Por toda a história da humanidade, existiram espaços arquitetônicos destinados à concentração de pessoas, visto que os seres humanos precisam de espaços destinados para atividades econômicas, políticas e sociais. Contudo, muito se discute sobre o caráter que esses equipamentos e edifícios tomaram na contemporaneidade e como a revolução tecnológica tem influências nesse mudança de paradigmas.
Fazendo uma análise da forma como a tecnologia se implementou gradativamente na arquitetura, pode-se observar como o fazer arquitetônico foi evoluindo. No modernismo arquitetônico, na primeira metade do século XX, muito do conceito das fachadas e plantas livres estava em voga, alguns dos cinco pontos da arquitetura defendidos por Le Corbusier , esses pontos celebravam os avanços tecnológicos que permitiam que a estrutura se dissociasse da vedação. Muito se explorou o uso dos pré-moldados como forma de baratear a construção e aplicar os conceitos industriais de produção em massa. Podemos esses conceitos sendo aplicados na construção de Brasília e nas obras iniciais de Le Corbusier.
No entanto, essa incorporação dos avanços tecnológicos nos levou para experimentações de formas arquitetônicas que só poderiam ser construídas com auxílio das tecnologias, iniciando historicamente com o Pompidou, pode-se observar uma popularização e padronização dessa arquitetura, posteriormente sendo apelidada de "arquitetura high-tech". Cabe aqui uma análise crítica do que se tornou essa reprodução de megaestruturas metálicas e envidraçadas sem muita identidade, tangenciando uma linha menos técnica e mais sensorial e fenomenológica, esse tipo de arquitetura parece querer se desvincular da escala humana, dos aspectos sensoriais que a arquitetura pode provocar, do encantamento que a arquitetura proporciona, dos percursos, das diferentes materialidades, das potencialidades que o cheio e o vazio constroem - essa relação dos cheios e vazios revisitada por Leite Brandão (1) como o trabalho do arquiteto e visto como exemplo a ser seguido por Giambattista Nolli (2) em suas plantas. Ruy Gama (3) apresenta as consequências do que esse avanço tecnológico sem propósito pode acarretar em terríveis consequências, o que ele chama de "Franksteins", uma junção de pequenas partes de um todo sem coesão, e o que é uma arquitetura que replica estrutura, materiais e plantas sem um conceito próprio senão um Frankstein?
Outra crítica do uso da tecnologia apenas pela tecnologia, pode se observar que a corrida pelo título do prédio mais alto do mundo data nas primeiras do século XX ainda não foi superada. Até os dias de hoje existe uma competição e uma tentativa de se alcançar novos parâmetros e novas alturas onde apenas o céu é o limite. Nos anos 30, essa corrida aconteceu com o Empire States, Chyrsler Building e One Trade Center, hodiernamente temos grandes incorporações tecnológicas nas construções para alcançar novas alturas, como o Burj Khalifa, The Shard, Shangai Tower e One Tower. O questionamento proposto é o que de fato a altura beneficia a arquitetura além do ego de se ter o título? As cidades muitas vezes não possuem uma infraestrutura preparada para lidar com o alto teor de adensamento que esses edifícios propõem, consoante a isso, esses prédios criam uma ruptura com a escala do pedestre, criam um fluxo interno de pessoas muito grande que precisa ser solucionado com grandes investimentos de mobilidades de elevadores. Não questionando os prédios em altura, mas sim a tentativa de sempre ser o mais alto a custo de nada além de um título que vai ser tirado pouco tempo depois por outra equipe gananciosa por alcançar o mesmo título. Aonde vamos parar? Qual o intuito de se criar prédios mais altos sem respeitar o gabarito da cidade, a infraestrutura urbana existente e sem benefícios claros ao usuário, pelo contrário, edificações como essas alteram toda a dinâmica de vistas, insolação, sombreamento, corte urbano e vivência da cidade. Essas estruturas precisam ser pensadas previamente e adaptadas ao local. A mera réplica cria a cidade genérica.
E parece que com o passar dos anos a situação apenas se intensifica, principalmente com a arquitetura paramétrica, não excluindo os benefícios e boas escolhas projetuais que podem ser obtidas com o auxílio dessa tecnologia. Contudo, o próprio Heydar Aliyev - símbolo da arquitetura paramétrica-, no qual foram feitas todos os componentes construtivos únicos e diferentes, e portanto, onde foi parar a racionalização construtiva que era o preceito para se usarem esses elementos de extração nada sustentável, pois envolvem muita emissão de carbono e alta energia incorporada?
E esses componentes metálicos continuam sendo usados nesses prédios de alta tecnologia ditos com viés ecológico, contudo são construídos da mesma forma e se incorpora algum sistema paliativo para amenizar os danos ambientais causados. Após o extrativismo necessário para construir toneladas de aço, a transformação da cidade em uma estufa com prédios espelhados que mata passarinhos desavisados, as escavações profundas para fundações e subsolos que muitas vezes envolvem desvios de lençóis freáticos, o arquiteto instala alguns painéis fotovoltaicos que gera redução de gastos para o contratante, pinta a cobertura de branco e mais alguns pontos da checklist da classificação LEED, para ganhar alguns prêmios, e assim fica fácil se autodenominar um prédio com viés sustentável. Claro que essa é uma análise irônica e exagerada sobre o que de fato são os prédios "Eco-Tech", mas é crítica direcionada a edifícios que seguem a mesma lógica e linguagem dos prédios que estão sendo construídos na atualidade e ganha certificados, cumprindo certos requisitos que alguém denominou que significava construir sustentavelmente.
Colagem autoral - sobre a gentrificação que essas construções de edifícios icônicos promovem
Além disso, é sempre bom lembrar que sustentabilidade tem três pilares principais, o lado ecológico, o lado econômico, que deveria implicar no uso mais racional dos recursos materiais, e principalmente, o social. Muito se fala sobre a visão ecológica da sustentabilidade, e o caráter social constantemente é deixado de lado. Para mim, parece insustentável pensar que esses prédios carregam esse viés, sendo que muitos deles são responsáveis pelo fenômeno de espetacularização urbana e gentrificação . Não eximindo o potencial transformador e acolhedor desses espaços como foi visto em aulas, em especiais os equipamentos destinados ao público como museus e bibliotecas que promovem acesso à cultura, principalmente quando esses espaços estimulam os encontros sociais - que é uma necessidade inerente do ser humano, fato observado na quarentena que muitas pessoas sentiram na pele como a falta de convívio social pode causar na pele. Contudo, a partir do momento que esses espaços que se voltam para a escala gregária, desconsideram todo o contexto urbano e a população existente, é necessário rever esses conceitos.
Por exemplo, o prédio corporativo Hearst Tower do Norman Foster, em Nova York, é um prédio dito ecológico do movimento "Eco-Tech", no entanto, ele se localiza na cidade que vem sofrendo um processo de gentrificação que teve seu auge datado entre 1990 e 2014, principalmente próximo nas regiões próximas ao Central Park. Estima-se que ao menos 15 dos 55 bairros de Nova York sofreram algum processo de gentrificação (4) e que a cidade possui um dos metros quadrados mais caros do mundo (5). Essas grandes construções alteram o funcionamento da cidade e provoca um movimento forçado da população que ali morava por não conseguir mais arcar com os custos dessa nova cidade. E esses edifícios icônicos cada vez mais replicáveis e espetaculosos, atraem turistas - pessoas com dinheiro suficiente para viajar o mundo a procura de uma arquitetura de grife - e fazem com que a cidade toda precise se reiventar constantemente para continuar sendo um polo turístico, consequências do chamado "efeito bilbao". Esse efeito também tem alguns pontos positivos, como a influência e movimentação econômica provocada, mas a partir do momento que a arquitetura se torna mais importante que a própria população ali existente, eu me questiono a que ponto chegaremos?
Devemos sim celebrar e explorar as potencialidade que a arquitetura pode causar na cidade, mas de maneira consciente e pensada, não apenas para a fama de arquitetos e motivados pelo lucro. No texto do Koolhaas (6), ele questiona sobre o que movimenta o crescimento de algum espaço nas cidades genéricas, que não são as demandas da população, e sim os interesses capitalistas. Acho que chegamos em um patamar em que a arquitetura virou um artigo de luxo mais importante socialmente do que as pessoas que irão usufruir dela. Os museus de artes viraram um próprio espetáculo e parte da exposição, muitos são visitados apenas pela fama e arquitetura do que pelos acervos e exposições que ocorrem neles.
"As infra-estruturas que se reforçavam e complementavam mutuamente, estão a tornar-se cada vez mais competitivas e locais [...] já não é uma resposta mais ou menos urgente, mas antes uma arma estratégica, uma profecia: o porto X não se amplia para prestar serviços a um território interior de consumidores frenéticos, mas sim para eliminar/reduzir as hipóteses de sobrevivência do Porto Y até ao século XXI".
(KOOLHAAS, 2014)
Colagem autoral - reflexão ao palco e importância dadas à arquitetura atualmente
Os prédios atualmente provocam uma intensa busca e movimentação na sociedade, como se eles fossem a atração principal da cidade, e não as relações sociais e urbanas, contexto histórico e suas diferenças que tornam cidades únicas e um objeto de estudo mutável e infinito. Essas arquiteturas fazem com que as pessoas se desloquem para fotografá-las, visto que poucas são usadas pela população local, além de apagar e desvincular o caráter de prédios para o uso e convivências da pessoas de acordo com a demanda do lugar, botar no esquecimento a arquitetura que nasce de um processo criativo único que aparece de cada vez menos, até mesmo nos discursos da obra idealistas e platônicos dos arquitetos. A arquitetura parece criar uma vitalidade própria com importância própria e autônoma. Ela hoje recebe tanto destaque que parece ser centro dos holofotes em cima de um palco, não importa se há plateia, se há contexto ou em que cidade está alocada, exclui-se o contexto e aplaude-se a arquitetura espalhafatosa. Portanto repensemos a arquitetura "instagramável", a arquitetura que é apenas uma tela a ser fotografada na cidade, a arquitetura de visita e não de vivência. É visível que algo está de errado na sociedade quando prédios imateriais passam a receber mais incentivos, recursos, visibilidade e importância do que vidas humanas.
Colagem autoral - reflexão às arquiteturas para visitação e contemplação ao invés de uma vivência urbana
[1] BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Editora UFMG, 1991.
[2] NOLLI, Giambattista. The Nolli Plan of Rome: A Fascimile. Architectura & Natura Press, 1991.
[3] GAMA, Ruy. Uma declaração de intenções: o mito de Prometeu. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 41, p. 135-140, 1996.
[4] MENEZES, Fabiane Ziolla Menezes. Pesquisa indica que pelo menos 15 dos 55 bairros de Nova York tiveram gentrificação. 2016. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/futuro-das-cidades/pesquisa-indica-que-pelo-menos-15-dos-55-bairros-de-nova-york-tiveram-gentrificacao-6uvbem2x0aa0msgmdrh4xkz2c/. Acesso em: 03 mar. 2021.
[5] FORBES. 20 cidades com o metro quadrado mais caro do mundo. 2018. Disponível em: <https://forbes.com.br/fotos/2018/03/20-cidades-com-o-metro-quadrado-mais-caro-do-mundo-2/#foto18>.
[6] KOOLHAAS, Rem. A Cidade Genérica. In: KOOLHAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Gustavo Gili, 2014, p. 64-65.
ANDRADE, Talita e Wallace, Emerson. Glossário: Edifício Icônico. disponível em: <www.atualidades-fauunb.org/glossario-edificio-iconico >
ANTUNES, Manuel Alberto Faria. Ícone na arquitetura: reinvenção da imagem urbana: o seu efeito na dinâmica da cidade. 2012. Dissertação de Mestrado.
KF FALLON, Reproducing race in the gentrifying city: A critical analysis of race in gentrification scholarship. Journal of Race,Ethnicity and the city 1-28. 2020.
TORRES, Jordana; CAMPOS, Marília. Glossário: Arquitetura de Alta tecnologia. Disponível em: <www.atualidades-fauunb.org/glossario-alta-tecnologia >
https://www.atualidades-fauunb.org