Era manhã em uma cidade agrícola do nordeste do Brasil quando todos da casa já estavam acordados. A casa estava agitada e todos corriam para lá e para cá. Não havia tempo a perder pois tudo deveria estar pronto até as seis horas da tarde. Cada um com uma obrigação, cada um com uma designação. A jovem Luiza corria pela casa com sua saia longa e uma vassoura na mão. Varria com muita rapidez cada cômodo. Apesar de ser tão cedo e não estar quente ainda, a rapidez com que realizava suas tarefas fazia o suor escorrer por sua fronte. Dona Amélia era uma senhora bem gorda de lenço amarrado na cabeça que era responsável pela cozinha. Na pequena cidade todos sabiam que ela era uma cozinheira de mão cheia. A cozinha era seu império onde reinava com maestria. Sabia onde ficava cada coisa e detestava que tirassem do lugar algo que ela havia posto. Sua função do dia era pegar cada panela dos armários e areá-la bem. Fazia isso com areia fina, truque ensinado por sua mãe quando ela ainda era criança. Miguel era o encarregado da fazenda, pessoa de confiança do dono. Foi enviado para a cidade primeiro para cuidar de tudo. Foi ele quem negociou a compra da fazenda, a contratação dos empregados para trabalharem na casa e do aluguel do maquinário para a plantação. Era ele quem dava as ordens enquanto os patrões não chegavam:
— Apressem-se todos! Precisamos deixar tudo pronto.
Seis meses atrás, quando chegou, o sotaque do gaúcho causava risadas das empregadas, mas tudo com discrição, pois elas o temiam bastante.
Quando comprou a fazenda já era bem grande, mas muito mal administrada. Fora comprada de um fazendeiro que queria deixar o ramo e mudar para a cidade. A vida na fazenda não lhe dava mais prazer e aproveitou o interesse do gaúcho para se livrar do problema que tinha.
—Só vendo a fazenda pelada, moço— ele disse a Miguel— o maquinário já vendi. E os móveis da casa também fui vendendo aos poucos.
Miguel teve dificuldade para compreender o “pelada” da conversa, mas a complementação do velho fazendeiro foi suficiente para entender do que se tratava. Após muita negociação com o homem, Miguel comprou a fazenda. Ele ligou imediatamente para o sul para avisar da aquisição. O patrão, como era de se esperar, reclamou:
— Ainda achei cara. Deveria ter negociado melhor que o preço cairia. Esse valor todo por uma fazenda sem nada? Nem móveis na casa tem.
Coisa de quem valoriza o próprio dinheiro!
Após a compra ficou decidido que ele precisaria de seis meses para pôr tudo em ordem para a chegada dos patrões.
A casa da fazenda era bem grande, cerca de quinze cômodos todos bem espaçosos. Na sala havia uma escada bem larga que dava acesso à parte superior da casa. Percebia-se pelos corrimãos que a casa não era velha mas estava mal conservada. Na parte superior ficavam os quartos, todos do mesmo tamanho. Na reforma da casa, Miguel, porém teve a ideia de retirar uma parede que ligava dois quartos e formar um quarto só. Os patrões teriam o maior quarto da casa. Teve todo o cuidado na compra dos móveis, escolheu como se fossem para si mesmo. Sempre pensando no conforto dos patrões. Antes disso porém, dona Laura já o havia instruído de como queria cada móvel da casa, outros, a maioria deles, veio pela transportadora mesmo.
A uns setecentos metros da casa ficava um velho paiol que estava desativado já há muito tempo. Ele era bem grande e antigo, parecia estar ali há mais tempo que a casa. O telhado em formato triangular tinha a base bem larga com telhas já escurecidas devido à ação da chuva e do sol. O portão de entrada estava com a base desgastada pela chuva e também exibia uma cor escurecida. Era trancado com uma corrente que dava duas voltas e fechado com um cadeado. Miguel olhou a situação do velho paiol por baixo do portão e viu que nada havia lá dentro além de uns sacos e restos de colheita jogados ao chão. Pensou em derrubá-lo, mas havia tantas coisas ainda a serem feitas na fazenda que preferiu deixar para depois.
No dia da chegada da família, na casa tudo já estava pronto, tudo limpo, organizado e os empregados ansiosos pela chegada dos patrões que era prevista para às seis da tarde, mas o voo atrasou. O percurso entre o aeroporto e a cidade era enorme e o casal chegou somente por volta da meia-noite. Com a demora, as empregadas já estavam dormindo, mas Miguel permaneceu fiel qual escudeiro sentado na soleira da porta, quando enfim chegam dona Laura, seu Bernardo Becker e a filha, a pequena Alice Becker que dormia nos braços do pai. Após cumprimentar todos, Miguel foi acordar as empregadas:
—Os patrões chegaram. Acordem! Venham preparar algo para eles tomarem. Estão cansados da viagem— gritou do corredor que dava acesso ao quarto das empregadas.
Dona Amélia teve dificuldades em levantar da cama devido ao excesso de peso. Arrastou-se até a borda da cama, colocou primeiro a perna esquerda para fora da cama e com o pé no chão tateava no escuro buscando os chinelos de borracha. Luiza fingiu que não ouviu o chamado e continuou deitada e imóvel. Até que dona Amélia veio bater à porta do quarto:
—Anda, menina! Deixa de enrolar. Todos os dias a mesma coisa. Levanta e venha se apresentar aos patrões.
Luiza levantou e passou por dona Amélia resmungando algo que a mulher não ouviu direito.
—Se não quiser trabalhar avise que eu vou imediatamente te devolver aos seus pais. Achava melhor quando estava passando fome na casa deles? Comendo farinha seca para viver?
A moça não respondeu, apenas torceu o nariz para o outro lado.
Na sala estavam os patrões sentados no sofá da casa. A pequena Alice não estava mais com eles havia sido levada para seu quarto, pois estava muito cansada da viagem.
—Senhor Bernardo, estas são a dona Amélia e a Luiza. O senhor precisa comer a comida que dona Amélia faz, ninguém sabe preparar uma galinha caipira como ela. Estes são os seus patrões senhor Bernardo e dona Laura Becker e tem a pequena Alice, mas a guria está dormindo.
—Satisfação, seu Bernardo e dona Laura—tomou a iniciativa dona Amélia.
—Essa guria é muito nova. Ela sabe fazer alguma coisa? Quantos anos ela tem?—perguntou apontando para a moça.
— Ela tem dezessete anos. Ela cuida da limpeza da casa—respondeu dona Amélia, pois Luiza era muito tímida.
—Hum—murmurou Laura olhando para os móveis para conferir se o trabalho estava sendo bem feito.
Enquanto Miguel continuava conversando sobre a fazenda, o clima da região e os negócios, as empregadas foram à cozinha preparar um chá para os patrões.
—Aquela mulher parece muito metida. A senhora viu ela olhando para a mesinha para ver se estava bem limpa? E me olhou de cima a baixo. Devia ter perguntado o que ela estava procurando em mim.
Dona Amélia tratou logo de cortar a conversa da jovem:
—Cale a boca! É muito cedo para você já está falando mal dos patrões, eles mal chegaram— ela era uma senhora muito discreta em suas funções.
Miguel encontrou dona Amélia em um restaurante caindo aos pedaços que ficava muito mal localizado. Ainda assim se os donos tivessem noção de como gerir negócios, o restaurante estaria lotado pois foi a melhor refeição que ele fez na região. Ao conversar com ela ainda no estabelecimento Miguel a convidou para trabalhar na fazenda e prometeu que ela teria o registro na carteira de trabalho. De imediato a mulher aceitou, não pensou nem duas vezes, pois sabia que aquele restaurante estava prestes a fechar as portas e ela ficaria sem nada.
Com alguns meses na casa, Miguel viu que precisaria também de uma pessoa para a limpeza, a cozinheira então lembrou da amiga que enfrentava dificuldades onde morava, mas que não poderia aceitar o trabalho pois a idade era avançada e sentia dores intensas por todo o corpo. Acertaram de enviar a filha Luiza em seu lugar. Com o dinheiro que recebesse, a menina poderia ajudar a família. A mãe da menina logo orientou à filha:
—Trate dona Amélia como me trata. Ela será para você como se fosse eu. Você deve respeitar seus patrões também como se fosse da família, são eles que vão te dar dinheiro. E cuidado com essa tua língua grande!
A última parte do conselho a menina não conseguia acatar, não porque fosse má pessoa, mas porque para uma menina pobre e isolada do interior qualquer coisa é notícia. Principalmente a vida alheia.
—Bom, vamos descansar, Bernardo? Estou exausta—disse colocando a xícara sobre a mesinha.
Miguel orientou onde era seu quarto. As bagagens ficaram na sala para serem guardadas no dia seguinte.
***
Ao acordarem, após uma noite de descanso, a mesa já estava posta para o café da manhã com o famoso cuscuz com carne de sol e queijo que os patrões nunca haviam provado.
—Esse café da manhã é bem forte. Vou querer repetir, dona Amélia.
—Fique à vontade, patrão. Fico muito feliz que tenha gostado.
—Eu disse, senhor Bernardo, dona Amélia é a melhor de toda a cidade quando se trata de fazer comida.
—Eu achei muito pesado para um café da manhã—reclamou Laura.
—Está bem, está bem. Quando vamos poder conhecer toda a casa e a fazenda? Quero ver o que tem de bom por aqui—disse Bernardo.
—Eu também posso ir, papai?—questionou a pequena Alice que tomava seu achocolatado sentada à mesa.
—Mas é claro que pode, princesa.
Ao terminarem o café foram passear pela casa e Miguel os acompanhou mostrando cômodo a cômodo. Em cada um deles contava uma pequena história de como estavam as paredes e o teto quando ele comprou e de como orientou na reforma. Essa conversa em nada agradava Laura que seguia o passeio de cara fechada todo o tempo. Aqui e acolá reclamava da qualidade de algum móvel comprado por Miguel, ao passo que Bernardo dizia sempre “Que é isso, Laura? Está tudo muito bom”. Ao terminarem o passeio pela casa, todos subiram na Hilux para conhecerem a fazenda. A pequena Alice quis ir sentada nas pernas da mãe:
—Nada disso, você já está grande e pesa demais. Vá com seu pai.
—Venha, pequena flor, venha com o papai.
Olharam de longe a vasta plantação de soja e caminharam contornando uma pequena parte no entorno dela. O calor era incomum aos gaúchos e o sol, apesar de cedo, já começava a tornar suas peles claras em avermelhadas e isso estava incomodando a filha:
—Papai, aqui está quente. Quero voltar para casa.
—Eu sabia que esse passeio daria nisso—disse Laura já impaciente com a reclamação da filha abanando-se com as mãos espalmadas—Você sempre faz isso.
—Chega, Laura, não fale assim com ela. Você sempre a trata assim. Não vê que ela é só um a criança?
Sempre que o casal brigava, Miguel olhava para o chão ou desviava o rosto para outra direção. Conhecia o casal desde sempre e já estava acostumado com as discussões entre eles, mas mantinha-se discreto a cada nova briga.
—Bom, já chega! Vamos terminar logo com isso. Quero ir para casa—disse ela aborrecida.
—Miguel, em outro momento vamos até o final da plantação. Quero ver com meus próprios olhos tudo que conquistamos.
—Grande coisa, estamos vendo tudo daqui, é só soja—interrompeu Laura.
Bernardo respirou fundo para não responder à mulher que fazia questão de lhe atormentar. Ele a amava profundamente, mas não entendia porque ela tinha um gênio tão forte. Tudo que ele fazia era para a família. Sempre a tratou como uma rainha e em seus planos ela e a filha sempre eram a prioridade. Lembrava de quando a conheceu em um acampamento da faculdade. Seus olhos azuis e cabelos que caíam sobre a testa logo lhe chamaram a atenção. Ele descobriu seu interesse por flores e lhe conquistou com um lindo buquê de hortênsias. Laura ficou impressionada como ele havia feito para conseguir um buquê tão lindo em um acampamento. Naquele dia conversaram a noite toda. Descobriram vários pontos em comum e o amor entre os dois foi crescendo a cada dia. Bernardo não compreendia em que momento do casamento a chama entre eles havia esfriado.
No caminho de volta, passaram pelo velho paiol.
—O que é aquilo? Pare! O que é aquilo?—quis saber Laura.
—Ah, é um paiol velho. Antigamente nas pequenas fazendas os grãos eram armazenados nos paióis. Só depois surgiram os grandes silos com tecnologia moderna. Este é bem antigo. Não entrei nele porque está fechado com corrente e um cadeado e não quis arrebentar mas dei uma olhada e está vazio. Não tem nada lá.
—Que coisa mais assustadora!—exclamou ela.
—Não me parece assustador. É até bonito. Olha essa madeira! É muito boa.
—Pois eu quero que derrube isso. Em seu lugar vou construir um viveiro de plantas e flores.
—Por que você não aproveita e reforma, Laura? Construa seu viveiro dentro. Tem esse aspecto feio por fora porque foi abandonado, mas ainda tem jeito. Se você olhar bem, dá para aproveitar as estruturas pois elas são bem sólidas.
—Não vou perder tempo com coisa velha. Quero que derrube! Vamos embora.
—Sim, senhora—assentiu Miguel.
Ainda no caminho de volta para casa, passaram pelo silo recém-construído. A fazenda era muito velha e não possuía um local para ao armazenamento dos grãos a não ser o velho paiol desativado. Então, Miguel, com a autorização do patrão, resolveu construí-lo na fazenda. Tal investimento custou muito caro, mas Bernardo tinha plena convicção que, com sua dedicação e ajuda do velho amigo e funcionário, tudo seria recuperado em breve.
Laura estava exausta do passeio pela fazenda e do calor que fazia na região. Tomou um banho para relaxar e começou a ler um livro enquanto o marido conversava com Miguel sobre negócios e seus planos para a fazenda.
Semanas após a chegada na fazenda, Laura começou achar entediante ficar na casa pois só podia conversar com as empregadas e com a filha, mas não tinha muita paciência para a menina. Alice tinha apenas cinco anos e estava na fase dos porquês “Mamãe, porque viemos para cá? Por que meus primos ficaram na outra casa? Por que o papai trabalha tanto? Por que você não trabalha? Por que a gente não vai ao parque? Por que você não brinca comigo?”. Aquilo a irritava profundamente.
Laura nunca teve vocação para a maternidade. Apenas tornou-se mãe porque todas as amigas da idade dela tornaram-se e porque seus pais e sogros sempre lhe cobravam isso. Quando comunicou ao marido que queria engravidar, ele ficou muito surpreso com o desejo da esposa. Após seis anos de casados, ele já havia perdido as esperanças. No dia em que a esposa lhe comunicou que estava grávida, tratou logo de fazer uma grande comemoração com um churrasco e música gaúcha a noite toda. Todos ficaram sem acreditar que a notícia era verdadeira e as especulações só pararam após a barriga de Laura aparecer.
—Pegue seus brinquedos e vá brincar no seu quarto— dizia sempre que sua paciência chegava ao limite.
A pequena Alice saía da presença da mãe e descia as escadas para brincar com Luiza, sua única amiga naquele universo adulto.
Laura sentia-se cada vez mais sozinha na casa enorme. Sua única distração eram os livros que trouxe consigo e a conversa que tinha com dona Amélia no final da tarde enquanto tomava seu chimarrão. Como gaúcha, Laura não ficava sem ele e teve de ensinar dona Amélia a fazê-lo. Bernardo estava sempre viajando ou resolvendo problemas da fazenda ou cansado demais. O corpo dela já sentia a falta do um toque masculino.
Durante o almoço todos comiam em silêncio. Dos funcionários, apenas Miguel permanecia na sala de jantar analisando umas planilhas com preços de vendas de soja pelo Brasil.
— Laura, amanhã à noite viajarei com Miguel.
— Já? Em Caxias do Sul era a mesma coisa. Viagens. Viagens. Você não para em casa.
— Não posso, preciso viajar com Miguel amanhã mesmo atrás de um comprador para a safra. O tempo avança e nem maquinário da safra temos ainda.
—Senhor Bernardo, falando nisso, depois de amanhã preciso ir até a cidade contratar o pessoal e o maquinário para começar a trabalhar na safra. Como o senhor sabe, não pudemos comprar maquinário na época da plantação então precisaremos alugar tudo por enquanto. E preciso também ir negociar o preço dos animais que o senhor quer trazer para a fazenda bem como dos empregados para lidar com eles. Entendo de plantação, mas de animais, não sei de nada. Preciso contratar pessoas competentes -disse o empregado que era mais achegado que um irmão e sempre desfrutava da companhia do casal.
— Impossível, Miguel. Preciso de você comigo amanhã na cidade. Ainda não conheço muita coisa por aqui. Faremos o seguinte, amanhã você contrata alguém para lhe substituir quando não estivermos na fazenda. Viajamos muito e o trabalho não pode parar quando estivermos fora. Ainda mais agora que investiremos na criação de animais também. Precisa ser alguém da terra mesmo que conheça bem a região e possa lidar diretamente com os trabalhadores e cuidar da fazenda quando não estivermos por aqui.
— Sim, senhor— respondeu. Mesmo sendo tratado como um irmão pelo patrão, Miguel reconhecia seu lugar de funcionário e procurava não misturar as coisas.
— Vamos dormir, Laura?—disse virando-se para a esposa.
O casal subiu ao quarto enquanto Miguel foi até a cozinha falar com dona Amélia.
— A senhora conhece alguém que queira trabalhar na fazenda? Um filho talvez.
—Não, meus filhos todos moram na cidade. Estou aqui só.
—Eu conheço— intrometeu-se Luiza que enxugava a louça— meu primo saiu de uma fazenda esses dias. Ele está sem serviço.
Dona Amélia torceu o nariz quando a menina mencionou o rapaz. Miguel logo percebeu:
— E por que ele saiu dessa fazenda?
— Não sei. Acho que porque era muito distante da casa da minha tia.
—Ele é trabalhador ou só mais um preguiçoso que foi mandado embora?
—Ele é boa gente, seu Miguel.
— Mande ele vir falar comigo amanhã antes de viajarmos.
No quarto Laura penteava os cabelos enquanto Bernardo deitava-se.
— Quanto tempo você passará fora?
— Não sei. O suficiente para encontrar um comprador que pague um bom preço pela safra. É nossa primeira safra, mas a soja está excelente. Miguel fez um excelente trabalho aqui. Precisamos fazer um bom negócio para eliminarmos as dívidas. Você sabe que a construção do silo nos deixou com muitas.
—Dívidas, dívidas... é só isso que você sabe falar. E nós? E eu? Como fico?
— Você fica aqui na fazenda.
— Não é disso que eu estou falando. Você sabe muito bem disso. Não se faça de idiota- respondeu aumentando a voz.
— Olha a maneira que você fala comigo. Isso é jeito de tratar seu marido, Laura? O que dirão os empregados quando souberem que minha mulher não me respeita?
— Ora, vá para o inferno— disse enquanto cobria-se com o lençol e virava o rosto para o lado oposto ao do marido. E assim passou-se mais uma noite em que o casal dormia de mal um com o outro.
Antes de pegar no sono, Bernardo levantou-se da cama e direcionou as aletas do ar-condicionado na direção do seu lado da cama, pois sabia que o frio por volta da madrugada incomodava a esposa.
No dia seguinte, passando por cima do seu orgulho, o marido cumprimentou a esposa com um bom dia como se nada houvesse acontecido na noite anterior. Mas Laura não lhe respondeu. E o casal desceu as escadas lado a lado juntos à pequena Alice para tomar o café da manhã, mas os corações estavam muito distante e nenhuma palavra foi dita. Nada chamava mais atenção do que o silêncio entre os dois.
— O rapaz que vai me substituir chegará em breve, senhor. Ficou acertado de ele vir hoje ao meio dia.
— Muito bem, muito bem. Resolva tudo antes de sairmos, não podemos deixar nenhuma pendência.
Luiza mal conseguia se conter durante o café da manhã. Queria que os patrões saíssem logo para ela poder conversar e quando teve a oportunidade:
— Dona Amélia, acho que os patrões brigaram ontem. A senhora reparou que eles nem conversaram hoje durante o café?— disse assim que os dois viraram as costas.
— Isso não é da sua conta, Luiza. Vá lavar os banheiros.
—A gente não pode nem conversar— resmungou a menina antes de sair.
Mais tarde à hora marcada lá estava Dênis na fazenda. A maneira como se apresentou logo chamou atenção de Miguel, pois além de ser muito autoconfiante, suas roupas pareceram muito modernas para quem iria trabalhar como encarregado em uma fazenda. Mas não podia exigir muito, pois a urgência por um substituto era grande.
— Sua prima disse que você trabalhava em uma fazenda antes?
—Sim, trabalhava em uma fazenda muito distante.
—E o que fazia na fazenda?
— Eu era o encarregado. Acima de mim só estava o patrão.
— Olha, não tenho muito tempo para entrevistar você. Eu e o senhor Bernardo, seu futuro patrão, vamos viajar logo mais. E você será o encarregado no meu lugar. Ficaremos fora por cerca de um mês, quando eu voltar, verei o trabalho que você fez. Se estiver bom, a vaga é sua. Você deverá ir à cidade, comprar os animais e contratar mão de obra para lidar com eles; o patrão quer diversificar a fazenda, além de trabalhar com plantio, quer trabalhar com criação de animais também e futuramente fará outros investimentos. Ah, e você vai cuidar da casa também enquanto não estivermos. Acha que consegue?
—Não terei problemas. Era isso mesmo o que eu fazia onde trabalhava. Cuidava da casa na ausência do patrão, lidava com os peões e com os animais.
—Dona Amélia irá lhe mostrar a casa e apresentar dona Laura, sua patroa, e a pequena Alice, porque já não tenho mais tempo, tenho que cuidar de uns assuntos antes de partir. Vá imediatamente à cidade e comece seu trabalho. Seja bem-vindo ao trabalho, Dênis—disse estendendo a mão ao novo empregado da fazenda.
—Obrigado, seu Miguel— respondeu apertando sua mão.
—Só um lembrete: de onde eu venho, a palavra de um homem é sagrada. Se ele se compromete com algo, deve honrar o compromisso.
— Não se preocupe, seu Miguel, não vou fazer nada aqui que eu já não tenha feito antes.
Capítulo 2
Da janela de casa, Laura contemplava o nada como sempre fazia dia após dia desde que chegou à fazenda. E suspirava lembrando de como era a vida que deixou para trás na cidade. Sentia saudades dos shoppings, das praças, das ruas cheias de gente, sentia saudades até do frio que incomodava de madrugada. Até que seus pensamentos foram interrompidos por um homem estranho que viu de relance entrando em uma caminhonete e lembrou que Miguel havia falado da contratação de um novo funcionário. Desceu de imediato as escadas da casa e foi até dona Amélia.
— Quem é aquele homem que vi saindo em uma caminhonete vermelha?
—Ah, aquele é o Dênis, senhora, foi contratado ontem pelo seu Miguel para ser o encarregado da fazenda. Começou hoje. Ele foi até a cidade saber o preço de animais, contratar os peões e negociar o aluguel das máquinas para a safra.
—Hum! E por que eu não fui apresentada a ele?
—A senhora estava dormindo e eu não quis incomodar. Eu apresento ele a senhora quando voltar. Acho que ele chega à noitinha.
—Sim, mas não esqueça. Quero conhecer meus empregados— em um lugar com absolutamente nada para fazer conhecer alguém seria aliviar o tédio, mesmo que fosse por pouco tempo.
—Sim, senhora.
Luiza varria do lado de fora da cozinha o mesmo lugar várias vezes só para escutar a conversa. Acompanhou Laura com os olhos quando esta saiu da cozinha.
—Este lugar onde você está varrendo já está limpo. Comece a varrer outros lugares da casa agora— disse Laura ao perceber que a menina apenas ouvia a conversa.
Luiza nada respondeu à patroa. Entrou apressada pela cozinha para falar com dona Amélia:
—Parece que essa mulher, não vai gostar do Dênis.
—Essa mulher que você está falando aí, é sua patroa. Caminha! Vá limpar a casa.
À noite Laura assistia TV na sala quando ouviu um carro se aproximando e foi até a janela ver quem era. Era Dênis que voltava da cidade. Como estava escuro, ela não pôde vê-lo. Entediada de passar o dia todo em casa, decidiu não esperar por dona Amélia. Desligou a TV e foi conhecer o novo empregado. Quando saiu pela porta ele não estava mais próximo ao carro. Ela então varreu todo o espaço com os olhos e se assustou com a voz atrás de si:
—Procurando alguma coisa, senhora?
Ela preferiu fingir que não havia se assustado. Não podia ver seus rosto com clareza pois estava ocultado pela escuridão da noite.
—Sim, ouvi um carro se aproximando e vim ver o que era. Quem é você? —sabia perfeitamente de quem se tratava, mas perguntou mesmo assim.
—Sou Dênis, o novo encarregado da fazenda. A senhora é?
—Laura Becker.
—Prazer, senhora—disse estendendo-lhe a mão mesmo no escuro.
Ela apertou-lhe a mão e ele a segurou firmemente. Notou que em suas mãos não havia calos comuns nas mãos de trabalhadores locais.
—Bom, preciso entrar agora. Até amanhã—ela disse para encerrar a conversa.
Laura entrou para o quarto e começou a lembrar novamente da vida que tinha antes de ir para aquele lugar. Sentia-se tão só! Queria muito ter dito não à ideia do marido, mas ele acabou convencendo-a de que seria um lugar melhor para os dois. Mudar para longe e investir todo o dinheiro que tinham em uma fazenda, em um lugar desconhecido, foi um tiro no escuro. Ela esperava mesmo que esse tiro acertasse em algo.
Os dias foram passando e ela continuava sua rotina entediante de assistir TV, ligar para a família, conversar com dona Amélia. Mas ela parecia estar sufocada em fazer as mesmas coisas todos os dias dentro daquela casa. Pelo telefone, conversando com a irmã, ela ficava ainda mais triste:
—Nossa! Você só podia estar louca mesmo. Deixar tudo o que tinha e ir morar em um lugar tão distante da sua família. O que você faz para se divertir aí? Brinca com os soins?
A gargalhada da irmã ecoava por entre os fios do telefone e penetravam na mente de Laura.
—Não ria assim! Foi o que eu escolhi e peço que respeite minha escolha— repreendeu à irmã.
—Ai, está bem! Não precisa se aborrecer —fez-se um silêncio entre ambas—Bom pelo menos você tem um marido apaixonado que faz tudo por você, aliás mamãe mandou um beijo para ele e para a minha sobrinha linda. Não aguento mais de saudade do meu amorzinho. Olha por que você não instala uma net aí? Assim podemos conversar por mais tempo e nos vermos. Seria maravilhoso. Além do mais, mamãe e papai ficariam contentes em ver a Alice e vocês também.
—Boa ideia! Vou ver isso hoje mesmo. Por que não pensei isso antes? Acho que já estou tanto tempo aqui que parece que voltei no tempo. Preciso me atualizar. Não aguento mais ver a programação local na TV. Olha, preciso desligar. Até mais! Diga a mamãe e papai que mandei um beijo.
Mal desligou o telefone desceu para a cozinha procurar dona Amélia.
—Dona Amélia? Onde a senhora está? — Ela não respondia da cozinha. Saiu pela porta e a encontrou na varanda— o que a senhora está fazendo?
—Oi, dona Laura! Estou descascando feijão verde para o almoço. Sente-se aqui. Vamos conversar— A velha senhora pôde ver a tristeza nos olhos da mulher—Dona Laura, sempre que se sentir sozinha pode vir conversar comigo. Não fique muito tempo dentro de casa.
—É assim mesmo que me sinto, sozinha.
—Ocupe seu tempo com algo que goste.
— Aqui não tem nada de que eu goste.
—Seu Miguel disse que a senhora queria fazer um viveiro no velho paiol. Por que não segue com seu plano? Posso pedir ao Dênis para mandar destruírem o paiol assim a senhora pode iniciar o que quer fazer. Ficar isolada mexe com a cabeça da gente.
—Pode ser. Onde está Alice?—perguntou mudando de assunto.
—Está brincando com a Luiza do lado da sombra da casa. Luiza é mais criança que a pequena Alice.
—Por isso não ouço barulho dela pela casa. Está distraída. Bom, pelo menos alguém está se divertindo por aqui, não é mesmo? Vou dar uma volta pela propriedade.
—Quer que eu lhe faça companhia? Depois eu termino com esse feijão— disse já colocando o quibano sobre a cadeira.
—Não. Não se incomode. Eu vou sozinha. Preciso esticar minhas pernas e pensar um pouco.
E saiu. Dona Amélia acompanhou a patroa com os olhos até ela dar a volta na casa e sumir de sua vista. “Pobre dona Laura!”, pensou. Do outro lado da casa Laura viu a filha com Luiza sentadas no chão cada uma com uma boneca. Luiza estava sentada segurando a boneca com as mãos e a movimentava dando pequenos pulinhos para indicar que a boneca andava. Dentre as várias bonecas que Alice tinha, Luiza escolheu a loura e que tinha o vestido mais chamativo:
—Ah, como sou rica e tenho muitas posses. Me chamo madame Sheila. Amanhã mesmo vou comprar vários carros e levar todos os meus filhos embora daqui—dizia com a voz fininha para simular a voz da boneca revelando talvez um desejo íntimo. As brincadeiras reproduziam a vida de muitos nordestinos que iam embora de sua terra ser forasteiros em terras hostis.
A pequena Alice com sua boneca no colo ria à valer com a imitação de voz que a garota fazia. Tão entretida estava com a brincadeira que nem ao menos percebeu a mãe passar. Laura se surpreendeu como a pequena Alice havia se acostumado com aquele lugar tão rápido. “Quisera eu já ter me adaptado tão rápido como ela!”, pensou enquanto continuava caminhando pelas terras acompanhada somente de seus pensamentos. Avistou de longe Dênis parando o carro sob uma árvore e caminhou até ele:
—O que está fazendo aqui?— perguntou ela enquanto dava a volta em torno do carro para encontrá-lo pois ele já havia descido do veículo. Quando ela pôde finalmente vê-lo assustou-se, pois ele estava sem camisa e não pôde disfarçar a surpresa em ver seu corpo tão em forma. Todos os peões que lá chegavam, e que de longe ela acompanhava pela janela na solidão de seu quarto, não tinham aquela compleição corporal. Desviou o olhar meio sem graça— O ... O que está fazendo aqui?—repetiu a pergunta.
—Ah, dona Laura! O pneu furou quando eu entrei na fazenda. Deve ter sido um prego. Não sei. Precisei parar aqui para trocar logo ou estrago seria maior. O que a senhora faz aqui afastada da casa nesse calor?— disse enquanto se abaixava para verificar melhor a condição do pneu.
—Bom, eu estava andando para me distrair um pouco—continuava olhando o horizonte mesmo com a luminosidade do sol irritando seus olhos claros, evitando assim olhar aquele homem sem camisa—enquanto você troca o pneu quero aproveitar para lhe dizer algo.
—Sim. Fique à vontade— disse olhando para a mulher de baixo para cima e levantando-se para pegar o estepe.
—Olha, eu vou precisar que você faça um favor para mim. Dois, na verdade.
—Estou às suas ordens é só falar— disse olhando-a no fundo dos olhos. Em seguida abaixou-se novamente para trocar o pneu.
Ela sentiu-se intimidada com aquele olhar, mas o acompanhou com os olhos enquanto ele se abaixava próximo ao pneu.
—Preciso que você vá amanhã até a cidade e procure um provedor de internet de qualidade para mim que funcione nesse lugar. Não importa o preço, quero que seja instalada o quanto antes. E também quero que você destrua o paiol futuramente. Isso não precisa ser agora. Em seu lugar quero construir um viveiro de plantas —Enquanto falava podia ver os bíceps e tríceps do homem trabalhando enquanto realizava a troca do pneu. Mas desviou o olhar novamente.
—Olha, se a senhora quiser, também posso pesquisar as plantas para seu viveiro. Assim faço uma viagem só à cidade.
—Ah, pode ser sim.
—Quais plantas a senhora vai querer? —continuava trabalhando enquanto conversava.
—Quero algumas flores e plantas medicinais.
—Não se preocupe, a senhora terá o viveiro mais sortido da região—e sorriu enquanto guardava o pneu danificado no carro.
—Está bem, mas lembre-se de que não tenho tanta pressa pelo viveiro como tenho pela internet. Afinal não conheço nada de plantas, vou pesquisar tudo na internet.
—Entendi. Terminei aqui. A senhora vai querer carona de volta ou vai continuar sua caminhada?
—Não, tudo bem. Volto com você— o calor era insuportável para ela.
No carro Laura sem jeito com o homem ainda desconhecido, perguntou:
—O que aconteceu com sua camisa?
—Bom, passei o dia todo com ela na cidade e o calor hoje está terrível, mas se a senhora quiser, posso vesti-la novamente.
—É importante que você se vista para trabalhar aqui. Não é apropriado que você fique andando por aí sem camisa.
—Não se preocupe isso não vai mais acontecer, senhora.
Em casa Laura passou pelo quarto de Alice e viu que a filha já havia tomado banho e estava no colo de Luiza:
—Mamãe, onde você estava?
—Estava passeado pela fazenda.
—Ah, mamãe, por que você não me chamou? Eu queria andar pela fazenda com você.
—Por que você estava com a madame Sheila e eu não queria atrapalhar.
A filha sorriu e pediu à mãe que lesse uma história para ela. Luiza aproveitou para cuidar em seus afazeres. Laura pegou o livro mais fino que encontrou na estante e leu para a filha. Alice sentada em seu colo, ouvia com atenção cada palavra olhando fixamente para o livro com a curiosidade de quem ainda não sabe decifrar as palavras, mas lê as imagens.
—Lê outro pra mim, mamãe— disse ao final da leitura.
—Luiza? Luiza?—gritou Laura do quarto.
—Sim, senhora –perguntou Luiza voltando para o quarto às pressas.
—Leia um livro para Alice e depois a coloque para dormir.
Luiza não estava ali para ser babá. Mas os patrões achavam que limpar a casa era muito simples para se pagar um salário para a menina. Então acrescentaram mais essa função para justificar-lhe os proventos, mas nada combinaram com ela. A moça ainda não compreendia o conceito de direitos trabalhistas. Mesmo que compreendesse talvez nem se importasse, afinal precisava do dinheiro.
Como já havia delegado a função de mãe, foi almoçar. Após isso ela decidiu ler livro no quarto. Nem ao menos viu o tempo passar e quando percebeu que já era tarde. Desceu as escadas para conversar com dona Amélia como todas as noites fazia enquanto tomava seu chimarrão.
—O que a senhora sabe daquele Dênis, dona Amélia?
—Só que ele é primo da Luiza. Não sei muita coisa— respondeu depois de um longo bocejo.
—Hum. Encontrei com ele hoje e falei sobre o paiol. Ele se ofereceu até para consultar os preços das plantas e flores para mim. Que horas ele chega aqui?
—Hoje?
—Todos os dias
—Ele dorme aqui, senhora. Ao lado do meu quarto no corredor dos empregados desde que foi contratado.
—E por que nunca o vejo pela casa?
—Ah, é porque seu Miguel deu muitas tarefas para ele resolver enquanto não estiverem em casa. Se precisar dele eu posso ver se ele já chegou ou se saiu de novo.
—Não tudo bem. Eu só não sabia dessa informação.
E olhando para dona Amélia que fechava os olhos de sono lentamente enquanto conversava disse:
—Estou vendo que a senhora está com muito sono. Está quase cochilando. Vá deitar-se. Eu termino aqui e já subo também.
—Não se preocupe. Eu espero.
—Eu insisto, vá deitar-se. Preciso de você bem disposta amanhã, pois Bernardo chegará. Pode ir para seu quarto que fico aqui.
—Seu Bernardo e Miguel chegarão amanhã?!
—Sim.
—Como o tempo passa rápido! Tudo bem, então. Vou dormir. Ele chegará de manhã cedo?
—Não. À tarde.
— Dá tempo de preparar tudo. Boa noite, então!
Laura terminou seu chimarrão diário e ao voltar para o quarto exausta da caminhada que deu pela fazenda mais cedo precisava dormir. Apesar de o chimarrão ser estimulante, Laura tinha esse hábito incomum desde que morava no sul e tomava a bebida toda noite. Foi até o banheiro iniciar seu ritual de beleza. Sobre a bancada de porcelanato do banheiro havia uma infinidade de cremes, loções, perfumes, hidratantes, esfoliantes e lenços umedecidos. Mal ela iniciou aplicação do creme facial, voltou correndo de lá e subiu na cama, muito ofegante. Não percebeu que em seu rosto havia creme não espalhado que lhe conferia um ar cômico.
—E agora? Como vou me livrar daquela maldita rã?— pensou em chamar dona Amélia.
“Ele dorme aqui, senhora” lembrou da conversa que havia tido com ela mais cedo.
—Vou ter que ir lá chamar o Dênis. Não posso dormir aqui com esse monstro no meu banheiro. E se ela sair de lá e vier para o quarto no meio da noite?—arrepiou-se de medo e correu direto para a porta do quarto com os olhos fechados.
Laura desceu as escadas correndo e chamou à porta do quarto de Dênis, mas não muito alto pois não queria causar alarde e acordar a casa toda. Ela se sentiria ridícula com medo de uma rã:
—Senhor Dênis? Senhor Dênis? — como não ouviu nenhuma resposta insistiu, desta vez batendo à porta— Senhor Dênis?
Bêbado de sono e sem ter ouvido direito a voz que lhe chamou, levantou-se para atender às batidas na porta. Ela pôde ouvir o arrastar dos chinelos de Dênis pelo quarto caminhando em direção à porta. E mais uma vez lá estava aquele homem sem camisa em sua frente. Desta vez ela pôde ver melhor seu rosto pois quando ele abriu a porta do quarto a aproximação foi inevitável. Mais cedo, no primeiro susto de vê-lo sem camisa, acabou não prestando atenção nos detalhes de seu rosto.
Dênis era um homem alto, bonito e jovem, cabelos ondulados volumosos e negros como a noite. Seu rosto retangular, ao contrário das outras pessoas que Laura vira por aquela região, não tinha manchas de sol. Seus dentes eram como pérolas escondidas em uma boca carnuda. Os shorts apertados e bem reveladores que trajava tiravam a concentração dela:
—Dona Laura? O que faz aqui?— e esboçou um leve sorriso ao vê-la ali parada em sua frente com creme na maçã do rosto, muito desconcertada por ele está seminu.
—Eh... ah—por um momento ela esqueceu o que viera fazer ali—há uma rã no meu quarto. Uma rã— e empostando a voz e levantando o rosto para cima reassumindo sua postura de sempre, ordenou— mate-a!
Dênis percebeu que a patroa ficava visivelmente sem jeito em sua frente e o esforço que fez para dar aquela ordem também foi percebido.
—Sim, vamos lá— e entrou no quarto novamente para vestir uma bermuda.
Subiram para o quarto. A rã deu um pouco de trabalho para ser capturada. Deu a volta duas vezes atrás do vaso fazendo-o de bobo:
—Então você quer me fazer de idiota?— disse à rã— Toma! Elevou a voz acertando-a com o chinelo.
Descalçou o outro pé e improvisou um chinelo como vassoura e o outro como pá. Varreu a rã e colocou-a no cesto de lixo.
—Pronto! Missão cumprida—disse levantando a voz mais uma vez para ser ouvido pela patroa.
—Tem certeza que não tem outra por aí?— perguntou de dentro do quarto.
—Sim, tenho. Olhei tudo.
—Absoluta certeza?
—Sim. Venha conferir.
Ela entrou vasculhando todo o banheiro com o olhar para certificar-se de que não havia mais nada. E ficando de costas para o balcão agradeceu:
—Muito obrigada! —estava ofegante. Não se sabe se de medo da rã ou pela presença de Dênis em seu banheiro.
—Permita-me—disse aproximando-se de Laura e olhando-a fixamente nos olhos de tal modo que ela conseguia sentir sua respiração. Ela recuou inutilmente devido ao balcão atrás de si. Ele então esticou o braço na altura da cintura de Laura até alcançar um lenço umedecido no balcão e o levou em direção ao rosto dela limpando o creme deixado pela fuga repentina da rã—Seu rosto estava sujo. Bom, preciso ir agora. Tenho que acordar cedo para encontrar sua internet e dar uma adiantada pesquisando logo o preço de algumas plantas. Se aparecer outra rã, é só correr até meu quarto que venho novamente.
Laura ficou ali imóvel no banheiro, sem entender o que acabou de acontecer. Sentiu a necessidade de tomar um banho. Durante o banho pensou na conversa que teve com Dênis mais cedo e no episódio que acabara de acontecer no banheiro. Enquanto a água do banho caia em seu rosto e percorria seu corpo nu, Laura tocou-se e lembrou do castanho dos olhos dele a fitar-lhe arrepiando todo o seu corpo. Sentiu-se culpada, mas aliviada, enfim.