SOBRE

O Musicar Local

Novas Trilhas para a Etnomusicologia

Na etnomusicologia, tende-se a pensar a música a partir de uma perspectiva regional, particularmente em relação a repertórios tradicionais e populares, posto que, de modo geral, associa-se estes repertórios a suas origens geográficas e/ou étnicas (e.g., movimento nativista gaúcho, música tradicional irlandesa, gamelão javanês etc.). No entanto, em 1989 a antropóloga inglesa Ruth Finnegan publicou o livro The Hidden Musician: Music-making in an English Town, um estudo meticuloso das práticas musicais na cidade de Milton Keynes, Reino Unido, uma cidade planejada, fundada nos anos 1970. Apesar de muitas destas práticas estarem aparentemente invisíveis, devido ao seu caráter amador e "local", Finnegan calculou que aproximadamente 5% dos habitantes de Milton Keynes estavam envolvidos regularmente em atividades musicais performativas. Entre os gêneros de "música local" que ela identificou na cidade figuravam: a música folclórica inglesa, particularmente o repertório associado ao movimento de revitalização das tradições musicais britânicas (folk music revival), mas também as bandas de música (brass bands) da região, os vários corais e orquestras locais, as bandas de rock e pop e até o movimento "country and western", bastante popular em Milton Keynes na época do seu estudo. Se estivesse fazendo a pesquisa hoje, certamente incluiria os "samba bands", os gamelões, os grupos de dança do ventre, entre outras práticas globalizadas que hoje fazem parte do cenário musical de muitas cidades britânicas. Seu trabalho mostra como atividades musicais locais no mundo atual podem envolver estilos cujas origens transcendem os limites da localidade. No entanto, agregam pessoas que vivem e transitam num mesmo espaço geográfico. E mais: Finnegan argumentou que a música local tem papel central na organização da vida social da localidade. Está presente nos casamentos, formaturas, cerimônias religiosas, festas cívicas, vida noturna; enfim, são raros os eventos sociais comunitários em que não há música e em muitos destes contextos, ela é proporcionada por habitantes da localidade.


Os estudos de Finnegan centraram-se sobre mundos musicais ligados à performance musical. No entanto, aqui voltamo-nos ao universo mais amplo de práticas musicais, ou do "musicar", termo adotado como tradução do campo semântico da palavra "musicking", cunhada por Christopher Small (1998). Para Small, musicking - ou o musicar - engloba qualquer forma de engajamento com música. Assim, a performance musical é uma forma de musicar, mas musica-se também ao ouvir música, ao falar sobre música, ao fazer o download de uma música ou mesmo ao participar da organização de um show musical, ou no engajamento com tarefas associadas ao comércio musical. Como Finnegan, contudo, privilegiamos as escolhas musicais feitas por pessoas atuando no domínio local, posto que entendemos que esta perspectiva antecipou alguns dos temas que hoje animam os debates na etnomusicologia, tais como: os estudos de cenas musicais, independentemente das supostas origens do estilo em questão; a construção musical da identidade; música na vida cotidiana, um tema que engloba formas de música gravada, além da performance propriamente dita; amadorismo musical e o fazer musical comunitário; globalização, localização e globalização musical, entre outros. Apesar de sua disparidade, todos esses temas evocam, de alguma forma, o que Arjun Appaduai chamou de "a produção da localidade", sendo a localidade compreendida como valor que se realiza nas interações sociais e suas formas de mediação, criando - e sendo criada por - relações entre pessoas e os espaços em que atuam e transitam, seja fisicamente, seja de forma imaginária.


Propomos, portanto, que um enfoque sobre práticas musicais locais - ou o musicar local - tem o potencial de criar um novo paradigma para as musicologias, perspectiva esta que engloba e resume alguns dos principais debates contemporâneos.