A proposta bilíngue de educação de surdos é assumida pelas políticas educacionais oficiais no Brasil e pelos educadores de surdos. O direito à comunicação e a uma educação de qualidade para os diferentes grupos minoritários compõe a argumentação discursiva de educadores e autoridades políticas do âmbito da educação.
Em relação à educação de surdos, é preciso buscar estratégias eficientes para levar educandos surdos a desenvolverem as complexas funções cognitivas e conquistarem autonomia intelectual e social.
O domínio da língua escrita contribui para alcançar tal autonomia intelectual do surdo.
A língua escrita é uma ferramenta social bastante eficiente para promover o desenvolvimento do pensamento. A modalidade escrita de uma língua é imprescindível para o registro, sistematização e armazenamento de ideias, valores, conceitos, formas de ser e agir. A escrita também proporciona o acesso ao conhecimento por meio da prática da leitura (SILVA; BOLSANELLO; SANDER, 2011, p. 38).
As metodologias de ensino de Língua Portuguesa para o aluno surdo estão sendo frequentemente repensadas pelos educadores.
Fernandes (2006) apresenta, por meio de um quadro comparativo, as especificidades do aluno, em oposição ao processo de alfabetização.
Quadro 1: Procedimentos adotados na alfabetização e as dificuldades apresentadas pelo aluno surdo / Fonte: Fernandes (2006, p. 7).
Por meio das práticas de letramento, o aluno surdo, usuário da Língua de Sinais, pode tornar-se um bom leitor e escritor da Língua Portuguesa. O letramento não se refere somente às práticas de domínio da leitura e da escrita, mas às práticas mais amplas, atreladas a condição sócio-histórica do sujeito.
O domínio da língua escrita contribui para alcançar tal autonomia intelectual do surdo.
Deve-se ter claro, portanto, que o processo de ensino de língua portuguesa escrita será caracterizado por uma realidade diferente para alunos surdos, para os quais o português será uma segunda língua, sem referências lingüísticas auditivas. Para estes, aprender a escrita da língua portuguesa significa aprender a própria língua e, na maioria das vezes, o primeiro contato com a língua portuguesa ocorrerá nas práticas escolares, nas quais a referência concreta se materializará na escrita. O meio gráfico de representação da escrita privilegia essencialmente os processos visuais para os quais não há impedimento para a apropriação pelos surdos. Dessa forma, é perfeitamente possível que pessoas surdas aprendam uma língua sem nunca ter ouvido ou pronunciado sequer uma de suas palavras, como asseguram os relatos de muitos surdos adultos, não oralizados, que possuem um bom domínio da escrita (FERNANDES, s/d, p. 9-10).
Diante das evidentes dificuldades da escola bilíngue em aproximar o surdo da escrita, o ensino desse conteúdo constitui, hoje, o maior desafio a ser enfrentado na área da educação de surdos.
A escrita é um instrumento do pensamento. Vygotsky (2001, p. 332) escreve:
[...] a experiência mundial demonstrou que a aprendizagem da escrita é uma das matérias mais importantes da aprendizagem escolar em pleno início da escola, que ela desencadeia para a vida o desenvolvimento de todas as funções que ainda não amadureceram na criança.
Adquirir a leitura e a escrita ainda é um grande desafio tanto para os alunos ouvintes quanto para os surdos, mas os professores se sentem menos capazes de ensinar os alunos surdos, porque não conseguem traçar estratégias de ensino que façam o uso prioritário do aspecto visual da língua.
Fonte: Sander (2010).
Para Silva, Bolsanello e Sander (2011), na perspectiva bilíngue, a emancipação dos surdos deveria ser alcançada a partir do domínio da Língua de Sinais, que mediaria a instrução e aquisição dos conteúdos fundamentais à formação e com a real possibilidade de uso da Língua Portuguesa, se possível na modalidade oral, mas prioritariamente na escrita. No entanto o uso da escrita como recurso para registro e compartilhamento de ideias, para a busca de conhecimento e a organização do pensamento, ainda não é uma realidade para grande parte dos surdos, mesmo ao término da escolarização formal.
Figura 1: Educação Bilíngue para Surdos / Fonte: os autores.
A escola bilíngue tem se mostrado monolíngue, porque consegue assegurar apenas o domínio da Língua de Sinais. A escola bilíngue, na prática, não tem assegurado a conquista do aprendizado da língua majoritária na modalidade escrita.
Os textos de surdos escolarizados em geral se assemelham a produções de aprendizes iniciantes da língua escrita. É preciso considerar que, no Brasil, o sistema convencional de escrita está ancorado no português oral, nos aspectos que tangem à relação entre grafema e fonema, bem como na sintaxe da língua. Desse modo, para o surdo, as dificuldades com a escrita convencional resultam da dificuldade tanto em representar graficamente sons que ele desconhece como em compreender e construir frases por meio de uma estrutura gramatical inexistente em sua língua gestual. A apropriação da língua portuguesa escrita pela criança surda brasileira, em um contexto bilíngue de educação, constitui-se em um dos aspectos mais polêmicos e desafiadores de uma prática pedagógica alicerçada nessa filosofia (SILVA; BOLSANELLO; SANDER, 2011, p. 39-40).
Recentemente, na década de 1990, a LIBRAS era considerada uma língua ágrafa, mas a publicação do “Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira” (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001) registrou, em signwriting, a escrita dos sinais empregados pelo surdo. Signwriting é uma invenção de Valerie Sutton, a criadora de tal expressão. O código representa qualquer uma das diferentes línguas de sinais existentes no mundo.
Os defensores da divulgação e utilização do sistema signwriting afirmam que a escrita dos sinais permite ao surdo a evocação imediata, em sinais pensados, da ideia graficamente representada, da mesma forma que a escrita alfabética remete o ouvinte à imagem fonológica da palavra.
Assim, esse código “[...] poderia ser capaz de permitir a ela (criança surda) escrever diretamente sob controle do processo interno (sinalização interna), exatamente como faz a criança ouvinte com a sua fala interna” (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001, p. 34).
Nessa direção, os autores acreditam que o bilinguismo só será efetivamente alcançado com a imersão precoce da criança surda entre usuários de língua de sinais, bem como pela possibilidade da representação escrita desses sinais em idade idêntica àquela em que a criança ouvinte é inserida na escrita alfabética. Apoiados na neuropsicologia cognitiva sugerem que o bilinguismo pleno contribuiria para o aprendizado posterior da leitura e da escrita alfabéticas. Não obstante, destacam a necessidade de serem desenvolvidas pesquisas experimentais que confirmem ou refutem essa hipótese (SILVA; BOLSANELLO; SANDER, 2011, p. 40).
Para uma língua se consolidar, é necessária a existência de usuários que compartilhem o mesmo código. É preciso ampliar o número de usuários do sistema signwriting e consolidar a língua escrita da comunidade surda, mas isso não faz com que acabe a necessidade de se buscar meios de ensino que tornem o português escrito acessível ao aluno surdo.
Destacamos que o professor surdo tem mais facilidade em adquirir esse sistema de escrita e, consequentemente, consegue ensiná-lo aos surdos utilizando estratégias diversificadas.
Você sabia que a Língua de Sinais não é uma língua ágrafa?
Tem um sistema de registro denominado signwriting?
Exemplos:
Figura 2: Escrita em signwriting / Fonte: Pereira (2012, online).
Figura 3: Escrita em signwriting / Fonte: Rosa e Karnopp (2005, p. 6).
Centopeia e Annelus
Categoria: Contação de histórias em Língua de Sinais
País: Brasil
Línguas: Português e Língua de Sinais Brasileira (Libras/LSB)
Na história “Centopeia e Annelus”, narrada em Libras por Rimar Segala (Cia. Arte e Silêncio), uma minhoca (annelus) vê-se em apuros para se comunicar com um público surdo: afinal, como sinalizar para os espectadores se ela não tem mãos? A centopeia, cheia de braços, resolve a questão.
Fonte: Cultura Surda (2019, online).
De acordo com Fernandes (2002), assim como a oralidade é importante para os ouvintes, a aquisição da Língua de Sinais é fundamental na vida da pessoa surda, ela organiza, de forma lógica, as ideias dessas pessoas. Os surdos usuários da Língua de Sinais têm a estrutura gramatical da Libras presente na sua escrita, a qual, na maioria das vezes, é considerada, equivocadamente, como sendo errada.
Para Guarinello (2007, p. 87):
os ‘erros’ que estudantes surdos cometem ao escrever o português devem ser encarados como decorrentes da aprendizagem de uma segunda língua, ou seja, o resultado da interferência da sua primeira língua (a língua de sinais) e a sobreposição das regras da língua que está aprendendo (a língua portuguesa).
Conforme Fernandes (2002), algumas considerações são básicas para compreendermos os aspectos da produção escrita de surdos, com vistas a elegermos critérios de avaliação diferenciados em relação à Língua Portuguesa e demais áreas do conhecimento que dela se utilizam (História, Biologia, Geografia etc.), não generalizáveis, mas que possam constituir subsídios para a análise de suas construções singulares, em comparação à escrita de ouvintes.
Fernandes (2002, p. 8) afirma que:
estrangeiros que estão aprendendo uma segunda língua, cuja estruturação gramatical difere de sua língua materna, apresentam dificuldades semelhantes às dos surdos em relação ao uso de preposições, tempos verbais, sufixação, prefixação, concordância nominal e verbal, enfim, no que se refere aos componentes estruturais de sua organização. Este fato ocorre independente de essas pessoas estarem expostas, continuamente, através do canal auditivo, às realizações lingüísticas que as cercam, do mesmo modo que um falante nativo. Isso demonstra que não é apenas o fato de o surdo não receber informações auditivas que interfere nas suas práticas linguístico-discursivas em português, mas também, o fato de a língua de sinais estar participando ativamente no processo de elaboração discursiva. Ela, portanto, não pode ser desconsiderada ao elaborarmos qualquer juízo de valor em suas produções escritas.
Tal autora explica que, nas etapas iniciais, a escrita do aluno surdo estará muito mais marcada pelas características da Língua de Sinais. Nas etapas finais desse processo, mesmo com peculiaridades, essa escrita ficará mais próxima do português. A construção que caracteriza uma interlíngua − percurso de aquisição de uma segunda língua − não pode ser desqualificada, pelo professor, em seu processo de avaliação.
Contando Histórias para Crianças Surdas
A seleção da história é feita de acordo com seu conteúdo e seu nível de complexidade. A história é lida diversas vezes pela professora, para garantir a compreensão de todas as palavras. No processo de leitura, ela utiliza dicionários, das duas línguas, e pede a ajuda de professores ouvintes para esclarecer expressões desconhecidas da história. Nessa preparação, a professora surda observa criteriosamente as imagens que o livro traz. As características físicas e o comportamento de cada personagem são analisados e estudados por ela, e, por meio de sucatas, a professora escolhe materiais diversos para caracterizar cada personagem e os constrói. Após a confecção dos materiais/personagens da história, a professora os espalha sobre uma mesa e dá início à etapa dos ensaios. Nessa etapa, a professora filma a própria atuação e, em seguida, assiste à filmagem, atenta aos detalhes da expressão facial e corporal empregados no ensaio, comparando o texto original ao da filmagem. Agora, tudo pronto. Inicia-se a apresentação.
Fonte: Sander, Mori e Jacobsen (2010).
O professor, ao se deparar com um texto elaborado por uma pessoa surda, deverá ter uma atitude diferenciada que não parta das aparentes limitações iniciais e sim das possibilidades que as especificidades dessa construção contemplam, que não busque o desvio da normalidade, mas as marcas implícitas e explícitas das diferenças linguísticas.
Fernandes (2002) recomenda que, ao ler o texto produzido por um aluno surdo, o professor deve observar se a mensagem tem coerência lógica, apresentando um enredo com princípio, meio e fim. Deve observar também que, por apresentar um vocabulário mais restrito, tanto em relação ao número de palavras diferentes como em relação ao número total de palavras (ocorrências), o texto passa a expressar uma faixa mais limitada de relações semânticas (nomes de objetos, sua localização, a quem pertencem), contendo uma frequência de substantivos significativos e de verbos, no presente.
Nossa longa experiência na educação de surdos permite afirmar ser consenso, entre os professores surdos atuantes em escolas bilíngues para surdos, que a prática pedagógica deve ser conduzida por uma pedagogia visual.
Campello (2008, p. 10) define Pedagogia Visual ou Pedagogia Surda como aquela que “se ergue sobre os pilares da visualidade, ou seja, tem no signo visual seu maior aliado no processo de ensinar e aprender”. A referida autora enfatiza que “as técnicas, recursos e perspectivas utilizadas na Pedagogia Visual estão relacionadas com o uso da “visão”, em vez da “audição” [...]” (CAMPELLO, 2008, p. 138). A questão visual está ligada à identificação dos grupos surdos. Apesar da necessidade de os surdos utilizarem a visão, os materiais visuais, didático-educativos e literários ainda são escassos.
Nossos maiores esforços estão na construção de uma pedagogia surda que conduza à transformação desejada, pois, sendo da própria sociedade, a tarefa de tornar-se menos excludente é das escolas, as quais têm o papel de acolher o diferente, não repetir a segregação e induzir em seus alunos a observação e o comprometimento com comportamentos éticos e construtivos diante das diferenças. Como líder surda, Stumpf (2007) questionou as práticas escolares de inclusão, mostrando que a possibilidade de transformação na educação dos surdos passa pela adoção de uma pedagogia surda.
Reis (2006, p. 82), afirma: “os professores surdos intelectuais traçam os caminhos da pedagogia dos surdos”.
A visualidade tem papel fundamental nesta proposta, uma vez que auxilia na construção do conhecimento da criança com surdez.
Campello (2007) aconselha o uso efetivo da visualidade na educação dos surdos e defende a “pedagogia visual”, como aquela que faz uso da língua de sinais e elementos da cultura surda como:
[...] contação de história ou estória, jogos educativos, envolvimento da cultura artística, cultura visual, desenvolvimento da criatividade plástica, visual e infantil das artes visuais, utilização da linguagem de Sign Writing (escrita de sinais) na informática, recursos visuais, sua pedagogia crítica e suas ferramentas e práticas, concepção do mundo através da subjetividade e objetividade com as “experiências visuais” (CAMPELLO, 2007, p. 129).
Como sujeito visual o surdo deve ter as suas especificidades linguísticas valorizadas, e, as escolas devem assumir um papel de responsabilidade muito grande diante deste contexto. Tal como o cego, necessita de estímulos sonoros, o aluno surdo necessita dos visuais para o desenvolvimento da linguagem escrita e para a apropriação dos códigos de alfabetização e letramento.
Para Nery, Reily e Batista (2004)
[...] o processo de ensino do aluno surdo se beneficia do uso das imagens visuais e que os educadores devem compreender mais sobre seu poder construtivo para utilizá-las adequadamente; a formação de conceitos seria facilitada utilizando representações visuais, e a sua adoção, nas atividades educacionais, auxiliaria no processo de desenvolvimento do pensamento conceitual, porque a imagem permeia os campos do saber, traz uma estrutura e potencial que podem ser aproveitados para transmitir conhecimento e desenvolver o raciocínio (p. 290).
A pedagogia surda está em construção e configura-se como uma luta não apenas educacional, mas também política, de desconstrução de um único modelo de ensino, o modelo ouvintista. Esse modelo não aparece somente nas escolas regulares onde há surdos incluídos, ele é aplicado também nas escolas de surdos, mesmo naquelas que se identificam como escolas bilíngues.
“[...] aprendia a falar, mas não sabia me comunicar adequadamente, só ficava repetindo as palavras, igual a um papagaio, sem entender seus significados, tudo muito mecânico e sem emoções. [....] Ao ter contato com a comunidade surda, o meu mundo abriu as portas e eu pude explorar e expandir para fora tudo o que estava insuportavelmente sufocado dentro de mim”.
Fonte: depoimento da surda Karin Strobel (2008, p. 14-17).
Perlin, pesquisadora surda, declara que:
Para os surdos brasileiros é o momento de resvalar pela pedagogia dos surdos e entrar em um terreno de construção de forma despreocupada... O (sujeito) da pedagogia dos surdos é o sujeito outro naturalmente educável, naturalmente com capacidade virtual própria para sua educação que requer ser diferente das outras pedagogias (PERLIN, 2006, p. 80).
A autora afirma que a Pedagogia Surda é diferente das outras pedagogias e os educadores surdos não devem ter medo de construí-la.