Estou há cinco minutos olhando para o papel meio amassado na minha mão contendo meu quadro de horários e as salas enquanto uma multidão de alunos passam apressados por mim em todas as direções no corredor.
Já estou no quinto semestre, mas achar as salas certas entre os diversos prédios do campus ainda era como uma caça ao tesouro para mim. Preciso de mais alguns segundos para me situar e começar a andar em direção a sala da minha primeira aula, acompanhando o fluxo.
Meu celular treme no bolso traseiro da calça jeans e eu o pego. É uma chamada de Rita, minha prima.
— Não, ainda não entrei na sala – informo, ajeitando a bolsa no ombro e pressionando o celular contra a orelha – Ainda não tenho informações sobre futuros pretendentes amorosos para você.
— Você não tem noção do maior babado que acabaram de me informar – ela diz de um modo muito rápido e animado, ignorando o que eu havia falado.
— Ok, estou escutando.
— Santo praticamente destruiu uma vez das casas dos Batistas nas férias – Rita segue o modo ligado no 220 e fala tão rápido que eu quase não entendo.
Meus pés travam no corredor e tenho certeza que escuto alguns alunos me xingando. Não me importo.
— O Batista? – pergunto tentando não deixar o nervosismo transparecer na minha voz.
Olho para o papel em minhas mãos com o número exato da sala e percebo que estou quase tremendo de nervoso. Rita bufa do outro lado da linha.
— É, América. Por acaso você conhece outro Santo? – ela está impaciente.
— Existem muitos Santo's registrados por aí – desconverso.
Rita solta um ruído meio indignado e resmunga alguma coisa sobre eu ser impossível.
— América, isso é sério!
— Ok, mas o que eu tenho a ver com isso? – rebato. Sinto meu coração batendo na boca.
— Toda a cidade já está sabendo. Esse pequeno incidente pode atrapalhar muito na campanha do Batista-pai o que, automaticamente, beneficia o seu pai. Compreendeu agora? – ela me explica como se eu estivesse aprendendo o ABC.
Respiro um pouco aliviada. Ela não sabia de nada, apenas estava dando uma de agente secreta na campanha política do meu pai.
Rita, mesmo sendo minha prima por parte da minha mãe, gostava de toda dramaticidade e disputa dos Machado, por isso era tão devota a nossa família.
— Compreendi – me limito a dizer, olhando os números acima das portas. O batimento cardíaco voltando a se normalizar.
Ela não sabe de nada.
— Eu deveria fazer uma matéria sobre isso para o jornal – não sei se ela está falando comigo ou consigo mesma, por isso não respondo. Ela continua: — Preciso marcar uma entrevista com ele.
— Pera aí, o Batista está na cidade? — minha voz sai um pouco mais alta do que eu esperava.
— Depois do que aconteceu o pai dele nem o deixou sair daqui.
Quando Santo Batista anunciou para toda a população que tiraria um ano sabático para viajar pelo mundo e trancou a faculdade, eu achei que iria me livrar dele para sempre. Com sorte, ele iria cometer um crime em algum país e ficaria preso por lá a vida toda, mas não foi exatamente assim que as coisas aconteceram.
— Preciso ir, tenho que entregar um artigo na edição antes que o Jonas me mate – ela informa – No almoço quero uma lista completa dos garotos bonitos da sua sala.
Ela desliga antes mesmo que eu responda e eu coloco o celular de volta no bolso traseiro da calça no instante que paro em frente à sala 27. Olho pela janelinha de vidro da porta e percebo que a sala ainda não está lotada. Sigo entre as fileiras de alunos até a última, onde Lana e Raíssa já estavam sentadas esperando pela aula de Filosofia, obrigatória para todos os cursos.
Raíssa tagarelava sem parar sobre sair escondido para a casa de um garoto da vizinhança de madrugada e eu ficava me perguntando como os pais delas ainda não haviam descoberto, nós morávamos em uma cidade tão pequena que todas as fofocas corriam rápido, mas de alguma forma Raíssa nunca fora descoberta. Ela era uma garota esperta demais e Lana estava sempre cobrindo seus passos, por mais que na maior parte do tempo fossem só loucuras. E eu só a aturava porque ela era irmã da Lana e Lana era minha melhor amiga desde a infância.
As coisas pioraram quando Santo Batista, para a minha infelicidade, entrou na sala e recebeu toda a atenção para si, como sempre acontecia. Ele caminhava com confiança, o peito estufado e não parecia nem um pouco intimidado pelas cabeças que viravam enquanto ele passava.
A blusa preta que vestia estava com as mangas arregaçadas até um pouco abaixo do cotovelo, mostrando as tatuagens estampadas na pele e ele apontava a mais nova que tinha feito para um dos seus amigos. Uma caveira meio macabra no antebraço.
Sentado de forma desleixada há três fileiras de distância, como se fosse o dono do lugar, reparo o quanto mudou em um mês. Os cabelos escuros, antes grandes, agora estavam raspados em um corte militar contrastando com sua barba por fazer, mas ainda eram os mesmos olhos castanhos que flertavam com todas as garotas que passavam.
— Ele é tão gato – Raíssa sussurrou, os olhos grudados nele o medindo de cima a baixo enquanto mordia a ponta de seu lápis de forma nojenta.
Eu revirei os olhos.
Raíssa continuou seus comentários desnecessários sobre a beleza dele e o encarando descaradamente, o secando tanto que até eu estava começando a ficar com vergonha alheia da situação, mas ele parecia nem perceber, e se percebia, não estava ligando. Santo gostava de toda a atenção para ele.
Me afundei na carteira quando a aula começou, sem acreditar que eu teria que olhar para a cara dele de novo.
###
Antes de encontrar as meninas no intervalo, passei na coordenação para deixar meu comprovante de horas extras com a recepcionista, entretanto, quem encontrei na sala de espera não era exatamente quem eu estava procurando.
Sentado em um dos bancos e folheando uma revista de língua estrangeira antiga por puro tédio, Santo parecia estar esperando pela mesma pessoa que eu.
Ótimo.
Eu até poderia dar meia volta e vir em outro horário, mas quando ele ergueu os olhos de modo desafiador me vi tentada a continuar ali. Ir embora só demonstraria que eu fico desconfortável na sua presença e eu nunca daria esse gosto a ele.
Me sentei no banco de espera a sua frente e ele soltou uma risada meia desacreditada.
Nunca precisamos de um motivo concreto para nos odiarmos, era nosso dever repudiar o outro desde que nascemos. Nosso ódio foi passado por osmose pelos nossos pais, eu e Santo sempre soubemos que estávamos em lados diferentes da guerra e por isso sempre implicamos um com o outro.
Ele deixa a revista velha de lado e volta sua atenção completamente para mim, seus olhos escuros me encarando com uma certa intensidade. Um olhar de quem compartilha um segredo. Tento ignorá-lo, mas toda a sua presença é sufocante, mesmo sem falar nada parece que as paredes estão se comprimindo e dificulta a circulação do meu oxigênio. A presença dele parece estar na sala inteira, me obrigando a encará-lo.
— Você ainda está me devendo cem pratas – ele começa, o sorriso debochado começando a tomar forma em seu rosto.
Solto uma risada indignada e aceito participar do seu jogo doentio.
É assim que as coisas funcionam entre a gente.
— Você é ridículo.
Ele dá de ombros, sem se importar com o insulto.
— Eu te ajudei no meio da noite com aquela lata velha e sou ridículo? – ele debocha, fingindo estar afetado – Acabou que eu nem peguei a grana, mas agora eu estou aqui, amor.
Eu preciso de muito autocontrole para não partir para a violência física. Se Santo Batista calado já me irritava, falando me dava vontade de enfiar uma meia suja em sua boca e colocar fita crepe por cima.
Sabia que ele jogaria para sempre na minha cara o fato de ter me ajudado, mesmo sem eu ter pedido por sua ajuda, quando meu carro parou no meio da madrugada nas férias. Não sei porque justo Santo estava passando por lá naquele momento, mas agora ele vai me cobrar esse favor pelo resto da vida.
— O que foi? O papai cortou sua mesada e agora precisa me pedir dinheiro? – debocho, e um novo sorriso surge em seus lábios.
Santo se ajeita no banco sem perder a pose confiante, que é sua marca registrada, enquanto me encara.
— Exatamente, e como você me ajudou a destruir a casa – ele faz uma pausa, me encarando intensamente – Eu acho que é justo.
Travo.
Meu corpo todo entra em alerta e eu olho para os lados para ter certeza de quem ninguém escutou o que ele falou.
— Nunca mais repita isso — eu sussurro em tom de aviso, inclinando o corpo para frente.
Ele gargalha, se divertindo com o meu desespero.
— Relaxa Machado, ninguém vai saber que estávamos juntos naquela noite. Eu sou um homem de palavra.
Faço uma careta enojada.
— É meio difícil acreditar nisso, sabendo a qual família você pertence.
Santo cruza os braços musculosos à frente do peito e me encara com um princípio de sorriso se formando em seus lábios.
— Você é realmente louca por mim, não é?
Agora é a minha vez de gargalhar.
— Só nos seus sonhos, Batista.
Antes que ele possa responder, a recepcionista volta e o ar, antes pesado, se torna leve. Sou a primeira a levantar e a entregar minhas horas extras, quando saio da coordenação não olho para trás.
Não gosto da forma como Santo Batista mexe comigo.
###
— Pare de o encarar – Lana pede para Raíssa.
— Não estou encarando – ela se defende, mas está quase babando por ele.
— Você está o secando faz dez minutos – Rita diz, mordendo um pedaço da minha barra de cereal.
Ela sorri de forma maliciosa e dá de ombros.
— Só estou admirando o que deve ser admirado – Raíssa diz, encarando Santo a algumas mesas de distância com um grupo de amigos. – Parece que ele ganhou mais músculos com essa viagem.
Eu reviro os olhos pela décima vez naquele dia. A minha única reação possível para a obsessão de Raíssa por Santo é essa.
— Será que você pode parar de falar sobre os músculos dele a cada dois segundos?
Raíssa tira os olhos verdes dele para me olhar e diz de forma venenosa: — Me desculpa se não sou uma puritana como você, América.
Verdade. A última coisa pela qual Raíssa poderia ser chamada era de puritana, nem mesmo se ela quisesse conseguiria ser uma, não com toda a sua extensa lista de fugidas pela janela de madrugada.
E quanto a mim, eu não chamaria de puritana. Eu sou apenas alguém que não saia abocanhando todos os homens da cidade só por diversão, as coisas comigo acontecem de forma diferente. Ficar com um cara qualquer em uma noite não é sinônimo de diversão para mim, não adianta nada ter uma noite legal com alguém e nunca mais olhar na cara daquela pessoa depois, eu quero que tenha sentimento envolvido no meio e isso é algo que Raíssa nunca poderia entender.
Não depois que ela decidiu trancar seu coração.
— Disso eu não tenho dúvidas – rebato, devolvendo o sorriso falso.
— Já chega, ok? – Lana intervém.
Raíssa dá de ombros e volta seu olhar obcecado para o garoto.
— Tanto faz, vou dar as boas-vindas para Santo.
Ela se levanta da mesa com toda a autoconfiança que tem e sai desfilando por entre as mesas como uma maldita modelo da Victoria Secrets. Seus cabelos, que chegam até a metade das costas, balançam de um lado para o outro em uma sincronia ridícula. Raíssa é linda, isso eu não posso negar. Ela tem os cabelos loiros, uns os olhos verdes mais incríveis que eu já vi e o corpo perfeito. Todos os garotos dessa cidade minúscula se rastejam atrás dela.
E eu posso ser uma Machado, mas nunca serei tão bonita e confiante como Raíssa. Meus cabelos escuros batem no meio das costas, em um corte sem graça, e meus olhos castanhos são normais. Nada demais. Nada de deslumbrante.
Não é que eu me ache feia, só sou comum.
Eu, Lana e Rita assistimos como espectadoras todo o desfile de Raíssa até o momento em que ela chegou à mesa onde Santo estava, todos os amigos dele pararam para admirá-la. Ela sorri e ele sorriu de volta. Eles estavam flertando e quase vomitei toda a barra de cereal com aquela cena.
Quando Santo abriu espaço para Raíssa sentar ao seu lado no banco, tão perto que parecia que os dois podiam se fundir, eu rolei os olhos.
Os dois me enojam.
— Parece que ela conseguiu – Rita diz, observando os dois.
– Mas quem ela não consegue, não é? Raíssa é como uma predadora – Lana completa.
— Vou para a biblioteca antes que eu vomite meu estômago – informo, e dou outra mordida na barra de cereal que é tão seca que quase machuca minha garganta quando engulo.
Antes de levantar e seguir para a biblioteca, meu olhar se cruza com o de Santo. Um segundo. É necessário só um segundo para ele piscar um dos olhos para mim e eu levantar o dedo do meio para ele.