“O maior prejuízo é a perda das relações sociais e da própria percepção de si”, diz Marizilda Pugliesi

Para a Psicóloga do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Unifesp, Marizilda Pugliesi, exceder o uso de mídias digitais atrapalham a relação interpessoal que é necessária inclusive para que a gente perceba os nossos próprios limites.


O mundo que esperamos para o futuro depende do que construímos no presente. São importantes os diálogos sobre questões que convivemos no dia a dia para que mais adiante não se torne um problema irreversível, e tratando-se de futuro é preciso observar as crianças e adolescentes do agora, é a partir do que lhes é ensinado que iremos colher bons frutos.

A discussão sobre a forma correta de utilizar as redes sociais é imprescindível que se inicie o mais cedo possível, já que o mundo virtual está cada vez mais presente na vida das crianças. É preciso que dialoguemos sobre os limites do respeito ao próximo e também dos próprios limites, para que problemas mentais como transtorno de ansiedade e depressão não seja uma consequência da utilização das redes sociais.

Para a psicologia do CAISM Unifesp, a tecnologia proporciona muitas formas de se obter sucesso no âmbito pedagógico, mas ela não deve ser usada como desculpa para se terceirizar o cuidado.



Uma criança em desenvolvimento precisa brincar, competir, desenvolver a psicomotricidade, ela vai se desenvolver de uma maneira global, não é só na cabeça, mesmo que os jogos sejam importantes e desenvolvam coisas como o raciocínio matemático"

O que pode levar os jovens a desenvolverem novas patologias através das redes sociais?

MP: Fazendo um retrocesso histórico do desenvolvimento da pessoa, o ser humano é a única espécie que precisa de um semelhante para se constituir como pessoa, como um indivíduo, ele precisa de uma relação pessoal, essa criança vai se percebendo na relação do cuidado, então de acordo com a faixa etária ela tem necessidades psíquicas, afetivas, e através disso ela vai se constituindo, nada substitui no início da vida de uma pessoa a relação com uma pessoa, para que ela se perceba através do olhar dessa pessoa que cuida dela. A criança vai se percebendo como uma pessoa através do olhar e das expectativas que as pessoas têm em relação a ela. É muito comum a gente ouvir as pessoas falando ainda quando bebê recém nascido o que ele será quando crescer, as pessoas trazem expectativas para aquela criança e isso é importante, que se suponha algo para aquela criança, para que ela possa existir como pessoa. Porém a gente percebe que no mundo moderno, a mãe que ao contrário das mães de antigamente que tinham maior disponibilidade, porque era a função da mãe criar e cuidar dos filhos.

A mulher moderna depois da Revolução Industrial, acabou ocupando um outro espaço, não apenas a da mãe cuidadora, mas também a de mão de obra, ela foi para o mercado de trabalho, então falando de forma geral, existem especificidades, não podemos afirmar por exemplo que toda criança moderna está suscetível a desenvolver transtornos mentais através dos eletrônicos. Como os tabletes, que tem aquelas musiquinhas, aqueles desenhos, aquelas imagens que capturam as crianças, não à toa as pessoas responsáveis por criar isso são pessoas que sabem como fazer para chamar atenção de crianças em determinada faixa etária. Sendo assim, desde cedo essas relações se dão não só com o seu semelhante, mas também com os eletrônicos.


Quais são os problemas causados por essa realidade onde os jovens estão extremamente conectados às novas tecnologias?

MP: As crianças são submetidas às intoxicações eletrônicas, a uma carga muito grande, muito intensa dessas relações, elas têm um prejuízo emocional muito grande, porque uma criança quando está em contato com uma pessoa, ela faz perguntas, tem contato com o sentimentalismo, e a criança vai respondendo afetivamente através disso. Com os eletrônicos, fica essa coisa metalizada, em uníssono, então as respostas são sempre as mesmas, a criança aperta um botão, fala, as músicas são sempre as mesmas, os personagens são sempre os mesmos, as coisas se repetem e não geram troca, não existe uma troca afetiva, apenas uma troca virtual, crianças que são muito prejudicadas, a gente até percebe no modo como essa criança fala, imitando o modo ou fala de um personagem, então são crianças que estão se constituindo de uma forma estereotipada, daí está o prejuízo, ela evolui dentro dessa cultura, se não houver uma intervenção precoce, cada vez o prejuízo será maior, então aí surge uma suscetibilidade, porque são crianças que tem o seu desenvolvimento psicossocial prejudicado.

Esses dias fui chamar meu neto pra comer e ele pediu pra eu esperar que ele já estava “morrendo”, como assim? Esses jogos e esse ambiente, são interessantes, interativos, é nesse fascínio, que surge o prejuízo social, porque uma criança em desenvolvimento precisa brincar, competir, desenvolver a psicomotricidade, a criança vai se desenvolver de uma maneira global, não é só na cabeça, mesmo que os jogos sejam importantes e desenvolvam coisas como o raciocínio matemático, porém a criança tropeça quando vai andar, mal sabe andar em uma calçada esburacada como as de São Paulo, Vejo muito dessa fragmentação, os jovens vão perdendo as relações sociais, vão perdendo a relação com o mundo real devido a esse contato extremo com o mundo virtual. A grande suscetibilidade está relacionada a isso, primeiro com a constituição psíquica, depois com a falta de limite dos pais que acabam se acomodando porque as crianças ficam quietas, não dão trabalho, e justificam com essas coisas de que vão se desenvolver de algum jeito e que no final também estão capturados nos seus celulares, recebendo mensagens, fotos, enfim, que são também muito interessantes, mas a vida não é só isso.

Segundo estudos as crianças podem começar a ter dificuldade em ter a capacidade de leitura de expressão facial, as expressões que elas conhecem são através de emojis, pois é o modelo de conexão que ela tem com o mundo são esses personagens estereotipados, ela fala e age como um personagem.


Acredita que a busca por status e popularidade através do meio digital incentiva a consumir cada vez mais esse mundo virtual?

MP: É o meio que os jovens vivem, dependendo de quantos “Okeys” eles recebem, eles são mais ou menos populares. Então é um consumo, o adolescente precisa pertencer a um grupo, existe uma sensação de pertencimento, ele precisa estar em um grupo e se relacionar com ele, e se ele não for aceito por esse grupo virtual, é como se ele não participasse e não tivesse a sua identidade naquele grupo o qual ele se identifica, é muito difícil, e o adolescente é muito vulnerável à tudo isso.


E quão prejudicial para o ser humano é essa busca incessante por consumir essas diversas informações que são oferecidas nas redes sociais?

MP: O ponto nevrálgico, é a perda do contato com a realidade, com as relações afetivas, por que que é importante que as pessoas façam as suas alimentações sentados à mesa? Quando as pessoas se unem, a alimentação não é apenas algo que nos satisfaz fisicamente, a gente come, mas existe uma troca de afetos, a gente estando sentados à mesa trocamos coisas, criamos laços, não à toa quando queremos bater um papo, a gente convida a pessoa pra tomar um café, tomar uma cerveja, comer um pedaço de pizza, essas coisas estão interligadas, o afeto, aquilo que se come, aquilo que se faz junto, na medida que se perde isso, o contato afetivo com as outras pessoas, tudo fica prejudicado, as relações, a percepção de si, porque a gente se percebe na relação com o outro. Quando estamos sozinhos, nós não percebemos o nosso próprio limite, só podemos perceber isso quando o nosso limite atinge o limite do outro, a tendência do ser humano é a busca do prazer, busca pelo desejo, satisfazer o desejo, mas muitas vezes para que o ser humano satisfaça todos os seus desejos, ele invade o limite de outro, e quando vivemos em sociedade, a gente precisa estabelecer limites, existem regras sociais, se não é estabelecida uma relação com o outro, não dá pra conviver socialmente. O maior prejuízo é a perda das relações sociais e da própria percepção de si.


Hoje em dia é muito comum a gente ver pessoas que falam e agem da forma que bem entendem sem filtro algum na relação e tratamento com as outras pessoas na internet não é mesmo?

MP: Hoje em dia não existe uma relação pessoal entre as pessoas na internet, muitas vezes apenas se fala e não se sabe nem pra quem, mas é uma questão importante, tem que haver um limite, vivemos num momento mundialmente, que nos damos conta de uma série de questões que teremos que lidar, questões como o respeito ao outro, à natureza, temos que ser solidários, senão não sairemos dessa, temos que rever todas essas questões. Eu trabalho muito com crianças, e vejo que através da educação, que eu acredito que seja a única saída para a mudança social, juntamente com a cultura, as crianças já estão tendo essas questões de respeito à natureza, de colocar lixo no lixo, então eu tenho muita esperança que as coisas podem mudar, porém dependerá de muito esforço de nossa parte, porque é muito mais interessante quando já estamos exaustos e ficar apenas recebendo informação, mas a vida é outra. Um jornalista, por exemplo, pode ter como instrumento de trabalho as redes sociais, os eletrônicos etc, mas o mundo que ele vai viver tem que ser o mundo real, as informações reais, a ética de um jornalista é importante, e muitas informações partem deles, os jornalistas que são responsáveis em fazer a sociedade pensar sobre o mundo, trazendo para a sociedade as informações.


Como a senhora essa questão do ‘Fear Of Missing Out’? Acredita que deve ser considerado uma patologia?

MP: O Fomo é uma condição humana, o ser humano sempre vai em busca do seu desejo, sempre falta algo, Freud já falava isso desde o final do século XIX, que o homem vai em busca da satisfação dos seus desejos, porque sempre lhe falta algo, e essa é uma condição humana, não é um transtorno, porém algumas pessoas tendem a patologizar tudo, a pessoa não pode ficar triste que já está deprimido, não pode ficar alegre porque tem mania, a pessoa não pode ficar ansiosa porque pode estar com transtorno de ansiedade, não é assim, no meio de uma pandemia quem não estiver ansioso está negando tudo que está acontecendo por aí, se não está triste porque perdeu alguém é porque está negando, são sentimentos. O que torna algo patológico, é a dimensão do fato, do fenômeno, quando uma pessoa perde em qualidade de vida, aí a pessoa está adoecendo, é isso que devemos medir, mas se uma pessoa está se utilizando dessas coisas, mas a vida vai bem, a criança está brincando, vai bem na escola, ou não, a mulher está dando conta, sai com as amigas, o homem está trabalhando, tem amigos, sai pra beber, pra jogar futebol, a vida está indo, o problema é quando isso para, as pessoas param de fazer as coisas, daí devemos olhar com mais atenção.


Existe uma forma saudável de consumir informações através do ambiente digital?

MP: Meu marido comprou um telescópio um pouco antes do início da pandemia, e existem sites incríveis sobre astronomia, e enquanto olhamos as estrelas, ele consegue ver na tela o céu naquele exato momento na direção que estamos olhando, então é possível identificar todas as estrelas que estamos vendo, e isso é fascinante, conseguimos saber o que outras pessoas do outro lado do mundo estão pensando sobre qualquer coisa que quisermos pesquisar, converso com minha filha que mora em outra cidade qualquer hora do dia, converso com meu neto que mora em outra cidade e ela conta as coisas, canta as musiquinhas que aprendeu na escola, e faz as gracinhas todas que ele tem pra fazer, ou então ele me liga pra dizer que está com saudade, aí a gente chora. É fascinante, além da questão pedagógica, é um avanço da humanidade, outro dia estava lendo, e os computadores utilizados para realizar a primeira viagem à Lua, eram menos potente do que os celulares que usamos hoje em dia, então qualquer pessoa tem a capacidade com a tecnologia que possuímos de fazer coisas incríveis, é fascinante como podemos nos comunicar, avançar culturalmente, tecnologicamente, então é muito saudável se usado de uma forma consciente.


Dra. como esse período de quarentena modificou a sua vida profissional?

MP: Eu nunca pensei na possibilidade de poder atender online, sou psicóloga há 41 anos, sempre tive consultório, trabalhei na rede pública, sempre fui funcionária pública, nunca pensei que pudesse atender crianças, adultos, adolescentes, dar aula online para alunos de medicina, psicologia, e fui obrigada nesse período a ter que dar conta dos meus pacientes, não podia de jeito nenhum abandoná-los, então fui propondo para eles essa forma de trabalhar e deu muito certo, e juntamente com o Conselho de Psicologia, nós montamos formas, plataformas, para podermos dar conta, não só atendendo quem a gente já atendia, mas também para abrir a possibilidade de abrir oportunidade para que outras pessoas também poderem usufruir do nosso serviço, porque muitas pessoas buscaram com a pandemia, até por conta dessa confusão toda, então temos usado muito, abrimos no serviço público a oportunidade de pessoas que trabalham em hospitais, a possibilidade de usar os nossos serviços, atendemos profissionais da linha de frente, e outros psicólogos abriram oportunidades para atendimento de graça pra quem necessitasse, tem sido muito interessante, e as pessoas têm se beneficiado muito com isso e nós também, porque é mais um instrumento de trabalho, porque quando a gente voltar com os atendimentos presenciais, a gente não vai voltar só com os atendimentos presenciais, teremos que fazer uma mistura