnicas, de que participam elementos paramentados, em atitudes bizarras, ao lado de sinais cabalísticos, imagens, defumadores, velas, charutos, bebidas, etc. Ora, que relação tem a doutrina dos espíritos com tudo isso? Não é ela, no dizer de Kardec, “uma ciência de observação e uma doutrina filosófica”, da qual se originam consequências morais?
O leitor, por certo, irá verificar a justeza dos conceitos do autor quando analisa o real significado da declaração de ser o Espiritismo “tão velho quanto a criação”. O Codificador pretendeu aí lembrar que só a fenomenologia, em que a doutrina buscou elementos para se constituir, é que nasceu com o mundo. Tanto isso é verdade que Allan Kardec veio a acentuar em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cap. I, n.º 5:
“O Espiritismo é uma NOVA CIÊNCIA que, com provas irrecusáveis vem revelar aos homens a existência e a natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal.”
Outros trechos das obras da Codificação são citados por Deo lindo A morim para responder, de modo irretorquível, aos que querem estender a definição de Espiritismo ao conjunto de fenômenos que sempre ocorreram.
Apreciou, ainda, Amorim, e abundantemente, os argumentos dos adeptos dessa generalização, que se esforçam para envolver na denominação de espíritas os profitentes de determinadas seitas. Insurgindo-se contra isso, o autor evidencia a sua capacidade de análise, rememorando as diferentes fases dos estudos de Kardec. Assinala que, se em 1861, o Codificador definia como espírita “o que crê nas manifestações dos espíritos "( O Livro dos Médiuns), verdade é que, em 1863, quase ao término de sua obra granítica e duradoura, quando lhe deu os retoques finais, frutos do amadurecimento e da meditação, Allan Kardec foi bastante claro ao afirmar que: "O Espiritismo não reconhece por seus adeptos senão aqueles que lhe praticam os ensinos e se esforçam por se melhorarem”. Significa isso que pouco ou de nada vaie estabelecermos o complexo intercâmbio com o outro piano, para tentarmos obter dos "guias" os benefícios materiais almejados, sem que aprendamos os ensinamentos da doutrina dos espíritos, através das obras fundamentais, e sem que procedamos à nossa urgente reforma morai, penosa, mas imprescindível.
Também no que toca à interpretação do Evangelho, objeto de um dos capítulos deste livro, ficou comprovado que o Espiritismo é que interpreta o Evangelho em consonância com a lógica e à luz da razão, em vez de ser por ele interpretado. A nossa doutrina leva o homem a se compenetrar de que as promessas de Jesus estão condicionadas ao mérito pessoal de cada um e que pelas obras é que se podem alcançar as bem-aventuranças anunciadas peio Cristo. Exata, portanto, a observação do autor de que “ a moral de Jesus é dinâmica, porque todas as suas expressões se consubstanciam em dois princípios inseparáveis: Responsabilidade e Esforço Próprio ", Fieis ao que a doutrina preceitua, não podemos, nós, espiritistas, viver á espera das graças caídas dos céus e dos privilégios divinos, mas teremos que lutar pelo nosso aprimoramento espiritual e, exercendo uma força cada vez mais atuante, implantar na Terra o primado do amor, marchando assim em demanda da perfeição.
Eis o que podemos, em ligeiras palavras, dizer deste livro, de que a Federação Espírita do Paraná é a editora. A grande Instituição sulina tem sido incansável em trazer a lume os trabalhos de nossos confrades escritores e deve ser consignado aqui um preito de gratidão aos seus dirigentes.
Dispensáveis quaisquer outras considerações em torno dessa mais recente obra de Amorim. Os seus leitores hão-de consagrá-la, como consagradas já foram as anteriores: "Africanismo e Espiritismo", "O Espiritismo e os Problemas Humanos", "O Espiritismo à Luz da Critica” e "O Espiritismo e Criminologia". Quem emergiu do anonimato e, à custa de muito sacrifício, empreendeu com dignidade, sem recursos e sem mestres, a sua formação intelectual, só tendo podido passar pelos bancos de uma Faculdade de Filosofia após os 40 anos de idade, quando já se firmara no conceito dos que o conhecem, dá um belo exemplo às gerações moças de nossa terra, mostrando que o saber não é privilégio dos afortunados e que, quase sempre, os humildes é que se agigantam e ascendem às posições de liderança cultural e espiritual de seus contemporâneos e da posteridade.
LAURO SALLES
Rio de Janeiro, dezembro de 1957
COMPLEMENTANDO. . .
Atendendo comovidamente à convocação amiga de Delta Amorim, eis-me aqui fazendo este outro prefácio, exatamente 30 anos depois do que escrevi para a 1.ª edição deste precioso livro.
Iniciei, então, a apresentação de “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas” valendo-me das palavras do douto e querido confrade Dr. Carlos Imbassahy, insertas na introdução de outro livro do Autor: "Deolindo Amorim não precisa de meu prefácio; nem de prefácio nenhum.”
De fato, 3 decádas decorridas, é com alegria de espírita convicto que verifico como o saudoso Deolindo mais se firmou no conceito de seus companheiros de ideal, e, (porque não dizê-lo?) dentre os não espiritistas que leram os seus trabalhos, abordando o Espiritismo e outros temas, principalmente de História, do Folclore, da Sociologia, da Filosofia, etc.
Assinalo a diversidade dos aspectos no final dos anos 50, quando apareceu este livro e a atualidade. Antes, começava a cessar a incompreensão no tocante à nossa doutrina. Era o finai do sarcasmo, do ataque do púlpito, ou das tribunas acadêmicas; não mais a persegui. Hoje, coroando o trabalho vindo dos fins do século passado, o Espiritismo acabou por se firmar entre nós. Foi o fruto de abnegados pioneiros, que por muito tempo souberam enfrentar tantas campanhas. Revelaram-se no terreno da assistência soei ai, no da divulgação e, acima de tudo, propagaram a Doutrina peio exemplo, mostrando que ela empreende a reforma moral e incute no homem o sentimento do amor, revivendo os ensinamentos de Jesus, como o Consolador prometido.
Quem quer que faça um balanço dos últimos 30 anos verá que o Espiritismo, a par do que ressaltei, invadiu a Universidade, onde aos poucos granjeou milhares de adeptos, discípulos de ontem, mestres e profissionais de hoje, à sua formação intelectual o conhecimento de nossa Doutrina, que passou a constituir tema obrigatório, entre nós, dos mais diferentes campos do conhecimento humano, como não podia deixar de ser, como universalista que é.
Temos que reconhecer, desapaixonadamente, que Deolindo Amorim foi um dos artífices dessa revolução. A dezena de livros que escreveu, os artigos nos jornais e revistas espíritas nacionais e estrangeiras, a presença constante na tribuna dos Centros, as conferências em ambiente estranho, as palestras radiofônicas, a participação em congressos, a volumosa correspondência trocada entre confrades e curiosos, não espíritas, daqui e de outros países e, sobretudo, a fundação do Instituto de Cultura Espírita Brasil, celeiro de estudiosos, tudo isto realizado dia a dia, num labor incessante, até sua partida, fizeram de Deolindo Amorim, um dos maiores vultos do Espiritismo. Paulatinamente, emergiu do anonimato e do meio humilde de que provinha, para se tornar a pouco e pouco o expositor e mestre dos de sua geração e de mais duas outras que se lhe seguiram. Sua atividade se estendeu na seara espírita e em outros campos intelectuais, durante quase meio século.
A leitura desta obra é sempre oportuna e, desde a 2- edição vem ela acrescida de dois capítulos tratando do sincretismo religioso, pelo Autor também abordado antes em “Africanismo e Espiritismo”. Houve o cuidado de definir, de discernir, de mostrar o que é mediunismo e o que é Espiritismo, doutrina filosófica, científica e religiosa.
Se, ao ser editado pela primeira vez este livro, ainda reinava uma certa celeuma, envolvendo-nos e outros estudiosos em discussão, é certo que a tempestade foi se amainando. A propagação do Espiritismo entre nós e a sua compreensão pela sociedade nos leva a dizer que não há mais melindres nem suscetibilidades feridas. E o autor, sem atacar outras crenças, soube friamente afastar muitas dúvidas. Cumpriu o seu intento quando advertiu: “É melhor discernir do que confundir, pois é discernindo que se põe ordem nas ideias, para procurar a verdade.
Quem ler este livro terá orientação segura para diferençar o Espiritismo de outras ideias imortalistas. O Autor foi feliz em seu roteiro, como foi em tudo o mais que escreveu.
Além disto, sua elevada conduta, dentro do lar, no seio de seus companheiros, no setor de suas atividades, como membro também da Sociedade Brasileira de Filosofia, da Academia de Letras do Estado do Rio de Janeiro, onde se revelou um intelectual de estirpe, tais predicados caracterizaram uma vida de intensa participação de um homem bom e culto que, sem ser místico, foi um verdadeiro cristão. A ele me refiro com emoção, depois de uma convivência de perto de 45 anos. Foi o meu orientador seguro e discreto na caminhada espírita.
Ao final, duas lembranças necessárias. Uma, de enaltecimento à colaboradora permanente e discreta de Amorim, a sua Delta, paciente e amorosa, que incansavelmente ajuda a manter viva a memória do Autor. Outra, de louvor ao Departamento Editorial do Centro Espírita Léon Denis, responsável por esta 3ª edição; tal como a Federação Espírita do Paraná, que realizou as edições anteriores, presta um relevante serviço, divulgando livro tão apreciado.
LAURO SALLES
(Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1987.)
A 1.ª edição deste livro foi publicada em 1958 pela Federação Espírita do Paraná. Tendo-se esgotado a tiragem há bastante tempo, nosso prezado confrade e amigo João Ghignone, venerando presidente daquela Casa, achou por bem lançar o livro novamente, com o que logo concordamos. Deveríamos, no entanto, reexaminá-lo para a 2- edição, modificando o que tivesse de ser modificado, se fosse o caso, ou acrescentando o que nos parecesse conveniente. Fizemo-lo sem perda de tempo, natural mente aproveitando os vagares da luta cotidiana, mas não houve, na realidade, o que modificar ou reduzir; acrescentamos, porém, dois capítulos a respeito do sincretismo religioso. Sem a mínima intenção polêmica, cremos que nem seria necessário dizê-lo, tivemos apenas, sinceramente, a preocupação inequívoca de situar o Espiritismo em face das manifestações e práticas religiosas de vários tipos, existentes no Brasil.
Sentimos a cada passo que há muita desfiguração, muita interpretação obscura, o que aliás, também se nota nos próprios círculos intelectuais que se interessam pelo fenômeno religioso no campo das ciências sociais, pois alguns autores, especialistas neste ramo de estudos, englobam erroneamente o Espiritismo nas cenas mais grotescas de "mediunismo primitivo”. Dá-se, assim, uma ideia completamente inexata do Espiritismo, o que demonstra, portanto, falta de contato com sua terminologia, seu verdadeiro campo de ação, suas legítimas fontes doutrinárias.
Incluímos ainda uma bibliografia, que consideramos necessária, indicando apenas, nos próprios textos doutrinários, os pontos de interesse específico no caso do sincretismo religioso. Pensamos que, com esta “embocadura", poderemos facilitar o trabalho eventual daqueles que vierem a fazer confronto ou crítica, necessitando, por isso, das fontes imediatas. A simples relação das obras básicas da Doutrina Espírita, como bibliografia gerai, sem precisar o local, o número da questão referida, o ponto certo da referência, não nos parece aconselhável, principal- mente porque às vezes se torna muito demorado, ou mesmo penoso, o trabalho de manusear uma obra inteira ou passar e repassar dois, três ou mais livros para localizar uma expressão textual, uma frase procurada. Digamos, por exemplo, que esteja em discussão a diferença entre reencarnaçâo e metempsicose (volta do espírito em corpo anima!) e haja necessidade momentânea de sanar uma dúvida. Sabe- se muito bem que a Doutrina Espírita não aceita a metempsicose. Mas em que obra está a declaração expressa da Doutrina? Em que parte ou questão? Como fazer uma verificação urgente? Procurar uma frase ou expressão dentro de um corpo de doutrina, sem indicação alguma, é como andar sem rumo dentro de uma floresta. Será necessário então folhear pacientemente todo O Livro dos Espíritos até encontrar o ponto exato em que a Doutrina fala em metempsicose? Não será melhor apontar logo a questão n.º 611, seguindo-se até à de n.º 613? O leitor ou o interessado vai diretamente em cima, como se diz.
Resolvemos, pois, adotar este critério na parte relativa às obras de Allan Kardec, aproveitando naturalmente um pouco de experiência em pesquisas de fontes, pois é o critério mais prático, a nosso ver, levando em consideração o fim que temos em mira. Em lugar de fazer citações apenas formais, apresentando simplesmente uma lista de obras consultadas ou mencionadas por necessidade, o que é bem mais cômodo, preferimos determinar as questões que têm relação direta com o texto do livro, dando os respectivos números. É uma disposição bibliográfica mais remissiva. Daí por diante, seguimos o uso geral. Atendendo ainda à circunstância de que nosso trabalho trata da reencarnação, quer na 1.ª, quer na 2.ª edição, julgamos de bom alvitre enumerar pelo menos algumas obras, entre as mais autorizadas sobre o assunto, com vistas principalmente aos críticos e, de um modo geral, às pessoas mal informadas a respeito da tese reencarnacionista.
Como, porém, o sincretismo religioso tem repercussões na esfera sócio-cultural, evidentemente não poderíamos dispensar leituras a bem dizer obrigatórias, fora da conceituação espírita, pelo menos na parte histórica. Justamente por este motivo é que aparece, no fim, uma bibliografia antropológica, estritamente necessária, complementada, por algumas obras de outro gênero, mas também elucidativas em determinados pontos.
Entregando ao público a 2.ª edição de “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas”, agradecemos a iniciativa do estimado amigo João Ghignone, a quem prestamos nossa homenagem de coração, e, como preito de justiça, devemos reconhecer o estímulo, que sempre recebemos da Federação Espírita do Paraná, e de confrades e amigos, indistintamente. Substituímos algumas palavras e modificamos certas expressões contidas na 1.ª edição, sem a mínima alteração do pensamento.
Homenagem a Léon Denis
“O ESPIRITISMO REPRESENTA UMA FASE NOVA DA EVOLUÇÃO HUMANA.”
— Léon Denis —
Nascido no dia 1.º de janeiro de 1846, na localidade francesa de Foug, desencarnou em 12 de abril de 1927, já octogenário, em Tours, depois de uma existência verdadeiramente útil e fecunda, porque dedicada, na maior parte, à luminosa obra de espiritualização da Humanidade. Léon Denis pertence, com inteira justiça, à galeria dos mais autênticos filósofos espíritas. Discípulo e continuador de Allan Kardec, ninguém o foi, até hoje, com mais afeição e vigor intelectual. Foram seus pais Joseph Denis e Anne Lucie Liouville. Oriundo de família pobre, sua infância foi tão difícil como a juventude: sem pouso demorado, sendo obrigado a residir ora nesta, ora naquela cidade, não teve tempo de “gozar a vida”, como tantos outros jovens que lutam muito para estudar. Venceu pelo esforço e pela “sede de saber“, tendo-se tomado, sem o mais leve exagero, uma das maiores glórias das letras espíritas. Desde moço, distinguiu- se como orador, na Loja Maçónica de Tours; mas a sua vocação de filósofo, sempre preocupado com o porquê da vida, viria despertar sem demora, pois lhe era inata a propensão para os estudos sérios, para a especulação e a meditação. Léon Denis encontrou na Doutrina Espírita o caminho que o conduziu à grandiosa esfera da Filosofia.
Foi em 1864, quando tinha apenas 18 anos de idade, que Léon Denis começou a tomar interesse pelo Espiritismo. Chegara-lhe às mãos O Livro dos Espíritos, e tal não se dera por “acaso”. Foi o seu primeiro contato com Allan Kardec. Já nesse primeiro passo, revelando a maturidade de um “espírito velho” em corpo moço, Léon Denis exclamou com a serenidade e o equilíbrio de um homem de pensamento, precocemente atraído para a seara dos problemas filosóficos: Encontrei uma solução clara, completa, lógica, do problema universal. Minha convicção ficou alicerçada. A teoria espírita dissipa a minha indiferença e as minhas dúvidas. Assim falava Léon Denis, após meditada leitura da primeira obra básica do Espiritismo. Em Tours, onde estava residindo, justamente uma das primeiras cidades de França a conhecer a doutrina codificada por Allan Kardec, havia, já, um grupo dirigido pelo Dr. Chauvet, autor de um livro intitulado Espirito, Força e Matéria, em resposta ao materialista Büchner, que escrevera Força e Matéria. Àquele tempo, Sardou, Emillie de Girardin, Gauthier e outras figuras de projeção intelectual já faziam difusão espírita através de novelas, peças teatrais e outras produções literárias.
Em 1867, ainda em Tours, Léon Denis travou relações pessoais com Allan Kardec, por motivo de uma visita do Codificador do Espiritismo. Os espíritas, que já eram centenas, haviam preparado a recepção de Allan Kardec, incluindo uma conferência pública, mas logo ocorreu um imprevisto: a autoridade local negara licença, porque as leis da França, então sob regime excepcional, não permitiam reuniões. Léon Denis entusiasmou-se, não se deu por vencido, juntou-se aos promotores da conferência e, afinal, Kardec falou ao público, à sombra das árvores, noutro local. Denis aproximou-se, aí, de Kardec e sua esposa, Amélie Boudet. Tempos depois, em circunstâncias especialíssimas, em virtude da guerra franco-prussiana, em 1870, deslocou-se Léon Denis daquela cidade, a fim de servir, como voluntário, na 1.ª Legião da Guarda, para defender a França contra as tropas inimigas. Passada a luta, voltou Léon Denis ao estudo e às meditações, apesar das dificuldades decorrentes da falta de recursos materiais. Sua produção mais intensa é de 1880 em diante, em virtude dos debates filosóficos entre o Positivismo, o Idealismo, o Agnosticismo e outras correntes. Léon Denis enfrentou a oposição universitária, que estava muito influenciada pela filosofia positivista, e trabalhou incessantemente para colocar o Espiritismo no lugar merecido entre as correntes de pensamento que agitavam o espírito europeu. Sua projeção se consolidou em 1889, com a organização do Congresso Espiritualista Internacional, reunido naquele ano. Coube a Léon Denis, como justa homenagem, a presidência do III Congresso Espírita Internacional, reunido em Paris, em 1925, do qual saiu a Federação Espírita Internacional. Era Presidente de Honra da Federação Internacional, da União Espírita Francesa e da União Espírita da Catalunha. Viveu estudando, pensando e escrevendo. Sua obra é um dos mais preciosos tesouros da literatura espírita.
Vamos dar, finalmente, como remate desta breve notícia uma relação de livros de Léon Denis: Depois da Morte; O Problema do Ser, do Destino e da Dor (Síntese científico-filosófica do Espiritismo); O Porquê da Vida; Jeanne D'Arc Médium; Cristianismo e Espiritismo; No Invisível; O Grande Enigma; O Além e a Sobrevivência do Ser, Catecismo Espirita. Escritor, filósofo e moralista, Léon Denis é uma das mais lídimas e mais altas expressões da cultura espirita Sua obra deleita a inteligência pela beleza do estilo, mas ilumina o espírito pela sabedoria das ideias. Léon Denis é o patrono da cadeira n.º 8 da Sociedade Brasileira de Filosofia, por escolha de um de seus membros.
Lembrando o Evangelho, Léon Denis soube fazer bom uso dos talentos, porque escreveu muito, mas tudo quanto escreveu foi proveitoso. Não abusou da inteligência, não malbaratou os conhecimentos, não mercadejou a pena: viveu com dignidade, como homem simples, e deixou uma obra que, através dos tempos, continua a ser um roteiro inconfundível para quantos quiserem trilhar o caminho do Bem. Rei à filosofia do Espiritismo, a obra de Léon Denis é uma das melhores e mais profundas interpretações do verdadeiro espírito e dos reais objetivos da doutrina codificada por Allan Kardec.
A Léon Denis, cujos livros me proporcionaram incalculáveis benefícios espirituais, nas horas mais difíceis,
HOMENAGEM DO AUTOR
Parece-nos cabível, a título de introdução, um esclarecimento a respeito deste trabalho. Não estava no plano de nossas cogitações escrever um livro sobre os assuntos que deram motivo a este volume. Tendo escrito, entre fevereiro e maio de 1957, uma série de artigos sobre "Espiritismo e Espiritualismo", publicados no conceituado periódico “Mundo Espirita", não pensávamos em voltar àquele tema, conquanto a matéria sugerisse maior desenvolvimento. As mesmas ideias já haviam sido objeto de duas ou três palestras no programa “Seleções Espiritualistas", na Rádio Guanabara.
Quando menos esperávamos, eis que nos chega uma solicitação amiga, e dessas solicitações que têm a significação espiritual de uma ordem, porque oriundas de amizades que muito nos desvanecem: nossos Confrades João Ghignone e Dr. Francisco Raitani, respectivamente Presidente da Federação Espírita do Paraná e então Diretor do velho órgão "Mundo Espírita", tão caro em nossas afeições, entendiam que aqueles nossos artigos deveriam ser ampliados e transformados em livro. Que fazer, diante de uma sugestão fraternal e honrosa, tanto mais quanto se invocava, como razão determinante, o interesse da difusão espírita? Pusemos mãos à obra, sem perda de tempo. Eis, a razão de ser deste livro.
Estamos, porém, na obrigação de confessar que, dos artigos intitulados “Espiritismo e Espiritualismo", aproveitamos apenas alguns trechos, justamente para não incidirmos na repetição, aliás monótona e desnecessária, do que já fora divulgado pela imprensa. A ideia geral permanece, mas os capítulos que logo adiante vão aparecer, com o mesmo objetivo dos citados artigos, foram preparados especialmente para este livro. Outro ponto, cuja elucidação nos parece igualmente indispensável: fizemos questão de evitar pretensões de erudição; os leitores (aqueles que porventura nos honrarem com a sua atenção) irão verificar, sem dificuldade, que nos restringimos, tanto quanto possível, às citações absolutamente necessárias, sem a preocupação de extensas indicações bibliográficas. Recorremos exclusivamente às fontes adequadas aos casos que se nos apresentaram no decorrer de cada capítulo. Nada mais.
Desejamos, apenas, que a nossa intenção seja bem compreendida. Escrevemos este trabalho com o sincero propósito de concorrer, embora despretensiosamente, para que se esclareça cada vez mais a verdadeira posição do Espiritismo perante as doutrinas e os cultos espiritualistas. Todas as doutrinas, como todos os credos, sejam quais forem as suas origens, nos merecem o mais justo respeito. Não pretendemos estabelecer gradações ou estimativas, principalmente porque, em se tratando de problemas de consciência, matéria de natureza muito individual, só mesmo o foro íntimo é que pode optar peia melhor doutrina ou religião, de acordo com a receptividade e o discernimento de cada pessoa. Devemos, porém, dizer claramente O QUE É E O QUE NÃO É ESPIRITISMO, para que não haja confusão nem tomem corpo interpretações duvidosas. Não temos outro intuito. Tentar esclarecer não é demolir, é procurar servirá Verdade, respeitando as ideias alheias.
Rio de Janeiro, dezembro de 1957.
D.A.
"O Espiritismo é universalista, porque os fatos do Espirito são universais...”
Um dos aspectos que caracterizam bem a doutrina codificada por Allan Kardec, precisamente porque estabelece a diferença entre o Espiritismo e as outras doutrinas espiritualistas, é a sua organização, a sua contextura de princípios. O codificador deixou muito claro que o ESPIRITUALISMO, como generalidade, abrange o Espiritismo e tantas outras doutrinas imortalistas, o que não impede, contudo, que a Doutrina Espírita se apresente com definições e particularidades que lhe são próprias. Não encontramos, sinceramente, uma razão clara ou convincente para que se diga, como ouvimos às vezes, que o Espiritismo deve entrar em quaisquer formas de combinação religiosa ou doutrinária, uma vez que, no fundo, todas as doutrinas e religiões do grupo espiritualista têm o mesmo ponto de partida: a sobrevivência do espírito. O argumento é realmente pacífico, até certo ponto. Na realidade, enquanto não consideramos os elementos discriminativos, todos os movimentos espiritualistas se identificam, naturalmente. Diz-se frequentemente que TUDO É ESPIRITUALISMO, e jamais negaríamos o acerto desta generalização. Não é por este motivo, todavia, que se deve desfigurar o verdadeiro caráter do Espiritismo como doutrina organizada, querendo que se amolde ou seja adaptado a qualquer tipo indefinido de espiritualismo, perdendo o que lhe é intrínseco e distintivo.
Dentro da concepção geral de Espiritualismo, podemos indicar, pelo menos, quatro modalidades, na seguinte ordem:
1.ª) — a concepção comum, isto é, a que admite a existência de um princípio espiritual, ainda impreciso ou vago, sem filiação a qualquer sistema doutrinário ou filosófico;
2.ª) — a concepção teológica, que aceita a imortalidade da alma e a vida futura após a morte, em razão de dogmas e “pontos de fé”, sem demonstração experimental;
3.ª) — a concepção reencarnacionista das diversas escolas espiritualistas (Teosofia, Rosacruz, Esoterismo, etc.), cada qual com a sua organização, sua sistemática, seu corpo de ensinos;
4.ª) — finalmente, a concepção espírita de espiritualismo, partindo de uma base experimental – o fenômeno – e formando um corpo de doutrina, que, embora seja também reencarnacionista, apresenta particularidades diferentes das outras doutrinas do mesmo ramo.
Há, inegavelmente, três pontos em que o Espiritismo, a Teosofia, o Esoterismo, a Escola Rosacruciana e outras correntes espiritualistas se igualam sem discrepância: a imortalidade do espírito (tese oposta ao materialismo), a reencarnação e a existência de Deus. Fora das linhas gerais, entretanto, surgem motivos naturais de desencontro, já em relação à maneira de colocar e interpretar alguns problemas de profundidade, já pela diferença de terminologia e ainda pelas, disposições internas de cada escola espiritualista. É certo que as doutrinas e correntes espiritualistas, com o aceitarem a sobrevivência espiritual, não negam nem poderiam negar a manifestação de entidades do mundo extraterreno, mas também é certo que os seus argumentos imortalistas não se apoiam na prática mediúnica, segundo as normas espíritas, porque os seus ensinos procedem de velhos troncos orientais, ao passo que o movimento espírita nasceu no Ocidente, após os fatos e as circunstâncias que deram origem à codificação de sua doutrina, no século XIX.
Para o Espiritismo, a experimentação mediúnica é uma necessidade, não propriamente como fim mas logicamente como meio indispensável. Sem o fenômeno, que é a prova objetiva da imortalidade da alma, não haveria espiritualismo experimental. Então, a filosofia espiritualista seria apenas a crença na vida do além, uma crença tão discutível, tão insustentável como as tradições da teologia. As igrejas sempre ensinaram a imortalidade da alma e as sanções futuras, mas o espiritualismo dos teólogos, justamente porque afirmava sem demonstrar os seus postulados, não resistiu às críticas do espírito científico e, ainda mais, abriu caminho para o agnosticismo, a descrença, o materialismo em que mergulharam muitos espíritos de escol, porque não encontraram segurança em suas crenças.
A que ficou reduzido o chamado espiritualismo tradicional, em consequência dos desafios da ciência positiva? Ficou reduzido, como até hoje, a simples questão de fé ou, quando muito, ao convencionalismo dos atos religiosos, para efeito social. Não fossem os fatos, que o Espiritismo interpretou, com o mais agudo senso filosófico, a decadência do espiritualismo ainda seria maior, a partir da segunda metade do século passado. De que serviria pregar a existência do espírito e a vida futura depois da morte, sem as provas, sem o testemunho da evidência? A fé, especialmente na Europa, que era o foco mais brilhante do pensamento ocidental, estava em crise quando se iniciou a codificação do Espiritismo, nove anos depois dos fenômenos de Hydesville, verificados em 1848, nos Estados Unidos. Não há exagero em afirmar que, naquele gravíssimo conflito de ideias, foi o Espiritismo o único movimento que pôde enfrentar o materialismo com as objeções mais fortes, porque se apoiou nos fatos, nas experiências científicas. O Espiritismo teve, insofismavelmente, um papel histórico dos mais relevantes. É justo, portanto, reconhecer que O ESPIRITISMO REERGUEU O ESPIRITUALISMO NO OCIDENTE e, ao mesmo tempo, revigorou a fé sobre alicerces racionais. O Espiritismo demonstrou que a existência do espírito não é simples problema de credulidade, não é uma “nebulosidade metafísica", como diziam certos apologistas do espírito positivo.
Daí por diante, uma vez constituída a doutrina sobre os fatos, o Espiritismo passou a ocupar o lugar que lhe é próprio no movimento espiritualista. Dos fenômenos de Hydesville (já é muito conhecida a história das irmãs Fox) saiu o Moderno Espiritualismo norte-americano, ao qual logo se afez o Espiritualismo na Inglaterra por afinidades históricas e culturais, com ramificações pelos países da faixa anglo-saxônica, nórdica, etc. O movimento iniciado na França, em 1854, por Allan Kardec, movimento que deu causa à formação de um corpo de doutrina com o nome de ESPIRITISMO, tomou um sentido diferente, apesar de se haver firmado, também, na fenomenologia extra-humana.
Sob o ponto de vista fenomenológico ou experimental, o Espiritismo tem relações com o Moderno Espiritualismo ocidental, uma vez que o elemento primordial desse movimento foi o fato mediúnico. Do mesmo modo, o Espiritismo tem vínculos com as correntes espiritualistas do Oriente, sob o ponto de vista filosófico da reencarnação; sob o ponto de vista histórico, entretanto, nem mesmo com as escolas e doutrinas reencarnacionistas a codificação do Espiritismo tem liames diretos. Quando se formou a doutrina com o nome de Espiritismo? No século XIX. As doutrinas orientais, aquelas que têm mais afinidade com o Espiritismo, em virtude da velha crença na reencarnação, já existiam desde milênios.
O Espiritismo não adotou a reencarnação simplesmente porque esta crença já existia no Oriente; e tanto isto é exato, que o Espiritismo não aceitou certos dogmas reencarnacionistas admitidos em grupos orientais. Um deles, como se sabe, é o da transmigração da alma através de corpo de animal. A Doutrina Espírita rejeitou este ponto. (Veja-se O LIVRO DOS ESPÍRITOS, nas questões n.os 118 e 612: “Poderia reencarnar em animal o Espírito que animou o corpo de um homem?” Isso seria retrogradar, e o Espírito não retrograda.) A concepção reencarnacionista do Espiritismo também não se ajusta ao sistema de castas do Bramanismo. Somos todos reencarnacionistas, afinal de contas, mas nem tudo quanto se ensina em determinadas escolas espiritualistas está em harmonia com a Doutrina Espirita. Os rosacrucianos, por exemplo, representam ainda hoje uma das mais antigas e mais altas correntes orientalistas. São reencarnacionistas. Entretanto a doutrina Rosacruz, que é uma doutrina secreta, e das mais recuadas na história do Espiritualismo, tem os seus símbolos, as suas cerimônias, os seus conceitos, a sua maneira, enfim, de explicar o infinito imanifesto, os sete planos da consciência, a alma do mundo, e assim por diante. Os rosacrucianos têm uma série de aforismos pelos quais a sua doutrina chega aos estudiosos sob forma sutil e velada. É uma doutrina profunda, cujas raízes são as mais longínquas. Conquanto as ideias reencarnacionistas da Rosacruz concordem com a interpretação espírita, o seu método é diferente. A doutrina secreta dos Rosacruzes utiliza o simbolismo para explicar os problemas atinentes à alma e à reencarnação, enquanto o Espiritismo, aproximando-se mais da mentalidade ocidental, procura sempre desvendar os mistérios no espírito humano. Seus ensinos, por isso mesmo, não têm simbolismo. Sem ideias preconcebidas, sem o bafejo de nenhuma Ordem ou Fraternidade secreta, como de nenhuma fé, o Espiritismo partiu da observação dos fatos. O método que mais lhe quadraria às solicitações do raciocínio teria de ser, forçosamente, o método indutivo, apropriado às exigências experimentais. É o que nos diz o Codificador do Espiritismo: Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas aplicando o método experimentai. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas, ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz- lhes as consequências e busca as aplicações. Em filosofia, tomando como ponto firme a existência de uma inteligência suprema ou de uma CAUSA DAS CAUSAS - Deus - o Espiritismo desce da origem das coisas aos seus efeitos. E a dedução. Embora a sua doutrina comporte o método dedutivo, pois é das causas que caminhamos para as consequências, o Espiritismo não aceitou nenhuma verdade apriorística.
As conclusões do Espiritismo não vieram, portanto, das tradições espiritualistas do Oriente, onde já se aceitavam princípios e revelações que o Ocidente ainda estava muito longe de compreender, justamente porque faltava a demonstração, a base de convicção. O Espiritismo não saiu de nenhuma escola ou doutrina oriental: nem da Rosacruz ou da Teosofia, nem do Esoterismo ou do Bramanismo. O que existe, e é natural, são relações e afinidades nos pontos em que as doutrinas espiritualistas se conformam à ideia primordial das “vidas sucessivas”. O modo de explicar a reencarnação ou de figurar as situações do espírito nas etapas progressivas exige um simbolismo, uma esquematização especial, tanto na doutrina dos Rosacruz es quanto na Teosofia, e assim por diante. O Espiritismo não poderia seguir as veredas de nenhuma dessas doutrinas, porque usa outra linguagem, sem símbolos, sem alegoria, sem subordinação histórica nem doutrinária às antigas fontes orientais. Podemos dizer que o Espiritismo esposou a reencarnação, tendo incorporado esta doutrina aos fundamentos de sua filosofia, segundo os ensinos dos espíritos, de maneira concordante. Diversos espíritos (não foi um espírito, apenas) em momentos diversos, através de médiuns diferentes, afirmaram unanimemente a veracidade da reencarnação. Allan Kardec serviu-se do concurso de MAIS DE DEZ MÉDIUNS, e ele próprio confrontou e analisou todas as respostas.
Que fale, agora, o Codificador do Espiritismo:
“Tendo-me as circunstâncias posto em relação com outros médiuns, sempre que se apresentava ocasião eu a aproveitava para propor algumas questões que me pareciam mais espinhosas. Foi dessa maneira que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes modeladas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição do | O Livro dos Espíritos”, entregue à publicação em 1857(Allan Kardec - “OBRAS PÓSTUMAS”, 2.ª parte).
O ensino da reencarnação, apesar de antiquíssimo, não chegou ao Espiritismo pelas doutrinas secretas, mas pelas comunicações dos espíritos. Ainda assim, não foi aceito passivamente, mas pelo raciocínio, pela comparação, pela confirmação coletiva. Não há, realmente, um nexo de interdependência com as escolas antigas, mas apenas coincidência. Allan Kardec verificou, em primeiro lugar, que, sendo a reencarnação uma crença muito difundida no Oriente, diversos espíritos, sem dissonância, vieram reafirmá-la com esclarecimentos aceitáveis, sem o véu do pensamento oculto; em segundo lugar, o próprio Kardec, pelos seus raciocínios, pelo seu senso analítico, se convenceu de que a reencarnação é uma tese lógica, sobretudo porque é a solução mais racional para certos problemas transcendentais, como a justiça divina em face das desigualdades humanas, o livre arbítrio e o determinismo, antipatias e afeições, como tantos outros problemas filosóficos.
Se, portanto, a Codificação do Espiritismo surgiu em condições especiais, sem influência imediata dos ensinos ocultistas, é natural que sua estrutura seja independente, e o é, de fato, porque tem sua terminologia, suas ideias próprias para a apresentação e discussão de problemas que outras doutrinas espiritualistas encaminham por meios diferentes, uma vez que raciocinam dentro de outro sistema de proposições. Para o perispírito, por exemplo, que é um elemento de muita significação na Doutrina Espírita, elemento já demonstrado objetivamente, a Teosofia tem uma classificação complexa, com divisões entre corpo astral, corpo mental e corpo causal, em virtude das quais a definição do corpo fluídico ou corpo intermediário toma a feição muito diferente daquela por que é apresentado no Espiritismo. Diz um dos mais ilustres instrutores teosóficos:
"... cada um de nós tem um corpo chamado “corpo astral”, feito de matéria “astra”, matéria assim qualificada porque é cintilante e luminosa por si mesma e possuímos também um “corpo mental” e um “corpo causal” feitos de matéria pertencente ao mundo mental”. C. Jinarajadasa — FUNDAMENTOS DA TEOSOFIA.
A explicação teosófica está muito bem fundamentada nas bases de sua doutrina, mas não se entrosa com a classificação espírita. O princípio é o mesmo, tanto para o Espiritismo, como para a Teosofia e outras escolas: a existência de um corpo que se interpõe entre o espírito e a matéria. Todas as doutrinas que admitem a realidade desse corpo, inclusive o Espiritismo, têm uma concepção trinária do homem; corpo carnal, corpo fluídico, espírito. O Espiritismo dá ao corpo fluídico o nome de perispírito, enquanto a Teosofia lhe dá uma designação diferente, embora encerrando ideia muito aproximada. O Espiritismo define o perispírito com a maior simplicidade possível: Envoltório semi-material do Espírito. Nos encarnados, serve de intermediário entre o Espírito e a matéria. Nos errantes (desencarnados) constitui o corpo fluídico do Espírito. (O LIVRO DOS MÉDIUNS). De que matéria ou de que forma de matéria se compõe o perispírito? De uma substância vaporosa — diz a Doutrina Espírita, extraída do "fluido universal”. E por isso mesmo que o perispírito não se apresenta do mesmo modo - sutil ou grosseiro — em todos os mundos, porque varia de acordo com as condições de cada mundo. A substância fluídica é maleável. (O LIVRO DOS ESPÍRITOS — Questão n.º 94). A Teosofia concorda com o Espiritismo neste ponto, mas as suas noções de corpo fluídico ou de cascão não podem combinar com a linguagem espírita. A matéria constitutiva do perispírito é mais densa ou menos densa, segundo o mundo em que se acha o espírito. Isto quer dizer que essa matéria fluídica sofre a influência do espírito, se este é adiantado ou atrasado. Para o Espiritismo, naturalmente, a divisão do corpo fluídico em três partes — astral, mental e causal — ou em corpo superior e corpo inferior não tem valor essencial.
Ensina Annie Besant, uma das maiores figuras mundiais da Teosofia, que o “corpo astral” é o campo dos “apetites, concupiscência, desejos, paixões e emoções”. (A Vida do Homem em Três Mundos). É, portanto, a parte do corpo fluídico que está mais próxima da animalidade, enquanto o “corpo causal”, segundo a variante ocultista, é inerente à individualidade, ao Eu do espírito, e por isso permanece através das existências sucessivas e conserva as experiências do passado. Então, daí se segue que aquilo que se torna visível e tangível é apenas esse corpo grosseiro, a parte de fora, vamos dizer assim, pois as outras partes do corpo fluídico pertencem a outras esferas menos perceptíveis. O corpo astral modifica-se, o corpo causal é permanente. O que se exterioriza no “duplo etéreo” é a forma vulgar ou animalizada. Saindo, agora, da Teosofia, vamos ver o que diz o Espiritismo. O perispírito ou corpo fluídico dos Espíritos - ensina a Doutrina Espírita - é um dos mais importantes produtos do fluído cósmico; é uma condensação desse fluído em torno de um foco de inteligência ou alma. Definição simples e clara. Ainda não é tudo. Vejamos, depois disto, o que afirma a Doutrina Espírita sobre as relações do perispírito com o meio ambiente: Do meio onde se encontra é que o Espírito extrai o seu perispírito, isto é, esse envoltório ele o forma dos fluidos ambientes. Resulta daí que os elementos constitutivos do perispírito naturalmente variam conforme os mundos. Se, por um lado, existe relação imediata entre o perispírito e o meio de onde pode o espírito absorver a matéria fluídica que lhe é necessária, também existe, por outro lado, relação direta entre o perispírito e o grau de adiantamento ou de atraso moral do espírito. A Doutrina Espírita não deixa a menor dúvida sobre este ponto: A natureza do envoltório fluídico está sempre em relação com o grau de adiantamento moral do Espírito. Os espíritos inferiores não podem mudar de envoltório a seu bel prazer, pelo que não podem| mudar, à vontade, de um mundo para outro (“A GÊNESE” — cap. XIV, n.º 8 e 9). Se acompanharmos a sequência da doutrina, neste mesmo capítulo, chegaremos à seguinte questão: a expressão grosseira do perispírito, em sua parte visível ou tangível, está em harmonia com o meio em que se acha o espírito.
Há ocasiões em que um espírito muito adiantado se vê na contingência de utilizar fluídos grosseiros, temporariamente, para suportar o ambiente do mundo em que se encontre. É uma necessidade transitória. Se, como ensina o Espiritismo, os espíritos superiores podem vir a mundos inferiores, seja em missão, seja por outro motivo, é natural que se utilizem dos “elementos constitutivos do mundo onde entram", justamente porque esse mundo tem uma atmosfera fluídica muito diferente. O espírito necessita de revestimento adequado, para ter ação sobre o mundo que lhe é destinado.
O Espiritismo vê o perispírito ou corpo fluídico como um todo, embora sujeito às influências que lhe determinem modificações em cada mundo, na razão lógica do progresso ou do retardamento. O corpo astral, que a Teosofia considera inferior, porque é a parte em que se refletem as concupiscências, paixões» etc., nada mais é, para o Espiritismo, senão um modo de ser do perispírito, adaptado ao ambiente que lhe é próprio ou plasmado de conformidade com o estado em que se acha o espírito. A inferioridade não é propriamente da matéria que forma o perispírito, pois a matéria é neutra, em qualquer condição, mas do espírito, cujas vibrações repercutem fortemente no corpo fluídico. Assim como a matéria influi sobre p espírito, também o espírito influi sobre a matéria. E ensino elementar na Doutrina Espírita. Entre o Espiritismo e a Teosofia, como vemos, há muita diferença na maneira de explicar o problema do perispírito. O Espiritismo não pretende invalidar as definições da Teosofia, mas discute o assunto por meio de uma síntese, que dispensa naturalmente a denominação de três veículos — causal, mental e astral — porque tudo se reduz ao mesmo termo: perispírito, sejam quais forem as divisões encontradas nas escolas ocultistas. O corpo fluídico é íntegro, e nenhuma classificação de categoria (superior ou inferior) lhe quebraria a unidade substancial; suas aparências, variando sempre, em cada estado evolutivo, são aspectos do mesmo corpo, são manifestações da mesma realidade em graus diferentes.
A literatura teosófica é muito rica, como de resto a literatura ocultista em geral. As vertentes ocultas do conhecimento oriental se ramificam pela Cabala, como pelas diversas, escolas esotéricas, a Teosofia, a Rosacruz, etc. É apreciável a influência desses movimentos filosóficos na educação espiritual da humanidade, através dos tempos.
Se, entretanto, é copiosa a literatura ocultista, notadamente acerca do corpo fluídico, também é inegável a existência de uma literatura espírita já imensa e ponderável. Quanto ao perispírito, que não é uma criação do Espiritismo, porque a noção de corpo intermediário já existia na Pérsia, na índia, no Egito, na Grécia, por exemplo, o material que a literatura espírita oferece, e com a documentação das provas, é suficiente para justificar e demonstrar a necessidade desse corpo, apesar da negação sistemática dos teólogos. A bibliografia espírita possui notáveis trabalhos especializados sobre o perispírito e suas propriedades. Estão aí, além das obras básicas da doutrina, os estudos científicos de Gabriel Delanne, Aksakof, Albert de Rochas, Bozzano, entre outros autores clássicos nesta matéria. Com todo esse material, que é fruto de experiências e acuradas investigações, o Espiritismo tem uma urdidura conceituai que lhe dá margem para dispensar denominações mais complexas, visto como os seus recursos lhe são inteiramente apropriados para uma compreensão mais razoável. Podemos, consequentemente, chegar a este ponto: para explicar a natureza e a constituição do perispírito, o Espiritismo não precisa usar os termos e os métodos da Teosofia nem de nenhuma outra escola espiritualista.
A linguagem da Cabala, que é outra grande fonte das doutrinas secretas, também não coincide com os termos espíritas. A concepção cabalística, em consonância com o pensamento de outras escolas ocultistas, admite a existência de espíritos elementais, isto é, uma categoria diferente, porque formada de espíritos que habitam os chamados quatro elementos: fogo, ar, terra e água. Os espíritos que habitam o fogo são chamados salamandras: os que vivem no ar, na água e na terra são designados respectivamente pelos nomes de silfos, ninfas, nomos ou pigmeus. Segundo a Cabala, e esta expressão é textual de um cabalista dos mais eruditos — ainda depois da morte, o corpo, como a forma mais material, fica no mundo Asiah, no túmulo, com o ESPIRITO DOS OSSOS, que constitui nele o corpo da ressurreição. (Francisco Valdomiro Lorenz - “CABALA”, Ed. “O Pensamento”). O “espírito dos ossos”, no dizer do mesmo autor, pode ser perturbado pela aproximação de outro morto, que lhe é antipático ou pela evocação necromântica; por isso Moisés proíbe a evocação dos mortos. Está escrito de forma clara, não é uma expressão simbólica para os iniciados. O autor é autoridade em matéria cabalística, como em qualquer outro campo das “ciências ocultas”. Poder-se-ia entender por "espírito dos ossos” apenas o princípio de vida, que ainda fica na matéria e não se extingue imediatamente após o desenlace. Logo adiante, porém, e no mesmo trecho, está dito que esse espírito, sepultado com o corpo, ainda pode ser perturbado por “outro morto”... Se é assim, o Espiritismo está em desacordo com a Cabala, ainda que se possa objetar que tudo é figurado ou simbólico na doutrina cabalística. O que a Doutrina Espírita assevera é justamente o contrário: o que vai para o túmulo é o corpo, é a matéria, pois o espírito se desprende e toma a direção do mundo espiritual. Embora o autor esclareça, antes, que o “espírito dos ossos” ou “sopro dos ossos” é o “princípio íntimo, imperceptível”, que constitui o “corpo da ressurreição” ou corpo astral luminoso, a ideia fica muito confusa. Se o “espírito dos ossos” é apenas um princípio vago, inerente à natureza material do corpo, como é que o mesmo autor diz que esse princípio “pode ser perturbado por outro morto”?... É ou não é um espírito real? Há muita diferença, portanto, entre o Espiritismo e a Cabala, apesar das ideias comuns, a respeito da sobrevivência da alma e da reencarnação. Não podemos afiançar se todos os intérpretes da Cabala são fieis ou se traduzem realmente as sutilezas do pensamento cabalístico. Seja como for, na parte externa ou esotérica da Cabala, isto é, naquilo que os seus intérpretes apresentam claramente, há evidente diversidade perante o Espiritismo.
Concepção trinária da Cabala: Nephesh (corpo); Ruach (alma); Neshamah (espírito), centelha divina. Embora avizinhando-se do Espiritismo, neste ponto, como se aproxima noutros pontos, a Cabala estabelece uma divisão que não pode calhar bem na Doutrina Espírita. O corpo, pela explicação cabalística, compreende também o corpo fluídico ou perispírito, enquanto a alma e o espírito são elementos distintos. O Espiritismo simplifica o problema, racionalmente, dizendo apenas que o homem é um conjunto de corpo, perispírito e alma. A equivalência entre a alma e espírito não é arbitrária, a despeito de algumas escolas espiritualistas fixarem claramente a separação entre os dois termos. Allan Kardec discutiu inicialmente a denominação de alma, sobre a qual ainda permanecem dúvidas. O problema, entretanto, é mais linguístico do que propriamente filosófico. Kardec assim o entendeu, e com razão. Dê-se o nome de alma ou de espírito, o que é essencial, na filosofia espiritualista, é a convicção de que existe um princípio inteligente, capaz de pensar e agir fora da matéria, porque esse princípio é imortal. Disse, então, Allan Kardec[1]: A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada um dá a esse termo. Três acepções da alma, pelo menos, foram objeto de apreciação: "princípio de vida material” (alma comum a todos os seres vivos); "princípio inteligente” (não individualizado); "ser moral”, independente da matéria (individualizado). Tendo submetido ao espírito crítico os três conceitos de alma, expendeu Allan Kardec, em resumo, a seguinte observação: Sem discutir o mérito de tais opiniões e considerando apenas o lado linguístico da questão, diremos que estas três aplicações do termo alma correspondem a três ideias distintas, que demandariam, para serem expressas, três vocábulos diferentes. Aquela palavra tem, pois, tríplice acepção e cada um, do seu ponto de vista, pode defini-la como o faz. O mal está em a língua dispor somente de uma palavra para exprimir três ideias. Finalmente, para evitar dificuldades, preferiu Kardec usar o termo alma segundo o entendimento popular: chamamos alma o ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo. Já não é mais necessário dividir o mesmo termo em duas noções diferentes: alma e espírito. Veja-se a Introdução de O LIVRO DOS ESPÍRITOS.
Embora tivesse levado em consideração, até certo ponto, a divisão feita pelos ocultistas, como se lê em Principiante Espírita, na parte relativa a considerações preliminares, Allan Kardec preferiu, ele próprio, o emprego corrente de alma como sinônimo de espírito.
A conceituação cabalística difere do Espiritismo tanto em relação à divisão do perispírito no sistema trinário, quanto na generalização do termo alma, como já vimos. Os dois sistemas são parecidos, mas discordantes. Dá-nos, agora, um cabalista (já citado) a seguinte noção da vida nos outros mundos: Quanto à vida nos outros mundos, é variadíssima; conforme o futuro que se preparou durante a vida terrestre, a alma há de passar por castigos e purificações, ou entra em gozos espirituais. A ideia de alma, aqui, está bem individualizada, e é a mesma ideia que encontramos na Doutrina Espírita. Que a vida futura pode ser boa ou má, em razão de nosso proceder na vida presente, é também ponto incontroverso para o Espiritismo. Já não ocorre, entretanto, a mesma semelhança entre o Espiritismo e a Cabala no passo em que as duas doutrinas preconizam as etapas das “vidas sucessivas" pela pluralidade dos mundos. Confrontemo-las.
Enquanto o Espiritismo, em linguagem direta, sem figuras nem alegorias, esclarece a situação do espírito por meio de explicações que nos dão uma ideia simples, mas seguramente lógica, do processo progressivo através da reencarnação, a interpretação cabalística pinta um quadro tão carregado de cores fortes, como se fora uma descrição católica ou se estivéssemos diante da criação dantesca. Diz o cabalista: — “Cada mundo tem o seu Gan Eden (paraíso), seu Nahar Dinur (rio de fogo para a purificação da alma) e seu Gei Hinam (geena, lugar de castigo infernal). ” Que necessidade teria a Doutrina Espírita de recorrer ao método simbólico para dar uma noção inteligente da vida espiritual através dos mundos? Nenhuma. O Espiritismo diz apenas que existem mundos diversos. Já o Cristo ensinava: Há muitas moradas na casa de meu Pai. Paraíso e inferno, para o Espiritismo, são duas ficções, não exprimem realidade. Cada espírito vive, durante uma ou mais de uma existência, no mundo que seja compatível com o seu embrutecimento ou progresso. Uma existência pode ser infernal, figuradamente falando, quando o espírito cria ambiente ruim, como pode ser feliz, se o espírito melhora o seu modo de vida. São estados de consciência. Há determinismo até certo ponto, mas não há fatalismo absoluto.
A Cabala prescreve a reencarnação, mas nem por isso deixa de haver divergência em determinadas noções reencarnacionistas. O Espiritismo não poderia endossar todas as noções da Cabala. Que a doutrina da Cabala é favorável à reencarnação, não há dúvida, e é oportuno invocar, neste passo, uma obra judaica: "a alma deve retornaria sua origem, como deve, primeiramente, realizar o completo desenvolvimento de suas perfeições na vida terrestre. Se, porém, não completou esta condição no curso de uma vida, deve começar de novo, através de outro corpo, até que realize plenamente a sua tarefa” (The Jewish Enciclopédia, vol. II 1 Ed. Funk and Wagnalis). É a tese ampla, aceita pelo Espiritismo e por outras doutrinas espiritualistas. A mesma fonte judaica assinala, entretanto, o fato de uma corrente de cabalistas, certamente não muito numerosa, admitir uma teoria, segundo a qual Deus pode unir duas almas no mesmo corpo, para que as tarefas se completem, como no caso das compensações entre um coxo e um cego. A Doutrina Espírita não subscreve esta hipótese, por lhe ser estranha e destituída de argumentos convincentes, pelo menos até agora...
De tudo isto já se pode concluir que, apesar de, ao mesmo tempo, diversas doutrinas espiritualistas afirmarem a reencarnação, existem algumas interpretações que se não ajustam à Doutrina Espírita. Vejamos bem uma divergência inicial, exatamente no ponto em que a pluralidade dos mundos tem significação decisiva para a reencarnação. Embora a tese reencarnacionista seja substancialmente pluralista, porque sua ideia capital é a de que o espírito percorre outros mundos no curso de suas “etapas progressivas", sabemos de opiniões contrárias a este ponto primacial da questão: a dos reencarnacionistas que julgam desnecessária a passagem do espirito para outros mundos, porque é exclusivamente na Terra que o espirito deve realizar todas as suas experiências, e a daqueles que, colocados no extremo oposto, acreditam que a volta do espirito não se verificará jamais na Terra e, sim, em plano ou mundo diferente. São opiniões, e como opiniões é que devem ser consideradas. O ensino básico do Espiritismo não autoriza, entretanto, a incorporação de tais pontos de vista ao âmago da doutrina. O pensamento da doutrina está resumido, todo ele, neste ponto fundamental: A REENCARNAÇÃO DO ESPIRITO OCORRE EM DIVERSOS MUNDOS. Há mundos superiores e inferiores à Terra. A doutrina é satisfatoriamente explicita: “As nossas diversas existências corporais se verificam todas na Terra?” Resposta: “NAO; vivemo-las em diferentes mundos. As que aqui passamos não são as primeiras, nem as ultimas; são, porém, das mais materiais e das mais distantes da perfeição." (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, questão n.º 172). Nenhuma outra explicação nos parece mais racional, mais concordante com o principio da progressividade do espirito.
Outro ponto em que há desvios de interpretação é o que se refere à fixação de época para a reencarnação. A Codificação do Espiritismo não cogita deste problema, e é claro que o não faz justamente por não ser possível prever a época de cada reencarnação. Neste ponto, sem prejuízo dos laços de aproximação, o Espiritismo e a Teosofia se separam, forçosamente. Crê-se, na Teosofia, que a reencarnação do espírito ocorre no intervalo de mil e quinhentos anos de uma existência para outra. Segundo o Espiritismo, contrariamente às previsões da Teosofia, não se pode saber, com exatidão, quando um espirito deverá voltar à Terra, pois a verdade é que cada espirito, como entidade consciente e responsável, tem o seu problema, a sua situação individual. Este princípio não invalida os casos em que, excepcionalmente, se confirmam avisos de reencarnações próximas ou remotas, por meio de fenômenos sonambúlicos e comunicações espirituais. A casuística espirita, neste particular, pode apresentar exemplos concretos. Apesar de tais provas, não há elementos que nos autorizem calcular sistematicamente a época de uma reencarnação. Este é o ensino espirita. Admitem-se conjeturas e deduções, mas não é possível firmar um prazo rígido, em face da Doutrina Espirita.
Para Jinarajadasa, uma das eminentes expressões do pensamento teosófico, existem diversos tipos de almas, cujas reencarnações obedecem à seguinte escala:
os adeptos, que já não reencarnam mais; as almas no caminho, aquelas que reencarnam imediatamente, “sob a direção do seu mestre" e “renunciam ao seu período de vida no mundo celeste”;
almas cultivadas, precisamente as que reencarnam DUAS VEZES "em cada sub-raça” e passam, em média, 700 anos no mundo celeste; almas simples, finalmente, aquelas que, não estando desenvolvidas, passam por diversas reencarnações em cada sub-raça, antes de passar à segunda.
Em linhas gerais, a Doutrina Espirita não contradiz inteiramente o sentido em que o grande mentor da Teosofia coloca as categorias de espíritos. Naturalmente, a despeito de não usar as denominações de adeptos, almas no caminho e outras classificações teosóficas, o Espiritismo também aceita a existência de graus hierárquicos no desenvolvimento moral dos espíritos. A hierarquia moral é, aliás, a única hierarquia cabível na trajetória dos espíritos. Se concorda com a Teosofia neste ponto, é claro que também concorda, por ser lógica, com a proposição de que certos espíritos, uma vez adquirindo muito adiantamento moral e intelectual, não necessitam de reencarnação na Terra. Há divergência, entretanto, quando surge o problema da fixação de tempo: 700, 1.300, 1.500 anos.
Indiscutivelmente, a reencarnação é um fato, como é, segundo o Espiritismo e outras doutrinas reencarnacionistas, a mais aceitável explicação do destino humano e da justiça divina; mas também é certo que o Espiritismo não nos induz a esquematizar o curso das reencarnações em termos de datas preestabelecidas, como se fora uma fórmula matemática. Vê-se, assim, que no ESPIRITUALISMO, campo imenso e incalculável, coexistem doutrinas com as quais o Espiritismo combina em diversos pontos e das quais também diverge muito quando se discutem outros pontos menos pacíficos. Seja por mera questão de palavra, seja por motivo de filiações religiosas ou filosóficas, a discordância existe, sem destruir a afinidade essencial nas questões mais gerais. Todas aquelas doutrinas têm preceitos muito elevados, todas elas encerram ensinos antigos ou remanescências da sabedoria de espíritos iluminados. Entretanto não se pode deixar de reconhecer que qualquer doutrina, por mais visíveis que sejam as semelhanças, tem aquilo que lhe é próprio, aquilo que marca as diferenciações no conjunto.
Não compete ao Espiritismo interpretar a Cabala nem qualquer outro ramo do Ocultismo. Condensa-se no Espiritismo, contudo, uma série de concepções e argumentos sobre problemas que também se projetam no corpo de outras doutrinas espiritualistas. Nem sempre, porém, os problemas são considerados em face do mesmo prisma entre os espiritualistas de todas as procedências doutrinárias. Mister se faz, por isso mesmo, que se compreenda bem o caráter de cada doutrina, cada movimento, cada escola espiritualista, para evitar interpretações confusas, sem que, com isto, se venha a ferir o espirito de solidariedade e tolerância. Mais racional do que mística, mais experimental do que metafísica, a doutrina codificada por Allan Kardec muito se liga aos raciocínios positivos, sem chegar, todavia, ao exagero daqueles experimentadores que, dominados pela quase obsessão do “espirito cientifico”, fecham os olhos às claridades da vida espiritual.
A verdade é universal, mas nem todos podem percebê-la na mesma esfera de compreensão. Apesar da predominância de uma verdade transcendente, que se sobrepõe às limitações da inteligência humana, existem balizas demarcadoras entre todas as searas do conhecimento. Todas as doutrinas organizadas têm o seu corpo de princípios, seus postulados, sua orientação. O Espiritualismo, em sua amplitude, é a matriz de muitas escolas, religiões e correntes filosóficas, mas a própria disciplina da inteligência exige que se dê a cada religião ou doutrina o seu lugar inconfundível: ESPIRITISMO é Espiritismo: TEOSOFIA é Teosofia: ECLETISMO é Ecletismo. É melhor discernir do que confundir, pois é discernindo que se põe ordem nas ideias para procurar a Verdade.
O Espiritismo é uma doutrina universalista, e tanto quanto as doutrinas que mais o sejam; mas é indispensável não levar a noção de universalismo ao arbítrio de acomodações inconvenientes senão prejudiciais a clareza do espirito analítico. Repetimos que o Espiritismo é universalista, porque os fatos do espirito são universais, os seus problemas têm o sentido da universalidade, mas também é oportuno acentuar que o Espiritismo não é uma forma de sincretismo doutrinário ou religioso, sem unidade nem consistência. Não, absolutamente! Já se falseou muito a ideia de universalismo. Ser universalista é ter visão global do conhecimento, é estimar a universalidade, dos valores espirituais acima e além de todas as configurações geográficas ou históricas. Universalismo é uma convicção, é uma posição consciente em face da cultura humana e espiritual; não é, portanto, a junção pura e simples de crenças, doutrinas e práticas diversas.
A generalização absoluta seria o caos, pois ninguém mais entenderia a noção de começo op de fim, de finito ou infinito, de ciência ou de fé. E natural que uma religião ou doutrina tenha sua filosofia e seu método, os seus recursos dialéticos e as suas expressões simbólicas para indicar o caminho que lhe pareça mais certo para a Verdade. O Espiritismo não adota simbolismo nem linguagem figurada. Não é uma doutrina deficiente ou primária, apesar de sua naturalidade e sua forma acessível. A doutrina tem um conteúdo moral e filosófico muito profundo, mas a sua apresentação dispensa quaisquer fórmulas enigmáticas. Simplicidade não é superficialidade. Os verdadeiros doutos geralmente sabem falar e escrever até para os inocentes, mas os espíritos confusos muitas vezes nem pelos sábios se fazem entender. A prolixidade, em muitos casos, é demonstração de insegurança, ao passo que o espirito de síntese, por ser muito mais difícil, é manifestação de competência. A sabedoria não é privilégio da complexidade nem depende dos caracteres incompreensíveis, porque também se revela na clareza das ideias ou na exatidão dos conceitos que se expressam em linguagem simples. Para dizer o que diz, para afirmar e provar as suas teses, o Espiritismo tem elementos próprios, e nisto consiste, principalmente, a diferença entre a Doutrina Espirita e as outras doutrinas e correntes espiritualistas. Se, finalmente, o Espiritismo se distingue, por um lado, das doutrinas que lhe são afins, em razão de aspectos especiais, também se distingue, por outro lado, de todas as organizações ritualísticas, ainda que sejam igualmente espiritualistas. É o que iremos examinar.
"A Doutrina Espirita não aprova nenhuma atitude, nenhum exercício religioso, nenhuma prática discordante dos usos normais."
O Espiritismo tem, forçosamente, relações com as doutrinas e religiões espiritualistas. Em primeiro lugar, como se sabe, existe um ponto comum, em matéria religiosa: DEUS. Ora, se a filosofia espirita afirma a existência de Deus como principio basilar, é claro que, neste ponto, a doutrina coincide com as religiões cristãs. Em segundo lugar, não tendo o Espiritismo outra moral senão a do Evangelho, pois o próprio Allan Kardec já disse que a Doutrina Espirita não criou moral nova, também neste ponto são flagrantes as suas concordâncias com o Cristianismo[2]. Há, portanto, três princípios concordantes:
1.º) — existência de Deus;
2.º) — imortalidade do espírito depois da morte;
3.º) — aceitação da moral de Jesus.
Vejamos, no cap. VIII, das Conclusões, de “O Livro dos Espíritos”, as seguintes palavras textuais, de Allan Kardec: “O ESPIRITISMO NÃO TRAZ MORAL DIFERENTE DA DE JESUS". Estamos apenas nas linhas gerais. Não se pode concluir, daí, que o Espiritismo aceite tudo quanto se tem dito e ensinado em nome do Cristianismo. Como bem disse Allan Kardec, e lá está, na Introdução de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, a parte moral do Evangelho permanece inatacável, enquanto as outras partes são objeto de controvérsias. O Espiritismo atem-se à parte moral como fundamento e como cúpula de todas as suas consequências. Quanto às outras facetas, cuja interpretação não tem caráter decisivo para o adiantamento espiritual do homem, compete à crf- tica histórica e religiosa esclarecer os pontos ainda obscuros, tanto quanto possível. Sob o ponto de vista histórico, é natural que se façam pesquisas de documentos ou de textos antigos, com a preocupação, aliás necessária, de corrigir interpretações equívocas. A História não é uma disciplina dogmática nem ap suas informações estão imunes de retificações. E indispensável estudar e investigar-sempre, a fim de que certas verdades, embora relativas, se revelem ao espírito humano por meio de pesquisas honestas.
A discussão histórica, entretanto, colocada no terreno da erudição pura e simples, sem um objetivo superior, não tem significação para o progresso espiritual da humanidade, porque representa, apenas, um valor intelectual, ao passo que a realização íntima, no sentido da elevação moral, exprime um valor espiritual, de efeito muito mais profundo e duradouro. O esforço intelectual é uma necessidade do espírito, mas é justo considerar que, nas categorias de valores, jamais poderemos perder de vista a supremacia da moralidade, visto como o homem deve progredir tanto em ciência, como em moral. (O Livro dos Espíritos, questão n.º 192: Ao Espírito cumpre progredir em ciência e em moral. Se somente se adiantou num sentido, importa se adiante no outro, para atingir o extremo superior da escala). Está bem claro que a palavra ciência não é empregada, aqui, no sentido restritivo, como se quisesse significar ciência de laboratório ou de gabinete, mas no sentido amplo de saber, e saber é conhecimento. Quando se diz conhecimento, tacitamente já se entende a experiência, o estudo, o aproveitamento dos recursos da ciência, etc. O progresso do espirito não pode, portanto, dispensar o estudo, o esforço intelectual, o desenvolvimento da inteligência, ainda que todos esses elementos sejam meios, não sejam, realmente, o fim supremo do progresso espiritual. Assim como a cultura intelectual, por si só, ainda não é suficiente para realizar a transformação espiritual do homem, também a fé, por si só, sem o conhecimento, não é suficiente para fazer o homem chegar à plenitude do progresso. Tem muita razão Allan Kardec quando prevê a aristocracia intelecto-moral, isto é, uma sociedade em que prevaleçam, em harmonia, o conhecimento e a moralidade.
Vê-se, pois, que a Doutrina Espirita, sempre com alto senso de prudência, procura evitar que a interpretação do Evangelho, com exagero para um lado ou para o outro, venha a cair em dois extremos perigosos: o intelectualismo inócuo, com pretensões de sapiência, e o evangelismo improdutivo, com presunções de santidade. O Espiritismo preocupa-se fundamentalmente com a substância moral do Evangelho, sem descer aos debates secundários nem às intermináveis demandas históricas. A exegese evangélica é tão vasta, tão complexa, que envolve problemas linguísticos, geográficos, psicológicos, etc., ao passo que os ensinos morais de Jesus, em sua pureza, estão acima dos sofismas ou das agilidades verbais. O Evangelho, praticamente faiando, é um código de vida. A moral do Evangelho, no que ela tem de mais límpido e perene, em todas as latitudes, desde que seja vivida e não apenas sabida de cor, é o mais seguro ponto de apoio para que o homem se torne melhor e mais feliz. Se, por um lado, o intelectualismo verboso e malévolo é um mal, e grande mal, porque desvia o sentido real das máximas evangélicas com as suas calculadas distorções dialéticas, igualmente maléfico é o misticismo da ignorância, porque mata o espirito do Evangelho na frieza dos textos, impossibilitando a compreensão e a análise dos que estudam honestamente.
Consequentemente, segundo o Espiritismo, o Evangelho não deve ser considerado mero “tratado de fé", porque deve ser, acima de tudo, um motivo permanente de ação regeneradora. Interpretá-lo ao pé da letra é obscurecer-lhe o espirito, e é este que vivifica, como já diz a própria sabedoria evangélica. Mister se faz que haja uma luz nova, e esta luz, para nós, é a Doutrina Espirita, porque a sua filosofia explica o Evangelho, tornando-o mais claro, mais coerente, mais consentâneo com a realidade humana e espiritual. Devemos, pois, firmar um ponto: É O ESPIRITISMO QUE INTERPRETA O EVANGELHO, NÃO É O EVANGELHO QUE INTERPRETA O ESPIRITISMO. Esta é a nossa maneira de ver, a nossa compreensão em face do Evangelho. Respeitamos, sinceramente, a opinião dos que não pensam assim, mas temos o direito de pensar em concordância com a doutrina que professamos.
Allan Kardec acentuou muito bem que o Espiritismo NÃO VEIO DESTRUIR O EVANGELHO, mas antes, pelo contrário, veio trazer elementos de elucidação para fortalecer o Evangelho. Leiam-se, por exemplo, as seguintes palavras do Codificador do Espiritismo:
"O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho, vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas novas leis da Natureza, que revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino cristão, de tal sorte que, aqueles para quem eram ininteligíveis certas partes do Evangelho, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem e admitem, sem dificuldades, com o auxílio desta doutrina; vêem melhor o seu alcance e podem distinguir a realidade e a alegoria; o Cristo lhes parece maior; já não é simplesmente, um filósofo, é um Messias divino." (A GÊNESE, Cap. I n.º 41).
Lê-se, ainda, no corpo da Doutrina Espirita, esta afirmação inconfundível:
"Jesus empregava a miúde, na sua linguagem, alegorias e parábolas, porque falava de conformidade com os tempos e os lugares. Nossa missão consiste em abrir os olhos e os ouvidos a todos, confundindo os orgulhosos e desmascarando os hipócritas, os que vestem a capa da virtude e da religião, a fim de ocultarem as suas torpezas. O ensino dos Espíritos tem que ser CLARO E SEM EQUÍVOCOS para que ninguém possa pretextar ignorância e para que todos possam julgar e apreciar com a razão. Estamos incumbidos de preparar o reino do bem, que Jesus anunciou." (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, questão n.º 627).
Observe-se bem a declaração capital: ESTAMOS INCUMBIDOS DE PREPARAR O REINO DO BEM, QUE JESUS ANUNCIOU. Será algum reino imaginário? Não. O reino do bem, tal qual o preconizou Jesus, é o amor, a decência, a reforma individual e o aperfeiçoamento moral dos costumes, sem o que não se pode esperar progresso espiritual. São bem fundos, como se vê, os traços de afinidade entre a Doutrina Espirita e a moral do Evangelho. Convém advertir, a todo custo, que o Espiritismo não deve nem pode ser transformado em seita de qualquer espécie nem tampouco em escola bíblica.
O fato de haver Allan Kardec preferido não instituir nenhum sistema de moral, porque lhe bastou a moral cristã para o coroamento da doutrina por ele codificada, não quer dizer que o Espiritismo concorde ou deva concordar com tudo quanto ensinam as diversas religiões e denominações cristãs; muito menos seria possível introduzir no Espiritismo práticas, dogmas e fórmulas peculiares às religiões oriundas do Cristianismo. Há, inegavelmente, acordo natural nos pontos mais gerais — Deus, a imortalidade da alma e a vida futura — mas, daí por diante, surgem inevitáveis divergências doutrinárias, porque não é possível conciliar a reencarnação com a ideia de inferno, penas eternas, satanás, pecado original, etc. A parte moral do Evangelho, como já se disse inúmeras vezes, é o "terreno neutro”, onde todos se encontram sem conflito, porque toda a moral de Jesus se resume no AMOR ao próximo, cujos efeitos levam a esta regra inabalável: não fazer aos outros aquilo que não queremos que os outros nos façam. Dentro disto, que é um ensino velhíssimo, está a norma básica de todas as relações humanas, inclusive no campo extenso das relações internacionais. De indivíduo para indivíduo, de nação para nação, a regra é a mesma: respeitar os direitos do próximo, tanto quanto se exige respeito aos direitos próprios. Não há melhor e mais sábia norma de convivência internacional. Se tal fosse a inspiração dos .povos, muitos problemas já teriam sido resolvidos. E inútil pretender a paz por meio de decretos, convenções e congressos, enquanto não se implanta na consciência dos dirigentes dos povos a noção de respeito aos direitos alheios.
Vejamos, agora, que a moral ensinada e praticada por Jesus se adapta inteiramente ao caráter da Doutrina Espírita, como iremos observar. Não haveria necessidade, portanto, de ir buscar princípios ou regras de morai no Oriente, fosse onde fosse, quando a essência do Cristianismo, fora e acima das desfigurações humanas, está em condições de realizar os altos objetivos do Espiritismo. Quando dizemos moral do Cristianismo, está bem visto que não confundimos o vero Cristianismo, aquele que está na substância dos ensinos de Jesus, com as exterioridades e acomodações. Os interesses humanos sempre submetem as palavras de Jesus às conveniências imediatas, por motivos de lutas religiosas e até mesmo de vantagens políticas. Este aspecto é negativo, não nos interessa. Deixando à margem as discrepâncias concernentes ao verdadeiro espírito do Cristianismo, é lógico levar em consideração, todavia, que três circunstâncias justificam a propensão da Doutrina Espírita para a moral do Evangelho:
1.ª) — tendo sido o corpo da doutrina organizado no Ocidente, onde predomina a influência do Cristianismo, claro é que o movimento então nascente deveria ter mais afinidade com o pensamento cristão do que, por exemplo, com o Judaísmo, o Bramanismo, o Islamismo, etc.
2.ª) — os próprios Espíritos instrutores, aqueles mesmos Espíritos que transmitiram a doutrina, tal qual fora ditada do Alto, reconheceram em Jesus o mais completo modelo de moral;
3.ª) — tendo a moral de Jesus um sentido mais dinâmico do que estático, e são os seus próprios ensinos que o demonstram à saciedade, porque é, sobretudo, a moral da RESPONSABILIDADE e do esforço individual, naturalmente esta moral se harmoniza, em tudo, com o verdadeiro caráter da Doutrina Espírita, que é, por sua vez, uma doutrina cujas consequências se fazem sentir na reforma do homem, como necessidade básica.
Para que, pois, recorrer a outras fontes, se a moral do Evangelho é completamente satisfatória? Veja-se a questão n.º 625, O LIVRO DOS ESPÍRITOS: "Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de modelo?" A resposta é categórica: “JESUS." E certo que alguns dos princípios pregados por Jesus já estão integrados na urdidura de outros códigos de moral, anteriores ao Cristianismo; mas a verdade é que os ensinos cristãos se espalharam e criaram raízes no meio ocidental.
Examinemos, depois destas considerações gerais, os pontos de contato entre a Doutrina Espírita e a moral do Evangelho. Existem muitos crentes, em todas as religiões, que encaram o Evangelho por uma direção bem diferente da realidade humana, porque só se preocupam com as promessas do Cristo, mas não se interessam em compreender o aspecto condicional das principais sentenças do “meigo nazareno”. A interpretação espírita não se filia a esta orientação, e seria um contra-senso se o fizesse. Tudo quando Jesus promete está condicionado ao trabalho e ao mérito pessoal: A cada um segundo as suas obras. É a lei. Querer sair disto é pretender o milagre. A moral do Evangelho é realista por excelência. A linguagem de Jesus é iluminada pela sabedoria divina, é a linguagem da Verdade. Justamente por isso mesmo é que a moral do Evangelho combina perfeitamente com os objetivos da Doutrina Espírita, pois esta doutrina também é infensa a qualquer solução contrária à natureza humana. 3Muita gente crê em Jesus, mas ainda não viu ou não quis ver os CONDICIONAMENTOS a que o sublime pastor subordinou as consequências de seus ensinos. Leia-se esta passagem: Ajuda-te, e o céu te ajudará. É ou não é uma forma condicional? Para que o céu o ajude, o homem deve ajudar-se a si mesmo, isto é, trabalhar, fazer por merecer. (Céu, bem entendido, figuradamente). Jesus nada ofereceu em caráter absoluto. Poucos, relativamente poucos, são aqueles que, embora estejam sempre com o Cristo nos lábios, já se dispuseram a meditar profundamente sobre esta importante sutileza dos ensinos evangélicos. Dal se dizer, e com indiscutível propriedade, que a moral de Jesus é dinâmica, porque todas as suas expressões se consubstanciam em dois princípios inseparáveis: RESPONSABILIDADE E ESFORÇO PRÓPRIO. Não é isto, exatamente, o que[3] está no pensamento da Doutrina Espírita? São evidentes, portanto, as correspondências entre a moral do Evangelho e as consequências morais do Espiritismo.
Ensina Jesus:
Batei, e abrir-se-vos-á (Para que a porta se abra, é necessário que se tenha o trabalho de bater. A porta não se abre sem esforço pessoal. Logo, um ato está condicionado do outro).
Ensina a Doutrina Espírita:
O trabalho constitui uma necessidade. (o livro dos espíritos — questão n.º 674). Tem-se aí a moral de Jesus.
Recomenda Jesus:
Pedi, e dar-se-vos-á (Jesus afirma, com isto, o valor da prece, mas é necessário que saibamos pedir. A prece pode ser inútil, desde que o sentimento não seja honesto).
Diz a Doutrina Espírita:
O essencial não é orar muito, mas orar bem, (O livro dos Espíritos, questão n.º 660). Orar bem é orar com justiça, com sinceridade, não querer absurdo por meio da prece. Este preceito exprime o mesmo sentido da sentença de Jesus, apenas por outras palavras.
As duas passagens sugerem, ainda, alguns comentários, especialmente porque nelas se verifica a simultaneidade dos propósitos, tanto de uma parte como da outra: a lição do Evangelho e a Doutrina Espírita ressaltam, ao mesmo tempo, a qualidade da prece. O Espiritismo tem elementos positivos para demonstrar a eficácia da prece. Convém notar, entretanto, que até nisto Jesus estabeleceu uma CONDIÇÃO: Mas, quando orardes, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai-lha, para que o vosso Pai, que está nos céus, vos perdoe as vossas faltas. (Não tomemos as frases ao pé da letra, tanto mais quanto as traduções estão muito sujeitas a alterações de forma; procuremos, pois, o pensamento essencial). O sentido desta recomendação evangélica, sejam quais forem as traduções, não é outro, senão este: se queremos ser beneficiados pela prece, que é o mais poderoso recurso da alma humana, sejamos sinceros, humilhemo-nos, esqueçamos as ofensas e, assim, purificando os nossos sentimentos, estaremos em condições de “orar bem”, como ensina a Doutrina Espírita em concordância com o Evangelho. Antes de pedirmos ou de querermos que as nossas súplicas sejam atendidas (nem sempre são justas), devemos fazer um EXAME DE CONSCIÊNCIA para que nos possamos colocar espiritualmente no plano do merecimento.
Que vem a ser tudo isto, senão esforço íntimo, luta interior, desejo de ascensão espiritual? É trabalho, portanto. Quando o homem luta consigo mesmo, para se melhorar, está trabalhando. Vejamos a questão n9 675, do O LIVRO DOS ESPÍRITOS: “Por trabalho só se devem entender as ocupações materiais?” “Não; o Espírito trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho.” O conceito de trabalho é o mais elástico possível. As promessas do Evangelho, e são promessas consoladoras, não nos eximem do trabalho, não nos dispensam da reforma moral. Coincidindo absolutamente com o Evangelho, os pontos fundamentais da Codificação de Aílan Kardec falam com a mesma ênfase, com o mesmo vigor, sobre a significação do trabalho como fator primacial no progresso do espírito. Podemos inferir, sensatamente, que AS RESPOSTAS DO ALTO NÃO NOS VÊM COMO GRAÇAS OU PRIVILÉGIOS, MAS NA MEDIDA DE NOSSO ESFORÇO, DE NOSSO TRABALHO, DE NOSSO MERECIMENTO PERANTE A JUSTIÇA DIVINA. Prometer paraísos ou anunciar a felicidade suprema sem fazer sentir a necessidade essencial da reforma própria como base de todas as conquistas espirituais, é mistificar em nome do Evangelho, é desvirtuar o verdadeiro espírito da palavra de Jesus. Não é possível, pois, interpretar o Evangelho à luz do Espiritismo pelas mesmas regras com que o interpretam os crentes ortodoxos. Não. O Evangelho, interpretado à luz do Espiritismo, longe de nos levar à beatitude e à vida “puramente contemplativa”, exige ação, estudo, transformação interior. Seria também contraproducente, para o meio espírita, imitar o sistema de interpretação das Igrejas cristãs, o que equivaleria a pôr a doutrina de lado e reproduzir os textos evangélicos sem as luzes da filosofia, sem os elementos de elucidação que a Doutrina Espírita fornece à inteligência.
Continuemos a acompanhar o sentido condicional dos ensinos de Jesus. As mais belas sentenças do Evangelho, justamente aquelas que mais tocam “nas fibras do coração humano”, são formuladas em dois termos: antecedente e consequente. Há, sempre, um sentido de subordinação ou dependência: isto depende daquilo; para obter aquilo é necessário que se faça isto, e assim por diante. Nada, portanto', é arbitrário na palavra de Jesus, pois os seus mandamentos não se sobrepõem às leis nem às contingências inerentes à vida. Eis, aqui, por exemplo, uma passagem das mais ilustrativas:
Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. (Mateus 6:33).
Desta passagem evangélica decorrem duas ações sucessivas: a primeira é a ação de buscar o reino de Deus, o que significa esforço, trabalho; a segunda é a ação de receber as coisas por acréscimo como consequência das qualidades adquiridas pelo esforço próprio. A que coisas se referia o Cristo? Não se deve entender a designação indeterminada de coisas no sentido vulgar de objetos comezinhos, como não se deve tomar a expressão de Jesus na acepção banal de dar sorte na loteria, etc. O ensino evangélico alude às coisas indispensáveis ao equilíbrio do homem, em suas relações com a Natureza e a Justiça Divina. Coisas, então, no sentido de aquisições essenciais à dignidade da vida.
Seja como for, é uma forma de condicionamento, como tantas outras, e sem azo para qualquer fuga: se o homem quer viver em paz com a sua consciência, se quer ser feliz, DEVE proceder com justiça, ser honesto, respeitar as leis da Natureza e praticar o Bem. Sem esta condição inadiável, as “coisas” prometidas pelo Cristo não lhe serão acrescentadas. Uma situação depende da outra. Qual a conclusão prática de tudo isto? Simplesmente esta: ninguém conquista o reino sem trabalho, sem reforma íntima, sem modificar os sentimentos ou sem destruir as paixões. Ensina-se, aí, aquilo mesmo que está nas linhas gerais da Codificação do Espiritismo: sem o trabalho não há progresso espiritual. Esta moral, que é a moral da ação e do mérito, é muito mais racional, mais compreensível do que a moral das graças caídas do ceu e dos privilégios divinos. Se o indivíduo tem a consciência impura, se os seus sentimentos são maus, não pode implantar o “reino divino” dentro de si, por mais que faça penitências ou ainda que se ponha de joelhos na praça pública. O passo inicial é a transformação interior, tudo o mais são artifícios. E assim, e somente assim, que compreendemos o espírito do Evangelho, interpretado à luz da filosofia espírita. Podemos, agora, deduzir que a concordância da Doutrina Espírita com a moral do Evangelho impõe a cada um de nós, pelo conhecimento já acumulado, um estilo de vida que, sem esquisitice, sem extravagâncias nem farisaísmo, se aproxime cada vez mais do tipo normal do homem de bem. E qual é a representação ideal do HOMEM DE BEM, segundo os padrões morais do Espiritismo?
Diz a Doutrina Espírita:
"O verdadeiro homem de bem é aquele que pratica a lei de justiça, de amor, de caridade na sua maior pureza. Se interroga a sua consciência em relação aos próprios atos, a si mesmo pergunta se não violou a lei; se não ocasionou prejuízos; se fez todo o bem que lhe era possível; se desprezou voluntariamente alguma oportunidade de ser útil; se alguém lhe tem queixas; se fez aos outros como quereria que lhe fizessem.” (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, cap. XVII, n.º 3).
Nisto consiste toda a síntese normativa do Espiritismo. É o pensamento fundamental de Allan Kardec, resumido nestas palavras inconfundíveis: “Conhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral.” Para que se opere, progressivamente, a transformação do homem, não é necessário nem admissível contrariar as leis naturais ou viver de forma destoante dos costumes sociais. Para que alguém seja um homem de bem não é preciso ser antisocial nem andar de alpercatas ou usar roupas antiquadas. Nem o Cristo ensinou tais discrepâncias. Como ocidentais, nascemos e vivemos sob uma civilização diferente, e não vemos razão para que adotemos hábitos orientais, muito afeiçoados a determinadas escolas e ordens espiritualistas, mas impróprios para os nossos modos de vida. A Doutrina Espírita não aprova nenhuma atitude, nenhum exercício religioso, como nenhuma prática discordante dos usos normais. O Espiritismo é uma doutrina de muito discernimento e moderação, e por isso mesmo repele tudo quanto possa impressionar pela exterioridade ou pela feição exótica. Assim como não podemos viver, no século XX, como se vivia no século XV, também não é possível viver, sensatamente, fora das influências do meio e da época. Embora respeitando todas as concepções religiosas, a Doutrina Espírita não se coaduna, evidentemente, com determinados hábitos de origem remota, como não sanciona qualquer forma de abstenção ou de retraimento que possa levar o homem a sair dos quadros naturais da vida em sociedade.
Vejamos o pensamento da doutrina: Não consiste a virtude em demonstrardes o aspecto severo e lúgubre, nem em repelirdes os prazeres que as condições humanas permitem. Ainda mais: VIVEI COMO OS HOMENS DE VOSSA ÉPOCA. Até nisto se nota o comedimento, a profunda observação psicológica do Espiritismo em relação ao comportamento do homem no meio social. (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cap. XVII, n.º 10). O que a Doutrina Espírita reprova, como se sabe, é o abuso, a licenciosidade, a indecência. Não se vai, daí, concluir pelos exageros, pela privação das necessidades compatíveis com a natureza humana e com as solicitações da vida social.
Se, finalmente, a moral do Evangelho ensina o homem a vencer o mundo, lutando contra as suas próprias imperfeições, também o Espiritismo incute naqueles que o estudam e compreendem a noção clara de que devem lutar contra o erro e a animalidade, sem ser necessário, todavia, recorrer a processos de purificação mortificante. Ao invés de dizer ao homem que deve fugir do mundo para não se contaminar de “pecados”, a Doutrina Espírita prepara o homem para enfrentar o mundo. Há muito mais valor em viver no mundo e não se deixar arrastar pelas misérias de toda ordem, do que sair do mundo, enclausurar-se ou internar-se nos retiros para não ter contato com a sociedade. É mais sensato, mais natural cumprir as leis inerentes à condição humana do que abandonar o mundo para se entregar a qualquer modo de vida contrário aos costumes normais. E pela luta, reagindo contra o mal, que o espírito se depura e eleva. E para isto é necessário viver no mundo, entre os homens. É muito fácil ser virtuoso quando se vive alheio às competições sociais, sem participar dos conflitos humanos ou sem provocações exteriores. É a mansidão inoperante. O progresso do espírito não pode, entretanto, dispensar a convivência social, pois é através dos contatos e da experiência que, cedo ou tarde, se aprende a distinguir o bem e o mal, vivendo os problemas e não apenas conhecendo a vida teoricamente. Quem fica segregado, voluntariamente, fora dos dramas inerentes às relações humanas, sem ser contrariado, sem ter motivos para revolta ou decepções, não se exercita espiritualmente, porque não sabe se é ou não capaz de perdoar uma ofensa, porque nunca foi ferido em seu amor próprio. Se existe virtude neste procedimento, então a virtude não é ativa.
O mérito espiritual não consiste, como parece, em fechar os olhos para não ver as grandezas e os deslumbramentos do mundo, mas, pelo contrário, o mérito real, e não o mérito fictício, está justamente em ver as coisas com os próprios olhos e repelir o que é detestável. Jamais o homem deve fugir ao dever e à responsabilidade. E o que nos mostra o Espiritismo. Não há necessidade, pois, de sacrificar o corpo ou de substituir as aparências comuns para purificar o espírito. Tudo isto pode ser praticado em razão de votos ou de regras disciplinares de certas comunidades religiosas ou místicas, mas não deve ser introduzido nos costumes espíritas, porque a doutrina lhe é contrária.
Nem mesmo certas presunções de reencarnação, e o Espiritismo é uma doutrina reencarnacionista, justificam processos excêntricos. O fato de ser possível, em casos especiais, uma revelação ou comunicação em que se confirmem coincidências inerentes a existências anteriores, não autoriza .nem sugere modificações radicais no ritmo de vida. Uma revelação, suponhamos, sobre reencarnação de príncipe, cacique ou sacerdote egípcio não permite concluir, à luz do Espiritismo, que se deva usar emblema ou paramento, inteiramente fora dos traços habituais. Sobre este ponto, parece-me absolutamente indispensável pedir atenção para o que explica O Livro dos Espíritos, a respeito do esquecimento do passado, nas questões de n.º 392 e 399. Admitamos, como simples hipótese, que alguém obtenha uma revelação de que fora almirante, na outra existência. Seria razoável, por causa disto, envergar a farda de almirante, com espada e chapéu armado?... Não! Ficaria espantosamente ridículo, como poderia ser um caso de polícia ou de manicômio. Por que, pois, vestir-se como indiano, numa cidade ocidental, no século XX, apenas porque, se presume a ocorrência de uma reencarnação na índia? Não diz a Doutrina Espírita que devemos viver como os homens de nossa época? Allan Kardec, “o bom senso encarnado”, no dizer de Flammarion, vestia-se como um cidadão francês do século XIX; não usava a roupagem típica do sacerdote druida, apesar de se lhe haver revelado uma reencarnação na velha Gália, de onde lhe veio o pseudônimo que adotou.
O Espiritismo é uma doutrina fundamentalmente reencarnacionista, e o é pela lógica de sua filosofia, como pelo desenrolar da vida, mas não se acomodaria jamais a essas inusitadas preferências individuais, porque colidem com os próprios princípios da doutrina. Em consonância, portanto, com a moral do Evangelho, a Doutrina Espírita se preocupa, acima de tudo, com a espiritualização do homem. Estudando, aprendendo, sofrendo, adquirindo experiência, sem pretender a perfeição absoluta, porque não é possível, cada qual que se esforce para ser melhor, e é assim que o homem, cada vez mais, se aproxima de Deus. Para realizar a sua “transformação moral”, que é uma imposição do progresso espiritual, o homem não necessita de vestuário especial, nem de símbolos ou de características que o diferenciem de seus semelhantes. Para ser bom ou para se elevar na escala espiritual, ninguém precisará viver fora de sua época ou fugir às necessidades próprias de seu meio, tanto mais quanto, segundo a filosofia da re- encarnação, não é por acaso nem por mero capricho de Deus que se reencarna, ora neste ora naquele ambiente. Com a moral do Cristo, o homem pode caminhar seguramente para os planos mais altos da espiritualização, sem apresentações esquisitas ou obsoletas, sem atitudes forçadas ou desconcertantes. É o que nos assegura, claramente, a Doutrina Espírita. A reforma do homem é interior, não é exterior. Justamente por isso — e é a doutrina que o demonstra — o Espiritismo não comporta a instituição de qualquer forma de culto material.
ANDREW JACKSON DAVIS
Um dos mais insignes precursores do espiritualismo experimental. Andrew Jackson Davis nasceu em 1826 e desencarnou em 1910. Médium notável, de tendência mística, recebeu muitas mensagens do Além. Em sua "Filosofia harmônica" reuniu diversos trabalhos de alta significação moral. Sua orientação teve e continua a ter muita influência no movimento espiritualista. Jackson Davis está para os espiritualistas norte-americanos assim como Swedenborg está para os seus discípulos suecos, dinamarqueses, etc.
"O verdadeiro culto, para o Espiritismo, é o culto interior, é o sentimento, a elevação do pensamento".
O Espiritismo, como já vimos e é notório, tem relações com o Cristianismo, no campo mais gerai, porque ambos são ESPIRITUALISTAS, como tem afinidades muito acentuadas no campo moral, uma vez que a moral espirita não é outra, senão a do Evangelho. Isto é o bastante. Não é lógico, entretanto, partir das GENERALIDADES ESPIRITUALISTAS para forçar aproximações do Espiritismo com interpretações e práticas religiosas que não condizem evidentemente, com o espirito da doutrina. Tudo é Cristianismo — dizem alguns — mas nem tudo quanto ensinam as igrejas e seitas cristãs pode ser admitido no Espiritismo. Os princípios comuns não anulam as divergências doutrinárias, notadamente quanto à tese da reencarnação.
Os homens, com o decorrer dos tempos, introduziram no Cristianismo cerimônias e conceituações que jamais poderiam ser transplantadas para o Espiritismo. Na realidade, se acompanharmos a História ou se confrontarmos a simplicidade da vida e dos atos de Jesus com o que se faz, hoje, em seu nome, teremos de chegar fatalmente a esta triste conclusão: cada vez mais se torna difícil encontrar a expressão legitima do Cristianismo, aquele Cristianismo puro, todo Amor e Justiça, que o Cristo deixou na Terra. Tudo está desfigurado, dolorosamente! Deve, pois, o Espiritismo oferecer ao homem a chave para a compreensão do Evangelho, sem as complicações particulares, sem artificialismo, sem dogmatismo, o que vem a ser simplesmente a restauração do espírito do Cristianismo, desvinculado das interpolações e interferências, que tanto prejudicam a edificação espiritual da Humanidade.
Sendo o Espiritismo uma doutrina que tem por divisa o trabalho, a solidariedade e a tolerância, é fácil perceber, desde já, que não temos nem poderíamos ter a intenção de IMPOR as nossas convicções. Cada qual interprete o Evangelho segundo as suas luzes pessoais: — nem todos têm as mesmas crenças, as mesmas inclinações espirituais, a mesma receptividade, o mesmo espírito crítico. Em matéria religiosa, por mais forte que seja a persuasão dos dirigentes espirituais, por mais simples que pareça a passividade mental dos crentes, não se pode deixar de respeitar as propensões do foro íntimo. A alma humana tem as suas reservas ocultas: pode aderir, por injunções exteriores, a este ou aquele princípio de fé, mas verdade é que, quando menos se espera, ela própria vai pender para o lado que lhe é mais afim ou parece mais seguro. Quem pode devassar todas as decisões íntimas da alma humana, principalmente quando ela traz pendores e compromissos do passado?... Não há maior erro psicológico do que impor uma religião a ferro e fogo. Se assim pensamos, porque é assim que a Doutrina Espírita considera o problema da liberdade religiosa, é natural que nos sintamos à vontade para sustentar as nossas ideias, pois é um direito concernente à racionalidade da pessoa humana. Temos o direito de dizer, conscientemente que AS LUZES DO ESPIRITISMO TORNAM OS ENSINOS DO CRISTO MAIS CLAROS, MAIS LÓGICOS, MAIS CONCORDANTES COM A NATUREZA HUMANA. Sem a Doutrina Espírita, portanto, as principais sentenças do Evangelho ficariam embaçadas pela obscuridade ou poderiam correr o risco das interpretações ambíguas. E assim que pensamos. Que os outros pensem de outro modo, pouco importa, ainda mais porque o terreno interpretativo é muito flexível, muito sujeito a divergências.
Definida a nossa posição em face do problema religioso, podemos dizer, dentro da mesma ordem de ideias, que não é possível reduzir o Espiritismo às limitações e à ortodoxia de uma seita cristã, assim como não se pode concordar com a suposição corrente de que tudo seja a MESMA COISA, como tantas e tantas vezes se repete: Espiritismo, pompa litúrgica, sacrifícios, corpo sacerdotal, etc., etc. Não! Se assim fosse, como querem muitas pessoas de boa fé, não haveria distinção entre as doutrinas e religiões espiritualistas, porque todas se firmam sobre uma base única: DEUS.
Por meio de um raciocínio evidentemente destituído de senso lógico, certas pessoas, que ainda não têm convicção religiosa, ainda não sabem qual o rumo espiritual que vão tomar, costumam justificar as suas opiniões com uma fórmula que, embora sincera, e acreditamos que o seja, cai no lugar comum da generalização. Dizem, então, muitas pessoas, naturalmente como solução cômoda: — a li, como aqui, se fala em Deus; lá no terreiro, como na igreja, ensina-se a caridade; no Centro Espírita, também se faz caridade; LOGO, tudo é a mesma coisa. Os raciocínios simplistas generalizam com muita facilidade, e as suas conclusões, quase sempre, são rápidas e terminantes. Se é assim, se formos raciocinar pela coincidência, desprezando a sistemática e os princípios definidores de cada religião ou doutrina, chegaremos a conclusões irreconciliáveis. Poderíamos, assim, propor a seguinte questão: o espírita esclarecido não aceita nenhuma teoria "a priori”, porque lhe cumpre aguardar a demonstração, a prova; do mesmo modo, pela índole de sua filosofia, o materialista faz questão dos fatos, das provas, sistematicamente, seja em que terreno for. Neste caso, se devemos levar em consideração apenas algumas coincidências superficiais, teria cabimento, á dedução de que não há diferença entre um espírita e um materialista, uma vez que ambos raciocinam com base nos fatos, nas provas concretas. Seria uma conclusão ilógica e aberrante. Partindo de premissas opostas — a afirmação e a negação da sobrevivência do espírito após a morte — o espírita e o materialista jamais poderiam estar de acordo, embora se encontrem, neste ou naquele ponto, quando aplicam o método indutivo, em determinados casos. Tão antagônicas como as premissas, as conclusões de um espírita e as de um materialista não podem deixar de ser incompatíveis.
O Espiritismo não teme, entretanto, as descobertas nem o positivismo da Ciência. Quem o diz é Allan Kardec: — O materialismo pode por aí ver que o Espiritismo, longe de temer as descobertas da Ciência e o seu positivismo, lhes vai ao encontro e os provoca, por possuir a certeza de que o princípio espiritual tem existência própria, em nada pode com elas sofrer.(A GÊNESE, cap. X, edição de 1944, da Federação Espírita Brasileira). Não seria paradoxo o Espiritismo caminhar com o materialismo no domínio exclusivo da matéria, tanto mais quanto a verdade, como conceito global, se apresenta de formas diversas assim como se revela através de transcendências e valores incalculáveis, da matéria bruta aos mais altos planos da Espiritualidade. Os graus de conhecimento variam, entretanto, porque nem todos estão em condições de alcançar certos aspectos da verdade, embora ela seja una e universal. A verdade é uma só, no tempo e no espaço, como já se sabe, mas a verdade não se manifesta da mesma forma para todos os indivíduos: um homem rude, um homem de ciência, um filósofo e um místico representam quatro tipos de indivíduos com possibilidades diferentes, e por isso mesmo, cada qual observa ou percebe a verdade dentro de um ângulo próprio.
É natural, pois, que o Espiritismo, segundo a iluminada compreensão do seu Codificador, não despreze nem deva desprezar as contribuições que o rigorismo materialista possa trazer à Ciência, como não despreza o material que a experiência religiosa possa oferecer ao conhecimento humano. Tudo são meios para o estudo e a investigação. Isto não quer dizer que o Espiritismo subscreva as teses materialistas. O abismo que separa os dois campos é imenso e profundo. Não é possível argumentar com a generalidade, quando se trata de doutrinas diferentes, senão discordantes. Desde que haja um ponto pacífico entre o Espiritismo e qualquer doutrina ou qualquer forma de culto, muita gente vem logo justificar conformações ou confusões inconvenientes.
Apresentemos outra ilustração. O Positivismo (doutrina do grande filósofo Augusto Comte) tem por lema: o Amor, a Ordem e o Progresso. Tão grande e sadia foi a influência do Positivismo no Brasil, que a nossa Bandeira conserva até hoje a bela e significativa inscrição: Ordem e Progresso. O Positivismo diz que os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos; o Espiritismo afirma este princípio, de outro modo, e também esposa a trilogia: Amor, Ordem e Progresso. Seria cabível concluir que Espiritismo e Positivismo são a mesma coisa? Não. Os conceitos, na forma, são idênticos, mas as concepções filosóficas divergem fundamentalmente. Segundo a filosofia espírita, apoiada, aliás, sobre o testemunho das provas experimentais, os chamados mortos têm influência, diretamente, sobre os vivos. O Espiritismo defende, portanto, a tese da imortalidade individual, isto é, a imortalidade objetiva e não apenas teórica; quando, porém, o Positivismo preceitua que “os vivos são governados pelos mortos”, não se refere à sobrevivência do espírito nem quer dizer, com este asserto, que os espíritos desencarnados, como nós entendemos, venham entrar em relações com o homem. A noção positivista de imortalidade é puramente subjetiva, porque apenas preconiza o culto dos mortos pelo exemplo, na lembrança dos vivos: os grandes homens, os benfeitores da Humanidade (Aristóteles, Arquimedes, Pasteur, por exemplo) continuaram influindo nos destinos humanos pelas suas obras, pela memória que deles fica, em cada geração que se sucede. É a imortalidade histórica, não é a imortalidade individual. Para o Positivismo, o problema da imortalidade do espírito ou da vida futura pertence à metafísica, não deve entrar nas cogitações da inteligência humana. Já se vê que é muito diferente a concepção espírita. Seria impossível confundir Espiritismo e Positivismo, apesar de haver conceitos e sentenças que se adaptam, ao mesmo tempo, tanto a esta como àquela doutrina, conquanto sejam enunciados com objetivos diferentes.
Se, consequentemente, quiséssemos ficar no terreno das generalidades, que é um terreno muito inseguro, seríamos obrigados a levar as nossas comparações a este resultado incoerente: O Catolicismo predica a existência de Deus; o Espiritismo também assevera e ensina a existência de Deus como ponto básico de sua doutrina; o Catolicismo é ESPIRITUALISTA, porque aceita a imortalidade da alma e a . vida futura; o Espiritismo também é espiritualista; LOGO, tanto faz çer espírita como católico, porque Deus é um só... E assim, superficialmente, embora com apreciável dose de sinceridade, que muitos crentes raciocinam. Isto significa, simplesmente, falta de definições, falta de firmeza neste ou naquele campo. Todas as religiões e doutrinas filosóficas têm alguns pontos comuns; todas as religiões pregam o Bem, todas elas têm bons princípios morais, pois nenhuma religião ensina o vício nem o crime, mas antes, como se sabe, são unânimes em combater o mal. Nem por isso, todavia, se pode dizer, judiciosamente, que todas as religiões são iguais na organização, no corpo doutrinal ou nas interpretações filosóficas, visto como existem, entre todas elas, problemas e antagonismos inevitáveis.
Com a mesma simplicidade, dentro do mesmo sistema de ideias, também se confunde o Espiritismo com feitiçaria, macumba, etc. etc., como se fosse possível, honestamente, tomar como ponto de referência para a crítica de uma doutrina filosófica, qualquer forma degenerada de religião ou de recursos mágicos. Observa-se apenas um aspecto do problema — a mediunidade — que pode ocorrerem qualquer parte, independentemente de doutrina ou de crença religiosa, e logo se conclui deste modo: “se existe manifestação de espíritos nos terreiros de macumba, e se as sessões espíritas se servem das manifestações de espíritos desencarnados, tudo vem a ser a MESMA COISA... Isto é primarismo, quando não é má fé. Dizer que Espiritismo é macumba ou candomblé, apenas por haver comunicação de espírito, que é um fato universal, é revelar desconhecimento do assunto ou, em última análise, pretender argumentar com segundas intenções, por meio de raciocínios que logo se enfraquecem pela ausência de legitimidade.
As tentativas para fundamentar a introdução de rituais, incensosV imaqéns e outros objetos de culto material no meio espirita invocam sempre o pressuposto espiritualista, como generalidade, ou fazem apelo à tolerância. Não há, entretanto, razão alguma para tais pretextos, uma vez que o Espiritismo pelas suas disposições doutrinárias, dispensa completamente quaisquer formas de rito ou peças litúrgicas. Não devemos perder de vista, entretanto, um fenômeno psicológico muito frequente entre nós: nem todas as pessoas que deixam o Catolicismo e se voltam para o Espiritismo abrem mão, logo de saída, de todos os elementos da religião de origem; não tendo estudado e compreendido bem a Doutrina Espírita, não tendo, portanto, formado ainda a sua convicção, muitas das pessoas que aderem ao Espiritismo, por motivos vários, ainda têm aquilo que se chama comumente saudade do altar, porque continuam presas a certas atrações do culto antigo. Respeitamos sinceramente todas as predileções religiosas, mas o Espiritismo, em si, nada tem que ver com as tendências pessoais. Se alguém, por motivos de ordem íntima, prefere usar defumador, velas, charutos, bebidas, etc. em função de crença nas experiências mediúnicas, que o faça livremente, por sua responsabilidade, mas não deve nem é lícito introduzir tais objetos e práticas nas Sociedades Espíritas. E uma questão de coerência com a doutrina.
Sem se desviar jamais de sua invariável posição de respeito e tolerância em relação a todos os cultos religiosos, o Espiritismo é, no entanto, um corpo de doutrina que se não acomoda ao sincretismo religioso, tenha este a forma que tiver, nem se despersonaliza pela diluição de sua unidade doutrinária. Ainda que o confundam impropriamente com esta ou aquela cerimônia, com este ou aquele culto exterior, o Espiritismo não deixará de ser o que é: Espiritismo, tal como o definiu Allan Kardec.
Há quem diga, por exemplo, que Espiritismo e Umbanda são a “mesma coisa” ou simples variantes, quando a realidade é bem outra, porque a conformação doutrinária do Espiritismo não comporta nenhum dos ritos de Umbanda nem do Catolicismo. São cultos organizados, com as suas diferenciações peculiares, com os seus preceitos respeitáveis, mas inteiramente inadequados à naturalidade e ao feitio de uma doutrina como o Espiritismo, infensa ao formalismo, aos sinais cabalísticos e à instituição sacerdotal. A Umbanda, como culto religioso, está justamente amparada pela Constituição do Brasil, dentro do princípio geral da liberdade de crença, mas o seu instrumental, seus objetos, seu acervo simbólico não se ajustam, de forma alguma, à prática do Espiritismo.
As opiniões favoráveis à identificação da Umbanda com o Espiritismo, geralmente apoiam os seus argumentos nas seguintes comparações, cuja exatidão, aliás, não tem a força de convicção que se lhes atribui:
A Umbanda é espiritualista.
O Espiritismo também é espiritualista.
A Umbanda rende culto a Deus.
O Espiritismo também rende culto a Deus.
Nas práticas de Umbanda ocorrem fenômenos produzidos por espíritos desencarnados.
Nas práticas do Espiritismo também ocorrem fenômenos produzidos por espíritos desencarnados.
A Umbanda aceita a reencarnação.
O Espiritismo também aceita a reencarnação.
Na Umbanda se faz caridade.
No Espiritismo também se faz caridade.
Eis, aí, sem qualquer dúvida, indiscutíveis pontos de contato entre o Espiritismo e a Umbanda. E depois disto? Continuemos. Convém notar, desde já, que a Umbanda sofreu, no Brasil, por influências diversas, com evidente predominância afro-católica, tantas e tão acentuadas desfigurações, que, hoje, qualquer estudioso imparcial encontraria dificuldade para fazer distinção entre o que é realmente Umbanda, através de suas remotíssimas raízes históricas, e o que são as práticas extravagantes de certos ritos deformados. A Umbanda, em si, como elemento de cultura, no lastro das influências que se transplantaram para o Brasil, com sobrevivências judaicas, islâmicas, cristãs, etc., constitui um campo de pesquisa ainda não de todo explorado pelos que fazem estudo desta natureza, com interesse verdadeiramente científico. Há muito o que se pesquisar, ainda neste terreno.
Como forma religiosa, entretanto a Umbanda não tem correspondência com o Espiritismo. Conquanto sejam ESPIRITUALISTAS, Umbanda e Espiritismo não podem ser definidos em termos equivalentes. Muitos observadores e crentes, cuia lisura de propósitos não poríamos jamais em duvida, geralmente se prendem aos traços comuns, ao passo que tanto a Umbanda como o Espiritismo têm os seus aspectos particulares, os seus comportamentos específicos, as suas características próprias. Apesar de se haver fundamentado no fenômeno de ordem mediúnica, vulgarmente chamado de “além túmulo”, o Espiritismo é a DOUTRINA ESPÍRITA, cuja base experimental ou científica está, precisamente, nos fatos, nas provas já confirmadas; o fenômeno, por si só, não é o Espiritismo, é a demonstração da sobrevivência da alma ou da comunicação entre vivos e mortos, em qualquer parte, dentro ou fora da seara espírita. O Espiritismo define o fenômeno, adota o método experimental, separa o que é animismo e o que é comunicação ou manifestação de espírito desencarnado, metodiza o desenvolvimento da mediunidade e, por fim, estabelece conclusões lógicas. Fá-lo, porém, com alta preocupação filosófica, deduzindo consequências morais de repercussão benéfica no espírito humano. Verificam-se fenômenos de animismo também nas práticas de Umbanda, mas não se pode dizer que tudo seja animismo[4].
Se, apesar da generalidade dos fenômenos, o Espiritismo é a Doutrina Espírita, e quem o diz é Allan Kardec, é lógico afirmar, forçosamente, que o fenômeno sem a Doutrina Espirita, seja na Umbanda, seja onde for, não é Espiritismo. (Leia-se, indispensavelmente, a Introdução do O LIVRO DOS ESPÍRITOS, e lá, de maneira muito clara, a explicação do termo Espiritismo). O Codificador do Espiritismo ainda é mais preciso quando diz que todo espírita é necessariamente espiritualista, mas nem todo espiritualista é espírita. Esta declaração, aliás muito explicita, está na obra “O QUE E O ESPIRITISMO", capitulo I. Evidentemente, o Espiritismo interessa-se pelo fenômeno como objeto de estudo ou verificação, onde ele se apresente, seja no terreiro, seja no templo católico, seja na mesquita do maometano, mas não altera a sua posição doutrinária, não perde as suas características.
Não se pode dar ao Espiritismo, portanto, a flexibilidade dos conceitos indeterminados nem a plasticidade das substâncias que se unem facilmente a qualquer modelo, pois a doutrina tem definições inconfundíveis, dentro de um plano de conjunto em que as linhas de consistência e concordância não se prestam a qualquer forma de combinação caprichosa ou despropositada. Cada qual pode definir o Espiritismo a seu modo, como pode querer levar o Espiritismo para as direções mais variadas, mas as definições e atitudes particulares não têm valor decisivo, porque não modificam o corpo da doutrina. Como é que está definido o Espiritismo na Codificação de Allan Kardec? Diz o Codificador da doutrina: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal. Convém frisar que esta definição é precedida de uma justificativa, nos seguintes termos:
O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais, que dimanam dessas mesmas relações. (Allan Kardec — O QUE É O ESPIRITISMO).
Tendo-se preocupado fundamentalmente com a interpretação filosófica do fenômeno e suas consequências na ordem moral, a Codificação do Espiritismo não cogitou nem poderia cogitar de qualquer forma de culto material, assim como não prescreve cerimônias de iniciação nem hierarquia religiosa. Uma vez que já fizemos comparações para fixar pontos comuns entre Umbanda e Espiritismo, é natural que também recorramos ao método comparativo para demonstrar as diferenciações que separam claramente a Umbanda e o Espiritismo. Se as analogias nem sempre são suficientes para identificar princípios ou coisas diferentes, muito menos as incompatibilidades, especialmente quando são palmares, como no caso de Umbanda e Espiritismo.
Ponhamos, pois, o Espiritismo e a Umbanda em posições paralelas, no seguinte quadro:
O Espiritismo NÃO tem culto material.
A Umbanda TEM culto material.
O Espiritismo NÃO tem culto ritual
A Umbanda TEM ritual.
O Espiritismo NÃO prescreve qualquer forma de paramento nem comporta o formalismo de funções sacerdotais.
A Umbanda TEM “pais” de terreiro com vestimenta e prerrogativas equivalentes ao exercício de funções sacerdotais.
O Espiritismo NÃO admite o uso de imagens, seja de santos seja de quaisquer divindades, como não permite o emprego de qualquer sacrifício em razão de crença.
A Umbanda TEM imagens e altares, como ainda usa sacrifício de animais nos casos em que as suas crenças permitem tal prática.
O Espiritismo NÃO tem sinais cabalísticos nem símbolos.
A Umbanda TEM sinais, “pontos riscados”, etc.
O Espiritismo tem SUA nomenclatura, segundo a Codificação da doutrina, em cujo vocabulário não se encontram as designações usuais no culto umbandista, quer em relação aos médiuns, quer em relação aos Espíritos.
A Umbanda tem uma nomenclatura muito diferente, porque chama os médiuns de “cavalos”, emprega termos de procedências várias, como mironga, marafo, ogun, etc. etc.
Além de todos esses aspectos, evidentemente diferenciais, O ESPIRITISMO REGE-SE POR UM CORPO DE DOUTRINA HOMOGÊNEA, CODIFICADA POR ALLAN KARDEC.
A UMBANDA NÃO SE REGE PELA DOUTRINA CODIFICADA POR ALLAN KARDEC.
Consequentemente, tanto na teoria quanto na prática, a Umbanda e o Espiritismo estão situados em campos distintos, não podem ser a mesma coisa, como geralmente se diz. A distinção entre a Umbanda e o Espiritismo, aliás muito clara, não impede, todavia, que haja respeito mútuo, espírito de compreensão e tolerância, sem ser necessário chegar-se ao extremo de forçar a fusão de crenças e práticas divergentes. Em matéria religiosa (não há quem não saiba disto) cada qual se inclina para o lado que lhe agrada. E problema de consciência. Nosso objetivo é apenas este: deixar suficientemente esclarecido que o culto de Umbanda, embora seja espiritualista, apesar de ter características medi únicas bem acentuadas, NÃO CONSTITUI VARIANTE NEM MODALIDADE DO ESPIRITISMO. Somente isto.
Abramos O Livro dos Médiuns. uma das obras básicas do Espiritismo, e lá encontramos, entre outras, a seguinte instrução: para se obter comunicação de espírito, NÃO HÁ FÓRMULA SACRAMENTAL. Diz Allan Kardec: quem quer que pretenda indicar alguma (fórmula) pode ser taxado, sem receio, de charlatão, visto que, para os espíritos, a forma nada vaie. (Cap. XVII, n9 203). Convém notar que Allan Kardec também frisou que as práticas espíritas não têm relação com a magia, seja a magia natural, seja a magia evocatória. Nas sessões espíritas, e este ponto é relevante — há sempre uma atitude reverente ou de submissão, porque não se impõe, não se ordena: PEDE-SE, por meio da prece. O espírita faz oração para pedir a assistência de um espírito, ao passo que o mago apela para os seus poderes sobre os elementos que o cercam. A magia tem uma parte dogmática e uma parte ritualística. Que é afinal, magia? É a ciência tradicional dos segredos da natureza, que nos vem dos magos. Por meio desta ciência — diz o mesmo Autor — o adepto se acha investido de uma espécie de onipotência relativa e pode agir de modo que ultrapassa a capacidade comum dos homens. Assim fala um dos maiores ocultistas ocidentais: Eliphas Levi — “DOGMA E RITUAL DE ALTA MAGIA”.
A magia participa da religião e da ciência. Embora os teólogos, sociólogos e antropólogos ainda não se entendam bem sobre se a magia deu origem à religião ou se foi a religião que deu origem à magia, principalmente depois que Frazer abriu a discussão, no século XIX, a verdade é que o interesse por esses problemas continua a ser objeto de exame. Embora suscitando controvérsias, a magia entra na História das Religiões, nas Ciências Sociais e até no Direito.
Não foi sem razão que um dos sociólogos franceses dedicou estudo especial à influência da magia nas antigas instituições jurídicas. (G. V. Gurvitch: “VOCATION ACTUELLE DE LA SOCIOLOGIE”). Para este autor, que discorda do ponto de vista de Frazer, a magia teve, na antiguidade romana, muita repercussão no Direito. A magia pode ser considerada em diversos ângulos: o histórico, o ocultista, o religioso, etc. Gurvitch não aceita a teoria de Frazer, segundo a qual a ciência nasceu da magia. A ciência dos magos - ensinam autores ocultistas - era arte sacerdotal e arte real, porque, pela iniciação, os sábios se habilitavam para exercer poderes sobre as almas e as vontades. Os magos chegaram a formar castas na Pérsia, na Babilônia, etc.
A magia desvirtuou-se muito. Daí a divisão entre magia branca e magia negra. Diz Eliphas Levi que o feiticeiro é para o mago o que o supersticioso e o fanático são para o homem verdadeiramente religioso. O Espiritismo - como bem acentuou Allan Kardec - não tem relação com a magia, porque os seus processos são diferentes, assim como a prática espírita não recorre aos rituais mágicos. Cabe, aqui, a seguinte observação de Maxwell: O ato religioso é uma oração; o ato mágico é a expressão de uma vontade.
Um é humilde, o outro não o é. Tal o caráter essencial da magia. Ela pode aplicar esta vontade para a sujeição, seja de seres sobrenaturais, gênios, demônios ou espíritos, seja de forças naturais. (J. Maxwell - “LA MAGIE”). Como, pois, associar Espiritismo e magia, se os métodos e objetivos são absolutamente contrários?
Depois de uma dissertação muita clara sobre a inutilidade ou inconveniência de objetos e fórmulas especiais para o intercâmbio com os espíritos desencarnados, Allan Kardec faz uma ponderação, da qual se depreende prontamente que a prática espírita não emprega nem precisa empregar os meios habituais da magia. Completando o período anterior- mente transcrito, adverte o Codificador do Espiritismo: Contudo, a evocação deve ser feita em nome de Deus. Há ou não há um sentido de subordinação? Exatamente. Formulada a súplica — adianta Kardec — é de esperar que um Espírito se manifeste, fazendo escrever alguma coisa. Vê-se, à luz da própria doutrina, que o Espiritismo não utiliza processos impositivos nas relações com o mundo espiritual. Tudo se faz, portanto, EM NOME DE DEUS, o que quer dizer, sem qualquer subterfúgio, que o homem se submete à vontade do Poder Supremo, não se julga dominador das forças naturais nem, ainda menos, dos espíritos, que são seres inteligentes.
Entretanto, certas publicações de combate ao Espiritismo, notadamente de origem católica, empregam o verbo evocar na acepção imperativa de chamar espíritos, dando a entender, com isto, que também nas sessões espíritas se obriga o ser desencarnado a descer ou baixar onde se quer e quando se quer. Não é assim que se procede nas sessões espíritas. Explorando maldosamente a palavra evocação, querem alguns adversários do Espiritismo fazer crer aos seus fieis que a forma de evocar espíritos nas sessões espíritas é igual, em tudo por tudo, às práticas de magia. Qual o fito desta confusão deliberada? Simplesmente este: dar a impressão de que o Espiritismo é uma forma de magia ou, invertendo os termos da proposição, a magia é uma forma de Espiritismo. Vejamos como raciocinam os nossos opositores: - assim nas práticas espíritas, como nos trabalhos de magia, sempre se faz evocação de espíritos; logo, Espiritismo e magia são “a mesma coisa”. A premissa, em parte, é verdadeira, porque se pode evocar espírito na magia, nas sessões espíritas, como em qualquer parte, mas a conclusão e falsa, evidentemente FALSA, porque o modo de encarar a comunicação dos espíritos não é idêntico: enquanto as práticas de magia se servem da manifestação de espíritos como instrumento, para obtenção de fins imediatos, em função da crença nos poderes de seus iniciados, as sessões espíritas, mas sessões espíritas de verdade, e não apenas sessões de mediunismo sem doutrina, são realizadas sob normas disciplinadoras, em virtude das quais o intercâmbio com o mundo espiritual só deve ser permitido com objetivo sério, para fins de esclarecimento ou transformação morai. Uma sessão espírita exige muita noção de responsabilidade.
Quando, porém, escritores católicos, dos mais veementes, falam sobre evocação dos mortos, emprestam a esta expressão, que, aliás, nada tem de herética nem de sacrílega, uma entonação de horror, como recurso puramente emocional, para impressionar pelo medo, provocando uma reação de repulsa às práticas espíritas. Referem-se muito à necromancia, cuja formação etimológica especulam demasiadamente, como se o Espiritismo fosse, de fato, “adivinhação por meio dos mortos”. Não se faz sessão espírita para adivinhar o futuro a respeito de negócios, nem de política ou de problemas amorosos. Os espíritos podem, contudo, prever acontecimentos de natureza pessoal ou coletiva, embora nem sempre seja oportuno fazer revelações; direta ou indiretamente, um espírito desencarnado pode fazer advertências caridosas para evitar desastres futuros. São os fatos que o provam. Qual o absurdo que vai nisto? Nenhum, absolutamente. A Doutrina Espírita afirma e demonstra a intervenção dos espíritos nos atos humanos. Por quê, então, malsinar tanto a evocação dos mortos, se a comunicação dos espíritos é um fenômeno universal, subordinado a leis que não podem ser submetidas à vontade dos teólogos nem de quaisquer outros adversários do Espiritismo? Diz a doutrina que os Espíritos protetores nos ajudam com os seus conselhos, mediante a voz da consciência, que fazem ressoar em nosso íntimo. Como, porém, nem sempre ligamos a isso a devida importância, outros conselhos mais diretos eles nos dão, servindo-se das pessoas que nos cercam. (Comentários de Allan Kardec, a respeito da questão n.º 524, O LIVRO DOS ESPÍRITOS). E natural que, estando fora da matéria, tendo a percepção muito mais dilatada, em razão de seu adiantamento, um espírito desencarnado veja as coisas do futuro com mais clareza ou nitidez do que qualquer pessoa. Não é correto chamar a isto de “adivinhação", e ainda mais, com intenções pejorativas, como não é sensato atribuir à evocação dos espíritos o caráter de “profanação dos mortos". A palavra evocação, na linguagem da propaganda anti-espírita, passou a exprimir a ideia de um tabu, como se a comunicação dos chamados mortos já não fosse um fato provado experimentalmente, e com os mais insuspeitos testemunhos históricos. É verdade que Allan Kardec também usou a palavra evocação, e não há nenhuma impropriedade nisto, porque evocar espíritos é tentar atraí-los pelo pensamento.
O verbo evocar, que nem sempre tem o mesmo sentido de invocar, presta-se a três aplicações, em casos especiais:
a) — evocar, na acepção de recordação (memória evocativa); b) — evocar, quando se deseja a presença de alguém (chamamento); c) — evocar, quando se faz alguém vir a determinado lugar, em obediência à pessoa que chama ou evoca (autoridade ou poderes superiores). É claro que invocar e evocar, como se sabe, são verbos de uso restrito, e por isso, não devem ser empregados a qualquer propósito. Invocar é chamar em auxílio, é recorrer ao prestígio ou à proteção de outrem. Não tem expressão imperativa. Quando invocamos a opinião de um sábio, por exemplo, queremos apoiar o nosso ponto de vista na autoridade intelectual do sábio; se alguém diz que vai invocar o depoimento de um homem de bem, logo se entende que vai trazer ou chamar em socorro a palavra de um homem honesto para justificar ou defender uma causa; no mesmo sentido, invocar “o juízo da História” é procurar segurança ou defesa nas provas que a História possa oferecer quando está em jogo um direito, uma ideia, uma causa. O emprego do verbo invocar pressupõe claramente a acepção de cobertura, apoio ou abono, o que não ocorre, em circunstâncias especiais, com o verbo evocar, pois também pode ser usado com significação impositiva. Embora estejam muito próximos e sejam muito parecidos, os dois verbos têm emprego diferentes em determinados casos. Não há colisão, entretanto, quando colocados de modo amplo, com a ideia genérica de chamamento. Foi, portanto, com a presunção de chamamento, nunca de ordem ou determinação, que o Codificador do Espiritismo aplicou o termo evocação ao intercâmbio dos homens com os espíritos. A evocação de espíritos, nas sessões práticas de Espiritismo, não tem pretensões autoritárias, uma vez que esse ato é precedido de uma preparação espiritual, por meio da prece, sem qualquer cerimonial ou fórmula preestabelecida, mas nem por isso destituído de respeito. Contrariamente à orientação doutrinária do Espiritismo a evocação pela magia não implora, não toma atitude submissa: ordena, põe as suas forças em ação, persuadindo-se de que tem domínio sobre os elementos naturais e sobre os seres espirituais. Já se vê, sem a menor dúvida, que O ESPIRITISMO NÃO SE EQUIPARA AOS PROCESSOS DE MAGIA, tanto mais quanto não admite sortilégios, fetiches, encantamento ou qualquer artifício de persuasão.
Colocado, portanto, no lugar que lhe é apropriado na escala dos conhecimentos humanos e espirituais, o Espiritismo tem elementos para levar as suas luzes a diversos campos de pesquisa ou discussão, seja na magia, seja nas experiências de magnetismo ou nas organizações religiosas dos mais variados tipos, sem se amoldar, todavia, a qualquer adaptação em que se pretenda disfarçá-lo com rituais ou padrões convencionais. O Espiritismo é, como afirmou Allan Kardec, uma doutrina filosófica de efeitos religiosos. Isto quer dizer que o Espiritismo tem um ASPECTO RELIGIOSO, como tem um aspecto científico e um aspecto filosófico. Não é possível desmembrar as facetas características do Espiritismo. Kardec justifica muito bem a posição do Espiritismo, quando declara que a sua filosofia vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura.
Se as consequências do Espiritismo, em síntese, levam o homem à convicção da existência de Deus, e se desta convicção decorre um procedimento ético tanto quanto possível conformado às leis divinas, porque informado pela compreensão da vida futura e do primado espiritual, é claro que existe uma preocupação religiosa no corpo da doutrina. Que nos seja permitido, nesta oportunidade, repetir um lugar comum; — sem a ideia de Deus, a Doutrina Espírita ficaria incompleta, porque logo se ressentiria da falta de um finalismo superior, como se fosse uma série de proposições lógicas sem um corolário satisfatório.
Observe-se que a primeira obra básica do Espiritismo, precisamente a obra que contém a substância de sua filosofia — O Livro dos Espíritos - começa pelo reconhecimento da existência de Deus, causa universal e fim último: Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas (Cap. I — questão n.º 1). Desta definição, que é mais filosófica do que teológica, a doutrina parte para uma sequência de conclusões em que o problema religioso vem à tona, forçosamente, quando se nos deparam as noções de penas e gozos futuros, explicadas à luz de esclarecimentos mais inteligentes e mais modernos, em relação às ideias antigas. Nesta afirmação, por exemplo, há implicações religiosas: O progresso da Humanidade tem o seu princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade, lei que se funde na certeza do futuro. Tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas as condições da felicidade do homem. Adiante: Jesus veio mostrar aos homens o caminho do verdadeiro bem. Porque, tendo-o enviado para fazer lembrar sua lei que estava esquecida, não havia Deus de enviar, hoje, os Espíritos, a fim de a lembrarem novamente aos homens, e com mais precisão, quando eles a olvidam para tudo sacrificar ao orgulho e à cobiça? (“O LIVRO DOS ESPÍRITOS” — Conclusão, IV e VII). A vida futura ou depois da morte, é uma das ideias religiosas. O Espiritismo desvenda-lhe o mistério, abre-lhe uma perspectiva nova, através da qual, sem o pavor do inferno ou das penas eternas, que apenas traduzem dogmas obsoletos e inaceitáveis, o homem se compenetra de seu verdadeiro destino perante a justiça de Deus. Isto não é filosofia puramente especulativa, é também atitude religiosa. O Espiritismo toca, portanto, neste aspecto, que lhe é tão inerente, tão indispensável como os outros aspectos, mas não é uma religião.
O fato de ter uma parte religiosa, sem ritual e sem prescrições canônicas, não exige a organização de um culto sistematizado. Até mesmo a prece, que tem o seu valor no sentimento e é um ato preparatório nas reuniões espíritas, pelo menos no Brasil, não é determinada por letra de breviário. O Espiritismo não tem nem poderia ter o formalismo das religiões constituídas. Vejamos as próprias palavras do Codificador da doutrina: O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que, forçosamente, vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou nem recebeu o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. (Allan Kardec — “OBRAS PÓSTUMAS” — Do capítulo intitulado “Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo”). Allan Kardec frisa bem que o Espiritismo não é uma RELIGIÃO CONSTITUÍDA. Não o fora nos primeiros tempos, quando os seus lineamentos ainda estavam na fase de elaboração, nem o seria hoje, com a experiência histórica de mais de um século, quando a doutrina já está definitivamente consolidada. O qualificativo constituída não exclui a ideia religiosa. Há muita diferença entre culto organizado e atos religiosos ou consequências religiosas. O Espiritismo tem, indiscutivelmente, consequências religiosas, e muito profundas, mas a sua esquematização, a sua índole e a sua conceituação básica não comportam qualquer forma de culto material, nem sacerdotes nem chefes carismáticos. Religião constituída prevê culto material, ritos, formalidades, etc. etc., e é neste ponto, ainda mais, que o Espiritismo assume uma posição que não permite confusão alguma com a Umbanda ou qualquer outro culto religioso, por mais antigas que sejam as suas tradições, por mais importante que seja a sua função social.
O verdadeiro culto, para o Espiritismo, é o culto interior, é o sentimento, a elevação do pensamento. Não tem o Espiritismo prescrições condizentes com a adoração exterior. É o que ensina a doutrina, e de forma clara, meridiana: “Em que consiste a adoração? Resposta: Na elevação do pensamento a Deus. Deste, peia adoração, aproxima o homem sua alma. A adoração exterior pode ser útil, se não consistir num vão simulacro, se houver sinceridade, mas a Doutrina ’Espírita faz sentir que o homem, quanto mais espiritualizado, menos necessita de exteriorizações oú de, posturas convencionais para render culto a Deus. E a RELIGIÃO pura e simples, a religião da consciência. A Doutrina Espírita resume esta questão, com inegável espírito de síntese, em poucas palavras: A verdadeira adoração é a do coração. Em todas as vossas ações, lembrai-vos sempre de que o Senhor tem sobre vós o seu olhar. (“Lei de Adoração” — O LIVRO DOS ESPÍRITOS).
Ora, se a Umbanda é uma religião constituída, porque tem culto externo, cerimonial, representações sagradas e outras características materiais, e se o Espiritismo NÃO é uma religião constituída, porque não tem culto material, não tem cerimonial nem objetos sagrados, como não confere prerrogativas sacerdotais a nenhum de seus adeptos, uma conclusão logo se impõe, e de modo inelutável: UMBANDA NAO É ESPIRITISMO. Dentro desta ordem de raciocínios, que se estriba nas diferenciações explícitas entre a constituição do Espiritismo e a organização do culto umbandista, outra conclusão também ocorre, inevitavelmente: não há Espiritismo de Umbanda, porque Umbanda é Umbanda, Espiritismo é Espiritismo.
Não discutimos nem caberia discutir a ação caridosa de muitos médiuns umbandistas, assim como não seria lícito negar o sentimento de bondade daqueles que, desejando fazer o Bem, recorrem a todos os meios terapêuticos, quer na Umbanda, quer no Espiritismo, e assim por diante. A caridade, em qualquer de suas formas, está acima das crenças, pois até um indivíduo sem crença em coisa alguma pode ter bons sentimentos e ser caridoso. A religião estimula, e muito, o exercício da caridade, mas e indispensável que haja amor na alma de cada criatura humana, porque a caridade é um impulso do dever para com o próximo. Este problema deve ficar à margem da discussão entre Umbanda e Espiritismo, porque é matéria de consciência: cada qual realize o Bem, como puder, seja nesta, seja naquela seara religiosa. A caridade é meritória em qualquer lugar. Quando Jesus ensinou o mandamento amai-vos uns aos outros, não discriminou religiões, nem raças, nem posição social.
Estamos examinando, porém, a dessemelhança que separa o Espiritismo e a Umbanda em três aspectos distintos: o aspecto formal, o aspecto doutrinário e o aspecto evolutivo. O culto de Umbanda exterioriza-se, como já vimos, através de atos ritualísticos inteiramente contrários às normas da prática espírita. Se é frisante a desigualdade quanto à forma, não menos evidente é a disparidade quanto à doutrina, uma vez que o culto umbandista não se adapta à sistemática espírita. É um culto independente, embora admita certos princípios gerais do Espiritismo, como a imortalidade do espírito, a reencarnação, etc. Mister se faz que consideremos, contudo, o seguinte ponto: a concepção evolucionista do Espiritismo diverge da concepção umbandista quanto a certos comportamentos. E o que iremos ver, como remate deste capítulo. Fixemos duas proposições indispensáveis:
em primeiro lugar, o conceito de evolução, para o Espiritismo, não se prende ao mecanismo biológico, porque, sem desconhecer a influência das leis biológicas na evolução geral, a filosofia espírita vê o destino humano através de uma perspectiva contínua e mais extensa; em segundo lugar, o Espiritismo compreende a evolução no sentido global, abrangendo o plano físico e o plano espiritual.
Conclui-se, daí, que o conceito espírita de evolução significa transformação para melhor, não se reduz a simples noção de modificações naturais, em função do meio ou das contingências biológicas. Então, o ponto mais alto da evolução é o PROGRESSO ESPIRITUAL. E como se pode reconhecer o progresso espiritual, segundo a Doutrina Espírita? Naturalmente pelo aprimoramento das qualidades morais, pelo desenvolvimento intelectual e também pelo desapego do espírito em relação, a tudo quanto possa excitar sensações grosseiras. É neste campo de observação, exatamente, que se chocam duas concepções diferentes: a concepção espírita, segundo a qual o espírito deve desprender-se, tão logo seja esclarecido, de todos os hábitos viciosos, como o uso de bebidas, charutos, etc.; a concepção observada no movimento umbandista, segundo a qual o espírito pode permanecer com esses hábitos, tanto assim, que a Umbanda justifica o uso de charutos, bebidas, sapateados, tambores, etc. Há, evidentemente, divergência conceituai entre o Espiritismo e a Umbanda. Como consequência desta dualidade de concepção evolucionista, também se verificam dois tipos de comportamentos opostos: o ensino do Espiritismo visa a instruir e educar o espírito, para que despreze conscientemente todos os objetos e gostos materiais, sem o que não haverá evolução; a tendência da Umbanda é conservar charutos, defumadores, etc., uma vez que tais práticas são permitidas, dentro de seu sistema religioso. Logo, o Espiritismo e a Umbanda, também sob este ponto de vista, estão em posições adversas:
I — a Umbanda aceita a ideia de evolução concomitantemente com o uso de charuto etc., e tanto é verdade, que muitos de seus guias ou chefes de terreiros não abrem mão desses hábitos terrenos;
II — analisando o problema por um prisma oposto ao da Umbanda, a Doutrina Espírita leva a concluir seguramente que não é possível conciliar a evolução com a permanência de práticas e hábitos que prendem o espírito cada vez mais à materialidade das coisas vulgares.
São, como se vê, duas posições contrárias em face do conceito de evolução. Desde que tomemos o termo evolução na alta acepção de progresso espiritual, somos obrigados a deduzir, criteriosamente, que não pode haver progresso ou ascensão quando um espírito ainda necessita de estimulantes fortes ou alimenta vícios de que muitos homens conseguiram libertar-se pela força de vontade, apesar% das imperfeições concernentes à condição humana. À luz do Espiritismo, a conclusão mais aceitável, mais concordante com a lógica da doutrina, é a de que, se um espírito, seja ele guia ou instrutor, ainda faz questão de bebida, charuto ou cachimbo, por exemplo, é porque continua sentindo atração pelas coisas materiais, em estágio que não é de um espírito iluminado. Uma das consequências do progresso espiritual é o abandono do vícios, é o afastamento consciente e gradativo de todas as sobrevivências materiais do passado.
É certo que a Umbanda explica esse fenômeno, segundo as suas concepções, não só pela necessidade da limpeza fluídica ou preparação do ambiente, como também porque o médium já está afeiçoado às preferências do espírito, cuja identificação ainda exige sinais, gestos ou desejos próprios de sua procedência indígena, africana, indiana, etc. A explicação umbandista, entretanto, não nos prova a necessidade do emprego do fumo, bebidas, odores, etc. Nossa objeção, que não é dogmática nem intolerante, se fundamenta no princípio da progressividade do espírito, e este princípio é capital na Doutrina Espírita: o espírito deve PROGREDIR SEMPRE, mas a verdade é que não pode progredir enquanto ainda se subordina a influências de ordem material. Consequentemente, as interpretações e os processos da Umbanda NAO PODEM SER INTRODUZIDOS NO ESPIRITISMO, porque os modos de ver, principalmente neste ponto, são antagônicos, e é a doutrina codificada que no-lo esclarece com indisfarçável prudência e clareza. Ensina a doutrina: purificando- se o espírito, pouco a pouco se liberta da influência da matéria. Sob essa influência, aproxima-se do bruto. Isenta dela, eleva-se à sua verdadeira destinação. (“O Livro dos Espíritos” — questão n.º 605). Não podemos sair deste princípio: São os próprios Espíritos que se melhoram, e melhorando-se, passam de uma ordem inferior para uma ordem superior. (Questão n.º 114). Se o espírito, pela lei imutável do progresso, tende para o melhoramento, cedo ou tarde, quando encarnado ou desencarnado, como é, pois, que se pode admitir, dentro da lógica espírita, que um guia espiritual, um espírito superiormente elevado, continue necessitando de coisas grosseiras para se manifestar através de um médium? Não negamos o fenômeno, não duvidamos da intenção honesta da manifestação, mas o que não podemos aceitar é a sapiência ou a iluminação de um espírito que, durante anos seguidos —cinco, dez, doze anos — ainda não pôde abrir mão do fumo, da bebida ou de qualquer outra necessidade material.
Leia-se O Livro dos Médiuns, a obra que trata da parte experimental do Espiritismo. Que é o que se lê no cap. IV, n9 49? Isto, apenas, e é uma síntese fundamental da concepção progressiva do Espiritismo: Há espíritos em todas as gradações de bondade, malícia, saber e ignorância. Todos ESTÃO SUJEITOS A LEI DO PROGRESSO, e todos podem chegar à perfeição; mas, possuem livre arbítrio, lá chegam em tempo mais ou menos remoto, CONFORME O ESFORÇO QUE FAZEM e a vontade que têm. Deve ou não deve o espírito esforçar-se para se desprender da materialidade? Claro que deve, e se o não faz, porque se sente bem na convivência de objetos terra-a-terra ou sob a influência de uma atmosfera espiritual ainda impregnada de vibrações pesadas (designação muito corrente no Brasil), é porque ainda está muito preso ao plano comum. Vejamos bem a asserção doutrinária: todos estão sujeitos à Lei do Progresso. Isto não é uma frase, é um princípio.
A Doutrina Espírita não diz que se deve repelir um espírito pelo fato de se apresentar desta ou daquela forma, com esta ou aquela linguagem, seja africano, indígena ou europeu. É natural, e compreensível que o espírito de um pajé ou de um africano islamizado se manifeste com os hábitos, as ideias e a linguagem de seu meio, de sua sociedade na última existência. Existem fatos em que se prova objetivamente a presença de certos espíritos com as suas roupas típicas, em razão da facilidade com que manipulam a matéria fluídica, dando ao perispírito a aparência pessoal que lhes seja mais adequada. Este fenômeno, apesar de exigir muito senso crítico para evitar ilusão ou fantasia, é perfeitamente explicável pelo Espiritismo, conquanto ainda seja estranho aos ensinos clássicos da Física, no tocante ao que seja o perispírito ou corpo fluídico. Não se confunde um fenômeno desta ordem com projeções ideoplásticas, estudadas por muitos experimentadores, uma vez que a ideoplastia é objeto de um capítulo especial na fenomenologia psíquica e não entra neste campo de investigação. A plasticidade e adaptação do elemento fluídico (perispírito) é fato provado, não é uma criação imaginosa. Se a matéria existe em estados que desconhecemos”, e o Espiritismo já dizia isto no século passado (O Livro dos Espíritos, questão n.º 22), a substância fluídica, dirigida pela inteligência do espírito, pode concretizar a forma de um hindu, como a de um normando ou de um “pele- vermelha”. A chamada “matéria elementar primitiva”, cuja natureza ainda não se conhece de modo absoluto, é suscetível de modificações, do mesmo modo que pode “adquirir propriedades diversas", o que, aliás, não é novidade para a Doutrina Espírita, visto como O Livro dos Espíritos, publicado em 1857, já discute o problema quando trata dos “elementos gerais do Universo”, no capítulo II. Nada mais possível, nada mais racional, dentro deste quadro mediúnico, do que a identificação de um espírito, tornando-se reconhecível pelas suas roupas costumeiras, desde que se tenha noção exata das propriedades do perispírito. Os videntes descrevem manifestações em que os espíritos se apresentam ora com a forma de índio, ora com o turbante de árabe ou de qualquer outra maneira. Tudo isto já está previsto na fenomenologia espírita, nada tem de espantoso nem de absurdo.
Todavia, o que a Doutrina Espírita não aprova é a suposição de que, pela circunstância de haver sido preto velho ou indígena, por exemplo, deva o espírito continuar sempre com o seu linguajar arrevezado ou indefinidamente no mesmo círculo de ideias e hábitos. Suponhamos que um silvícola, trazido das florestas amazônicas, venha morar no Rio de Janeiro. Nos primeiros dias, naturalmente, esse homem das selvas encontrará a maior dificuldade para se acomodar ao novo meio, para falar como nós falamos, mas afinal, depois de certo tempo, passada a fase de transição, que é muito difícil, o nosso índio aprende a vestir roupas da cidade, como aprende a calçar sapato, usar gravata, sentar-se à mesa como qualquer pessoa da Capital. A modificação de hábitos é uma imposição do meio social. Embora conserve algumas sobrevivências culturais no lastro de suas crenças e de seus estilos de vida, o homem é obrigado a ajustar-se, mesmo porque é uma necessidade da própria conservação. Como poderia o silvícola viver de caça e pesca em Nova York ou Paris, fechado entre arranha-céus do perímetro urbano, sem poder usar o arco e a flecha? Seria obrigado a se adaptar à alimentação americana ou europeia para não morrer de fome. A mudança de um meio para outro leva o indivíduo a desprezar, por necessidade, muitos elementos de sua cultura material. (Não nos esqueçamos de que a Doutrina Espírita se preocupa também com problemas de Sociologia, especialmente na III parte de O Livro dos Espíritos).
Se, portanto, o africano ou índio, como homem, modifica os costumes, as ideias, o comportamento, apenas porque saiu de seu habitat e veio para um ambiente muito diferente de seu ambiente originário, mais razão e mais facilidade deve ter um espírito desencarnado, principalmente se já é adiantado para se desligar da bebida, do fumo, dos instrumentos grosseiros. Se o espírito chega à sessão e, através do médium, pede bebida, quer obrigar o médium a tirar o sapato, faz trejeitos, etc., é claro que se não deve expulsar ou amaldiçoar o espírito, que é ignorante, mesmo porque o Espiritismo não admite maldição nem condenação... A necessidade da evolução exige, no entanto, que se dê esclarecimento, pois é nisto que consiste, sem dúvida, um dos mais benéficos trabalhos de caridade: instruir, orientar, educar o espírito, torná-lo melhor, finalmente. Como poderia haver progresso espiritual sem melhoramento intrínseco? A transformação, por sua vez, traz o desprendimento natural das coisas e das propensões vulgares. Esta é a lição do Espiritismo.
Conservar práticas esdrúxulas ou instigar manifestações exóticas para despertar curiosidade ou como chamariz de frequência numerosa, como se faz, tantas vezes, em determinados ambientes heterogêneos, é prejudicar a evolução, é contrariar perigosamente o princípio da progressividade do espírito. Sabemos muito bem que há fenômenos interessantes, como há médiuns de grandes possibilidades em diversos movimentos diferentes do Espiritismo, pois a mediunidade não ó uma faculdade privativa dos médiuns espíritas, mas podemos dizer, com apoio na Codificação de Allan Kardec, que fora das linhas básicas da doutrina, pode haver evocação, como pode haver fenômeno de todos os tipos, mas NÃO HÁ prática espírita. O fenômeno mediúnico, porém, constitui um campo de interesse científico tanto no Espiritismo, como na Umbanda, como no âmbito de qualquer escola ou religião.
A ciência tem o dever de observar o fenômeno, com seriedade, em qualquer lugar, seja no terreiro de Umbanda, seja na sessão espírita ou no laboratório de uma sociedade de Metapsíquica. Para a ciência, que não pode ter preconceito religioso, não há baixo nem alto: fato é fato, a verdade é a verdade, e cada qual que interprete os fatos segundo as suas ideias religiosas ou filosóficas. Certas publicações católicas, como alguns órgãos de nossa imprensa diária, falam constantemente em baixo espiritismo, o que é, aliás, um contra-senso. Aquilo que é baixo, deprimente ou imoral, não é espiritismo. Existem verdadeiros antros, onde se explora a mediunidade, com a mesma torpeza com que se praticam as cenas mais degradantes. São degenerescências decorrentes de causas várias, inclusive a má orientação espiritual, quando não seja o fruto da decadência moral ou da desordem psíquica, produzida pelo estado de depravação. Que relação, direta ou indireta, poderia ter o Espiritismo com essas excrescências da prática mediúnica, dolorosamente sacrificada em seus fins? Nenhuma relação, absolutamente! Do mesmo modo, nenhuma religião é responsável pelos abusos praticados em nome da fé ou sob a invocação de seus símbolos e de seus objetos de adoração; também o Espiritismo, que é uma doutrina substancialmente contrária à exploração e ao fanatismo, jamais poderia servir para acobertar a mistificação e a libertinagem rotulada de “experiência mediúnica”.
Quanto ao fenômeno extra-humano, que é um fenômeno comprovado pela experimentação, seja de efeitos físicos, seja de natureza puramente intelectual, não importa onde apareça - no meio espírita ou templo de qualquer comunidade religiosa - o homem de ciência deve emancipar-se, antes de tudo, dos prejuízos causados pelo espírito de prevenção. Neste terreno, quem observa ou perquire com a preocupação de descobrir a verdade não pode nem deve pensar no que venha a ser baixo ou alto: a prova dos fatos é o único elemento decisivo para a crítica. A noção de baixo ou alto, moral ou imoral, sagrado ou profano é muito pessoal, muito relativa, porque depende das ideias preconcebidas de quem julga um fenômeno, segundo as suas tendências religiosas ou em virtude dos valores de sua cultura. O que é baixo, na acepção de indigno ou imoral para um teólogo, por exemplo, pode não ser baixo nem indigno para um cientista. Para o índio xavante, cujas reações refletem a influência de uma engrenagem cultural muito diferente dos costumes da cidade, é claro que certos atos praticados pelo branco civilizado podem ser repelidos como coisa baixa ou indecente. No domínio da mediunidade, desde que haja seriedade, nada existe de baixo ou de repelente, porque os fenômenos desta ordem são determinados por leis universais e não pelos caprichos do homem. Se é que pode existir, como infelizmente existe, o lado negativo do fenômeno, pela evidência do- baixo teor moral, então a baixeza não está no fenômeno em si, mas apenas nas intenções e atitudes dos indivíduos que, não tendo a necessária moralidade, não sabem tratar com os seres do mundo espiritual com aquela dignidade que se exige em tudo quanto se refere ao espírito.
O fato, para a ciência, deve ter o mesmo interesse, tanto faz na choupana do homem rude e paupérrimo como no gabinete do cientista, porque ã lei é a mesma, no tempo e no espaço. O fenômeno, enquanto não participa das interpretações, é neutro perante a religião e a moral. Deve o homem, porém, fazer bom uso das manifestações dos espíritos, procurando elevá-las sempre, sobretudo pelas suas consequências filosóficas, morais e religiosas. E o que ensina o Espiritismo. A classificação de alto ou baixo é apenas um juízo de valor, mas um juízo parcial, porque eivado de suspeição dogmática. Nossos adversários não têm o direito de chamar de baixo espiritismo aquilo que não tem relação alguma com a prática espírita, por que não passa de flagrante e doloroso desvirtuamento da mediunidade, assim como não podem, honestamente, apontar como baixo um tipo de estudo ou investigação em que o fenômeno é objeto de cogitações severas, com propósitos benéficos, ainda que o fenômeno seja aparentemente grosseiro. Não há, portanto, baixo espiritismo, e é justo que o afirmemos com inabalável segurança de convicção. Uma doutrina firmada sobre alicerces comprovados, como é o Espiritismo, apoiada sobre princípios morais, com intensa repercussão na filosofia, na religião e na vida social, não pode admitir julgamento de alto ou baixo. Com a mesma independência com que rebatemos a designação de baixo espiritismo, por ser tendenciosa e descabida, também nos sentimos à vontade para dizer que não é admissível nem criterioso depreciar a prática mediúnica de Umbanda, realizada em função de seu culto religioso. São formas diferentes, como diferente é a orientação básica. Como religião antiga, e tão antiga como as que mais o forem, a Umbanda tem um lugar definido. Apesar do aspecto comum - o caráter espiritualista - a Umbanda não se configura no corpo da Doutrina Espírita nem o Espiritismo se conforma à organização religiosa da Umbanda. À parte o fenômeno, que é ponto pacífico, devemos considerar os dois movimentos em seus campos adequados, sem confusão nem rivalidade: Umbanda deve ser compreendida como Umbanda e o Espiritismo deve ser compreendido como Espiritismo.[5]
Do mesmo modo, os movimentos espiritualistas da escola anglo-saxônia (Estados Unidos, Inglaterra e outros países) não se amoldariam em tudo ao Espiritismo, porque apenas aceitam o fenômeno, mas adotam, como já é bem sabido, um tipo de organização muito5 diferente. Geralmente se diz Espiritismo nos Estados Unidos, espíritas ingleses, australianos, etc. É uma forma de dizer, já consagrada pelo uso corrente, principalmente porque a maioria do povo entende que espírita ou espiritista é todo aquele que acredita na comunicação dos espíritos ou participa de sessões mediúnicas. Todavia, é oportuno lembrar que as palavras podem ter dois sentidos: o sentido lato ou amplo, que permite generalizações muito livres, e o sentido restrito ou especial, que exige aplicações apropriadas a determinados casos. Se considerarmos que Espiritismo é aquilo que está definido na Codificação da doutrina, não é apenas a comunicação de espírito ou a simples crença na vida futura, podemos dizer que o movimento espiritualista dos Estados Unidos, como o da Inglaterra, Holanda e outros países, não é propriamente espírita, uma vez que as suas sociedades são constituídas 'como igrejas espiritualistas, com pastores, cerimônias de culto, cursos bíblicos, etc. Pouca diferença existe entre a organização das igrejas espiritualistas e as protestantes ou evangélicas, a não ser quanto ao mediunismo. Fora dos assuntos teologais ou de pormenores internos, o culto externo muito se parece com o estilo protestante. Há exceções, naturalmente.
Se o Espiritismo não institui nenhuma forma de culto formalístico, e se as igrejas pertencentes ao moderno espiritualismo têm o seu culto, embora baseado no fenômeno chamado de além túmulo, está bem visto que o movimento norte-americano, inglês ou canadense não segue a orientação do Espiritismo. Não é, ainda mais, um movimento reencarnacionista, quando a reencarnação é a pilastra fundamental da construção doutrinária do Espiritismo. Diga-se de passagem, e vem muito a propósito, que os últimos Congressos, promovidos pela Federação Espírita Internacional, principalmente os que se reuniram a partir de 1948, estão concorrendo muito para a aproximação entre espíritas e espiritualistas latinos, saxões, nórdicos, etc., o que, de certo modo, já é um passo bem proveitoso para o esclarecimento de alguns pontos concernentes à tese reencarnacionista. Até agora, porém, conquanto o fenômeno seja elemento comum entre os dois grupos, existe diversidade extrínseca e intrínseca, isto é, na forma e na essência doutrinária. Logo, o Espiritismo e o Espiritualismo norte-americano ou inglês não são idênticos, como facilmente se pensa. Vejamos, a seguir, o conceito de espirita segundo a doutrina.
Tendo saÍdo em 1859, a edição original de «O que é Espiritismo» foi publicada sob a responsabilidade direta de Allan Kardec.
"Para ser espirita é necessário ir além da aceitação dos fatos e da simples crença nos espíritos..."
Chegamos, agora, ao ponto em que é necessário senão indispensável fixar o conceito de ESPÍRITA ou espiritista, segundo a doutrina. Espírita, geralmente falando, é todo aquele que se faz adepto do Espiritismo. Então, para que se possa definir a qualidade do espírita, convém saber o que se entende por Espiritismo. Que é Espiritismo? É a prática mediúnica, por si só? É a simples crença nas comunicações do "além túmulo”? É a doutrina integral? Se o Espiritismo é apenas sessão mediúnica ou a crença nos espíritos desencarnados, basta ser médium ou participar de sessões, sejam quais forem, para que alguém seja espírita; se, porém, Espiritismo é o corpo de doutrina organizado por Allan Kardec, com todas as suas consequências filosóficas e religiosas, com todas as suas implicações de ordem moral, é claro que não basta ser frequentador de sessões ou ter faculdades mediúnicas desenvolvidas para ser espírita, na exata acepção doutrinária.
Espírita, para falar com a necessária precisão, é quem aceita a doutrina integralmente, quem concorda com os seus princípios, quem se submete às normas morais que decorrem desses princípios. Há muitas pessoas que são médiuns, colaboram em sessões mediúnicas, apreciam as comunicações do além, mas ainda não estudaram a doutrina ou, se já fizeram estudos, não concordam com a reencarnação e outros pontos básicos do Espiritismo. São espíritas? Doutrinariamente, não! O vulgo, no entanto, chama de espírita, indistintamente, a qualquer pessoa que se declare crente na influência dos espíritos ou seja médium. Por mera comodidade mental ou pela lei do menor esforço, é mais fácil generalizar do que entrar em pormenores doutrinários pouco interessantes para as pessoas que se não dedicam á esses assuntos. Diz-se comumente que é espírita quem se interessa pelos fenômenos do “outro mundo” ou pelas “coisas do astral”. É engano. O Espiritismo desaprova certos tipos de sessão mediúnica, notadamente quando destituídas de preocupação elevada, assim como exorcismos e outras práticas impróprias. O uso de incenso, velas, objetos mágicos, por exemplo, é observado frequentemente em diversas sessões, não de caráter espírita. A doutrina também repele as sessões espíritas espetaculares. O ambiente de uma sessão espírita não é um “santuário” nem velório, mas é um lugar de respeito e dignidade, condição imperiosa para se evitar a curiosidade. Não nos referimos à curiosidade intelectual ou científica, mas à curiosidade banal, sem qualquer noção de seriedade. Já se vê que NEM TODA SESSÃO MEDIÚNICA DEVE SER CHAMADA DE “SESSÃO ESPÍRITA”, ainda que haja fenômenos impressionantes. Onde não há moralidade, onde não há sentimento de caridade, onde se exige ou aceita pagamento de “trabalhos espirituais”, onde se usa o sacrifício de animais em função de ritos exóticos, seja qual for o pretexto de tais práticas, aí não há Espiritismo!
Se, ainda hoje, fossem observadas, de um modo geral, as cautelas de Allan Kardec, cujo zelo, a propósito de sessões mediúnicas, chegava à intransigência, naturalmente não haveria a preocupação de encher a casa, e já teríamos chegado àquele plano de adiantamento que, para o Codificador, seria o ideal do Espiritismo: A QUALIDADE ACIMA DA QUANTIDADE. Dolorosamente, em grande parte das sessões públicas, o que se verifica é a inversão dos termos: a quantidade, antes de tudo, porque é necessário fazer número, enquanto a qualidade é problema secundário. Não é isto o que ensina a doutrina. Lembremos, nesta oportunidade, que no Estatuto da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundada por Allan Kardec, no dia 12 de abril de 1858 e por ele próprio dirigida nos primeiros anos, há exigências que, para os dias atuais, poderiam parecer superadas ou demasiadamente rigorosas. Entendemos, de nossa parte, que a mesma orientação deveria perdurar sempre nas Sociedades Espíritas. Veja- se o artigo 39: A Sociedade não admitirá senão as pessoas que simpatizarem com os seus princípios e com o objetivo de seus trabalhos, as que já se achem iniciadas nos princípios fundamentais da ciência espírita, ou que estejam seriamente animadas do desejo de nesta se instruírem. O movimento espírita, nessa época, ainda estava na fase de propaganda inicial, e Allan Kardec bem poderia, não fora o seu senso de responsabilidade, abrir as portas da Sociedade para quantos quisessem ver as sessões espíritas. Não o fez, porque era necessário evitar a vulgaridade, o espetáculo, a exploração. Seria uma propaganda de efeito negativo. Eram proibidas, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, quaisquer perguntas aos espíritos, desde que tais perguntas não tivessem interesse para os estudos sérios. E o que diz o art. 18: São especialmente interditas todas as perguntas fúteis, de interesse pessoal, de pura curiosidade, ou que tenham o objetivo de submeter os Espíritos a provas, assim como todas as que não tenham um fim útil geral, do ponto de vista de estudos. Ainda mais: Nenhuma comunicação espírita obtida fora da Sociedade (art. 20) pode ser lida, antes de submetida, seja ao Presidente, seja à Comissão, que podem admitir ou recusar a leitura. Leia-se o Estatuto da Sociedade, na parte final de O Livro dos Médiuns.
O Espiritismo é muito diferente do que se pensa. Uma sessão espírita é uma escola de esclarecimento e de moral, mas é indispensável que haja conhecimento e noção de responsabilidade. Assim como nem tudo é Espiritismo, como nem toda sessão de médiuns é realmente sessão espírita, também se pode dizer que nem todos quantos falam com espíritos ou admitam comunicações são espíritas, pois ninguém se torna espírita enquanto não se conforma conscientemente com os ensinos da doutrina. Entre o simples simpatizante e o espírita convicto há muita diferença. Não podemos nem devemos ceder à força do*uso ou à insistência das definições populares, a despeito de alguns termos já estarem no “domínio público”. Para que se saiba o que é e o que não é Espiritismo, quem deve e quem não deve ser considerado espírita, a fonte autorizada, em primeira mão, é a doutrina, são as obras de Allan Kardec, antes de qualquer informação.
Quando estudamos uma doutrina, principalmente se quisermos conhecer toda a extensão e todos os fundamentos dessa doutrina, devemos separar os conceitos básicos e os conceitos ocasionais, os conceitos definitivos e os conceitos provisórios ou auxiliares. E uma necessidade, que se impõe, também, pela honestidade intelectual. Há, em todo corpo de doutrina, aquilo que constitui a síntese fundamental e aquilo que apenas corresponde a opiniões ou ideias acidentais, sem o caráter de um julgamento decisivo. Conceitos básicos, como se sabe, são aqueles que permanecem depois da fase de composição e experiência, porque se formam pelo encadeamento lógico, com o tempo suficiente para as conclusões finais. O conceito de espírita, no próprio pensamento de Allan Kardec, começou por uma ideia muito extensa, mas logo se restringiu, assim que se consumou o seu trabalho. Não há contradição nem recuo: houve apenas, durante a formação da doutrina, uma relação de continuidades entre as primeiras ideias e as afirmações conclusivas. Allan Kardec dissera, a princípio, que espírita seria logo todo aquele que cresse na comunicação dos espíritos; mais tarde, porém, pela sequência da doutrina, já não seria mais possível dar uma definição ilimitada, no sentido lato, porque a condição de espírita pressupõe concordância com proposições que não podem ser generalizadas a todas as crenças e concepções filosóficas. Isto não é antinomia, é coerência.
Uma frase de Allan Kardec, separadamente, como de outro pensador ou filósofo, nem sempre traduz um pensamento completo. Nas grandes construções doutrinárias geralmente são as asserções finais que esclarecem o raciocínio substancial da obra. As verdadeiras qualidades do espírita ficaram muito bem compreendidas nas explicações que vieram depois, isto é, quando Allan Kardec sentiu o momento de estabelecer a necessária diferença entre a simples crença nos espíritos e a aceitação da doutrina, já definitivamente corporificada. Foi aí, precisamente, que Allan Kardec firmou o conceito de espírita, e este conceito ficou na doutrina. Apesar disto, certos adversários do Espiritismo, quando querem confundir o espírita com macumbeiro ou pai de santo, desprezam ou sacrificam, intencionalmente, os conceitos básicos da doutrina e vão sofismar com algumas frases que só tiveram sentido na ocasião em que foram proferidas.
Lê-se, por exemplo, no Vocabulário Espírita, incluído no "O Livro dos Médiuns", a seguinte assertiva de Allan Kardec: Espírita — O que tem relação com o Espiritismo; adepto do Espiritismo; aquele que crê nas manifestações dos Espíritos. Um bom ou mau espírita. Se quiséssemos ficar somente neste ponto, sem acompanhar o desenvolvimento da doutrina, poderíamos dizer, citando Kardec, que todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos desencarnados é espírita. Esta expressão, como ainda outras, que lhe são semelhantes, foi muito explorada pelos que, pretendendo colocar no mesmo plano todos os espiritualistas, inclusive feiticeiros e ledores de, buena dicha, como se todos fossem espíritas, abusaram ostensivamente das palavras de Allan Kardec. O argumento parece irrespondível para os que entendem por Espiritismo tudo quanto é forma de mediunismo. Kardec disse, está escrito, mas a declaração NÃO É DEFINITIVA, e não o é, porque surgiu muito antes de se haver assentado a definição que deveria prevalecer.; De que ano é O Livro dos Médiuns? De 1861. Depois de 1868, quando a doutrina já estava pronta com todos os livros que lhe eram necessários, não seria mais admissível estender-se incondicionalmente a classificação de espírita a quaisquer pessoas que apenas tivessem crença ou revelassem mediunidade. Veja-se o que Allan Kardec deixou, posteriormente, no fim de suas reflexões doutrinárias quando organizou a “Constituição do Espiritismo”. Foi nessa fase, a bem dizer de remate ou de complementação de seu programa, que o Codificador da doutrina resumiu em caráter permanente, as definições de Espiritismo e espírita, com as ideias muito mais amadurecidas pela observação e pela meditação. A doutrina, como um todo, já estava completamente organizada, e não havia a menor incerteza quanto à solidez de seus alicerces, mas já era tempo de se saber quem poderia ou não ser considerado espírita, uma vez que, o Espiritismo não parara no fenômeno. Pela conclusão que algumas pessoas tiram daquela expressão de Allan Kardec, macumbeiro, bruxo, fazedor de despachos, em suma, tudo é espírita, pois todos eles acreditam na força dos espíritos. Acompanhemos as etapas da doutrina e veremos que tais sugestões ou são fruto da ignorância ou escondem o propósito de convencer pelo sofisma.
Tendo-se apoiado em pensamentos eventuais, sem levar em conta os fatores psicológicos que deram motivo a determinadas observações ou respostas, certos críticos pretendem provar, mas não provam, que o próprio Allan Kardec permitiu que se englobassem no conceito de espírita todos quantos reconheçam a realidade do fenômeno e pratiquem o mediunismo seja nos terreiros, seja nas sessões espíritas ou nas experiências metapsíquicas, até mesmo os que não adotam a doutrina. Isto é um argumento forçado. De duas, uma: ou está certa a suposição de que espírita é todo aquele que admite a comunicação de espírito do além, tenha ou hão tenha conhecimento doutrinário, como querem os defensores desta opinião, ou a doutrina é incoerente, porque diz e contradiz ao mesmo tempo. Nem a doutrina é contraditória; nem se pode ter por espírita quem não aceite os ensinos e as consequências do Espiritismo.
Se, realmente, na fase de preparação da doutrina, quando ainda se admitiam generalizações condicionais, Allan Kardec fez afirmações que poderiam abrir caminho para uma elasticidade cada vez mais crescente, também é verdade que, mais tarde, com a estabilização da doutrina, o Codificador do Espiritismo reajustou os conceitos e declarou, de modo inconfundível:
CRIAMOS A PALAVRA ESPIRITISMO, PARA ATENDER ÀS NECESSIDADES DA CAUSA; TEMOS, POIS, O DIREIJO DE DETERMINAR-LHE AS APLICAÇÕES E DEFINIR AS CRENÇAS E AS QUALIDADES DO VERDADEIRO ESPÍRITA. (Obras Póstumas — cap. intitulado “Constituição do Espiritismo”).
E, agora, estamos diante de um pensamento definitivo. Não é uma frase ocasional. Por aí já se começa a verificar que o fato de crer nas manifestações dos espíritos ou ser médium ainda não define o espírita. Quais são, afinal, as qualidades do verdadeiro espírita? A palavra ainda está com Allan Kardec: O Espiritismo não reconhece por seus adeptos senão aqueles que lhe praticam os ensinos e se esforçam por se melhorarem. Tudo muito claro, portanto. Ninguém pode praticar, de consciência, os ensinos do Espiritismo sem se integrar na doutrina. Qualquer pessoa pode ser médium, como pode obedecer piamente aos espíritos sem deixar as suas ideias religiosas. Poderíamos chamar alguém de espírita, se ainda tem medo das penas eternas ou do inferno? Logicamente, não. Vejamos, pois, os motivos que levaram Kardec a expender algumas ideias, em determinadas ocasiões, sem que, porém, tais ideias devam ser tomadas como definições imutáveis.
Os trabalhos de elaboração muito longa quase sempre estão sujeitos a suspensões de julgamento ou interferências imprevistas. Durante a formação da doutrina, que é uma obra séria e bem pensada, Allan Kardec foi interpelado a respeito de questões diversas e deu as respostas que, NAQUELE MOMENTO, lhe pareceram mais apropriadas para as circunstâncias. Alguns interlocutores queriam saber se as novas ideias, espalhadas pelo Espiritismo, contrariavam os seus "pontos de fé"; outros supunham que o Espiritismo, movimento então nascente, vinha fazer guerra aberta às religiões tradicionais; ainda outros, preocupados unicamente com os fenômenos, e não podia ser de outro modo, tinham receio de hostilidade ou excomunhão no seio de suas comunidades religiosas. Havia problemas de consciência, e era necessário tranquilizar as pessoas ainda hesitantes. É natural que Allan Kardec, naquela situação, tenha exteriorizado opiniões compatíveis com a compreensão das pessoas que o interrogavam. Ainda era cedo para discorrer sobre todos os aspectos do Espiritismo para quem não tinha receptividade suficiente, pois o que estava em causa, por enquanto, era o fenômeno, o ponto de partida de todas as discussões. Para muita gente, nos primeiros tempos, Espiritismo era sessão medíúnica, exclusivamente. Se era esta a ideia corrente, algumas das opiniões de Allan Kardec devem ser interpretadas no LUGAR PRÓPRIO, dentro do círculo de cogitações em que surgiram as dúvidas mais frequentes.
Reflitamos um pouco. Uma resposta, seja de que natureza for, depende muito da maneira por que se formula a questão, pois deve haver sempre uma relação lógica entre o que se pergunta e o que se responde. Se alguém pergunta se pode ser espírita e judeu, espírita e luterano, por exemplo, e se a pergunta decorre da crença exclusiva nos espíritos, porque ainda não há outra noção do que seja Espiritismo, é claro que a resposta vem de acordo com a mentalidade do interpelante: entre os adeptos do Espiritismo, desde que Espiritismo seja somente o intercâmbio com os espíritos desencarnados, como pensavam muitas pessoas, existem judeus, muçulmanos, católicos, etc. etc. E uma explicação de caráter temporário. Alguns esclarecimentos de Allan Kardec, principalmente nesta questão, não devem ser deslocados do ponto em que se acham, exatamente porque em cada conjunto de proposições apresentadas há uma rede natural de ideias, que não podem ser desmembradas, sob pena de se prejudicar o objetivo de uma resposta ou de um período passageiro. Se Allan Kardec asseverou, a certa altura, que espírita é todo aquele que "cré nas manifestações dos espíritos", esta afirmativa não veio por acaso, porque está em conexão com outras ideias, e não pode, por isso mesmo, ser compreendida fora das oportunidades que a provocaram. Remover uma frase, de sua ordem lógica, para fazer adaptações dessa frase aos casos mais diversos, às insinuações mais contraditórias, como se tem feito á propósito da palavra espírita, é desrespeitar a linha de equilíbrio entre a fixidez dos juízos básicos e a transitoriedade das opiniões casuais.
Quando analisamos uma frase histórica, sob o ponto de vista da intenção e do contexto, logo nos acodem duas circunstâncias: de tempo e de causa. Quando foi pronunciada a frase? Por que? Entre 1857 e 1861 (circunstância de tempo) Allan Kardec houvera dito que todos aqueles que cressem nas manifestações seriam espíritas, justamente porque (circunstância de causa) lhe havia sido proposta uma série de problemas inteiramente relacionados com as origens e as generalidades da doutrina. Não era ainda a ocasião das especificações. Teria ele mantido este ponto de vista? Não! Se examinarmos criteriosamente o pensamento de Kardec, levando em consideração o lugar e os motivos de algumas de suas declarações, não encontraremos jamais, no corpo da Doutrina Espírita, qualquer, falha nem obscuridade. Com a mesma clareza com que determinou o emprego dos outros termos, também deixou, bem claro um dos pontos conclusivos de sua obra: quando e a quem se deve aplicar o qualitativo de ESPÍRITA.
Alguns hermeneutas e polemistas, tão hábeis no modo de explorar o pensamento de Allan Kardec, extraindo, frases e palavras soltas, deveriam ler o que ele escreveu a respeito do vocábulo espírita: As palavras, espiritualismo e espiritualista, são inglesas, e têm sido empregadas nos Estados Unidos[6]. No começo, apenas por algum tempo, diz ainda Kardec, também delas se serviram na França. Logo, porém, que apareceram os termos espírita e espiritismo — adianta Kardec — “compreendeu-se a sua utilidade, e foram imediatamente aceitos pelo público". Os termos espiritualismo e espiritualista aplicados “às manifestações dos espíritos, não são hoje, mais empregados senão pelos adeptos da escola americana”. (O que é o Espiritismo, cap. I, segundo diálogo). Poderemos dizer, aliás, escola anglo-saxônia, porque abrange outros ramos, inclusive o norte-americano. Allan Kardec frisa bem a utilidade da palavra Espiritismo em vez de Espiritualismo. O neologismo suscitou oposição, no início, porque lhe atribuíram a pecha de barbarismo isto é, a introdução de vocábulos estranhos ao “gênio da língua”. Conhecedor, que também era, dos problemas linguísticos, sem o radicalismo dós puristas ortodoxos, Allan Kardec soube defender satisfatoriamente a criação da nova palavra, visto como se tornava necessário, a cada passo, distinguir o Espiritismo de outros ramos da filosofia espiritualista. Não era apenas uma questão formal de palavras, era uma necessidade. “Para se designarem coisas novas — disse Kardec — termos novos são precisos. Assim o exige a clareza da linguagem para evitar confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras.” Com estas observações, Allan Kardec justificou, inteligente e sensatamente, a adoção da palavra Espiritismo. (Introdução de O Livro dos Espíritos).
Ainda hoje, e mais do que nunca, sentimos a importância daquela iniciativa, principalmente depois do aparecimento de algumas escolas científicas, também interessadas no estudo da fenomenologia chamada supranormal, mas de nenhum modo filiadas à Doutrina Espírita. A Metapsíquica, como é notório entre os estudiosos destes assuntos; apoiou-se na parte experimental do Espiritismo, mas tomou direção diferente senão muito divergente[7]. A Metapsíquica não formou um corpo de doutrina sobre a causa e as consequências do fenômeno extra-humano. Do mesmo modo, a Parapsicologia. Os partidários dessas correntes científicas não se declaram espíritas, no que, aliás, são muito coerentes, porque, se não aceitam a interpretação dada pelo Espiritismo, não podem ser espíritas. Já se vê que o lado realizar experiências mediúnicas para fins rigorosamente científicos ou de crer nos espíritos por motivos de fé, ainda não qualifica o adepto do Espiritismo. Apresentamos exemplos concretos:
o metapsiquista (salvo o que já tem ideias espiritas) estuda o fenômeno, faz experiências mediúnicas, proclama a exatidão dos FATOS, mas não conclui pela sobrevivência do espirito nem pelas consequências filosóficas e religiosas do fenômeno;
o homem de fé, sem formação cientifica, vai a sessões espiritas e, depois, passa a crer nos espíritos, mas continua com as suas ideias antigas, não concorda com os ensinos do Espiritismo, é apenas um crente.
Estão, aí, dois extremos: o homem de ciência e o homem de fé. Ambos estão voltados para o fenômeno, que se apresenta, simultaneamente, no ângulo da ciência, para o metapsiquista, e no ângulo da fé, para o crente. Nenhum dos dois, entretanto, é espírita, porque:
se o metapsiquista reconhece a evidência do FATO, não vai além disto, desde que não afirma a existência do espirito como ser inteligente e independente da matéria;
se o crente acredita na vida espiritual e na presença de espíritos, também não vai além disto, uma vez que não aceita a Doutrina Espirita, com os seus princípios.
Para ser espirita é necessário ir além da aceitação do fato e da simples crença nos espíritos, que equivale a dizer que é indispensável estar em harmonia com a doutrina.
Passemos a outra ordem de considerações. Com a indicação de algumas observações esparsas, encontradas ali ou alhures, em diversas passagens da doutrina, querem os apologistas da generalização sistemática fazer crer, por todos os modos, que o Espiritismo não tem definições restritivas. Qualquer arguição acidental serve para a defesa desta pretensão. Na coletânea de comunicações incluídas em O Evangelho Segundo o Espiritismo, aparece o seguinte período: a prece do cristão, do espírita de qualquer culto, deve ser feita na ocasião em que o espirito houver subjugado a carne. (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO — Cap. XXVII, n.º 22). A expressão espírita de qualquer culto poderia abonar facilmente a opinião, aliás respeitável, daqueles para quem se pode ser espírita, católico, budista ou metodista, ao mesmo tempo. Sim, se o pensamento que ocorreu na comunicação foi o de espírita, na acepção trivial da pessoa que apenas crê nos espíritos, a expressão está certa, e não há dúvida alguma, porque se pode cultivar a mediunidade ou a crença nos espíritos desencarnados e pertencer a qualquer culto religioso. A faculdade mediúnica é independente da convicção religiosa. Em todas as religiões há pessoas que creem nos espíritos. Há muita diferença, todavia, entre crente e o adepto da doutrina. Crente é todo aquele que, embora não aceite a Doutrina Espírita, porque não abre mão de suas ideias religiosas ou de suas opiniões filosóficas, crê na intervenção dos espíritos, e apenas isto; adepto é aquele que se filia à doutrina, que adere conscientemente à filosofia do Espiritismo, porque encontra nesta filosofia uma concepção de vida que atende às solicitações de sua inteligência e de seus sentimentos.
Notemos que a comunicação se refere a espírita de qualquer culto, mas de um modo INDETERMINADO, sem definir o que é espírita, porque o pensamento central está preocupado, principalmente, com o valor da prece para todos os homens que têm crença. Tanto isto é certo, que a comunicação começa por uma ideia geral: o primeiro dever de toda criatura humana, o primeiro ato pelo qual deve demonstrar a entrada na vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos oram, mas quão poucos sabem orar! Se a intenção do espírito comunicante - como no-lo mostra todo o contexto da dissertação - é chamar a atenção dos crentes em geral para a necessidade da prece sincera, sejam quais forem as suas denominações religiosas, não se pode dar àquela expressão o sentido de um conceito completo. Não é uma definição, é um pensamento que participa de uma série de advertências feitas indistintamente.
A circunstância de tempo vai incidir, outra vez, nesta ordem de ideias. A publicação de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” é de 1864. Ainda se falava, amplamente, em espírita de qualquer culto, de um modo a bem dizer vago, sem precisar os termos. Decorrido um período de mais de quatro anos, na fase final de seus incessantes e profícuos trabalhos, vemos Allan Kardec dizer, textualmente, o seguinte: A crença no Espiritismo já não será simples aquiescência, muitas vezes parcial, a uma ideia vaga, porém uma adesão motivada, feita com conhecimento de causa e comprovada por um título oficial, deferido ao aderente. Ainda mais: Assentando numa base precisa e definida, essa qualificação a nenhum equívoco dá lugar, permitindo aos adeptos que professem os mesmos princípios e caminhem pela mesma senda se reconheçam, sem outra formalidade mais do que a declaração de sua qualidade e, se for preciso, a apresentação de seu título. (Estas declarações, de Allan Kardec fazem parte da “Constituição do Espiritismo” e foram incorporadas às matérias finais de Obras Póstumas). Aquele trecho tem valor fundamental, porque é o resultado de um processo de embasamento em que, tendo chegado às últimas conclusões, a obra do Codificador já estava em condições de fazer exigências consentâneas com o caráter da doutrina. Convém recordar que a Codificação, a esta altura, já estava terminada. Cabia, agora, ao seu organizador traçar normas para os adeptos do Espiritismo. Como acabamos de ver, era tanto o rigor de Allan Kardec, que reclamava, até, o título de espírita para que alguém pudesse aparecer como adepto professo do Espiritismo. A credencial do espírita seria subscrita por uma Sociedade, justamente para evitar confusão com os adventícios e falsos espíritas. Assim pensava o Codificador da doutrina. Não seria muito fácil tornar-se espírita, como não bastaria apenas tomar passes ou comparecer religiosamente a sessões espíritas. Se Allan Kardec, depois de doze anos ininterruptos de trabalho, porque foi esse o período de execução de sua obra, chegou à conclusão de que a condição de espírita exige a concordância com os princípios da doutrina, é justo deduzir, daí, que não é possível ser espírita e, ao mesmo tempo, esposar princípios contrários ao Espiritismo. Vamos pela lógica: se o Espiritismo é uma doutrina que não admite o culto de imagens, e se alguém, apesar de ler e compreender a doutrina, adora imagens e crê no fogo do inferno e outros dogmas irreconciliáveis com o Espiritismo, evidentemente não é espírita. Quem assim ainda pensa pode ser simpatizante, mas não é adepto da doutrina. Se, portanto, em vários passos da obra de Kardec, lemos expressões como espírita de qualquer culto, espírita é todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos e ainda outras igualmente abertas a quaisquer interpretações pessoais, logo depois, no momento oportuno, o Codificador da doutrina faz ver que não é tão simples ser espírita, tanto assim, que ele próprio disse que lhe assistia o direito de definir as crenças e as qualidades do verdadeiro espirita. Também se diz que o Espiritismo é anterior à obra de Allan Kardec, porque “é velho como o próprio mundo”. É outra expressão explorada ao pé da letra. Este ponto, especialmente de certo tempo a esta parte, passou a ser motivo de controvérsias e enleios, o que, aliás, não teria razão de ser, se os exegetas tivessem a paciência de procurar o sentido de todo o período em que aquela afirmativa está contida. Allan Kardec escreveu isto:
O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém pode inculcar-se como seu criador, pois tão antigo é ele quanto a criação. Encontramo-lo por toda parte, em todas as religiões, principalmente na religião católica e, aí, com mais autoridade do que em todas as outras, porquanto nela nos depara o princípio de tudo o que há nele: os espíritos em todos os graus de elevação, suas relações ocultas e ostensivas com os homens, os anjos guardiães, a reencarnação, a emancipação da alma durante a vida, a dupla vista, todos os gêneros de manifestações, as aparições e até aparições tangíveis. (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, "Conclusão”, seção VI).
Está bem visto que Allan Kardec não quer confundir Espiritismo e Catolicismo: o que ele diz, e com as provas da História, é que, entre todas as religiões, a que reuniu maior número de fenômenos, com o nome de milagres (aparições, dupla vista, psicografia, levitação, etc.) foi justamente a católica. Se, hoje, a Igreja condena a reencarnação, já houve, no seio do Catolicismo, quem defendesse esta crença. É da história da Igreja. Ora, se o Espiritismo é “tão velho quanto a criação” e se está em todas as religiões, que necessidade teria Allan Kardec de criar uma palavra nova e tomar tantas providências para regulamentar as aplicações da doutrina? O que está nas religiões é o fenômeno, é a ideia de vida futura e, em casos especiais, a ideia de reencarnação, não é o corpo da Doutrina Espírita. Quem ficar por aqui, e se quiser argumentar somente com aquelas observações de Allan Kardec, não terá elementos para compreender todo o curso da discussão.
Teria ele encerrado, com aquele trecho, todo o seu pensamento? Não, e bem o provam os seus esclarecimentos posteriores. Para demonstrar que Allan Kardec aludia simplesmente ao fenômeno, quando disse que o Espiritismo é tão antigo quanto o mundo, não é necessário maiores esforços, porquanto está escrito, no mesmo capítulo, logo depois, o seguinte:
“O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o das manifestações, o dos princípios e da filosofia que deles decorrem e o da aplicação desses princípios. Daí três classes; ou, antes, três graus de adeptos: 1.º os que creem nas manifestações e se limitam a comprová-las; para esses o Espiritismo é uma ciência experimental; 2.º os que lhe percebem as consequências morais; 3.º os que praticam ou se esforçam por praticar essa moral. Qualquer que seja o ponto de vista, científico ou moral, sob que considerem esses estranhos fenômenos, todos compreendem constituírem eles uma ordem inteiramente nova de ideias que surgem...”
Se os fenômenos, que são de todos os tempos, provocaram uma ordem de ideias inteiramente NOVA, como disse Allan Kardec, no fim da parte transcrita, cabe uma pergunta muito razoável: — em que consiste essa ordem de ideias? No advento do Espiritismo. INOVOU, porque trouxe alguma coisa diferente sobre fatos e crenças que já existiam até mesmo antes do Cristianismo. Inovou em quê? Na interpretação, na coordenação de princípios, na justa adequação de suas consequências aos problemas da vida de relações e, finalmente, na formação da unidade doutrinária.
Para compreendermos bem a declaração de que o Espiritismo é “tão velho quanto a criação", precisamos voltar ao início do texto, acompanhando o raciocínio desde as primeiras palavras. A discussão do assunto começa pela seguinte questão: Falsíssima ideia faria do Espiritismo quem julgasse que a sua força lhe vem da prática das manifestações materiais e que, portanto, obstando-se a tais' manifestações, se lhe terá minado a base. (Seção VI, da parte final de O LIVRO DOS ESPÍRITOS - Conclusão). Sua força - acrescenta Kardec - está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom senso. Já neste ponto é fácil compreender que Allan Kardec realçou a importância da filosofia sobre o fenômeno, sem desprezar, é óbvio, o valor decisivo dos fatos. Apesar disto, e agora vamos ver o fio do pensamento, Kardec partiu de uma ideia principal: a inutilidade ou inconveniência de qualquer obstáculo à prática mediúnica. Todo texto está subordinado à ideia de fenômeno, de manifestações dos espíritos, precisamente porque se apresentou, logo de começo, uma questão objetiva: Os obstáculos que tentassem oferecer à Uberdade das manifestações poderiam por-lhe fim? Estava em causa, naquela oportunidade, o problema das perseguições ou das dificuldades que poderiam ser criadas às comunicações dos espíritos. Então, dentro das cogitações que se haviam ordenado em seu espírito, porque se discutia o problema do fenômeno, Kardec chegou a dizer que, no caso de se queimarem todos os livros espíritas, o que não seria muito fácil, no dia seguinte estariam reproduzidos, porque inatacável é a fonte donde dimanam e porque ninguém pode encarcerar ou queimar os espíritos, seus verdadeiros autores. Pouco adiantaria queimar um livro, porque a mesma fonte (espírito) produziria outro livro. Há, como se vê, uma sequência lógica de assuntos.
Sem sair, portanto, da ordem de raciocínios, Kardec completou o seu pensamento, no período imediato, como quem diz: é inútil tentar impedir a marcha do Espiritismo, porque a sua fonte é de origem espiritual, não depende dos homens. Os dois períodos estão intimamente relacionados na mesma página: o segundo reforça o primeiro. A frase de Kardec só deve ser interpretada e utilizada em consonância com todo o pensamento do texto. Fora do texto, a mesma frase pode dar a impressão de uma ideia inconsequente, em comparação com outras frases de Kardec.
Pela leitura do capítulo inteiro, através de todo o desenvolvimento das ideias, já se pode compreender claramente que foi no sentido de ANTERIORIDADE E UNIVERSALIDADE dos espíritos que Allan Kardec afirmou ser o Espiritismo "tão antigo quanto a criação” e, ainda mais, “estar em toda parte”. Não se conclua, daí, que o Espiritismo não tenha existência histórica ou seja alguma coisa que “existe e não existe”.
Como é que Allan Kardec afirma que o Espiritismo é tão antigo quanto a criação, e Kardec, depois, nos vem dizer que o Espiritismo é uma CIÊNCIA NOVA? Lá está, sem ambiguidades nem arrodeios, o que Allan Kardec acentuou:
O Espiritismo é uma nova ciência que, com provas irrecusáveis, vem revelar aos homens a existência e a natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal. (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, cap. I, n.º 5).
Se é NOVA ciência, não pode ser tão velho quanto o mundo. Se alguém quisesse, apenas com isto, descobrir contradição em Kardec, o que, aliás, não existe, poderio levantar as seguintes dúvidas: Quem está certo? E o Allan Kardec segundo O Livro dos Espíritos, que diz “O Espiritismo é tão velho quanto a criação”, ou Allan Kardec que fala em “O Evangelho Segundo o Espiritismo", e diz que o Espiritismo é uma nova ciência? Quem lê “por alto”, especialmente se tem a preocupação de citar argumentos dispersos, está muito sujeito a ser levado a um erro imediato: tomar as explicações de Allan Kardec, de um lado e do outro, como esclarecimentos discordantes, quando o fio do pensamento está absolutamente concordante, uma vez que uma coisa é a existência do fenômeno, que é tão velho como o homem, e outra coisa é a NOVA ciência espírita, que surgiu no século passado, em consequência do fenômeno. Nenhuma contradição. Demonstremo-lo.
Allan Kardec pronunciou-se, nos momentos propícios, sobre três aspectos diferentes: as manifestações dos espíritos (fato universal, observado em todos os tempos); a crença nos espíritos (também observada em toda parte); a doutrina codificada (fato histórico do século XIX). Com toda propriedade, portanto, Allan Kardec afirmou que o Espiritismo acabava de nascer, porque estava surgindo uma ciência, uma doutrina de organização nova. Leiamos, agora, suas próprias palavras: O Espiritismo é uma ciência que acaba de nascer e da qual resta ainda muito a aprender e seria, pois, grande presunção de minha parte pretender levar de vencida todas as dificuldades; não poderei dizer mais do sei. (“O QUE É O ESPIRITISMO” — segundo diálogo — “O cético”). Ressaltemos bem este ponto: ACABA DE NASCER. Como poderia ser tão velha quanto o mundo uma ciência que acabava de nascer no século passado? Mais adiante, porém, no mesmo livro, já nos defrontamos com Allan Kardec afirmando que o Espiritismo não é uma criação moderna. Se não é uma criação moderna, porque sempre existiu, como teria acabado de nascer com a codificação, no século XIX? Estaria Allan Kardec em desacordo consigo mesmo? Não. Falava ele sobre a antiguidade e universalidade da crença nos es pf ri tos e, então, para instruir, desenvolveu algumas considerações, nas quais frisou bem que os antigos já conheciam o Espiritismo (comunicações de espíritos), mas não era ensinado, senão com precauções misteriosas. Para provar que Allan Kardec se referia à crença e não à nova ciência que acabava de nascer, como ele já dissera, vamos reproduzir mais um período: Longe de que o Espiritismo fosse uma ideia preconcebida, partiu-se, para chegar a eles, do ponto de vista materialista. Não se podendo, porém, por este meio explicar tudo, somente a observação conduziu à causa espiritual. Falo das ideias espiritas modernas, pois sabemos que essa crença é tão velha quanto o mundo. Ora, se a crença nos espíritos já era tão velha quanto o mundo, e Kardec está sendo lógico, como sempre, não o era, entretanto, a nova ciência, e esta ciência é o Espiritismo.
A edição francesa de 1859, confirma aquela declaração, e saiu ainda no início, a bem dizer, da obra de Allan Kardec, quando o Codificador da doutrina estava entre os habitantes da terra e naturalmente viu a edição. Lê-se, na edição francesa, o mesmo pensamento: O Espiritismo não é uma criação moderna. O que não é criação moderna é o fato que deu origem ao Espiritismo, e se não fosse assim, Kardec não teria dito que a nova ciência acabara de nascer. Sigamos os pensamentos. Se o que estava em causa era o problema da crença, todas as respostas de Kardec, naquela conjuntura, deveriam convergir para este ponto. E o que se depreende da seguinte explicação, no original, publicado sob a sua responsabilidade: Son véritable caractère est donc celui d’une science, et non d’une religion; et la preuve en est, c'est qu’il compte parmi ses adhérents des hommes de toutes le croyances, qui n’ont point pour cela renoncé à leurs convictions des catholiques fervents qui n’en pratiquent pas moins tous les devoirs de leur culte; des protestants de toutes les sectes, des israelites, des musulmans, et jusqu’ à des boudhistes et des brahmistes. Il repouse donc sur des principes indépendants de toute question dogmatique. (“QU’EST-CE QUE L’ESPIRITISME". Ed. 1859. Ledoyen Éditeur, Paris, pág. 31). Nada mais claro, mais compreensível: "Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião; e a prova é que conta, entre os seus aderentes, com pessoas de todas as crenças, e que nem por isso, renunciam a suas convicções: católicos fervorosos, que não deixam de praticar os deveres de seus cultos; protestantes de todas as seitas, israelistas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. O Espiritismo repousa “sobre princípios independentes de toda questão dogmática”. Até aí, tanto quanto lho permitiam as circunstâncias, Allan Kardec fazia questão de salientar dois pontos principais: 1.º) — que o Espiritismo tem a razão de ser na existência de um fato que pode ser admitido e aceito conscientemente pelo homem de qualquer culto religioso, sem conflito com as suas convicções; 2º) que o Espiritismo se consolida na ciência e não tem dogmas ou regras de fé.
Não se excluem, com isto, as consequências diversas do Espiritismo. De um fato científico, pelo qual se demonstra a imortalidade do espírito fora da matéria, decorre uma série de consequências, e uma delas, principalmente, é a que se refere à existência de Deus e aos deveres do homem perante as leis divinas. Se o Espiritismo não tivesse chegado a este ponto, seria uma doutrina ainda inacabada em sua tessitura básica. Muitos críticos ficam apenas naquela passagem, não observam que Allan Kardec, mais tarde esclareceu outros aspectos que se apresentaram naturalmente, no curso de consolidação da doutrina, acrescentando que o Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam, não se acharam resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Alguma coisa se completou, no fim da obra, tanto assim que Allan Kardec empregou o verbo completar com absoluta justeza, quando disse: Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum, o que todo homem tem de COMPLETAR, como o entender, a obra que haja começado e de ser juiz da oportunidade. (OBRAS PÓSTUMAS, parte final — “Constituição do Espiritismo”). Completar não é retificar ou desfazer, é dizer o que não fora dito ou acrescentar o que falta a qualquer construção. O fato, portanto, de haver Allan Kardec sentido a necessidade, posteriormente, de aduzir considerações que lhe pareceram inadiáveis, depois de concluída a sua obra doutrinária, não significa que haja anulado o que já estava escrito nas outras partes da Codificação do Espiritismo. Houve seguimento lógico, como acontece em todas as obras de pensamento. Três pontos ficam bem salientes no conteúdo desta última citação:
1.º) — se houve Constituição do Espiritismo, como disse Allan Kardec, e uma coisa só se constitui quando alguém se dispõe a lhe dar forma, está bem visto que o Espiritismo não apareceu por acaso nem se formou por si mesmo: teve o seu início, o seu momento histórico desde o instante em que Allan Kardec passou a estudar os fenômenos e tirar conclusões filosóficas, embora as comunicações e a crença nos espíritos sejam tão velhas quanto o mundo;
2.º) — se Allan Kardec julgou prudente completar as suas ideias, é claro que o fez porque precisava dizer, depois de tudo, o que só deveria ser dito na ocasião mais indicada; e por isso mesmo se julgou no direito de ser o “juiz da oportunidade”, pois somente ele sabia quando deveriam ser assentadas as definições finais.
3.º) — pela consciência, que tinha, de sua responsabilidade em face da doutrina, Allan Kardec não foi o mero compilador nem simples coordenador dos ensinos que já existiam, pois teve ação fecunda, como autêntico missionário, na organização da dou- trina e na preservação de sua unidade.
De tudo isto se conclui que a DOUTRINA ESPÍRITA não deve ser interpretada por esta ou por aquela parte, mas pelo conjunto. Sem a noção do que seja a sua constituição integral, não se pode determinar fielmente o sentido ou a posição de suas afirmativas mais decisivas. Adotar um livro apenas, em detrimento de outros livros da Codificação, sem respeitar a homogeneidade da obra, é abrir caminho para ideias falsas, equívocos e desvirtuamentos.
Podemos, já agora, chegar ao ponto em que Allan Kardec definiu o ESPIRITA com toda a precisão, e não mais dentro da ideia geral de uma crença tradicional. Disse ele, primeiramente:
“O qualificativo de espírita, aplicado sucessivamente a todos os graus de crença, comporta uma infinidade de matizes, desde o de simples crença nas manifestações, até às mais altas deduções morais e filosóficas...”
No começo era assim mesmo: entendia-se por espírita qualquer pessoa que admitisse a comunicação entre vivos e mortos ou tirasse deduções filosóficas do fenômeno extra-humano. O conceito de espírita, segundo a doutrina, depois de certo tempo, não deveria continuar em termos vagos, pois já estava exigindo afirmações razoáveis. Eis, aqui, o que escreveu Allan Kardec, no mesmo capítulo: Essa falta de precisão, INEVITÁVEL NO COMEÇO e durante o período de elaboração, há frequentemente causado equívocos lamentáveis, fazendo se atribuísse à doutrina o que não passava de abuso ou transviamento. Pela FALSA APLICAÇÃO, que diariamente se faz do qualificativo de espírita, é que a crítica, pouco inquirindo no fundo das coisas e ainda menos do lado sério do Espiritismo, encontrou nele matéria para zombarias. Se, portanto, nove anos antes, quando publicou “O que é o Espiritismo”, Allan Kardec dizia que entre os aderentes ou entusiastas do Espiritismo, havia homens de todas as crença católicos, judeus, muçulmanos, etc. — dando a entender que a crença no intercâmbio com o mundo espiritual não colidia com as opiniões religiosas, ele próprio julgou necessário restringir, depois, a designação de espírita quando chegou a esta conclusão, aliás sensatíssima e oportuna:
HOJE — dizia ele, ainda no século XIX quando nenhuma dúvida mais se legitima sobre os pontos fundamentais da doutrina, nem sobre os deveres que tocam a todos os adeptos sérios, a qualificação de ESPIRITA pode ter um caráter definido, de que antes carecia. (Colocamos em “caixa alta" o que nos pareceu mais significativo nestas citações).
Tendo escrito, no “vocabulário espírita", em 1861, que espírita é todo aquele que “crê nas manifestações dos espíritos", já em 1868, sete anos depois, quando redigiu a “Constituição do Espiritismo", reconhecia que, HOJE, o qualificativo de espírita não pode mais ser empregado indeterminadamente, porque é indispensável que o adepto esteja integrado na doutrina e procure ter um padrão de moralidade que corresponda às consequências do Espiritismo. A doutrina é racionalmente oposta às simulações de puritanismo, à beatitude, ao fanatismo, como é contrária a todas as regras e todos os procedimentos que venham a sair do bom senso, mas a doutrina exige, acima de tudo, a reforma moral. Não se pode ser espírita, conscientemente, sem concordar com os três princípios fundamentais da doutrina: a imortalidade da alma, a existência de Deus e a reencarna- ção. Se, finalmente, o Espiritismo não admite culto material, é claro que não pode ser considerado espírita quem pratica a idolatria, ainda que seja espiritualista. Com as próprias palavras de Allan Kardec, cuja obra não poderá jamais deixar de ser a fonte básica do Espiritismo, devemos concluir que o conceito de espírita não pode ser aplicado aos adeptos de qualquer escola ou culto espiritualista, mas somente às pessoas que, uma vez aceitando a doutrina, já não se prendem mais ao ritualismo nem aos dogmas que aberram da inteligência e clareza da filosofia espírita.
CONCLUSÃO FINAL
Compreendida, finalmente, a posição do Espiritismo em face de todos os cultos, e com a atenção devida a todas as crenças, podemos afirmar, à luz da própria Doutrina Espírita, que o Espiritismo não se subordina a qualquer sistema ou culto organizado. Como doutrina essencialmente progressista, recebe os enriquecimentos das ciências, como acompanha os fenômenos sociais e culturais, sem perder, todavia, a sua integridade e as suas características. Nenhuma religião, nenhum culto espiritualista poderia absorvê-lo ou confundi-lo, a despeito da existência de aspectos comuns, porque as suas concepções basilares, tendo consequências científicas, filosóficas e religiosas, não permitem adaptações e concessões arbitrárias. Desta proposição, consequentemente, chegamos à conclusão de que
O ESPIRITISMO É UMA DOUTRINA QUE SE BASTA A SI MESMA, SEM EMPRÉSTIMOS NEM ACRÉSCIMOS ARTIFICIAIS.
Rio de Janeiro, dezembro de 1957
O sincretismo religioso é um fenômeno inerente ao “caldo de cultura" que decorre do encontro e da interação de elementos diversos. No caso brasileiro, por exemplo, sociólogos, etnólogos, historiadores e outros tipos de estudiosos e pesquisadores já identificaram, há muito tempo, a participação de contingentes culturais de procedência bem variada na formação de nosso povo, o que, aliás, é objeto de uma literatura que se enriqueceu bastante nestes últimos anos. Não apenas em manifestações religiosas, mas igualmente nos domínios do folclore, da língua, da cerâmica, da culinária, etc. E porventura haverá algum povo em cujo embasamento sócio-cultural não haja traços estranhos às raízes locais ou nacionais? Nenhuma civilização se alarga no mundo sem a enxertia de fatores casuais ou adventícios. As crenças e objetos de culto que se amalgamaram no Brasil formam, portanto, uma conjunção de elementos bem diversificados.
Queremos, a propósito, incluir neste capítulo a parte central do artigo que publicamos no Anuário Espírita de 1973, de Araras, S. Paulo, sob o título "Mediunismo no sincretismo religioso”: No Brasil, como noutros países, o sincretismo seria inevitável, pois tivemos, em nossa formação, três correntes notórias de influências iniciais: o elemento indígena ou nativo, com suas variações étnicas e religiosas; o europeu, notadamente o português, e o africano, por fim. E certo que, no bojo deste “caldo”, havia outras influências como judaica, fetichista, maometana, por exemplo. O elemento judaico, entretanto, não teve tanta influência como o africano. Sua participação nos primórdios de nosso embasamento cultural não foi a bem dizer direta, mas através do português, que trouxe consigo muita sobrevivência judaica. O contingente africano, muito variado, aliás, é preponderante em nosso processo de aglutinação cultural. Mas o africano, quando veio para o Brasil, no tráfico negreiro, no período da escravidão,, já estava muito mesclado, religiosamente falando. E preciso ter ideia da configuração geográfica e populacional do continente africano, o que, certa vez, procurei esclarecer, com ilustração de painéis, durante uma palestra na Federação Espírita de S. Paulo, já faz muito tempo. A África teve diversas vias de penetração. Se, por um lado, recebeu infiltrações fortes do Catolicismo, em determinadas faixas de seu território, também recebeu, por outro lado, outro contingente igualmente forte, que é o maometano ou islâmico. Grande parte dos africanos trazia a marca ostensiva do elemento árabe em seus cultos. De época remota, o africano também já incorporava remanescências judaicas, que não foram tão acentuadas, mas até hoje ainda aparecem aqui ou ali, de permeio com vários objetos de cultos.
Todos eles, vendidos como escravos, ou mercadoria humana (!...) se “misturaram" à força, convivendo, trabalhando e sofrendo, mas praticavam seus cultos de maneira diferente, sempre que podiam.
O sincretismo afro-brasileiro é um fenômeno que deve ser estudado com lúcido critério analítico, como capítulo da sociologia religiosa, mas é necessário que se conheça também o verdadeiro caráter do Espiritismo, a fim de que não se intente confundir uma coisa com outra.
O cruzamento é uma contingência do próprio sentido expansionista das culturas. Os grandes troncos do passado remoto, apesar do confinamento natural em que viveram certos grupos humanos, não se mantiveram indefinidamente à margem de contatos, já por necessidade da subsistência depois de certo tempo, já por força de alianças defensivas e outros motivos pertinentes. Nem assírios nem caldeus, persas, judeus, gregos ou egípcios nem outros povos ainda mais distanciados no tempo ficaram incólumes ou fechados em todos os aspectos de suas culturas, sobretudo se levarmos em conta a influência das migrações como fator de intercâmbio, embora tivessem caráter de domínio político ou militar em determinados casos. Gregos e celtas, por exemplo, tiveram grande papel nos surtos migratórios da antiguidade.
Naturalmente as correntes migratórias abriam caminho para a permuta de experiências e, ao mesmo tempo, deixavam elementos de acréscimo ao cabedal acumulado no acervo de cada povo, despertando interesses recíprocos no aproveitamento de instrumentos e técnicas. No bojo desses contatos, às vezes forçados, às vezes provocados pelas circunstâncias, cada povo absorvia e também transmitia recursos, criações, hábitos e crenças. É através da difusão, interpenetrando-se através dos tempos, que as experiências se enriquecem e desenvolvem. Não seria possível, pois, sustentar a tese do paralelismo em termos definitivos, como queriam certos estudiosos da antropologia cultural, apesar de haver povos que realmente lutaram muito pela conservação de seus padrões característicos. Os sumerianos, entre outros. Ainda assim, embora se diga que os sumerianos conseguiram conservar uma “civilização peculiar" ou de feição inteiramente própria, não foram um povo tão separado como se pensa, pois tiveram relações comerciais com acadianos, babilónios, etc. E os árabes, não absorveram influências egípcias e palestinas? E não foram, por sua vez, transmissores da cultura grega, não espalharam suas habilidades, seus pensamentos especulativos por tantas áreas da Europa? Aliás, como diz um autor contemporâneo, a Europa “é uma das regiões mais hibridizadas do mundo", pois, “a maioria dos europeus é o produto de uma série de cruzamentos”. Nem raça pura, nem religião hermética, nem cultura original. Nenhum povo, afinal-de-contas, poderia ufanar-se de pureza racial, nem religiosa, nem linguística.
Através da Península Ibérica, como se sabe, os árabes projetaram muita influência na Europa e deram, inegavelmente, boa contribuição ao vocabulário português. Inúmeras palavras de nosso idioma vieram dos árabes. Tinham eles, em Córdova, na Espanha, um de seus maiores focos culturais. Com o Renascimento, então, a geografia como que mostrou novas dimensões do mundo. Neste ou naquele aspecto, a despeito da resistência de grupos mais exclusivistas ou arredios, sempre se vislumbram, na evolução de cada povo, longínquos vestígios de troca ou imitação nos sistemas de cultos, nos processos terapêuticos, nos apetrechos de guerra, nas técnicas agrícolas. Tanto quanto os gregos, que receberam elementos egípcios e fenícios, por exemplo, na elaboração de seu portentoso patrimônio cultural, os romanos herdaram material bem significativo da cultura grega, mas também eles, os romanos, lançaram sementes de instituições e formas jurídicas em grande parte do mundo ocidental, Ainda perduram remanescências romanas até hoje, pela força da tradição. Vejamos a esfera religiosa.
A Igreja Romana incorporou e disfarçou muitas sobrevivências do Paganismo, assim como do Judaísmo e de outros cultos. Sob este ponto de vista, à luz de um inventário histórico, remontando às primitivas fontes, podemos dizer que seria difícil, muito difícil mesmo, apurar o que existe de rigorosamente original no culto externo do Catolicismo e até mesmo em determinados pontos de sua teologia. Tanto faz na Igreja como nos grupos religiosos mais obscuros, o sincretismo é uma contingência inevitável, geográfica e historicamente.
É certo que nem todos os grupos aderem facilmente a ideias e práticas estranhas. Há grupos cujo processo de aculturação é muito lento e difícil, por causa das resistências e dos atritos. Fernando Ortiz, criminalista e antropólogo, autor de “A Filosofia Penal dos Espíritas”, prefere o termo transculturaçâo, que lhe parece mais certo do que aculturação, usado pela maioria dos autores. São indóceis a qualquer forma de infiltração, às vezes pelos condicionamentos da situação geográfica em que se encontram, como no caso das ilhas polinesianas, onde se conservou uma cultura a bem dizer intacta por muito tempo. Há, inegavelmente, circunstâncias ou conjunturas que obrigam o grupo a ceder por acomodação, porque não pode repelir a convivência, principalmente quando há pressão política ou perseguição religiosa. Mas acomodação não é assimilação, é apenas, quando muito, um meio de contornar situações difíceis, quando se reconhece um fato consumado. E o que se pode chamar "política de boa vizinhança", quando não há outro jeito... O grupo minoritário, sem apoio político nem social, terá de capitular, cedo ou tarde, diante dos grupos dominantes, mas nem sempre a simples capitulação em matéria religiosa quer dizer aceitação consciente. O grupo dominado faz que aceita, chega a praticar o novo culto para efeito exterior, mas não abre mão de suas crenças, não abandona completamente a bagagem religiosa de origem, não deixa de acreditar nos valores de sua fé. Foi o que se deu com os africanos no Brasil.
Se é verdade que houve grupos de escravos que se entrosaram mais depressa no culto católico, também é verdade que os sudaneses, oriundos religiosamente da faixa islâmica ou maometana, sem vinculações, portanto, com o Catolicismo, resistiram muito, fizeram tudo até para evitar “mistura” com outros grupos africanos. É um exemplo característico de grupo fechado. Compelido a praticar o Catolicismo como religião imposta, pois era a religião dos senhores de escravos, a religião oficial do país, nem por isso o africano renunciou intimamente às suas práticas religiosas; embora desse a impressão de que já estava identificado com os ensinos da Igreja Católica, usava seus objetos de adoração, fazia suas devoções ocultamente, iludia a vigilância dos “feitores” e, sempre que podia, adotava os rituais de seu culto, seus cantos, suas formas peculiares de recolhimento. Com muito cuidado, “às escondidas”, o certo é que os cultos africanos não se diluíram facilmente, não se extinguiram inteiramente, apesar da influência católica. Depois de certo tempo, veio o sincretismo afro-brasileiro, o que, aliás, teria de acontecer. Muitas mães escravas, por exemplo, trazendo vestígios do Judaísmo, praticavam a circuncisão em seus filhos, assim que as senhoras-de-engenho se descuidavam. A religião de origem, como se vê no comportamento dos africanos, às vezes é muito mais persistente do que a religião adquirida. A religião transmitida ou herdada perdurou muito entre eles.
No sincretismo afro-brasileiro há reflexos de origem fetichista, judaica, maometana, católica, principalmente. Os africanos também faziam evocações de espíritos. Todavia, por mais que se pretenda englobar o material humano na simbiose de crenças e ritos, sempre fica uma sobrevivência distintiva, ora neste, ora naquele aspecto, denunciando a permanência de ideias, símbolos e formas do passado. É engano pensar que um grupo étnico ou religioso se desprende completamente de sua procedência, apenas porque muda de ambiente, como se fosse possível cortar os liames de uma contextura histórica e emocional como se arrancam as raízes de uma planta... Convém notar ainda mais que os africanos, ao chegarem ao Brasil, já não tinham unidade religiosa. Também do ponto de vista cultural, não havia unidade entre eles. Vieram para o Brasil como simples "massa de escravos", mas carregavam elementos culturais bastante heterogêneos, o que, lamentavelmente, não foi compreendido naquela época, nem poderia sê-lo, devido à deficiência de conhecimentos aprofundados de antropologia e outros campos das ciências sociais. Havia culturas africanas de conteúdo mais rico e culturas mais simples. Os Sudaneses, por exemplo, tinham um índice cultural bem alto no conjunto de povos africanos, o que se pode aferir pela cultura iorubana, considerada “a mais adiantada cultura negra", ao passo que os bantos já não estavam no mesmo plano.
Os escravos que saíram das áreas de influência árabe, muito forte no continente africano, transportaram para cá todo o seu arraigado sentimento de fidelidade ao Islamismo, que já trazia, aliás, outras contribuições. Até hoje, apesar da fusão que se operou no Brasil e a despeito do tempo que já decorreu, ainda se distinguem certas sobrevivências do Catolicismo, do Islamismo, como até do Judaísmo em variadas práticas religiosas. De onde vem o uso do turbante, a vestimenta branca com expressão sacerdotal, o hábito de tirar os sapatos, senão de recuada comunicação muçulmana nos cultos africanos? E não há terreiros onde ainda se mescla a "estrela de David” com elementos do fetichismo remoto, onde ainda sobrevivem oferendas e símbolos que lembram vestígios de elementos judaicos no sincretismo? E a Igreja Católica, por outro lado, não tem uma participação bem pronunciada com altares, imagens, nomes de santos e peças de seu ritual em muitos terreiros pelo Brasil a fora? Claro que sim.
Seja, porém, como for, a promiscuidade religiosa não apaga imediatamente, mas através do tempo, e às vezes de um modo muito lento, os resquícios da crença que o indivíduo ou o grupo recebeu nos estágios iniciais de sua formação, principalmente quando obrigado a deixar a terra de berço, pois ainda fica mais preso por laços de afetividade e nostalgia, como acontecia com os escravos. A religião de origem muitas vezes se dissimula fora de seu habitat, dando a impressão de que se diluiu completamente, mas reponta em determinados momentos. Muitos escravos, por exemplo, ao regressarem às terras africanas, notadamente os que haviam recebido influência maometana, abandonavam o Catolicismo, que era apenas uma religião exterior, e retomavam a tradição de seus cultos. É preciso que haja, realmente, motivações novas, com elementos convincentes, capazes de implantar outra convicção. Caso ilustrativo, entre outros, é o dos judeus que se “converteram” ao Catolicismo com medo da Inquisição. A conversão dos “cristãos novos”, como se denominavam os judeus que aderiam à Igreja Católica, não passou, em grande parte, de uma opção puramente formal ou exterior. Vigiado pela Inquisição em todos os passos, sabendo que corria o risco da fogueira como “herege”, o cristão novo submetia-se à Igreja dominante, “aceitava” o Catolicismo sob pressão, mas continuava a cultivar a religião de berço no foro íntimo. Ao fazer voto público de adesão' à nova fé, implicitamente era obrigado a abjurar a religião de seus antepassados. E abjurava mesmo?... Não. Muitos deles foram condenados exatamente porque, apesar de “convertidos” ao Catolicismo, nunca deixaram de praticar o Judaísmo particularmente, com muita cautela, altas horas da noite, pois os “fiscais” da Inquisição acompanhavam todos os movimentos dos marranos, como também se chamavam os “cristãos novos", espionando-os até pela fechadura da portal... Houve muitas condenações de cristãos novos pelo simples fato de terem “adotado" a Religião Católica e, ao mesmo tempo, ocultamente, se entregarem a “práticas judaizantes". Para os inquisidores, era um crime imperdoável.
As conversões por imposição, assim como as mudanças de credo sem convicção, mas simplesmente por interesse político, sentimental ou utilitário, sempre produzem falsos crentes, nunca implantam a fé, a verdadeira fé na consciência. A História que o diga. A exteriorização nada significa, desde que a nova religião não fique na alma. Aceitar o batismo, fazer profissão de fé solenemente, jurar obediência e tantos outros atos convencionais nenhuma interferência profunda poderão ter na vida interior, se a religião que o indivíduo sente não é a que lhe “empurram" pela ameaça ou pelo medo, mas a religião em que realmente crê, tenha ela a forma que tiver. Enquanto a inteligência não compreende, enquanto a razão esclarecida não aceita, enquanto o espírito não absorve conscientemente as novas ideias, é inútil e até contraproducente doutrinar qualquer ensino religioso.
A luz desta linha histórica, esboçada a bem dizer em generalidades, podemos situar o sincretismo religioso como expressão dos contingentes culturais do país. Diversas manifestações religiosas entraram na composição dos sistemas de crenças e, por isso mesmo, nenhuma delas se encontra, hoje, em “estado puro", como observou muito bem o professor e antropólogo Artur Ramos, um dos desbravadores do campo de culturas negras no Brasil. Os próprios cultos que trouxeram achegas maometanas com os escravos sudaneses, também chamados malês, embora muito segregados, muito confinados em seus círculos de convivência, depois de algum tempo também se fusionaram e, atualmente, subsistem apenas certos vestígios dessa cultura. Tudo se englobou e confundiu pela ação do tempo e por força dos contatos.
Ao lado da variedade que veio com os africanos, não deixa de ser relevante, do mesmo modo, o meio cultural que eles encontraram no Brasil, onde as populações indígenas também não se caracterizavam pela homogeneidade, a despeito da coincidência de traços comuns. Não se pode estudar o sincretismo religioso no Brasil como fenômeno à parte, fora do quadro geral das populações nativas, pois é necessário levar em conta os núcleos anteriores à chegada dos espanhóis e portugueses, conquanto haja peculiaridade inerente a cada país. As culturas indígenas não brotaram no solo brasileiro como “geração espontânea", pois também se prendem ao entroncamento do homem americano.
Admitindo-se a confluência de três grandes linhas étnicas no lastro populacional do continente americano — mongoloide, caucasoide e negroide — naturalmente o ponto de partida do elemento indígena sugere certas indagações. Haveria na América, realmente, uma população autóctone antes das primeiras interações com europeus e africanos, ou a população nativa já era o resultado de migrações anteriores àqueles cruzamentos? Segundo a teoria da unicidade, teoria que considera o índio americano de origem unicamente asiática, a via de penetração teria sido o estreito de Bhering. Contrariamente, a teoria pluralista não aceita a tese de uma via única de penetração na América, qualquer que seja o ponto, nem uma origem única, mas procedências diversas. Além do continente asiático, que pesa muito no conjunto, deveriam ter caldeado os núcleos indígenas ainda outros povos recuados no tempo, incursionando por outros caminhos e, não, apenas uma via de acesso: australiano, malaio-polinésio, esquimó, por exemplo. E deste entrosamento saíram então os primeiros grupos indígenas, segundo a teoria pluralista. Naturalmente não há de ter prevalecido apenas o critério antropológico, mas igualmente o critério linguístico, que é muito importante na avaliação global, e ainda a diversidade dos aspectos culturais entre grupos aparentemente homogêneos.
Seja como for, embora não haja unidade de vistas a respeito de sua verdadeira origem, o índio tem um acervo cultural, cujas configurações religiosas guardam uma tradição de lendas, mitos, símbolos, ritos e divindades. Na opinião de Couto de Magalhães, precursor dos estudos etnográficos neste país, o sistema de mitos indígenas no Brasil, do ponto de vista de substância, - diz ele i “é idêntico ao dos Vedas". Não é opinião de um teórico, mas de quem fez observações diretas pelo Brasil a dentro, no século XIX. Quer na orla marítima, onde a expansão foi mais fácil, quer nos sertões pelo tempo adiante, espalhando-se pelas fazendas, natural mente o africano se defrontou com objetos e práticas indígenas, inclusive sobrevivências religiosas. Mas até que ponto se fizeram sentir os contatos? Em que área da distribuição geográfica do elemento indígena teria havido mais aproximação com o africano? Se é verdade que já se escreveu muito sobre o intercâmbio entre índios e europeus, ainda não se fez, todavia, um levantamento completo a fim de apurar, em termos de avaliação criteriosa, o resultado ou as consequências do-encontro das culturas negras com os cultos e as técnicas indígenas. Teria havido permutas relevantes? Em que sentido? O que existe na literatura antropológica neste particular ainda não é suficiente para um conhecimento seguro, sobretudo porque são de referências esparsas, ressentindo-se da falta de um trabalho de conjunto. Teriam os africanos por sua vez absorvido normas e valores da cultura indígena? São problemas suscitados pela própria complexidade do sincretismo religioso no Brasil.
Não se pode aplicar aqui, em tudo por tudo, a teoria do paralelismo, segundo a qual as culturas se desenvolvem independentemente, sem cruzamento, portanto. Haveria então um sentido de autossuficiência muito rigoroso. Até certo ponto, ou durante algum tempo, certos grupos podem conservar a integridade ou impenetrabilidade da crença e dos objetos de seu equipamento original, mas nem sempre a geografia, o clima e os processos históricos favorecem o enclausuramento muito demorado. No caso brasileiro, cuja característica predominante é a mesclagem cultural, devocional, linguística, etc., os movimentos migratórios por si mesmos, e em grande parte, se encarregaram de espalhar umas tantas peculiaridades, transpondo muitas barreiras. A teoria difusionista, inegavelmente mais elástica,, preconiza o intercâmbio, a reciprocidade como fator de enriquecimento das culturas, tanto no aspecto material quanto no espiritual ou religioso. Nenhuma das duas teorias, entretanto, poderia ser tomada em acepção absoluta ou definitiva. O fato de uma cultura receber contribuições estranhas não quer dizer que se tenha desfigurado ou perdido as feições mais acentuadas.
Se às vezes se identificam objetos e hábitos comuns a duas áreas culturais bem distintas, podendo ser coincidência ou imitação, o que justifica certo difusionismo, também é verdade que há grupos muito infensos a qualquer forma de intercâmbio, preferindo manter-se dentro de seus contextos, seguindo a linha de um paralelismo intransigente, enquanto é possível. Já vimos, e vale a pena repetir a ilustração, o caso dos “cristãos novos” ou “marranos” (judeus convertidos à Religião Católica sob a Inquisição). Muitos desses “cristãos novos”, talvez uma legião, receberam a nova fé, mas apenas superficialmente, pois continuaram fieis à velha crença, praticada na intimidade. Outra ilustração. Entre os índios batizava dos, índios que os jesuítas arrebanharam para a Igreja no trabalho de catequese, também houve casos em que a religião ensinada pelos missionários ficou apenas nos atos de culto externo, mas não entrou na alma. Embora incorporados às "conquistas espirituais" dos jesuítas, apesar de aparentemente integrados na Igreja, muitos índios cederam porque não podiam deixar de ceder, mas verdade é que não abriram mão de sua bagagem de crenças, seus símbolos, suas inclinações mais íntimas para a religião nativa. Conversão puramente exterior. Diz, a este respeito, o professor Estevam Pinto, a quem a cultura brasileira deve bons trabalhos sobre as influências indígenas, africana e árabe na evolução social de nosso país: "O índio, após a catequese, não saía mais cristão do que quando trocara sua oca pelos muros caiados do claustro: a sua cristandade era como um verniz, que, de quando em quando, partia- se e deixava à mostra o cerne puro”. E o escritor João Lúcio de Azevedo (citado pelo mesmo Autor) chega a dizer que a conversão dos índios "era uma ilusão dos missionários"...
Paralelismo e difusionismo são, na realidade, termos relativos, porque exprimem situações condicionais, sujeitas a fatores de natureza mesológica, emocional, econômica, e assim por diante. Seja como for, o sincretismo é um processo de combinação, englobando ritos, divindades, sistemas de adoração, etc. Há determinados usos, entretanto, que podem ser encontrados, ao mesmo tempo, em duas ou mais culturas, sem que tivesse havido imposição de um? sobre outra e muito menos uma intenção imitativa. E o caso das penas, que algumas tribos usavam não simplesmente como enfeites, mas na suposição de que, com elas, poderiam adquirir "qualidades defensivas nas ações de guerra". Diz um autor contemporâneo que essa concepção fazia parte das crenças dos tupinambás. Outras, como se sabe, se revestiam de penas como adorno, principalmente quando eram penas vistosas. Mas também certos grupos africanos usavam penas. Teria o africano imitado o índio? Ou seria o índio o imitador?... E não poderia ser apenas coincidência? E o que parece. Na opinião do Professor Edison Carneiro, especialista no assunto (há pouco falecido no Rio), autor de diversos trabalhos neste campo de, estudos e pesquisas, o uso de penas já vinha da África, não era imitação dos índios. E os africanos da Costa da Mina não usavam penas, diz ele.
Alarguemos nossas vistas mais um pouco, pois a seara é imensa. Na região amazônica, como ensina autorizada fonte, as tradições africanas “não predominaram em toda a vastidão da planície”, por isso mesmo, a “cultura amazônica” tem mais caracteres indígenas do que africanos. Enquanto na faixa marítima do nordeste, como do leste e do sul houve mais concentrações africanas, deixando traços mais fortes do ciclo escravocrata, a predominância indígena teria de ser como que uma fatalidade geográfica na região amazônica. De seu acervo de lendas e mitos, alguns se espalharam por outras regiões, embora tomando, às vezes, feições diferentes. O mito da caapora, vulgarmente chamado de “caipora”, por exemplo. É uma entidade protetora da caça e habita o tronco das árvores, segundo uma crença corrente, e tem a forma de um índio. Há lugares, no entanto, onde a tradição oral pinta a caipora com expressão feminina e de uma perna só... Dão-lhe também o nome de “caboclinho encantado”, porque amedronta os intrusos na mata, bate nos cachorros, faz sentir seus “poderes”, mas nunca se deixa tocar por mãos humanas... Já ouvimos dizer, muitas vezes, no sertão baiano, que os caçadores agradavam a caipora com fumo mastigado à beira da estrada, a fim de evitar que essa entidade poderosa atrapalhasse a caçada. O fumo mascado, atirado ao mato para a caipora - diziam por lá - também servia para contornar problemas de assombração. “Boa política”, afinal de contas...
O poeta Gonçalves Dias, que tanto se inspirou em sugestões indígenas e estudou muito a língua tupi de que escreveu até um dicionário, achou alguma analogia entre a caipora e um dos orixás africanos, chamado Ossonhe, pois também habitante da floresta. Não sabemos se outros estudiosos, posteriormente, foram mais longe neste ponto, Conquanto se deva considerar necessariamente a diferença, que existe, entre mitos indígenas e africanos, não se pode deixar de observar que algumas crenças têm, pelo menos, um ponto de afinidade: sincronização com a água do rio ou do mar. O mito-indígena de igupiara está associado à corrente das águas. Os africanos sudaneses tinham sua deusa-marinha. Outras figuras simbólicas são igualmente filiadas ao encanto das águas. O “moleque-dágua”, que aparece de sete em sete anos, como diz uma lenda, muito contada na rio Pardo, sul da Bahia, tem a mesma motivação. Há sempre relacionamento com a água em determinados cultos de origem indígena e africana. Iemanjá é a “mãe-dágua” dos iorubuanos, ensina o historiador e folclorista Câmara Cascudo; Gonçalves Dias não encontrou termos equivalentes no vocabulário indígena, o que o induziu a atribuir a esse culto procedência africana: ‘‘A mãe-dágua” será talvez de origem africana, sendo presumível não ser dos índios, em cujo idioma não encontramos termos para exprimir”. (Cf. de Manoel Querino em “Costumes Africanos no Brasil")? Muito pouco elucidativo. Cronologicamente, Gonçalves Dias é um dos pioneiros do indianismo no Brasil, mas em sua época muito pouco se sabia acerca das culturas indigenas e africanas em relação aos trabalhos que já se realizaram neste campo, de certo tempo a esta parte. Há quem admita, hoje, que o mito de Iemanjá tenha vindo da Europa. É uma hipótese que sugere mais estudos ainda. Orixá marítimo por excelência, iemanjá tem mais nomes, muito menos conhecidos: “oloxum", “inaê", “sereia do mar” “princesa de aioca”, além de outros.
Já é, como se sabe, muito grande o número de seguidores de Iemanjá. A devoção tomou expressão um tanto folclórica, principal mente nas praias do Rio de Janeiro, onde os acampamentos improvisados, durante a noite das oferendas, se transformam em verdadeiros motivos de atração turística, com impressionante aglomeração de espectadores de todas as categorias sociais. Mas a celebração anual desse culto tem um lado realmente devocional1, em cujos estados místicos podem ocorrer manifestações medi únicas ou de simples animismo, e uma parte ritualística em que já não existe uma coreografia inteiramente original, devido à mesclagem de crenças e objetos religiosos, apesar do ritmo e da composição externa. Muitos devotos, por exemplo, equiparam Iemanjá, em suas orações, à devoção católica de N. Senhora. E há outras ligações com o Catolicismo. Em qualquer hipótese, há muito o que se observar e estudar aí, quer como simbiose de crenças, quer ainda como forma popular de adoração.
Em explanação muito sumária, bem o reconhecemos, tentamos apresentar o panorama histórico do sincretismo religioso como fenômeno inerente ao caldeamento cultural do povo brasileiro. Resta-nos agora, e este é o aspecto que mais interessa ao principal objetivo de nosso trabalho, considerar a posição do Espiritismo em face do sincretismo, tendo em vista, principalmente, a confusão, que ainda se faz, entre a legítima prática espírita e o culto de orixás, o ritual de terreiros, a veneração de imagens, por exemplo. Sabemos de alguns intelectuais brasileiros, inegavelmente versados em História, como em Sociologia e outros ramos das ciências sociais, que colocam este problema a bem dizer em termos fatais: O Espiritismo não pode ficar situado fora do contexto afro-brasileiro, porque tem ramificações com os cultos africanos através do fenômeno medi único e da evocação de espíritos. Dizem então os defensores da associação Espiritismo-sincretismo que o movimento espírita não pode fugir à conjuntura do próprio meio brasileiro, onde proliferam manifestações religiosas de vários tipos, com heranças de fetichismo, mediunismo, adoração de entidades mitológicas, etc. Seria impossível, portanto, manter o Espiritismo em estado de pureza. E o que alguns estudiosos chamam de “explicação sociológica". Veremos este ponto no próximo capítulo.
“O Espírito não é um ser abstrato, indefinido... E um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato”.
Embora se diga que o Espiritismo se integrou sociologicamente no sincretismo religioso, quer pela forte contribuição de animismo e mediunismo, quer pela evocação de espíritos, não havendo, portanto, condições para a prática do Espiritismo em campo neutro ou equidistante sem qualquer influência católica, indígena ou africana, podemos contrapor a essa afirmativa, com palavras textuais de Allan Kardec, um argumento muito mais consistente: “O Espiritismo está fora de todos os cultos”. É uma premissa inteiramente válida. Sendo o Espiritismo uma doutrina, um corpo de ensinos, não sendo, portanto, uma forma de culto material, pois não tem liturgia nem sacerdócio, tanto assim que não prescreve o uso de objetos de adoração, nem estabelece “prescrições sagradas”, é natural que tenha, por isso mesmo, qualquer associação com as práticas religiosas encontradas no Brasil quando chegaram ao país as primeiras obras de literatura espírita.
Se é verdade — devemos confessá-lo sem constrangimento — que muitos elementos do próprio meio espírita nem sempre se desligam completamente de suas crenças iniciais, pois ainda cultivam certas devoções, este procedimento religioso é de puro arbítrio pessoal, não modifica o caráter do Espiritismo. Ainda que se diga, de acréscimo, mas não é uma objeção de peso, que o Espiritismo se engloba forçosamente no sincretismo religioso, porque muitos de seus adeptos participam de “trabalhos de terreiros” e, ao mesmo tempo, frequentam "sessões kardecistas”, o problema continua a ser de natureza pessoal, não tem a significação que se lhe atribui. Muitos católicos, como se sabe, vão à missa pela manhã, muitas vezes para efeito apenas social, mas à noite vão tomar a bênção de "pais-de-santo"... A doutrina da Igreja não se altera por causa disto. Em matéria de foro íntimo, cada qual é o juiz de seus atos, ensina a sabedoria comum.
Não é, pois, de admirar tanto o fato de muita gente aceitar o Espiritismo pelas primeiras impressões ou por motivos diversos, procurando até prati- cá-lo com a maior sinceridade, mas conservando ainda um pouco de apego às velhas ideias religiosas. Nem todos se desligam imediata e absolutamente dos objetos e das cerimônias de culto a que estavam habituados. Há pessoas assim. O problema é de tempo, a renovação terá de ser “a longo prazo"... Vejamos, de passagem, o que se deu com alguns positivistas. Partidários de uma doutrina infensa, por natureza, a qualquer indagação acerca da existência de Deus ou da vida futura “depois da morte”, nem por isso certos positivistas se desprenderam do ritual e do sacerdócio, pelo menos formalmente, imitando a Igreja. Augusto Comte, fundador do Positivismo, aquela cerebração extraordinária, criou um sistema de filosofia positivista, contrário a tudo quanto desse ideia de sobrenatural ou metafísico e, no entanto, ele próprio sempre revelou inclinação para a Igreja Católica como força conservadora. Tinha alguma veneração. (Temos breves observações a este respeito, no artigo intitulado “O Espiritismo na Cultura Brasileira”, publicado no II vol. dos Anais do Instituto de Cultura Espírita do Brasil). Voltemos ao fio do assunto. Os casos pessoais não podem servir de argumento básico na "análise sociológica” da formação religiosa de um povo, como se pretende insinuar a propósito do Espiritismo. 0 que está em causa não é o modo de ver nem as atitudes emocionais de quem quer que seja, mas o fenômeno religioso, como ele se apresenta através da História.
Existe, de fato, um acervo de crenças e ritos conjugados no Brasil pelo processo de aculturação. Da miscigenação de elementos católicos, indígenas e africanos - sabem-no todos os estudiosos do problema - ficou um lastro multiforme de experiências e peculiaridades. Partindo desta observação, que é um ponto de fixação indispensável, já agora nos interessa saber se, na realidade, o Espiritismo se identifica com esse processo ou, para usar expressão mais clara, se o Espiritismo tem vinculação histórica com o sincretismo religioso. Devemos começar pelo conceito de Espiritismo, doutrinariamente falando, pois as práticas de animismo e mediunismo sempre existiram, nunca estiveram nem estão circunscritas ao meio espírita. Não discutimos preferências por este ou aquele sistema de fé, não temos a mínima intenção de menosprezar ou causticar opiniões religiosas e, por princípio, respeitamos todas as crenças. Adotamos, porém, uma posição, conscientemente: O ESPIRITISMO NÃO SE DEFINE NEM SE CARACTERIZA PELAS FORMAS RELIGIOSAS DE NENHUMA COMBINAÇÃO SINCRÉTICA. E o fenômeno religioso do Brasil, em grande parte, ainda se reveste dessa característica heterogênea. Que é o Espiritismo, afinal? Vejamos o que nos diz Allan Kardec: O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Ciência de observação, sim, nem precisaríamos dizê-lo, porque tem por objeto uma fenomenologia que já foi comprovada em experiências; doutrina filosófica, realmente, porque, tendo por base experimental o fenômeno mediúnico, faz inquirição sobre as causas e leis, deduzindo consequências que incidem no domínio da moral, da religião, da filosofia em si. Eis, em síntese, o que é o Espiritismo. Logo, não é um mito, como não é uma técnica evocatória e muito menos uma seita. Como ciência prática — quem fala ainda é Allan Kardec — o Espiritismo “consiste nas relações, que se estabelecem, entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas relações.” E tanto assim é que o Espiritismo emprega o método experimental na parte fenomênica, como fazem as ciências.
Fugindo, pois, a “divagações sobrenaturais”, o Espiritismo reclama a crítica e o raciocínio claro não é uma crença fantasiosa. Convém ressaltar A força do Espiritismo está em sua filosofia, no apelo que dirige à razão e ao bom senso, é ainda Allan Kardec quem diz. Justamente por isto, o Espiritismo tem uma definição sintética, uma vez que seus objetivos, como corpo de doutrina, abrangem a natureza, a origem e o destino dos espíritos, bem como suas relações com o mundo corporal. Pouco importa que cada qual queira defini-lo a seu jeito, segundo o velho ditado: “cada cabeça, cada sentença”. Mas a definição doutrinária é que traduz o verdadeiro caráter do Espiritismo. Como, pois, querer filiar o Espiritismo a velhas crenças e práticas religiosas que tomaram, entre nós, a feição de um sincretismo há muito reconhecido e estudado? Tem o Espiritismo alguma liturgia? Não. Algum “livro sagrado”? Claro que não. Tabus? Também não. Sacerdote e paramenta? Não. “Pais-de-santo”, altares, imagens, porventura? Absolutamente! Que afinidade então poderia haver entre o Espiritismo e as formas de cultos tradicionalmente revestidas de roupagens de roupagem sacerdotal ou afeiçoadas a danças, bebidas, velas e até certas expressões folclóricas? Nenhuma, evidentemente. Não há termo de comparação com o Espiritismo. Entretanto há quem diga, talvez por falta de boas fontes de informação, que o Espiritismo não pode ficar inteiramente fora do sincretismo religioso no Brasil, uma vez que tal conjunção é um “determinismo sociológico”. E uma afirmativa discutível. O cruzamento dos cultos africanos com o Catolicismo começou muito antes da difusão das ideias espíritas no Brasil.
Além do conceito doutrinário, já expresso, podemos apresentar outros elementos de elucidação. Quando se lançou a Doutrina Espírita, na França, em 1857, com a publicação da 19 obra da codificação de Allan Kardec — O Livro dos Espíritos - já se praticava notoriamente o fetichismo, o animismo e o mediunismo, tanto quanto já se faziam evocações de espíritos. No Brasil, muito antes da divulgação da literatura espírita. Ainda nem se conhecia a palavra Espiritismo, cunhada por Allan Kardec, com significação específica e, por isso mesmo, não deve ser empregada indiscriminadamente. Ou abusivamente... Como, pois, forçar conexões que não existem? Convém ressaltar, além de tudo, que o Espiritismo é uma doutrina cuja natureza não combina com a organização de nenhum culto ritualizado. Como doutrina, tem seus princípios, sua terminologia, suas concepções, não é uma “crença ingênua”. Não podemos, portanto, aceitar a explicação determinista em termos absolutos, visto como o Espiritismo, isto é, a Doutrina Espírita e, não, o fenômeno medi único, não entrou no Brasil em consequência de nenhuma dissidência religiosa, como também não veio com o equipamento cultural dos grupos africanos. O Espiritismo entrou no Brasil por outras vias de contato e noutras circunstâncias.
Na realidade, porém, o que se observa é uma confusão, quase generalizada, entre a simples prática mediúnica e o Espiritismo. Até mesmo estudiosos especializados em Antropologia e Sociologia incidem a cada passo neste equívoco. É uma visão muito global mas um tanto superficial do problema, que não deve ser considerada à luz de um raciocínio tão simplista. Quando as ideias espíritas começaram a ser espalhadas em nosso país, principalmente na Bahia, a partir de 1869, com Luiz Olímpio Teles de Menezes, do antigo Instituto Histórico (não o atual), pioneiro da imprensa espírita no Brasil, já eram francas e até certo ponto cediças as manifestações mediúnicas dentro e fora das áreas de cultura africana. O Rio de Janeiro e Salvador foram dois focos de projeção do Espiritismo através das obras que iam sendo traduzidas do francês. Os estudos de culturas negras, com a escola de Nina Rodrigues, seriam conhecidos mais tarde.
O Espiritismo, nem seria necessário dizê-lo a esta altura, veio exatamente interpretar o fenômeno mediúnico, que se observava empiricamente, sem uma posição filosófica, sem uma conceituação sistematizada. O Espiritismo explica o fenômeno, suas leis, sua natureza e, daí, decorrem logicamente princípios e normas implícitas. Então, o que está no sincretismo afro-brasileiro, o que participa dos cultos que se desfiguraram com o tempo, no Brasil, não é, na realidade, o Espiritismo, mas apenas a prática mediúnica, a crença nos espíritos, a evocação, pois tudo isso é anterior à Doutrina Espírita. Uma sessão espírita, orientada e dirigida sob critério doutrinário, nada tem de comum, por exemplo, com sessões de “magia negra”, com terreiros de candomblé, justamente porque nessas práticas existe um ritual, em- pregam-se objetos de culto, às vezes até se sacrificam aves, assim por diante. Ora, uma sessão de Espiritismo não admite ritual, não recorre a objetos, não tem a preocupação de impressionar. Daí se segue, portanto, que, embora nas sessões de magia ou de vários cultos se façam evocações de espíritos, com orações, incenso, “fórmulas sacramentais”, etc., etc.; embora não se negue, muitas vezes, a sincera intenção de praticar o bem, o que, aliás, é problema muito subjetivo, não há semelhança com a verdadeira prática espírita. E verdade que nas sessões espíritas também se fazem evocações, do mesmo modo que se promovem geralmente experiências mediúnicas, mas o objetivo especial é doutrinar, esclarecer, educar, orientar. A principal atividade espírita não é propriamente o intercâmbio com os mortos, como erroneamente se propala, mas o esclarecimento doutrinário, visando à reforma moral do ser humano através do conhecimento de uma filosofia de vida, baseada em três pontos centrais: imortalidade ou sobrevivência do espírito após a morte; reencarnação ou tese das 'Vidas sucessivas"; a existência de Deus como "causa primária".
Para ensinar e divulgar tais princípios, fazendo aplicações aos fatos da vida, não necessitam as sociedades espíritas de sacerdote nem altares, nem tampouco de fórmulas mágicas. O Espiritismo - é preciso que se saiba - afirma a predominância dos valores espirituais sem perder de vista, todavia, a participação do homem na vida social. Justamente por isso o movimento espírita procura melhorar o nível intelectual» do povo, proporcionando-lhe elementos capazes de exercer influência renovadora nos padrões de procedimento. Não basta, entretanto, intelectualizar é necessário, senão indispensável, que a reforma do homem se faça sentir no sentimento. E uma das preocupações fundamentais do Espiritismo.
Sendo o Espiritismo uma doutrina que não admite catequese nem qualquer processo de proselitismo, claro que não precisa empregar técnicas de persuasão a fim de atrair ou arrebanhar multidões. Não há ritual nem autoridade sacerdotal. Já se vê, consequentemente, que não é possível, em termos justos, associar a legítima prática espírita às manifestações religiosas em que as evocações de espíritos se realizam por meio de “objetos sagrados", roupagens especiais, “pontos cantados", incensos e outros elementos ritualísticos. O Espiritismo é, de fato, um campo de cultura científica e filosófica, uma vez que suas teses fundamentais suscitam questões inerentes a vários ramos do conhecimento humano. Já existe, como é público e notório, uma literatura espírita de amplitude internacional. Não se pode formar juízo a respeito do Espiritismo sem, pelo menos, a leitura de suas fontes mais gerais. Quem se impressiona com a forma de certas manifestações mediúnicas, provocadas sem a mínima atenção às indiciações da doutrina, evidentemente está sujeito a formar noções incompletas, incidindo no vezo das interpretações unilaterais, muitas e muitas vezes falsas.
Muita gente faz críticas ao Espiritismo sem conhecer o conteúdo moral e intelectual da doutrina. Há quem procure “milagres” e “adivinhações" no Espiritismo, justamente porque desconhece a doutrina. Que fale, aqui, a codificação espírita: “Ninguém peça milagres nem prodígios ao Espiritismo, porque ele provará formalmente que os não produz”; assim como a Física, a Química e a Geologia vieram revelar leis do mundo material, o Espiritismo vem revelar outras leis, desconhecidas - as que regem as relações do mundo corpóreo com o mundo espiritual; como suas irmãs mais velhas, não deixam de ser leis naturais. Dando explicação de certa ordem de fenômenos até aqui incompreendidos, destruiu o que restava no domínio do maravilhoso. Temos, aí, textualmente, a expressão da verdadeira natureza do Espiritismo. Muito diferente, senão defeituosa, é a ideia que ainda se faz em determinados círculos intelectuais, onde se pensa exclusivamente em termos de comunicação com os mortos, como se o Espiritismo não englobasse uma série de questões inerentes a diversos ângulos do conhecimento.
A fenomenologia extra-terrena ou “supra-normal”, como querem alguns autores, é muito mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Em face de uma experiência histórica de mais de um século, já é tempo de se alargar a visão crítica neste terreno, evitando pronunciamentos ex cathedra, como é o caso de certas entrevistas, que nossa imprensa divulga e às vezes ela própria encampa, embora sem conhecimento de causa. Em grande parte, é o que ocorre. Mas a comunicação do além é um dos aspectos do Espiritismo, não é o Espiritismo em si. Justamente por isso, não pode ser enquadrado nas limitações de uma técnica. E como poderia sê-lo, criteriosamente falando, se é uma doutrina cujas implicações ultrapassam o próprio campo fenomênico? Há experiências mediúnicas em que se pode fazer uso desta ou daquela técnica mais adequada, como na psicografia, nos passes transversais, nos casos de efeitos físicos, por exemplo, do mesmo modo que se pode utilizar o método indutivo, o dedutivo e até o método histórico em questões espíritas, segundo os problemas específicos que porventura estejam em causa. Mas o Espiritismo não é uma técnica de intercâmbio entre vivos e mortos. É uma doutrina que penetra na mais alta ordem de conhecimentos, porque se preocupa com as causas, a justiça divina, a supremacia dos valores espirituais, o destino do ser humano.
Como seria possível conhecer e avaliar o conteúdo doutrinário do Espiritismo sem a leitura de suas fontes básicas? Como alcançar as consequências morais de sua doutrina sem lhe conhecer as premissas fundamentais? Comecemos por dizer, e é noção palmar, que o Espiritismo não criou moral nova, mas adotou a moral cristã, por ser compatível com a índole de sua doutrina, que é doutrina de ação e responsabilidade. Ao invés de anunciar ou instituir sua própria moral, o Espiritismo aponta ao homem, como rumo certo em todas as situações da vida, os ensinos pregados e exemplificados por aquele que foi “o mais completo modelo de moral": Jesus. Nada mais do que isto. E é tudo o que se possa indicar como norma básica de vida. Isto significa que o Espiritismo não se apropriou da moral evangélica, mas trouxe, isto sim, novos elementos de convicção, novos recursos interpretativos. Não houve, portanto, nem poderia haver apropriação porquanto os ensinos do Cristo não foram legados a nenhuma igreja, nenhuma confraria, nenhum povo, pois o Meigo Nazareno pregou indistintamente, dirigindo-se a quem tivesse “ouvidos de ouvir” e “olhos de ver”. Não instituiu herdeiros formais de seus mandamentos. A ninguém, evidentemente, se atribuiu o título de propriedade. Quem seria então o depositário das sentenças do Cristo? Alguma religião formalizada, alguma seita dissidente, algum iluminado taumaturgo?... Nenhuma prova histórica o confirma.
O Espiritismo não se fez dono das máximas do Cristo, mas apenas esclareceu pontos obscuros, dando aos chamados “milagres”, por exemplo, uma versão racional, apoiada na experiência e na lógica. Os fenômenos mediúnicos e os princípios reencarnacionistas desempenham papel inegavelmente relevante na interpretação espírita. Mas o Espiritismo também não criou a doutrina da reencarnação, que é antiquíssima, tem suas raízes no remoto e longínquo Oriente. E por que, neste caso, se introduziu a reencarnação nos ensinos espíritas? Simplesmente porque os espíritos instrutores, em consonância, enunciaram a “lei dos renascimentos” e, ao mesmo tempo, o próprio desdobramento da doutrina por si mesma revela a coerência do princípio reencarnacionista com a noção de uma justiça suprema, que é a justiça divina. A tese da reencarnação ainda nos leva naturalmente, racionalmente, à compreensão de outros aspectos da vida, até então inexplicáveis. Logo, não foi mera opção, não foi o arbítrio de Allan Kardec que incorporou essa tese ao embasamento doutrinário do Espiritismo, mas a explicação reencarnacionista se impôs pelo sentido de concordância das questões propostas e elucidadas.
A reencarnação é um processo de aperfeiçoamento espiritual. A volta do espírito à vida corporal tem um objetivo, não é "ação do acaso", nem "capricho dos céus". A condução das circunstâncias que envolvem esse processo em cada nova etapa de vivência naturalmente varia em função das situações individuais. Cada espírito é um caso, mas a lei é geral. Não há uma experiência reencarnatória sem motivo, ensina o Espiritismo. Tanto pode ser o cumprimento de provas reparadoras, quando se trata de espíritos que reencarnam já comprometidos com delitos, injustiças ou abusos praticados noutras existências, como pode ser a execução de tarefas decorrentes do gênero de vida já previsto nas opções do espírito, pois há espíritos, que tiveram meios e oportunidades, mas passaram pela vida “em brancas nuvens", como disse o poeta, não aproveitaram bem os talentos, de que fala o Evangelho, nada fizeram de útil e, agora, querem voltar à Terra com o propósito de realizar novo tipo de experiência. Também há reencarnações de caráter missionário, é ainda a Doutrina Espírita que no-lo diz, no caso, por exemplo, de espíritos que vêm com a missão de auxiliar o progresso de um grupo, uma comunidade, uma região. E o exemplo de criaturas que levam uma vida apostolar, muitas vezes convivendo com pessoas de nível bem inferior, moral e intelectualmente, mas a missão escolhida exige a submissão ao determinismo das circunstâncias. Outros, no entanto, tendo deixado tarefa inacabada ou mal desempenhada, voltam ao mundo terreno para corrigir ou completar a obra. É o mecanismo da reencarnação em suas generalidades.
O aspecto moral da reencarnação deve merecer sempre uma consideração muito lúcida, justamente porque esse aspecto se reflete na vida familiar, nas relações profissionais, na vida social, enfim. Quem deve, seja onde for, terá que pagar, cedo ou tarde. É a Lei. A noção de uma única existência não nos daria uma visão real de justiça no tempo e no espaço. A reencarnação não é, portanto, simples questão de crença, mas um princípio lógico, assim nós a entendemos, pois abre à inteligência inquiridora uma perspectiva de justiça muito mais ampla, através de existências diversas. O indivíduo que ilude, digamos, o indivíduo que se compraz em explorar, perseguir, lançando a miséria moral ou material por onde anda, mas consegue enganar a justiça humana por meio de artifícios e farisaísmo de toda espécie, passando até por benemérito no meio em que vive, porque sabe esconder habilmente suas iniquidades, terá que responder, um dia, por tudo isso, não é verdade? Mas quando, onde e como? E se morrer de um enfarte ou cair fulminado de um momento para outro, sem tempo sequer de “pôr a mão na consciência” e reconsiderar seus atos? Onde a verdadeira justiça? Viveu bem, gozou a vida, fez mal a muita gente, escondeu as mazelas morais sob a capa da simulação e, por fim, nada sofreu, uma vez que um "mal súbito” lhe arrancou a vida sem passar pela experiência de uma prova, sem conhecer as amarguras de uma consciência enegrecida pela indignidade encoberta. E a justiça? E a prestação de contas? A ideia de uma única existência deixa o problema no ar, sem resposta. Sem encararmos a situação por este prisma, naturalmente não encontraremos o fio lógico de uma relação de causa e efeito em casos desta natureza, ao passo que, à luz da reencarnação ou da "volta do espírito à vida terrena”, há uma solução racional, pois as existências que se sucedem oferecem oportunidades para que o espírito faltoso do passado reconsidere seu procedimento e repare os males que infligira a seus semelhantes. Novamente na condição humana, voltando ao ambiente onde vivera, seja como branco, seja como preto, é o mesmo espírito, a mesma entidade que vem recomeçar, sofrendo, aprendendo, reabilitando-se e aperfeiçoando- se pelo tempo adiante, pois a lei do progresso é universal. Assim, então, podemos compreender satisfatoriamente o velho princípio: quem faz, aqui ou ali, tem que pagar.
A reencarnação tem realmente um sentido reparador, visto como o retorno do espírito à Terra em novo corpo humano, nunca em corpo animal, pressupõe um fim moral. O processo reencarnatório obedece a um finalismo superior, e se assim não fora, caberia logo uma pergunta: e para que reencarnar, se não há um objetivo? Mas não é o fim de tudo, no entendimento fatalista da escatologia vulgar. Escatologia, na acepção mais correta, é a doutrina do "fim ultimo". Há, entretanto, diversos tipos de escatologia: naturalista, histórica, babilónica, egípcia, grega, medieval, etc. Há também alguns aspectos diferenciativos. Mas o que nos interessa, em relação ao Espiritismo, é o pensamento pelo qual se expressa a tese reencarnacionista: Nascer, morrer, renascer, progredir sempre, tal é a Lei. É uma concepção progressiva, nada tem de limitativa, como se vê. Não seria possível ajustar aí a crença no fim do mundo ou no "dia do juízo final". Quando dissemos, linhas atrás, que a reencarnação tem um fim, mas um fim moral, e o reafirmamos agora, apenas nos referíamos ao alvo da Lei, isto é, ao melhoramento do espírito, mais cedo ou mais tarde reformando-se, adquirindo novos valores, reabilitando-se perante a Justiça Divina. Não se subentende, portanto, a ideia de um fim absoluto, como se houvesse uma baliza definitiva, marcando o ponto terminal da jornada. Justamente por isso, a reencarnação não é uma forma de escatologia religiosa. O retorno à vida corporal, como necessidade lógica de reparação e aperfeiçoamento do espírito, naturalmente nos dá a “chave" de uma série de problemas profundos, esclarecendo sentenças evangélicas, principalmente as que se acham mais obscurecidas pelo entendimento ao pé- da-letra. As aquisições do espírito não têm fim, ensina o Espiritismo. A linguagem humana, por sua vez, não dispõe de meios para exprimir com precisão todas as etapas de ascensão do espírito através dos planos ou mundos de experiências. A reencarnação é, em última análise, o ponto de partida de uma filosofia de vida, já pelo seu enunciado, já pelas suas decorrências.
A ideia reencarnacionista, embora com algumas variantes dentro de certos contextos culturais, segundo referências de antropólogos, sociólogos e historiadores, participa das crenças de vários grupos chamados primitivos, entrosando-se naturalmente com os sistemas religiosos. Não foi, porém, por essa faixa de sobrevivências que a tese reencarnacionista chegou ao pensamento espírita, mas por um ensino coletivo, metodicamente coordenado durante a elaboração da doutrina, como já vimos, na segunda metade do século XIX. Já podemos encerrar o capítulo. Em linhas muito gerais, pusemos em foco o sincretismo religioso no Brasil como fenómeno inerente à participação de estoques originariamente diversificados na formação do país. Nosso intuito, cremos que bem claro desde o começo, é apenas situar o Espiritismo em face do fenômeno religioso, sem desmerecer nenhuma forma de culto, nenhuma crença. Desde que se faça a necessária distinção entre o Espiritismo e as manifestações de animismo e me- diunismo, que já existiam no Brasil, porque vieram no lastro dos elementos formadores, será fácil compreender que não há termos de simbiose, nem mesmo à luz de uma análise sociológica de nosso "caldo de cultura”, como pretendem algumas posições críticas. Os conceitos espíritas não se compatibilizam com ritos de iniciação, "encantamentos”, adoração de imagens, danças ritualísticas e outras expressões características de velhos cultos transplantados para o Brasil e, hoje, amalgamados pela força mesma do tempo e das interações. Logo, o Espiritismo não está nem poderia estar integrado no sincretismo religioso. Vamos terminar com duas observações de Allan Kardec, o Codificador da Doutrina Espírita:
— O estudo de uma doutrina, como a espírita, que nos lança de repente em uma ordem de coisas tão novas e tão grandes, só pode ser feito com proveito por pessoas sérias, perseverantes, isentas de prevenções e animadas de vontade firme e sincera de chegar a um resultado.
— Falsa ideia formaria do Espiritismo quem julgasse que ele tira sua força da prática das manifestações materiais, e que, privando-o dessa prática, poder-se-ia miná-lo pela base. A força do Espiritismo está em sua filosofia, no apelo que dirige à razão e ao bom-senso.
“O Espiritismo e a ciência — diz Allan Kardec — se completam reciprocamente”. A descoberta de um fóssil ou a revisão de um cálculo na órbita de um planeta não modifica o pensamento fundamentai da Doutrina Espírita a respeito da evolução, como lei geral, ou da pluralidade dos planos evolutivos. A doutrina, portanto, não se desatualiza nem fica ultrapassada pelo simples fato de as ciências, em seus respectivos domínios, descobrirem “verdades novas” ou abandonarem posições anteriormente aceitas. Isto quer dizer, em resumo, que o Espiritismo não perdeu a consonância com a vida. Convivendo com as mudanças sociais por mais de um século, participando de um mundo cada vez mais transformado pela tecnologia, a Doutrina Espírita ainda pode demonstrar que seus princípios nucleares continuam sendo inalteravelmente válidos, porque não foram desmentidos nem pela experiência histórica nem pelo aparecimento, até agora, de princípios mais consistentes em relação aos problemas que ela apresenta e discute. Como poderia estar superada uma doutrina que resiste ao tempo e caminha com a evolução em todos os sentidos?
Do mesmo modo, na linha de referências gerais, a Doutrina Espírita faz interferências também na sociologia, tema que já foi objeto de uma série de preleções neste Instituto. Bastaria lembrar a III parte de O Livro dos Espíritos, nesta sequência de Leis: “Trabalho", "Progresso”, “Liberdade”, “Igualdade". Ninguém evidentemente iria procurar na Doutrina Espírita um tratado de sociologia, com termos técnicos, etc. Não. O interessado nesta província da cultura teria que bater noutra porta... Nem tampouco seria razoável “enquadrar” a Doutrina Espírita na metodologia das ciências sociais. Nada disto. Mas existem problemas de sociologia na Doutrina Espírita, não há dúvida alguma, pois o Espiritismo não cogita somente dos “mortos”, mas também da vida em sociedade. (Este assunto já foi explanado em cursos iniciais do Instituto e está mais ou menos desenvolvido no I vol. dos “Anais”, 1958/59).
Que tem, afinal, o Espiritismo que ver com a sociologia? O espírito reencarnado precisa de convivência, pois a vida social lhe é absolutamente indispensável. O espírito não pode realizar suas etapas progressivas fora da sociedade humana, pois deve integrar-se necessariamente em grupos familiares, profissionais, recreativos, científicos, empresariais, religiosos, etc., etc. A doutrina considera a experiência espiritual em duas faixas: humana e extra-humana. Enquanto na Terra, que é uma escola, o espírito é uma criatura do mundo e, portanto, sofre a influência do meio social. Embora já se saiba que, principalmente depois da II Guerra, as ciências deste ramo (sociologia, antropologia, psicologia social, etc.) se desenvolveram muito, alargando suas perspectivas com aplicações até então imprevistas, o que a Doutrina Espírita indica, para a vida social, os problemas que ela coloca em pauta de estudo e discussão não perderam a razão de ser, mas até, pelo contrário, são problemas da atualidade. As mudanças e aquisições científicas não alteram o que é realmente essencial e, não, circunstanciai no corpo da doutrina. Passemos, agora, a outra ordem de considerações ainda a propósito da posição do Espírito na atualidade.
O caráter da Doutrina Espírita já está bem definido por Allan Kardec, quando diz que a doutrina participa, ao mesmo tempo, da revelação divina e da revelação científica. (A Gênese — cap. I, n.º 13). Justamente por isso, não pode dissociar o lado extraterreno e o lado humano. Devido a esse caráter, que lhe dá uma feição diferente de qualquer doutrina, o Espiritismo é um corpo que não pode ser desmembrado. Nele se configuram, em sequência lógica, três ordens de questões: as provas experimentais, que são do domínio da ciência; as causas que são inerentes à filosofia; as consequências, que são aplicações. A estrutura da doutrina está de tal forma constituída que nenhum de seus aspectos teria sentido sem vinculação aos outros aspectos.
Se quiséssemos, digamos, fazer do Espiritismo apenas um domínio de ciência experimental, desprezando a parte filosófica e as consequências que dela decorrem, naturalmente ficaríamos dentro de um campo limitado. Voltaríamos à metapsíquica, sem uma solução filosófica. Fenômeno, fenômeno, fenômeno... E, daí?... Esses fenômenos, depois de certo tempo, passariam ao lugar-comum sem um objetivo superior. O fenômeno pede naturalmente a explicação do porquê, a causa eficiente, sem o que a fenomenologia mediúnica teria o mesmo valor das experiências usuais nos laboratórios. E o problema espiritual, que é o escopo de toda a intencionalidade do plano invisível? Então, a doutrina tem, forçosamente, de incorporar o aspecto filosófico. A indagação pura das causas é conhecimento superior, mas é preciso que tenha consequências na vida. E o lado ético, inseparável do Espiritismo. As consequências se fazem sentir em vários ângulos da experiência humana: na vida social, nas atividades culturais, na religião, no emprego dos bens materiais, no exercício das profissões, na política, e assim por diante.
Devemos evitar necessariamente que se forme uma ideia defeituosa a respeito do Espiritismo, vendo no corpo da doutrina uma “combinação” arbitrária ou despropositada de aspectos que deveriam estar separados. Não. O que há, na realidade, é um encadeamento lógico, não é uma junção de “coisas incompatíveis. Não se pode aplicar à organização do Espiritismo, por analogia, a situação histórica de algumas ciências, que, com o tempo, e por necessidade, se tornaram autônomas, desligando-se de suas matrizes. A medicina, nos primórdios, como se sabe, tinha inspiração religiosa. Os sacerdotes foram pioneiros na “arte de curar”. Antes do anfiteatro e do laboratório, a medicina pertencia ao templo; antes da dissecação, que se experimentou muito depois, e não sem oposição forte, a medicina foi mais sacerdotal do que científica. A farmacopeia dos jesuítas nos primeiros tempos do povoamento do Brasil, no século XVI, teve uso notório nos aldeamentos indígenas. No começo, inevitavelmente, a medicina empírica teria de ter um pouco de “beberagens, benze- duras e rezas". A religião estava presente. Por força da evolução e dos fatos novos, a medicina separou- se da religião.
Também a ciência jurídica já sofreu influência religiosa em tempos recuados da História. A Justiça esperava sempre “as vozes dos deuses”. E, por isso mesmo, um tratadista de direito romano chegava a dizer que, naqueles tempos, “as regras jurídicas eram mandamentos religiosos”, tão estreitas eram as relações entre o direito e a religião. Os primitivos juristas romanos separavam, no entanto, dois campos: o “direito divino" e o direito comum ou vulgarmente chamado “profano". Mas houve realmente entrosamento entre norma jurídica e norma religiosa. Com o próprio desenvolvimento da cultura e as necessidades sociais, os campos do pensamento vão definindo suas fronteiras, separando o temporal e o espiritual.
A separação entre o direito e a moral também marcou posições no séc. XVIII. Os romanos, que não eram tão especulativos como os gregos, não se empenhavam nesta discussão. As normas jurídicas comandam as ações exteriores. Nem todos se conformam com a distinção polêmica entre a moral e o direito, mas a referência a este ponto, embora de passagem, é ilustração oportuna.
A psicologia, no começo, também não era autônoma. Durante muito tempo ficou “racionalizada” na filosofia; também na classificação do Positivismo, como simples departamento da biologia. Sem ser necessário voltar ao período aristotélico-tomista da psicologia, quando era definida largamente como “ciência das coisas animadas", podendo abranger até o estudo das plantas (?...), verdade é que a psicologia, com Descartes, foi mais subjetivista, porque voltada em tudo por tudo para a vida consciente, a “alma pensante“, segundo a nomenclatura da época. O associacionismo foi a bem dizer a transição da psicologia racionalísta para a psicologia propriamente científica, em termos modernos, no séc. XVIII e até certo ponto no séc. XIX. Vem depois, já na segunda metade do século passado, o primeiro laboratório de psicologia experimental. Queremos dizer com isto que a psicologia se desmembrou gradativamente de sistemas e concepções antigas e, hoje, é uma ciência como as outras, com seus termos próprios, métodos, etc.
Não se pode, entretanto, fazer comparações com O Espiritismo, isto é, não se pode aplicar a mesma sequência histórica da psicologia ou de outra disciplina autônoma, porque há diferença de objeto e de fins. O Espiritismo tem por objeto um tipo de fenômeno que escapa ao esquema da psicologia, como da biologia, etc. O fenômeno mediúnico é de natureza espiritual, não se subordina â vontade humana. Se é um fenômeno de procedência extra-humana e de natureza espiritual, não pode deixar de suscitar indagações filosóficas quanto à causa e aos fins das comunicações dos espíritos. O intercâmbio com o mundo espiritual tem outros fins que não os das ciências humanas. Qual o fim principal das comunicações? Revelar a realidade da vida para além do túmulo. E há outros fins subsequentes: a espiritualização do homem, o aperfeiçoamento moral, a reabilitação do médium, se é um elemento faltoso ou comprometido com um passado negligente ou delituoso. O fenômeno mediúnico, que é o objeto do Espiritismo, obedece a leis que fogem ao “controle" dos instrumentos materiais. Se é um fenômeno de natureza diferente, regido por leis inerentes a outro plano, embora não sejam leis imaginárias; se as relações entre "vivos" e “mortos" estão sujeitas, em todos os casos, a princípios de ordem moral, embora nem todos levem em conta este aspecto, mas o Espiritismo dá muito relevo ao fator moral, que é decisivo, naturalmente há implicações filosóficas. A visão do mundo espiritual através da fenomenologia de “além túmulo" induz a inteligência indagadora a questões mais sutis e elevadas, segundo as inclinações pessoais. São inevitáveis, a esta altura, as preocupações com o destino, a vida futura, etc. É uma decorrência lógica. E tudo isso, afinal-de-con- tas, não nos leva a questões de ordem filosófica e religiosa pela sequência mesma do raciocínio inquiridor? Forçosamente. Como falar em vida futura, em destino da vida sem pensar em Deus, como “causa primária de todas as coisas"? E tudo isso não é consequência do ponto de partida - a sobrevivência do espírito — revelada pelas comunicações? Justamente por isso, o corpo da doutrina constitui uma sequência de princípios em que se conjugam questões filosóficas com repercussões na esfera da religião, da moral, da vida social e assim por diante. Cada qual, evidentemente, optará por este ou aquele ângulo, que lhe seja mais preferido, mas a doutrina é um todo, é uma construção íntegra.
Não é possível, pois, separar o fenômeno, formando uma ciência espírita à parte, e criar uma filosofia espírita somente com a doutrina. Há uma conexão geral. As escolas de metapsíquica tentaram reduzir o fenômeno mediúnico a uma disciplina experimental sem qualquer posição filosófica, sem a menor interferência no problema da existência de Deus, por exemplo. Que fizeram até hoje? A experiência pura, sem o sentido de um finalismo mais elevado, pode cair na saturação, na rotina, sem qualquer influência ponderável na transformação do homem. O Espiritismo não pode, é obvio, ser “enquadrado" nesta esquematização. Não há discrepância, portanto, no fato de haver aspectos diversos na constituição da Doutrina Espírita. Não podemos violentar o caráter da doutrina. Não nos esqueçamos de que o Espiritismo participa, ao mesmo tempo, da revelação humana e da revelação divina, como disse Allan Kardec (A Gênese, cap. I). Mas o Espiritismo não é um fenômeno histórico, é uma intervenção do mundo espiritual. Não é “fenômeno histórico", porque não é fruto de uma sociedade ou de uma época, não está sujeito a contingências temporais. E verdade que o mundo espiritual acompanha a marcha da História e as transições sociais, mas não se subordina aos condicionamentos terrenos. Logo, a estrutura da doutrina é coerente em si mesma, não pode ser desmembrada.
Dentro de nosso plano de trabalho, uma vez que falamos sobre o caráter da doutrina, devemos fazer referência ao que diz respeito à parte externa. Temos, aí, o problema do culto e do ritual. Já se disse e se repete a cada passo que o Espiritismo não tem ritual. E é certo. Não tem, porque não é necessário e não condiz com a natureza da doutrina. Em lugar de ritual, talvez fosse melhor falar em culto material. A palavra ritual, por uma questão de semântica, pode admitir mais de um sentido. Pode ser tomada no sentido de hábito ou de formalismo, por exemplo. Em casa, nos hábitos domésticos, todos têm, quase sempre, a hora certa para isto ou aquilo, o lugar certo de fazer leituras, o ponto certo onde repousar aos domingos, e tudo isso, com o tempo, se torna uma rotina. Figuradamente, pode ser chamado de ritual caseiro. A maneira de sentar à mesa, sempre a mesma cadeira de cabeceira, a compostura que se toma às refeições e outros hábitos formam ritual, em linguagem mais genérica. As academias e corporações científicas têm suas cerimônias, suas fórmulas e formas protocolares. E o que se chama ritual acadêmico. Por extensão, portanto, o ritual tanto pode estar nas configurações religiosas, como em determinados atos culturais e sociais.
Quando se diz, no entanto, que o Espiritismo não tem ritual, e é verdade, isto significa liturgia, imitação do Catolicismo e de outros cultos formalizados: vestimenta própria, símbolos, imagens, prédicas sacramentais, etc. Aqui, neste caso, a ideia de ritual está na acepção específica, o que não caberia, portanto, nas práticas espíritas. No sentido amplo, lato senso como se diz, o fato de começarmos e encerrarmos nossas sessões com preces, ainda que sem “regras iitúrgicas“, pode ser visto como ritual, isto é, uma prática que já está incorporada ao procedimento normal nas reuniões espíritas. Mas é preciso observar que não se prescreve qualquer forma de prece no Espiritismo nem se estabelece postura física para orar: sentado ou de pé, o valor da prece está no sentimento, ensina a doutrina. Não há semelhança com o ritual organizado. O fato de uma sociedade espírita adotar a prece desta ou daquela maneira não quer dizer que a prece esteja ritualiza- da, pois tanto faz ficar de pé ou continuar sentado, o essencial é que o ato seja sincero em sã consciência. O problema é de hábito ou disciplina interna de cada Centro; mas não é uma instituição doutrinária, não é um ritual. Embora o modo de orar possa variar, internamente, o que se ensina, em todas as casas espíritas, e é o pensamento da doutrina, é que o valor da prece está no sentimento, sua força está na vibração do pensamento, pondo-nos em contato com o mundo espiritual.
Respeitamos e devemos respeitar os cultos que adotam rituais, pois todas as formas religiosas merecem consideração, mas não podemos justificar a introdução de ritual nas práticas espíritas, pois seria uma discrepância perante a doutrina. Claro que, havendo várias formas de adoração, nem todos estão em condições de adorar sem objetos materiais. Temos obrigação de compreender este fenômeno psicológico. Ha pessoas que ainda necessitam do ritual. A evolução, principalmente neste domínio de foro íntimo, não se faz por "saltos” nem a jato. O ritual ainda tem cabimento em determinados estágios sócio-culturais enquanto não há uma compreensão completamente desvinculada de compromissos, muitas vezes ainda presos a outra existência.
O Espiritismo não veio combater, não veio destituir, mas veio superar muita coisa pela renovação de ideias, de costumes, de hábitos mentais. Quem chega ao Espiritismo, depois de outras experiências, quem penetra no pensamento da doutrina sabe muito bem que a adoração verdadeira é a do coração. (“O Livro dos Espíritos", questão n.º 653). A mensagem do Espiritismo traz o esclarecimento do espírito; e, à proporção que o espírito enriquece, também alarga sua visão do mundo e das coisas e, por isso mesmo, vai deixando o culto material, que é puramente exterior, e procurando integrar-se naturalmente nos valores espirituais. Isto não se realiza por imposição nem por medo, mas pela compreensão, gradativamente. O que não é possível é justificar um “ritual espírita”, simplesmente porque muita gente ainda necessita de “certas coisas". Ficaríamos no círculo vicioso. O Espiritismo veio trazer e fazer mais do que já existia. Se o Espiritismo tivesse vindo para se acomodar a tudo quanto se faz; se tivesse aceito todas as ideias, todas as concepções que encontrou na Terra, naturalmente o ensino dos espíritos não teria razão de ser. Seria o caso de perguntar: afinal, a que veio o Espiritismo? Veio esclarecer, veio renovar, ou veio apenas para deixar tudo como está? Qual seria, neste caso, o objetivo da doutrina? Não, p Espiritismo é renovador.
E verdade que, à luz de uma visão mais ampla, nosso “caldo de cultura“ apresenta uma confluência de elementos muito heterogêneos, oriundos de fontes diversas. Em nosso lastro de experiências históricas entraram contingentes do Catolicismo, do fetihismo, como do judaísmo, etc. etc. Dentro deste quadro, naturalmente as ideias espíritas teriam de se defrontar, muitas vezes, com as sobrevivências de velhas crenças remanescentes. Fenômeno sociológico inevitável, e que também ocorre noutros países. Isto não quer dizer, entretanto, que a Doutrina Espírita se tenha desfigurado. A doutrina em si é sempre a mesma em qualquer parte onde penetre, mas o movimento espírita, que é conduzido pelo elemento humano, está sujeito a influências do ambiente. Ê o que ocorre no Brasil, onde as práticas espíritas apresentam reações e tendências ainda vinculadas à formação religiosa do povo, desde cedo, desde os chamados “albores da nacionalidade“, envolvido na tessitura de um aglomerado de crenças, ritos e concepções muito diversificado em suas fontes. O Espiritismo enfrentou e ainda enfrenta uma realidade social com características próprias. E o movimento espírita - diga-se de passagem - não pode evitar as peculiaridades de, cada país ou região, pelo menos até certo ponto. É um movimento humano, participa de uma sociedade e, por isso mesmo, não pode fugir, em tudo por tudo, aos padrões dessa sociedade, a não ser que se imagine uma comunidade espírita integralmente à parte, o que seria de todo impossível na Terra.
Compreendemos, portanto, a realidade social e religiosa em que vivemos. 0 fato de compreendermos o fenômeno religioso do Brasil, por mais frisante ou notórias que sejam certas influências ponderáveis no meio brasileiro, não nos autoriza a forçar a adaptação do Espiritismo a certas práticas religiosas. Isto significa que não é necessário ritualizar o Espiritismo, de nenhum modo (!), a fim de que suas ideias possam penetrar em todos os ambientes. Se a Doutrina Espírita não instituiu culto material, não criou seita nem religião formalizada, embora tenha "consequências religiosas”, como disse o Codificador, cabe aos próprios espíritas a preservação do caráter da doutrina em sua expressão autêntica. Um dos objetivos da doutrina é justamente esclarecer a inteligência, iluminar o espírito a fim de que se desprenda, naturalmente, conscientemente, do culto material, do culto exterior, passando à verdadeira adoração, que é a do espírito. E se assim não fosse, que papel viria desempenhar o Espiritismo no mundo? Onde estaria o sentido progressivo, se o Espiritismo se "enquadrasse” na rotina, nos hábitos, nas tradições que já existiam?... A doutrina veio exatamente ensinar a adoração íntima e, não, a adoração formal. Justamente por isso, e para encerrar esta parte de nossa explanação, devemos entender a palavra culto em duas acepções:
CULTO
externo (objetivo): prática religiosa, cerimonial, formas de adoração.
interno (subjetivo): adoração de consciência, sentimento de submissão, sem medo nem interesses humanos.
Sem culto material, sem adoração exterior, portanto, a Doutrina Espírita educa o homem, dá-lhe novos elementos de convicção, sem imposições nem exigências, a fim de que, pela compreensão, pelo conhecimento, pela renovação íntima, se volte cada vez mais, e conscientemente, para a origem última da vida e das coisas: DEUS. (Ext. do III vol. dos Anais do Instituto de Cultura Espírita do Brasil - Rio de Janeiro).
OBRAS ESPÍRITAS E OUTRAS
— Allan Kardec.
O Livro dos Espíritos
“Adoração Exterior" — “Vida Contemplativa” (questões n.º 649 a 655 e 657); “A Força do Espiritismo está em sua Filosofia” (Conclusão, seção VI); “Pactos, Talismãs, Palavra Sacramental” (questões n.º 549 e 551 a 554); “Cristo e a Moral — O Espiritismo e a Moral Cristã” (questões n.º 625 a 628 — Conclusão, seção VIII).
O Evangelho Segundo o Espiritismo
“O Espiritismo está fora de todos os Cultos" (Introd.) — “A Doutrina Espirita e a Moral Cristã" (Introd. — Cap. XV, n.º 10); “Cerimônias e Atos Extravagantes" (Cap. XXI, n.º 10).
O Livro dos Médiuns
“Exibições mediúnicas. Práticas contrárias ao caráter da Doutrina” (Cap. XXVIII, n.º 308) — “Fórmulas e objetos materiais" (Cap. XVII, n.º 203 — Cap. XXV, n.º 17).
O Céu e o Inferno
"Superstição" (Cap. X, n.º 1) — “Não há relação com a Magia" (Cap. 10, n.º 11).
A Gênese
“Espiritismo e Magia" (Cap. I, n.º 19) — “Ensinos do Cristo” (Cap. I, n.º 30/56) — “Os milagres e o sobrenatural” (Cap. XIII, n.º 4-10-14).
O que é o Espiritismo
“O Espiritismo é ciência de observação, não é adivinhação" (Segundo Diálogo — Feitiçaria, no mesmo diálogo). “Uso de imagens" (Ver diálogo com um padre).
Revista Espírita (EDICEL - S. Paulo)
(Trad. de Júlio Abreu Filho)
Vol. de setembro de 1858: esclarecimento de Allan Kardec, a um consulente, a respeito de “medalha cabalística” e talismã, objetos que não têm significação alguma para os espíritos. Vol. de março de 1865: declaração de Allan Kardec (“caso Hilaire”), dizendo textualmente que "o Espiritismo não está apenas na crença na manifestação dos espíritos".
•
— Léon Denis:
Cristianismo e Espiritismo (Ed. da FEB) (Seção VII): “Os dogmas, os sacramentos, o culto".
— D. A morim
Africanismo e Espiritismo (Edições “Mundo Espírita") Anais do Instituto de Cultura Espírita do Brasil - II vol. (Resumo de uma série de palestras sobre a Doutrina Espírita).
— Léon Denis — Après la Mort (Liv. “Sciences Psychiques") - Paris.
— Gabriel Delanne — A Reencarnação — Tradução de C. Imbassahy (Ed. da Federação Espírita Brasileira).
— Carlos imbassahy e Mário Cavalcanti de Melo — (A Reencarnação e suas Provas) Ed. da Federação Espírita do Paraná.
— Mário Cavalcanti de Melo — Como os Teólogos Refutam (Tréplica à réplica do livro “Reencarnação, Exposição e Crítica”, de Frei Boaventura Kloppenburg, ao livro “A Reencarnação e suas Provas" - (Ed. da Federação Espírita do Paraná).
— Georges Gonzalès - Le Problème de la Des- tinée (Ed. “Difusion Seientifique") - Paris. (Cap. IV) - “Karma e Destino".
— Alfredo Miguel - A Tese das Vidas Múltiplas — Bahia.
— lan Stevenson, M.D. — 20 Casos Sugestivos de Reencarnação (EDICEL - S. Paulo). Tradução de Agenor Pegado e Sylvia Melle Pereira da Silva. Supervisão de Hernani Guimarães Andrade, Diretor do Departamento Científico do Instituto Brasileiro de Pesquisas Psicobiofísicas - S. Paulo, 1971. Publicação original nos Estados Unidos. (O Prof. Stevenson é Diretor do Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Universidade de Virgínia, E. Unidos, fez estudos in loco na Índia e já esteve no Brasil).
N O T A :
Como fontes básicas do Espiritismo, as obras da Codificação de Allan Kardec sustentam a tese da reencarnação e suas consequências individuais e sociais.
II - LEITURAS ANTROPOLÓGICAS
- Robert Lowie - Historia de la Etnologia - (Fundo de Cultura - México).
Estevam Pinto - Os Indígenas do Nordeste - (Ed. Brasiliana).
Manuel Querino - Costumes africanos no Bra sil.
Artur Ramos - Estudos de Folclore (Ed. CEB).
Artur Ramos As Culturas Negras no Novo Mundo (Ed. Divulgação Científica).
Artur Ramos - O Negro Brasileiro (Ed. Div. Científica).
Waldemar Valente - Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro - “Brasiliana”
Gonçalves Fernandes - Xangôs do Nordeste (Divulg. Científica).
Ralph Linton - O Homem (Trad., de Lavínia Vilela - "Martins Editora" - SP.).
Carleton S. Coon - A História do Homem - (Trad., de Milton Amado - Ed. “Itatiaia”).
Manuel Diégues Júnior - Etnias e Culturas no Brasil.
Manuel Diégues Júnior - Regiões Culturais do Brasil - (Ed. do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais) - (Cap. 7 - Seção “Tradições, transformações e classes sociais - sincretismo católico - indígena na Amazônia).
Edison Carneiro - Os caboclos de Aruanda (Artigo) - “Revista do Livro" n.º 19 de set. 960.
III - OBRAS DIVERSAS
Lufs da Câmara Cascudo - Dicionário do Folclore Brasileiro - (Instituto Nacional do Livro).
Pe. Serafim da Silva Neto - Ensaios de Filologia Portuguesa - (Ed. da Cia. Editora Nacional).
Silveira Bueno - Tratado de Semântica Geral - (Ed. Saraiva - SP.).
Cândido Procópio Ferreira de Camargo - Kardecismo e Umbanda - (Ed. da Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais - SP.).
Alfredo d’Alcântara - Umbanda em Julgamento.
Hubert Deschamps - Les Religions de l'Afrique Noire (Presses Universitaires) - Paris.
- Erwin I. J. Rosenthal - Judaism and Islam (Popular Jewish Library).
- Jérome-Antone Rony - La Magie (Presses Universitaires) - Paris.
- Roger Bastide - Éléments de Sociologie Religieuse (Col. Armand Colin - Paris).
- Roger Bastide - Sociologia do Folclore Brasileiro - (Ed. “Anhambi” - SP.).
- Heli Sampaio - Sentido e Atualidade do Cristo - (Edições “Convergências" - Bahia).
- Anita Novinsky - Cristãos Novos na Bahia - (Universidade de S. Paulo - Ed. “Perspectiva").
Elaborado por Sérgio Biagi Gregório em fevereiro de 2021.
[1] A palavra Cabala (Kabala) significa simplesmente "doutrina recebida”. Mais tarde, porém, dizem os entendidos, passou a significar a tradição oculta dos hebreus. É na Cabala, portanto, que se contém a sabedoria que não pode ser revelada aos profanos, e por isso, as suas formas de comunicação exigem conhecimentos iniciáticos. Por um fenômeno semântico, que modifica ou substitui o verdadeiro sentido de certas palavras pelo uso popular, o vocábulo Cabala também já é empregado com a ideia vulgar de "arranjos” ou "combinações políticas”. Usa-se, até, o verbo cabalar quando se diz, por exemplo, que alguém está "cabalando” votos para terceiros... Não é apenas no velho Direito Consuetudinário que o uso tem força de lei ou consagra normas; também nos fatos linguísticos, muitos abusos se transformam em usos e, por fim, terminam sendo lei, à força de tanto se repetirem.
Segundo indicações ocultistas, Cabala é o conjunto dos ensinos secretos que Enock transmitiu ao patriarca Abraão. É o resumo das interpretações secretas dos judeus. Esses ensinos teriam sido escritos pelos "primeiros sábios do mundo”, e formaram, então, um livro chamado Cabala, isto é, o que se transmite, a tradição que se conserva pelos tempos.
Pela versão ocultista, que não é, aliás, inteiramente confirmada por outras versões, perduram nas conjecturas históricas três suposições relativas à autoria da Cabala; para os hebreus, cabe a Enock a paternidade; para os egípcios, Hermes Trimegisto, enquanto para os gregos a primazia é de Cadmo. Subsistem dúvidas sobre a verdadeira origem da Cabala.
[2] Parece-nos oportuno lembrar, aqui, um ponto interessante: empregamos as expressões religiões teístas e religiões cristãs justamente porque existem religiões que, embora sejam teístas, não adotam o Cristianismo. O
Judaísmo, por exemplo, do qual saiu o Cristianismo. Pode parecer também uma redundância, à primeira vista, falar em religiões teístas, uma vez que a ideia de religião pressupõe naturalmente a ideia de Deus. Religião teísta seria, por isso, uma expressão pleonástica. Acontece, porém, que existe religião sem a crença em Deus. O fato mais típico é a "Religião da Humanidade" (Culto positivista), no qual se inscrevem belos princípios morais, mas a verdade é que se não cogita de problemas teológicos.
[3] — No discurso pronunciado em Lyon, sua cidade natal, no dia 19 de setembro de 1860, Kardec insistiu em dizer que os verdadeiros espíritas são aqueles que, não se contentando em admirar a moral cristã, procuram praticá-la, e aceitar-lhe as consequências; e assim concluiu uma parte de seu discurso de agradecimento à homenagem dos espíritas locais: são esses os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos. Com esta conclusão, Kardec esclareceu mais uma vez que a moral do espírita é a moral do Evangelho. (O discurso a que nos referimos está incluído no livro Principiante Espírita, edição da Federação Espírita Brasileira, no qual se contém a biografia de Allan Kardec, de autoria de Henri Sausse. Existe, também, uma edição argentina da Biografia de Allan Kardec, de Henri Sausse, com prefácio de Gabriel Delanne, publicada pela "Editorial Victor Hugo", de Buenos Aires).
[4] Embora os nossos confrades de doutrina já saibam qual o conceito de animismo para o Espiritismo, convém que este ponto fique bem esclarecido, em poucas palavras, para evitar dificuldades aos leitores que, estando habituados a outros estudos, tendo outra noção do que seja animismo, desconheçam a terminologia espírita. O termo animismo, genericamente, é usado para designar a crença de que todos os seres da natureza têm alma. TAYLOR (Edward), antropólogo inglês, formou a "teoria animista", cujos conceitos são muito citados e discutidos em trabalhos diversos. O padre Guilherme SCHMIDT, por exemplo, discute muito o problema do animismo na História das Religiões, assunto em que é autoridade mundialmente conhecida, embora a sua orientação, filiada à escola histórico-cultural, não esteja imune de críticas. Com estas breves informações, para eventuais leitores não espíritas, queremos apenas dizer que o conceito espírita de animismo não é o mesmo conceito dos antropólogos, sociólogos e estudiosos do fenômeno religioso. Animismo, em termos de Espiritismo, significa, estritamente, uma categoria de fenômenos psíquicos, produzidos pelo espírito do próprio médium. Usamos o termo animismo para distinguir o fenômeno de origem extra-humana ou "do outro mundo", segundo a linguagem popular, e o fenômeno que, nos estados psíquicos especiais, pode ser produzido pelo espírito do médium, fora das possibilidades normais. Nem por isso o animismo é destituído de importância, pois Ernesto Bozzano, um dos maiores estudiosos deste assunto até hoje, chega a dizer que “o animismo explica o Espiritismo”. Fique, pois, entendido que o animismo é um capítulo do Espiritismo, mas o termo é empregado com já vimos, com significação especial e, portanto, muito diferente da acepção comum. Existe na literatura espírita, uma bibliografia especializada sobre os fenômenos de animismo. Como obra considerada clássica (esta indicação não é para os estudiosos do Espiritismo) não podemos deixar de fazer referências ao trabalho de Alexander AKSAKOF, intitulado Animismo e Espiritismo. Todavia, o estudo mais' amplo e mais completo sobre o assunto é o de Ernesto BOZZANO, sob o título o Animismo ou Espiritismo? Já pelo plano da obra, que é, aliás, mais nova do que a de Aksakof, já por ser mais explícita quanto às relações do animismo com o Espiritismo, o trabalho de Bozzano é absolutamente indispensável àqueles que desejarem estudar o problema do animismo, segundo a terminologia espírita.
[5] A Umbanda esotérica e iniciática, muito diferente dos ritos que se observam, atualmente, em grande parte dos terreiros, também bebeu nas velhas fontes do Ocultismo. Como escola ocultista, a Umbanda tem um conteúdo espiritualista muito mais antigo do que parece. Ainda assim, se quiséssemos considerá-la exclusivamente sob o ponto de vista esotérico, não seria cabível qualquer tentativa de fazer equiparação entre a Umbanda e o Espiritismo, porque as origens, as organizações e as práticas são diferentes.
[6] — Convém lembrar que os norte-americanos, assim como os ingleses, holandeses, noruegueses, australianos, etc., não usam a palavra Espiritismo, mas Espiritualismo e Moderno Espiritualismo.
[7] A Metapsíquica é uma disciplina científica, fundada pelo Prof. Charles Richet, no começo deste século. Divide-se em duas grandes partes: metapsíquica objetiva e metapsíquica subjetiva. Richet fizera experiências diretas, verificou o fenômeno, aceitou os fatos, portanto, mas preferiu não afirmar a ação de espíritos, tendo deixado, assim, uma interrogação acerca da verdadeira causa dos fenômenos: é espírito? E alguma força desconhecida? E o psiquismo humano?... O metapsiquista tanto pode ser materialista, como espírita. Atendo-se exclusivamente aos fenômenos, sem deduzir consequências filosóficas, pode atribuir a esses fenômenos uma causa puramente material e, assim, ficar com a tese materialista, que não nega os fatos objetivos, mas não admite que esses fatos sejam produzidos por espíritos; se, no entanto, o metapsiquista concorda em admitir a intervenção do espirito na produção dos fenômenos, forçosamente se inclina para a tese espírita. O fenômeno é o mesmo, mas as interpretações são diferentes. Outras escolas modernas também estudam esses fenômenos: a Parapsicologia e a Meta psicologia, por exemplo. O Professor J. Rhine, no Departamento de Parapsicologia, na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, já chegou a conclusões muito valiosas, mas a sua corrente de pensamento, que formou escola em diversos países, ainda muito reduzida ao meio universitário, não esposa, ao que se sabe, as definições espíritas.