Eventualmente Gödel aparece nas discussões jurídicas como aquele que teria atestado que nossos sistemas jamais seriam ao mesmo tempo completos e consistentes. Alguns especialistas não gostam muito desta transposição de conceitos entre as áreas. Insistem que a prova de Gödel vale de maneira muito específica para a aritmética. Isto não inibe os juristas. Nem inibiu Lacan, por outro caminho, de afirmar: o último teorema de Gödel impede que a lógica moderna "suture" o sujeito da ciência (Écrits, 1966:861).
Já no século passado a metamatemática indicava a impossibilidade de os sistemas eclipsarem o homem. Tema enorme hoje. Talvez isto tenha se insinuado primeiro em Gödel. Logo depois, depreende-se mais diretamente de Turing. Enfim, está declaradamente em Chaitin. Em Turing, há uma máquina universal da qual não se pode decidir se ela decidirá. Às vezes esquecemos que a primeira máquina computadora de Turing era o homem.
Herdeiro inovador desta tradição de pensamento, Gregory Chaitin, por um caminho diferente do de Turing, descobriu muito precocemente (começou seu trabalho antes dos 15 anos de idade!) como calcular a probabilidade da máquina universal decidir. Sua fórmula, ao invés de entregar um resultado numérico, provava que este resultado era definitivamente incalculável. A probabilidade de decisão é, portanto, incalculável também para o homem - que se vê imprevisível mesmo em condições determinísticas. Sobre isto, há o interessante texto de Seth Loyd, do MIT, sobre um tema que nos importa, a liberdade (pensada mais à maneira de Turing que de Chaitin): A Turing Test for Free Will.
Em Chaitin, de maneira mais compreensível que na incompletude de Gödel ou na incomputabilidade de Turing, e com muitas novas facetas, encontramos o decisor como um elemento aleatório na linguagem. Chaitin é o autor de um conceito de aleatoriedade precioso ao humanista - o aleatório como irredutível às regras do sistema, mas gerador de significação nele. Seu conceito permite-nos resguardar um senso de dignidade do ser humano em meio a uma computação cada vez mais abrangente, e que nos tem por objeto. A máquina haveria de nos ter como um fator de aleatoriedade (questão para o direito). A ciência também (Miguel Nicolelis cita Chaitin, da Costa e Doria, neste sentido, em The Relativistic Brain, 2015). Em linguagem, somos fatores de criatividade.
Este é um, e apenas um, dos pontos que desejo muito colocar em exame com os senhores. A partir daí, os temas se desdobram. Para explorá-los, seria maravilhoso sermos introduzidos ao repertório de pesquisa do Lawgorithm. Podemos reunir olhares sobre o efeito da vedação do non liquet nos sistemas jurídicos; ver como sistemas são programados para resolver impasses de outros sistemas, ou criar novos sistemas mais complexos; discutir a autorreferência e suas dificuldades, ou os limites da linguagem (é uma preocupação do Greg: The Perfect Language. Podemos ver porque alguns sistemas decisórios em computação são determinísticos e outros não.
Virginia é matemática e epistemóloga. Defensora de uma epistemologia aberta e pluralista (é sua tese), ela encontrou no trabalho de Greg uma expressão da arquitetura de conhecimento que ela estuda, against method. Mas não apenas. Encontrou conceitos fundamentais à abertura epistemológica: se há aleatoriedade dos fundamentos da linguagem, estão dadas as condições primeiras da criatividade. Creio que seja importante olharmos isto. A abertura que eles percebem na raiz do saber pode ajudar a pensar uma noção de justiça acolhedora à diversidade cultural.
A conversa com Greg e Virginia é uma honra, uma alegria e um prazer imensos (vale vê-los neste vídeo), e também um tesouro de ideias possíveis que peço a oportunidade de partilhar com professores que sustentam o mais forte pensamento brasileiro, e colegas, com quem divido preocupações e curiosidades.
Andréa Naccache