2025 - CAMINHO DE FINISTERRE INVERTIDO:
FINISTERRE/MUXÍA a SANTIAGO: 125 QUILÔMETROS
2025 - CAMINHO DE FINISTERRE INVERTIDO:
FINISTERRE/MUXÍA a SANTIAGO: 125 QUILÔMETROS
O Caminho Jacobeu de Fisterra e Muxía é a personificação mais fiel desse grito histórico do peregrino que exclama Ultreia! (“Vamos mais longe!”), enquanto outro responde Et Suseia! (“E vamos mais alto!”). De fato, é além do objetivo compostelano - depois de se prostrarem diante dos restos mortais do apóstolo Santiago - que muitos peregrinos decidam experimentar este fim do mundo, e não hesitam em superar os sacrifícios dos dias difíceis passados para caminhar agora, pelo menos, mais quatro ou cinco dias. A história desta rota é uma mistura de paganismo e, posteriormente, cristianização. A partir do século XII, o Codex Calixtinus já relaciona este Caminho com a tradição jacobina. Além disso, duas das devoções religiosas mais populares da Galícia têm a sua sede em Fisterra e Muxía: o Santo Cristo de Fisterra - do qual o licenciado Molina (século XVI) afirma que “a ele vão a maioria dos peregrinos que vão ter com o Apóstolo” - e o santuário da Virxe da Barca, em Muxía. (Xunta da Galiza)
Em Finisterre, próximo do Farol da Costa da Morte.
Em 2016 eu percorri esse trajeto, desde Santiago de Compostela até Finisterre passando por Muxía e demais cidades do percurso. Nesta ocasião me deu vontade de repetir esse belíssimo itinerário, mas escolhi fazê-lo no sentido inverso, como forma de reciclar meus conhecimentos. Isto resolvido, tomei um ônibus, desembarquei em “Fisterra”, fui até o “Farol da Costa da Morte”, onde se encontra fincado o monjón ZERO, e no dia seguinte iniciei minha odisseia.
Em Finisterre, junto ao "Marco Zero", iniciando o Caminho para Santiago.
1º dia – FINESTERRE a MUXÍA – 30 km
Parti cedo, pois a jornada seria longa, e no 3º km, já em leve ascenso, eu passei por San Martiño de Duio, onde ficava a desaparecida cidade romana de Dugium, mencionada no Livro III do Códice Calixtino. O caminho prosseguiu belíssimo e arejado, com o mar onipresente, alternando pequenas aldeias, florestas e plantações de milho. As vistas, entre bosques de pinheiros da vizinha Praia do Rostro, foram idílicas. A chegada a Lires, no 15º km, foi um bálsamo, pois esta cidade mudou radicalmente nos últimos anos, desde que os peregrinos começaram a dividir essa difícil etapa, e agora conta com vários albergues, charmosos hotéis, e alguns bares/restaurantes. Num deles, ingeri um café supimpa, acompanhado de um croissant. Prosseguindo, o roteiro seguiu plano e, logo passei por Vaosilveiro, Frixe e Morquitían, caminhando alguns trechos sobre asfalto e outros por estradas rurais, sempre entre belos bosques. Então, após transitar pela minúscula vila de Guisamonte, teve início uma longa ladeira, que fui vencendo passo a passo, até o 24º km, onde atingi o ponto culminante da jornada, exatamente, no Facho de Lourido, uma antiga torre de vigia, onde os moradores acendiam fogueiras para alertar sobre os perigos que espreitam nestas praias. Já em descenso, passei pela vila de Xurarantes e, mais abaixo, aportei à praia de Lourido, onde o novo Parador de Turismo é alvo de controvérsia, devido à sua duvidosa integração na paisagem, sua localização questionável, e ao custo de construir um novo edifício em vez de preservar os monumentos do Patrimônio Nacional. Prosseguindo, logo adentrei em Muxía, onde me hospedei. À tarde, após farto almoço e descanso merecido, fui visitar o Santuário de A Barca onde, segundo a lenda, a Virgem apareceu ao Apóstolo Santiago, para o animar na sua pregação por todas as terras galegas; a primeira referência a esse fato remonta a meados do século XIV. Acima deste templo, fotografei o monumento denominado “A Chaga”, que recorda o desastre ambiental causado pelo derrame de petróleo provocado pelo petroleiro “Prestige”, que afundou nessa costa. A estrutura foi inaugurada em 12 de setembro de 2003, sendo Muxía considerada o Marco Zero deste desastre ambiental. É importante salientar que nesse tramo a sinalização está excelente, em ambos os sentidos, pois muitos caminhantes ao invés de fazê-lo em Finisterre, optam por encerrar sua jornada em Muxía. E neste dia, além do clima bastante fresco, encontrei vários peregrinos percorrendo esse itinerário na direção inversa.
O Santuário de A Barca, em Muxía.
2º dia – MUXÍA a OLVEIROA – 34 km
Parti da Praia da Cruz, junto à rodovia N-440, caminhando sobre passarelas de madeiras, que me levaram até a praia do Espigueiridino. Prossegui por um bosque de eucaliptos, em leve ascenso, e logo cheguei à Capela de São Roque de Moraime, cercada por um grande campo. Prosseguindo, passei junto ao mosteiro de San Xulián de Moraime. Do antigo mosteiro beneditino, resta apenas a igreja, em estilo românico, do século XII. Merecem destaque especial o seu belo pórtico e os afrescos góticos no interior, pintados por volta de 1500, e representando os sete pecados capitais. No local há um albergue, num prédio recentemente reformado, e um bar. Na sequência, transitei pelas pequenas vilas de Os Muiños, Merexo, Vilar de Sobremonte, antes de chegar em San Martiño de Ozón, onde se destaca a igreja de San Martiño, que fazia parte de um antigo mosteiro, construído no século XII. Mais à frente, pude admirar um comprido celeiro de pedra, do século XVI, classificado como um dos maiores da Galícia (aproximadamente 27 m). Seguindo por uma estrada de terra, cheguei em Quintáns, atravessei a cidade e passei pela Capela de Santo Isidro. Um pouco mais adiante eu prossegui por um caminho de terra, que atravessou um grande bosque, até sair em A Grixa, onde avistei a igreja de San Cibrán. Prossegui por asfalto e cheguei em Senande, que atravessei vagarosamente. Na sequência, por uma ponte, eu transpus o rio Castro e logo cheguei em Trasufre, que abriga a capela de Nossa Senhora do Espinho, onde os peregrinos vão todo terceiro fim de semana de setembro, para curar suas verrugas numa fonte próxima. Uma estrada bastante agradável me levou à rodovia AC-552 (A Coruña-Fisterra), que atravessei com muita cautela, pois é um ponto cego, onde já ocorreram vários acidentes. Depois, transpus o rio Fragoso por uma moderna ponte e cheguei em Dumbría, uma vila que conta com todos os serviços. Após atravessar o Rego do Cheo, virei à esquerda e passei diante do albergue público de peregrinos O Conco, que se destaca pelo seu design moderno e multicolorido. Continuei até chegar em As Carizas, atravessei os riachos Valcabana e Vao Salgueiro, e cheguei à rodovia, onde caminhei 1 km pelo acostamento, até chegar a uma grande rotatória, onde se encontra a bifurcação, assinalada por dois monjóns, que indicam os caminhos para Finisterre e Muxía. Atravessei a rodovia com cautela, e prossegui até a vila de Hospital, onde no início do século XIII havia um hospital de peregrinos, provavelmente, o mais antigo da rota de Finisterra, e que hoje substituído por um moderno centro de informações. Desci por uma estrada de terra em direção a O Logoso, que dispõe de um albergue privado, um bar e uma pousada-restaurante. Continuei em descenso e logo cruzei o riacho Hospital pela ponte Vão de Ripas, e avancei pela encosta da montanha, com vistas incríveis do rio Xallas, que corre cercado por uma densa vegetação. Também podia ver, ao longe, a barragem de Castrelo. Já na cidade de Olveiroa, parei diante da igreja de Santiago de Olveiroa, construída no século XII, mas com reformas posteriores, que misturaram vários estilos arquitetônicos. Ali, após a hospedagem, lavagem de roupas e um farto almoço, deitei-me para descansar. À tarde, ainda tive ânimo para ir ao mercado, porém, na volta, pude perceber que o clima estava mudando, pois nuvens escuras cobriam todo o firmamento e soprava um forte vento do sul.
O local exato da bifurcação dos Caminhos: Muxía, para a direita, de onde eu vinha.
3º dia – OLVEIROA a NEGREIRA – 34 quilômetros
Esta etapa é um trecho de transição fundamental para quem se dirige a Santiago de Compostela, pois oferece uma imersão completa nas paisagens rurais, com colinas suaves, florestas exuberantes e pequenos riachos que acompanham o viajante. É uma jornada que convida à reflexão e ao desfrute da natureza envolvente. Tem início em Olveiroa, uma pequena vila conhecida pela sua tranquilidade e charme rural. O Caminho segue para norte, atravessando vários rios, como o Xallas, o que adiciona um toque de serenidade ao entorno. O percurso está bem-sinalizado e, embora com ascensos e declives de média intensidade, o trajeto é plenamente acessível para a maioria das pessoas. A paisagem durante este tramo é tipicamente galega, com campos verdejantes e árvores que oferecem sombra e descanso. Eu já percorrera esse itinerário em 2016, porém, no sentido inverso, assim, foi agradável caminhar na outra direção, pois me proporcionou uma nova perspectiva do Caminho. O entorno é o tradicional dos enclaves agrícolas, com fazendas e pequenas vilas espalhadas pelos campos ligeiramente ondulados. Em geral, é uma caminhada tranquila por áreas menos povoadas. No percurso, passei por pequenas cidades e aldeias, onde pode-se descansar ou desfrutar da hospitalidade local. Quase no final, entre A Peña e Zas, os caminhos florestais por onde passei estavam especialmente belos, já que as cores do outono se acentuam quando chove, numa mistura de verde e laranja vívida. No global, é uma jornada que permite aos peregrinos conectar-se com a natureza, desfrutar de paisagens idílicas e se preparar para os quilômetros finais em direção a Santiago de Compostela. Se você busca uma etapa que combine serenidade, beleza natural e um toque de história, esta é a opção perfeita. Sob chuva, embora menos intensa do que antes, cheguei em Negreira, passando sob os portões do famoso Paço do Cotón, uma antiga casa nobre, construída no século XIV, e que era, originalmente, um castelo medieval. A cidade é rica em história e possui diversos pontos de interesse para os peregrinos, além de ser um ótimo lugar para descansar, recarregar as energias e saborear a culinária local, antes de enfrentar a derradeira etapa desse Caminho. Infelizmente, nesse dia a garoa não deu trégua, seguindo até o anoitecer.
Próximo de Negreira, percorrendo um trecho maravilhoso!
4º dia – NEGREIRA a SANTIAGO DE COMPOSTELA – 22 quilômetros
Embora os típicos marcos miliários/monjões do Caminho continuem a apontar para Finisterre, existem inúmeras setas amarelas com as iniciais STC, que ajudam a seguir a rota em direção à capital jacobeia. Deixei cedo o local de pernoite, sob frio e cerração, e antes de seguir pela Avenida de Santiago, passei por uma escultura em pedra, nominada “Estátua da Vaca” e, logo depois, pela “Estátua do Peregrino”. De lá, segui em direção à vila de Chancela. Em seguida, percorri um trecho de estradas, ao longo e ao redor da AC-447. Nesse trajeto, caminhei paralelamente ao rio Tambre e aos arcos do viaduto que abriga a rodovia AC-544. Em Ponte Maceira, uma vila orlada por casas de pedra, atravessei uma grande ponte, também conhecida como “Ponte Velha”, de origem romana. Ela foi edificada sobre os antigos pilares, entre os séculos XIII e XIV, a pedido da Catedral de Compostela. Séculos mais tarde, ela foi novamente reformada. É composta por cinco arcos de cantaria e dois menores, e o arco central tem uma abóbada ogival. A ponte tem quase 3 m de largura e foi na Idade Média que ganhou grande importância, como travessia obrigatória na estrada para “Fines Terrae”, ligando os municípios de Negreira e Ames. Aqui, o rio Tambre mostra todo o seu esplendor, e antigos moinhos podem ser vistos em ambas as margens. A partir desse marco, iniciei um longo ascenso, por uma estrada de pouco tráfego. Passei em Trasmonte, e continuei até Carballo, pelo mesmo caminho. Saindo desta vila, atingi 281 m de altitude, o ponto mais alto da etapa, no famoso “Alto de Mar de Ovellas”. O descenso, inicialmente, passa por uma fonte, onde há bancos de pedra. Em seguida, virei à esquerda, e acessei um caminho que corta um bosque de carvalhos, sob um declive íngreme, de pouco mais de 2 km. Chegando em Augapesada, virei à direita e prossegui em ascenso por uma calçada, por 3 km, transitando pelas vilas de O Lombao e Ventosa, até chegar ao Alto do Vento. Neste ponto, há um bar e restaurante de mesmo nome, onde comprei água e tomei café. O local estava bastante movimentado, o que sugere que eles devem servir boa comida. Prossegui por uma trilha pavimentada e, em seguida, atravessei uma floresta até cruzar o Rio Roxos por uma ponte de pedra, já na vila de Quintans. Ascensos e descensos contínuos, por sendas empedradas, situadas sob florestas de carvalhos e eucaliptos, sem dúvida, adicionam um grau distinto de dificuldade a esta parte final da caminhada. Em Sarela de Abajo, no topo de um outeiro, a menos de 3 km para a chegada, avistei pela primeira vez as torres da Catedral, ao longe. Então, descendi até a Ponte Serela, atravessei o rio homônimo, e adentrei a Santiago pela parte histórica da cidade, utilizando as ruas San Lorenzo, e a do Campo das Hortas. Depois, pela rua das Hortas, enfrentei o aclive derradeiro, até aportar à Praça do Obradoiro, defronte à Catedral de Santiago. Ponto final de uma jornada épica, plena de boas recordações. Neste dia, o clima se mostrou estupendo, com temperatura ao redor de 13°C, e no percurso cruzei com mais de 300 peregrinos que seguiam em direção ao mar.
Em Santiago, finalmente! Gratidão, meu Deus!
FINAL
“Caminhar! Essa alegria profunda que se sente ao caminhar, alegria de deixar para trás. Não é questão de voltar quando se caminha. Pronto, partimos. É essa alegria imensa, complementar, do cansaço, do esgotamento, do esquecimento de si e do mundo. Todas as nossas antigas narrativas e esses murmúrios cansativos, encobertos pelo martelar dos passos na estrada. Esgotamento que tudo submerge. Sabemos sempre por que caminhamos. Para avançar, partir, ir ao encontro, tornar a partir...” (Rimbaud)
O Caminho de Santiago a Finisterra, ou o inverso, como eu fiz, é um percurso tranquilo e pleno de misticismo, somado às impressionantes paisagens que atravessa, com belas aldeias, vilas piscatórias, faróis e falésias, fazendo com que este itinerário some cada vez mais adeptos.
Ressalte-se que esse roteiro é anterior ao cristianismo, visto que os pagãos se deslocavam ao mítico cabo de Fisterre, na Costa da Morte, pois acreditavam que o sol morria ali, aproximando os mundos dos vivos e dos mortos. Nesta zona, repleta de rituais, mitos e lendas pagãs, fazia-se orações e oferendas para apaziguar os deuses, sendo que Finisterre é também considerado o local da Ara Solis, um lugar cabalístico, com um altar dedicado ao sol moribundo.
Atualmente, além de possibilitar a visita ao Santo Cristo de Fisterra, em Finisterre, e ao Santuário de A Barca, em Muxía, ao longo do trajeto, também nos aguardam recantos espetaculares em meio rural, como o leito do rio Sarela ou a região pecuária de Xallas. Esta diversidade nos possibilita experimentar as mais apreciadas iguarias da gastronomia galega: das caldeiradas de peixe e marisco, das empanadas, da carne local ao popular polvo à feira, ou a deliciosa torta de Santiago.
De minha parte, diria que percorrer o Caminho de Finisterra Invertido foi uma experiência profundamente gratificante, pois ele me ofereceu uma perspectiva única de peregrinação, permitindo-me refletir sobre a viagem ao pôr do sol, antes de me virar para a nascente, quando me dirigi a Santiago. Por isso, entendo que este percurso simboliza um círculo completo, agregando uma extraordinária viagem física e espiritual.
Para encerrar, diria que este roteiro oferece descobertas pessoais surpreendentes, paisagens de tirar o fôlego, além da companhia e amizade de outros tantos peregrinos. Em consonância, a escolha do caminho inverso me propiciou explorar a costa galega e auferir uma nova perspectiva desse esotérico itinerário, além de possibilitar obter meu 20º Diploma de Compostela.
Bom Caminho a todos!
Outubro/2025
Minha 20ª Compostela.