por talita
A primeira escala do espectro é a S, referente às residências. Passando pela unidade mínima de habitação enquanto o próprio corpo humano, a breve análise ao longo do blog aglutina os elementos em cada etapa para analisar alguns aspectos e críticas de cada espaço criado e as relações que esses trazem. O cômodo vira casa, que vira prédio, que vira conjunto, focado tanto para moradia como apenas para dormitório, e termina com os bairros, envolvendo todos esses elementos e trazendo, em cada época, um desejo diferente para a sociedade contemporânea.
A menor unidade de habitação é o corpo humano. Não é à toa que temos exercícios, principalmente no meio moderno, envolvendo ergonomia, funcionalidade e padronização dos espaços, como forma de atingir o ponto ótimo do que é o experienciar o espaço. Exemplos dessas teorias que visam racionalizar o ocupar são a obra Bauentwurfslehre, de Ernst Neufert e o sistema de proporções Modulor, de Le Corbusier. Cada atividade exercida tem uma particularidade e reconhecer essas necessidades formaria um projeto completo, prático e produtivo. Partem do desejo de associar as medidas do corpo humano, enquanto natureza, ao máximo com as proporções do espaço em harmonia. Há então a tentativa de fazer espaços para esse ser padrão, mas o quanto isso abarca ou exclui das diferenças entre os corpos?
[1] Bauentwurfslehre, Ernst Neufert Modulor, Le Corbusier [2]
O conjunto de ações que praticamos começa no acordar, no cômodo de nossa casa. E dentre todas as atividades que executamos nessa escala, uma das mais instrumentalizadas é cozinhar. Medidas, ingredientes, intervalos, temperaturas, misturas. Margarete Schütte-Lihotzky, arquiteta austríaca, projetou a "cozinha moderna" (1926), na qual tudo estaria à mão, e os vários utensílios estariam dispostos nesse espaço compacto e ordenado, como uma pequena produção industrial. Os percursos eram minimizados entre as etapas do processo, visando a eficiência. A cozinha também teve como partido a capacidade de reprodução devido ao contexto histórico da época e à alta demanda por habitação. Ao mesmo tempo que foi uma oportunidade interessante para o reconhecimento da figura feminina na arquitetura, ainda assim isso acontece na cozinha, espaço "reservado" à mulher, o que nos faz questionar o quão revolucionário isso tenha sido.
Outra questão foi o foco demasiado na racionalização que inclusive padronizou a figura que funcionaria nessa cozinha (KAPP, LINO, 2008):
³mulher..................................................................
estatura mediana (da época).................................
destra....................................................................
magra....................................................................
E de fora da equação e racionalidade, ficam primeiramente os homens, enfatizando o caráter misógino, mesmo que implícito, dessa composição. Ficam afastadas de um uso confortável do espaço também qualquer mulher que não se encaixasse num padrão, seja ela gorda, alta, baixa, canhota, simplesmente não havia espaço para adaptações. Como se o ambiente fosse um método de "domesticação" do comportamento, como vimos em aula.
Cozinha de Frankfurt, Margarete Schütte-Lihotzky [4]
[5] Cozinha de Frankfurt, Margarete Schütte-Lihotzky
Comparando dois tipos de cozinha que estudamos ao longo do semestre, temos por um lado a de Frankfurt, isolada das demais áreas da casa, dissociada de qualquer outro acontecimento diferente da sua função principal.
Por outro lado, temos a cozinha na casa do Conjunto Habitacional Previ (1968), em Lima no Peru, por Aldo van Eyck. Aqui, o cômodo é o coração da casa, articulando-se com a sala de estar, sala de jantar e até com os quartos.
Casa PREVI 6, Aldo van Eyck [6]
A racionalização extrapola os limites de um cômodo e parte para regular toda a casa. Na Maison Dom-Ino⁷ (1914-1915), de Le Corbusier, a máquina da vez é feita de concreto armado. Tem como estrutura lajes planas, colunas e fundações desse material cada vez mais difundido (PALERMO, 2006). O progresso tecnológico sai do objeto, e adentra a sociedade e as residências. Agora o morar também poderia ser aprimorado para um modo mais produtivo e racional de si. Os partidos de economia, rapidez e padronização compõem o caráter simbólico da proposição de Corbusier (PALERMO, 2006). Ao mesmo tempo que segue os princípios da linha de produção e os avanços técnicos, traz a beleza e comoção, sendo também uma máquina de emocionar.
O corte da Dom-Ino é muito simples, mostrando bem sua estrutura, os balanços e planta livre. Ao lhe confrontarmos com o corte da Casa-estúdio (1948) de Luis Barragán, observa-se como este lida com os níveis, misturando-os, criando novas espacialidades que variam ao longo da edificação, com limites turvos. Barragán trabalha com o regionalismo nas suas obras, aplicado fortemente nas cores e acabamentos dos materiais. Enquanto Corbusier apela para a sobriedade e em todos os aspectos, inclusive nas cores, o arquiteto mexicano utiliza sabiamente das ferramentas que possuí para tornar o espaço o mais interessante possível, sem precisa apelar para características fúteis e meramente decorativas, mas marcantes e atrativas.
Maison Dom-Ino, Le Corbusier [8]
Casa Luis Barragán, Barragán [9]
[10] Casa Dupla, Le Corbusier e Jeanneret
Edifício Habitacional, Mies van der Rohe [13]
O conjunto Weissenhofsiedlung (1927) em Stuttgart foi uma exposição de residências (unifamiliares, casas geminadas e blocos), como exemplares da arquitetura moderna. ¹¹Divulgaram os padrões para equipamentos essenciais de uma moradia (MAASBERG, 2017). Os edifícios destacados aqui são a Casa Dupla de Le Corbusier e Pierre Jeanneret, e o Edifício Habitacional de Mies van der Rohe. Da casa, podemos ressaltar os pilotis como a zona de encontro dos moradores numa escala pública.
E na escala privada, a planta livre e minimalista assegura um fluxo desimpedido, retirando as barreiras e diluindo o individualismo no espaço, pois de todos os lugares pode-se visualizar o que acontece na casa. ¹²Leveza semelhante é explorada no Edifício de Mies, que utiliza paineis de madeira para dividir os espaços, sem contar com paredes ou portais. Porém, analizando a flexibilidade do espaço, que também era dividido por mobiliários pesados, a fluidez era por vezes ilusória.
É interessante também observar os elementos nas fotos que constroem a narrativa: a arquitetura moderna, o carro, a mulher em primeiro plano, tudo como um reflexo conjunto do progresso, da indústria e do racional. É um retrato interessante do desejo para a sociedade da época e um modo interessante de se recontar essas ambições. O desejo era de que tudo evoluísse junto, mas eles ainda não contavam que a complexidade macro poderia ser tão mais complicada do que uma simples racionalização.
[14] Siedlung Siemensstadt, Hans Scharoun
Quanto à moradia voltada ao trabalhador, em Siedlung Siemensstadt (1931) de Hans Scharoun, o foco é cuidar dos detalhes de maneira limpa e pura, evitando ornamentos. Ao mesmo tempo que segue o princípio da racionalidade como melhor viver que resulta no melhor desempenho do trabalhador no seu ofício. Por outro lado, no caso das Casas dos Professores em Gando, de Francis Kéré, a casa traz em si a tradição e o vernacular para criar habitações de qualidade focadas no conforto e atração de profissionais para a atuarem na área, trazendo mais identidade para o morador, do que o incentivo produtivo por si só.
Casas dos Professores em Gando, Francis Kéré [15]
Assim como as vilas para trabalhadores citas anteriormente, os conjuntos habitacionais são a aglutinação de menores unidades e as relações sociais nelas cultivadas passam por um vasto espectro de personalidades que ali vivem. No exemplo de Pruitt-Igoe (1954), temos uma tentativa de implementação de habitação social muito acusada pela sua arquitetura moderna e pela inciativa da habitação social em si, quanto os problemas era muitos outros. A falta de suporte à população, manutenção ao prédio, conexão com os locais de trabalho dessa população, a generalização mascarou problemas sociais, administrativos e burocráticos, e culpou a edificação, que sozinha não faz milagre.
Ao visitarmos a América do Sul, nos deparamos com um experimento que funcionou relativamente bem. O Conjunto Previ, por Aldo van Eyck, tem como característica marcante a forma de colmeia implantada em cada lote. Desafia a rigidez da forma, focando mais nos espaços criados para o morador, do que nos seus limites em si. Além do cuidado com o proposto em projeto, o arquiteto também procura considerar as expansões que certamente aconteceriam e não toma isso como descaracterização, e sim como um simples efeito da expansão que cada morador julgasse necessária. Dessa forma, cada um traz sua personalidade para a residência, deixando de lado a padronização e regulamentação do coletivo.
Pruitt-Igoe, Minoru Yamasaki [16]
Conjunto Habitacional PREVI, Aldo van Eyck [17]
[18] Ville Radieuse, Le Corbusier
Por fim, no contexto dos bairros residenciais, no início do século XX, há a tentativa de mecanização do convívio em sociedade com a Ville Radieuse de Le Corbusier (1930). A disposição dos edifícios de maneira racional, com os programas mesclados obedecendo a pluralização dos usos no espaço como forma de otimizá-lo. Em contrapartida, no final do século temos o início dos problemas do rodoviarismo e a questão dos subúrbios americanos que criam paisagens lúdicas, bucólicas e às vezes fantasiosas de espaços segregados buscando o que seria o sonho do lote próprio.
Celebration, Robert A.M. Stern e Jaquelin Robertson [19]
Como conclusão, é interessante observar como o movimento moderno enxergava as mudanças tecnológicas no ramo da produção como a principal inspiração para toda a sociedade, simplificando inclusive todas as suas relações em busca de um padrão principal que fosse atender ao ser humano enquanto elemento uniforme. Porem, rebatendo as mesmas escalas em diferentes tempos, temos um panorama temporal que mostra como a teoria se dilui para abrigar as diferenças e particularidades, mas também às vezes indo longe demais e ultrapassando os limites da segregação, lidando de maneira imprecisa com todos os problemas da sociedade que deveriam ser levados em conta. As pessoas são complexas, e os experimentos de sociedade envolvendo primordialmente a moradia são válidos, mas é sempre interessante tentar abarcar a maior quantidade de variáveis possível para compreender o melhor jeito de projetar para a pluralidade.
[1] Redesenho autoral com base em imagem por Ernst Neufert. Disponível em: https://images-na.ssl-images-amazon.com/images/I/719Sy6beCcL.jpg. Acesso em: 21 maio 2021.
[2] Redesenho autoral com base em imagem do artigo "Sobre o deslocamento do corpo na arquitetura: o Modulor de Le Corbusier". Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/911962/sobre-o-deslocamento-do-corpo-na-arquitetura-o-modulor-de-le-corbusier?ad_medium=gallery. Acesso em: 20/05/2021.
[3] KAPP, Silke; LINO, Sulamita Fonseca. NA COZINHA DOS MODERNOS. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 15, n. 16, p. 10-27, jan. 2008. Semestral. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/Arquiteturaeurbanismo/article/view/926. Acesso em: 20 maio 2021.
[4] Colagem autoral com base na imagem "A cozinha de Frankfurt de 1926". Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cozinha_de_Frankturt#/media/Ficheiro:Frankfurterkueche.jpg. Acesso em: 18 maio 2021.
[5] Redesenho autoral com base em imagem da Planta da Cozinha de Frankfurt. Disponível em: https://histarq.wordpress.com/2013/03/01/aula-7-a-cozinha-de-frankfurt-1926/. Acesso em: 21 maio 2021.
[6] Redesenho autoral com base em imagem do Catálogo Arquitectura Movimiento Moderno Perú (comp.). Disponível em: http://cammp.ulima.edu.pe/edificios/casa-previ-6/. Acesso em: 12 maio 2021.
[7] PALERMO, Humberto Nicolás Sica. O Sistema Dom-Ino. 2006. 111 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/7917#. Acesso em: 20 maio 2021.
[8] Desenho autoral com base na Maison Dom-Ino de Le Corbusier.
[9] Redesenho autoral com base no corte da Casa Luis Barragán. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/01-55615/classicos-da-arquitetura-casa-luis-barragan-luis-barragan. Acesso em: 21 maio 2021.
[10] GUZMÁN, Alfredo (ed.). Le Corbusier, imprescindible. Disponível em: https://www.arquitecturaydiseno.es/arquitectura/le-corbusier-imprescindible_237/16. Acesso em: 20 maio 2021.
[11] MAASBERG, Ute. ÍCONE DO MODERNISMO EM STUTTGART. 2017. Disponível em: https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/mag/20985214.html. Acesso em: 21 maio 2021.
[12] MEZZADRI, Humberto. MIES NO WEISSENHOF. Arqtexto, [s. l], v. 13, p. 26-45, nov. 2008. Disponível em: https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_13/02_humberto%20mezzadri.pdf. Acesso em: 20 maio 2021.
[13] WIKIARQUITECTURA (comp.). Urbanização Weissenhof - Dados, Fotos e Planos. Disponível em: https://pt.wikiarquitectura.com/wp-content/uploads/2017/01/Exposicion_la_vivienda1.jpg. Acesso em: 20 maio 2021.
[14] WIKIARQUITECTURA (comp.). Siemensstadt - Data, Photos & Plans. Disponível em: https://en.wikiarquitectura.com/wp-content/uploads/2017/01/Siemensstadt_1.jpg. Acesso em: 20 maio 2021.
[15] KÉRÉ ARCHITECTURE. Gando Teachers' Housing. 2004. Disponível em: https://www.kerearchitecture.com/work/building/gando-teachers-housing. Acesso em: 21 maio 2021.
[16] GREYSCAPE (org.). Modernism Was Framed: The Truth About Pruitt-Igoe. Disponível em: https://www.greyscape.com/modernism-was-framed-the-truth-about-pruitt-igoe/. Acesso em: 14 maio 2021.
[17] ARQUITECTOS, 51-1. ¿Y PREVI? Disponível em: https://51-1.com/Y-PREVI. Acesso em: 12 maio 2021.
[18] MERIN, Gili. Clássicos da Arquitetura: Ville Radieuse / Le Corbusier. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/787030/classicos-da-arquitetura-ville-radieuse-le-corbusier. Acesso em: 22 maio 2021.
[19] ENGLISH MUM BLOG. In which I finally get to visit Celebration, Florida. Disponível em: https://englishmum.com/visit-celebration.html. Acesso em: 21 maio 2021.