Há muito tempo atrás, no Japão, havia lutadores que gostavam de praticar suas habilidades por meio de um ato chamado tsujigiri, que envolvia testar suas espadas em vítimas inocentes. Em seu livro The Essence of Ninjutsu, Hatsumi sensei aborda uma história da época de seu próprio professor, Toshitsugu Takamatsu (1889 - 1972), que lembrava a prática do tsujigiri.
Naquele relato, um determinado sujeito aparece impedindo que trabalhadores buscassem água da fonte local, na base da montanha Maruyama. Um rufião ocupava o centro de uma ponte, na passagem para a fonte. Sempre que o trabalhador tentava dar a volta, o rufião obstruía novamente o seu caminho. Por fim, capturava o transeunte pela lapela e o arremessava da ponte, dentro do rio.
A história conta que Takamatsu sensei buscou resolver a situação. Ao chegar à ponte, encontrou o tal rufião, usando um chapéu que escondia sua identidade. Tal como fizera com os outros, o rufião impedia Takamatsu de atravessar a ponte e, por fim, tentou arrmessá-lo da ponte. Takamatsu reagiu a esse ataque, e se seguiu um pequeno duelo que terminou com Takamatsu sensei projetando o rufião ao chão. Neste processo, o chapéu foi arremessado ao vento, permitindo que Takamatsu reconhecesse a identidade do homem: era Miyata, um aluno de graduação mediana em jujutsu, de Mizuta sensei.
Takamatsu o corrigiu: "Como você trouxe desgraça à sua escola dessa forma? Você deveria estar envergonhado".
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O breve relato disposto nas duas primeiras páginas de um livro de nome "a essência do ninjutsu" parece já deixar claro o que se espera e o que não se espera de um praticante de sua linhagem. Espalhar bravatas, testar as técnicas em duelos despropositados e usar o poder da arte marcial de forma a oprimir o outro não tem nada a ver com o que buscamos. Ao contrário, o conhecimento de Takamatsu sensei é posto em prática para libertar os trabalhadores da opressão daquele estranho rufião.
O tsujigiri foi uma prática aceita em algum momento longíquo da história japonesa. Contudo, o espírito dos tempos leva à reflexão e ao amadurecimento. Aquilo que era importante no passado, cede lugar a uma finalidade mais nobre e adequada aos tempo modernos. Mais recentemente, também eram comuns os constantes duelos entre escolas, onde cada praticante tentava provar sua técnica por meio de desafios. Hoje em dia, o duelo é retórico: infinitas acusações de internautas no formato "holier than thou", em que praticantes de diferentes escolas tentam desbancar outras artes marciais como profetas do que funciona e do que não funciona.
Para meus alunos, tento trazer uma versão do ninjutsu que possa ser plenamente adequada ao que precisam para encarar o século XXI. Proponho uma prática que ajuda a desenvover o corpo, libertar a mente e dar paz ao espírito. No passado, meus senseis me ensinaram que o tatame tinha o poder de me libertar de ansiedades e de interromper o fluxo inesgotável de pensamentos mesquinhos que o dia a dia instala em nós. Após um dia intenso de trabalho, muitas vezes recheado de frustrações, o ninjutsu era e é capaz de reiniciar a mente e acalmar os ânimos.
Em 2024, muitas vezes, são o nosso ego, a nossa corrente de pensamentos e as nossas limitações que se colocam no meio da ponte impedindo que possamos chegar à fonte. Desejo apenas que possamos prevalecer neste duelo.